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Nicolas Pelicioni de OLIVEIRA
Licenciatura em Letras - Ibilce, UNESP
http://nicolas-pelicioni.blogspot.com/
nicolaspelicioni@hotmail.com



Algumas notas:
A tradução não é minha, meu trabalho é apenas o de leitura: comparo o
texto original francês à tradução, acrescentando as notas que
considero importantes (em alguns casos, para justificar a tradução -
eventualmente, mudo a tradução!), e acrescento imagens para
contextualizar. Infelizmente, não tenho o nome do tradutor do texto
em português.

Os textos que utilizei foram os seguintes:

BAUDELAIRE, C. Sobre a Modernidade. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1996.

BAUDELAIRE, C. Le peintre de la       vie moderne. Disponível em: <
http://baudelaire.litteratura.com>.   Acessado em 2 de novembro de
2012.


A seguinte nota acompanha o texto que utilizei em português: “Esta
obra foi digitalizada pelo grupo Digital Source para proporcionar, de
maneira totalmente gratuita, o benefício de sua leitura àqueles que
não podem comprá-la ou àqueles que necessitam de meios eletrônicos
para ler. Dessa forma, a venda deste ebook ou até mesmo a sua troca
por qualquer contraprestação é totalmente condenável em qualquer
circunstância. A generosidade e a humildade é a marca da
distribuição, portanto distribua este livro livremente.”

Em seguida, são apresentados os sites:
<http://groups.google.com/group/Viciados_em_Livros>
<http://groups.google.com/group/digitalsource>

Além destes, muitas das imagens foram pegas no:
<http://www.wikipaintings.org/>
Charles Baudelaire

                LE PEINTRE DE LA VIE MODERNE
                     SOBRE A MODERNIDADE




                         PAZ E TERRA
                       Coleção Leitura




                 © Editora Paz e Terra, 1996.
Editores responsáveis: Christine Röhrig e Maria Elisa Cevasco
         Edição de texto: Thaís Nicoleti de Camargo
                Produção Gráfica: Katia Halbe
                     Capa: Isabel Carballo
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
               (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

                    Baudelaire, Charles, 1821-1867.
            Sobre a modernidade o pintor da vida moderna /
          Charles Baudelaire; [organizador Teixeira Coelho].
       — Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996. — (Coleção Leitura)
                            ISBN 85-219-01984
          1. Arte 2. Arte — História 3. Baudelaire, Charles,
      1821-1867 4 Crítica de arte 5. Pintura 6. Usos e costumes
                I. Coelho, Teixeira, 1944- II. Título.
                               III. Séries.
96-2061                                                       CDD-709
                  Índices para catálogo sistemático:
                    1. Arte : Avaliação crítica 709
                     2. Arte : Estudos críticos 709
                         3. Arte : História 709




                       EDITORA PAZ E TERRA S.A.
                          Rua do Triunfo, 177
                      01212-010 — São Paulo — 5P
                          Tel.: (011)223-6522
                Rua Dias Ferreira nº. 417—Loja Parte
                   22431-050 — Rio de Janeiro — RJ
                         Tel.: (021) 259-8946
                          Conselho editorial:
                              Celso Furtado
                           Fernando Gasparian
                             Roberto Schwarz
                         Rosa Freire D’Aguiar
                                   1996
               Impresso no Brasil / Printed in Brazil
Índice
Le peintre de la vie moderne
       O pintor da vida moderna

I
Le beau, la mode et le bonheur                              2
O belo, a moda e a felicidade
II
Le croquis de moeurs                                        8
O croqui de costumes
III
L’artiste, homme du monde, homme des foules et enfant      10
O artista, homem do mundo, homem das multidões e criança
IV
La modernité                                               22
A modernidade
V
L’art mnémonique                                           28
A arte mnemônica
VI
Les annales de la guerre
Os anais da guerra
                                                           35   1
VII
Pompes et solennités                                       43
Pompas e solenidades
VIII
Le militaire                                               49
O militar
IX
Le dandy                                                   54
O dândi
X
La femme                                                   61
A mulher
XI
Eloge du maquillage                                        64
Elogio da maquiagem
XII
Les femmes et les filles                                   71
As mulheres e as cortesãs
XIII
Les voitures                                               79
Os veículos
I
Le beau, la mode et le bonheur
       O belo, a moda e a felicidade
Il y a dans le monde, et même dans le monde des artistes, des gens
qui vont au musée du Louvre, passent rapidement, et sans leur
accorder un regard, devant une foule de tableaux très intéressants,
quoique de second ordre, et se plantent rêveurs devant un Titien ou
un Raphaël, un de ceux que la gravure a le plus popularisés ; puis
sortent satisfaits, plus d’un se disant : « Je connais mon musée. »
Il existe aussi des gens qui, ayant lu jadis Bossuet et Racine,
croient posséder l’histoire de la littérature.
          Há neste mundo, e mesmo no mundo dos artistas, pessoas que
          vão ao Museu do Louvre, passam rapidamente — sem se dignar
          a olhar — diante de um número imenso de quadros muito
          interessantes embora de segunda categoria e plantam-se
          sonhadoras diante de um Ticiano ou de um Rafael, um desses
          que foram mais popularizados pela gravura1; depois todas
          saem satisfeitas, mais de uma dizendo consigo: “Conheço o
          meu museu”. Há também pessoas que, por terem outrora lido
          Bossuet   e  Racine,  acreditam   dominar  a  história  da
          literatura.
      1. Gravura, aqui tem o sentido da “imagem” reproduzida no quadro,
                                                                            2
      não o processo técnico.

Par bonheur se présentent de temps en temps des redresseurs de torts,
des critiques, des amateurs, des curieux qui affirment que tout n’est
pas dans Raphaël, que tout n’est pas dans Racine, que les poetae
minores ont du bon, du solide et du délicieux ; et, enfin, que pour
tant aimer la beauté générale, qui est exprimée par les poètes et les
artistes classiques, on n’en a pas moins tort de négliger la beauté
particulière, la beauté de circonstance et le trait de moeurs.
          Felizmente,   de  vez   em  quando   aparecem  justiceiros,
          críticos, amadores e curiosos afirmando nem tudo estar em
          Rafael, nem tudo estar em Racine, que os poetae minores1
          possuem algo de bom, de sólido e de delicioso, e,
          finalmente, que mesmo amando tanto a beleza geral, expressa
          pelos poetas e artistas clássicos, nem por isso deixa de
          ser um erro negligenciar a beleza particular, a beleza de
          circunstância e a pintura de costumes.
      1. “poetae minores”, em latim, “poeta” tem o sentido de “o que faz
      (alguma coisa), artista”, não somente o escritor de poesias. Assim,
      “poetae minores” pode ser traduzido por “artistas menores”.

Je dois dire que le monde, depuis plusieurs années, s’est un peu
corrigé. Le prix que les amateurs attachent aujourd’hui aux
gentillesses gravées et coloriées du dernier siècle prouve qu’une
réaction a eu lieu dans le sens où le public en avait besoin ;
Debucourt, les Saint-Aubin et bien d’autres, sont entrés dans le
dictionnaire des artistes dignes d’être étudiés. Mais ceux-là
représentent le passé ; or c’est à la peinture des moeurs du présent
que je veux m’attacher aujourd’hui. Le passé est intéressant non
seulement par la beauté qu’ont su en extraire les artistes pour qui
il était le présent, mais aussi comme passé, pour sa valeur
historique. Il en est de même du présent. Le plaisir que nous
retirons de la représentation du présent tient non seulement à la
beauté dont il peut être revêtu, mais aussi à sa qualité essentielle
de présent.
          Devo dizer que o mundo, após muitos anos, se corrigiu um
          pouco. O valor que os amadores atribuem hoje aos mimos1
          gravados e coloridos do século passado, prova que houve uma
          reação na direção reclamada pelo público: Debucourt, Saint-
          Aubin e muitos outros entraram para o dicionário dos
          artistas dignos de serem estudados. Mas eles representam o
          passado. Ora, hoje quero me ater estritamente à pintura de
          costumes do presente. O passado é interessante não somente
          pela beleza que dele souberam extrair os artistas para quem
          constituía o presente, mas também como passado, por seu
          valor histórico. O mesmo ocorre com o presente. O prazer
          que obtemos com a representação do presente deve-se não
          apenas à beleza de que ele pode estar revestido, mas também
          à sua qualidade essencial de presente.
      1. “mimos” traduz “gentillesses”. São os “costumes gentis do século   3
      passado” registradas em arte.

J’ai sous les yeux une série de gravures de modes commençant avec la
Révolution et finissant à peu près au Consulat. Ces costumes, qui
font rire bien des gens irréfléchis, de ces gens graves sans vraie
gravité, présentent un charme d’une nature double, artistique et
historique. Ils sont très souvent beaux et spirituellement dessinés ;
mais ce qui m’importe au moins autant, et ce que je suis heureux de
retrouver dans tous ou presque tous, c’est la morale et l’esthétique
du temps. L’idée que l’homme se fait du beau s’imprime dans tout son
ajustement, chiffonne ou raidit son habit, arrondit ou aligne son
geste, et même pénètre subtilement, à la longue, les traits de son
visage. L’homme finit par ressembler à ce qu’il voudrait être. Ces
gravures peuvent être traduites en beau et en laid ; en laid, elles
deviennent des caricatures ; en beau, des statues antiques.
          Tenho diante dos olhos uma série de gravuras de modas que
          começam na Revolução1 e terminam aproximadamente no
          Consulado2. Esses trajes que provocam o riso de muitas
          pessoas insensatas, essas pessoas sérias sem verdadeira
          seriedade apresentam um fascínio de uma dupla natureza, ou
          seja, artístico e histórico. Eles quase sempre são belos e
          desenhados com elegância, mas o que me importa, pelo menos
          em idêntica medida, e o que me apraz encontrar em todos ou
          em quase todos, é a moral e a estética da época. A idéia
          que o homem tem do belo imprime-se em todo o seu vestuário,
torna sua roupa franzida ou rígida, arredonda ou alinha seu
         gesto e inclusive impregna sutilmente, com o passar do
         tempo, os traços de seu rosto. O homem acaba por se
         assemelhar àquilo que gostaria de ser. Essas gravuras podem
         ser traduzidas em belo e em feio; em feio, tornam-se
         caricaturas; em belo, estátuas antigas.
      1. Revolução Francesa: (1789 – 1799).

      2. Consulado: “Consulat” (9 – 10 de novembro de 1799 à 18 de maio de
      1804) regime político da França resultante do golpe de Estado do 18
      brumário, teve fim quando Napoleão Bonaparte se proclamou imperador.

Les femmes qui étaient revêtues de ces costumes ressemblaient plus ou
moins aux unes ou aux autres, selon le degré de poésie ou de
vulgarité dont elles étaient marquées. La matière vivante rendait
ondoyant ce qui nous semble trop rigide. L’imagination du spectateur
peut encore aujourd’hui faire marcher et frémir cette tunique et ce
schall. Un de ces jours, peut-être, un drame paraîtra sur un théâtre
quelconque, où nous verrons la résurrection de ces costumes sous
lesquels nos pères se trouvaient tout aussi enchanteurs que nous-
mêmes dans nos pauvres vêtements (lesquels ont aussi leur grâce, il
est vrai, mais d’une nature plutôt morale et spirituelle), et s’ils
sont portés et animés par des comédiennes et des comédiens
intelligents, nous nous étonnerons d’en avoir pu rire si étourdiment.
Le passé, tout en gardant le piquant du fantôme, reprendra la lumière        4
et le mouvement de la vie, et se fera présent.
          As mulheres que envergavam esses trajes se pareciam mais ou
          menos umas às outras, segundo o grau de poesia ou de
          vulgaridade que as distinguia. A matéria viva tornava
          ondulante o que nos parece muito rígido. A imaginação do
          espectador pode ainda hoje movimentar e fremir esta túnica
          ou este xale. Talvez, um dia desses, será montado um drama
          num teatro qualquer, onde presenciaremos a ressurreição
          desses costumes nos quais nossos pais se achavam tão
          atraentes quanto nós mesmos em nossas pobres roupas (que
          também têm sua graça, é verdade, mas de uma natureza
          sobretudo moral e espiritual), e se forem vestidos e
          animados por atrizes e atores inteligentes, nós nos
          admiraremos de nos terem despertado o riso de modo tão
          leviano. O passado, conservando o sabor do fantasma,
          recuperará a luz e o movimento da vida, e se tornará
          presente.

Si un homme impartial feuilletait une à une toutes les modes
françaises depuis l’origine de la France jusqu’au jour présent, il
n’y trouverait rien de choquant ni même de surprenant. Les
transitions y seraient aussi abondamment ménagées que dans l’échelle
du monde animal. Point de lacune, donc point de surprise. Et s’il
ajoutait à la vignette qui représente chaque époque la pensée
philosophique dont celle-ci était le plus occupée ou agitée, pensée
dont la vignette suggère inévitablement le souvenir, il verrait
quelle profonde harmonie régit tous les membres de l’histoire, et
que, même dans les siècles qui nous paraissent les plus monstrueux et
les plus fous, l’immortel appétit du beau a toujours trouvé sa
satisfaction.
          Se um homem imparcial folheasse uma a uma todas as modas
          francesas desde a origem da França até o momento, nada
          encontraria de chocante nem de surpreendente. Seria
          possível ver as transições organizadas de forma tão
          gradativa quanto na escala do mundo animal. Nenhuma lacuna;
          logo, nenhuma surpresa. E se ele acrescentasse à vinheta
          que representa cada época o pensamento filosófico que mais
          a   ocupou   ou  agitou,   pensamento   cuja   lembrança  é
          inevitavelmente   evocada  pela   vinheta,   constataria  a
          profunda harmonia que rege toda a equipe da história, e
          que, mesmo nos séculos que nos parecem mais monstruosos e
          insanos, o imortal apetite do belo sempre foi saciado.

C’est ici une belle occasion, en vérité, pour établir une théorie
rationnelle et historique du beau, en opposition avec la théorie du
beau unique et absolu ; pour montrer que le beau est toujours,
inévitablement, d’une composition double, bien que l’impression qu’il
produit soit une ; car la difficulté de discerner les éléments
variables du beau dans l’unité de l’impression n’infirme en rien la
nécessité de la variété dans sa composition. Le beau est fait d’un       5
élément éternel, invariable, dont la quantité est excessivement
difficile à déterminer, et d’un élément relatif, circonstanciel, qui
sera, si l’on veut, tour à tour ou tout ensemble, l’époque, la mode,
la morale, la passion. Sans ce second élément, qui est comme
l’enveloppe amusante, titillante, apéritive, du divin gâteau, le
premier élément serait indigestible, inappréciable, non adapté et non
approprié à la nature humaine. Je défie qu’on découvre un échantillon
quelconque de beauté qui ne contienne pas ces deux éléments.
          Na verdade, esta é uma bela ocasião para estabelecer uma
          teoria racional e histórica do belo, em oposição à teoria
          do belo único e absoluto; para mostrar que o belo
          inevitavelmente sempre tem uma dupla composição, embora a
          impressão que produza seja uma, pois a dificuldade em
          discernir os elementos variáveis do belo na unidade da
          impressão não diminui em nada a necessidade da variedade em
          sua composição. O belo é constituído por um elemento
          eterno,   invariável,  cuja   quantidade   é  excessivamente
          difícil    determinar,  e    de    um   elemento   relativo,
          circunstancial, que será, se quisermos, sucessiva ou
          combinadamente, a época, a moda, a moral, a paixão. Sem
          esse segundo elemento, que é como o invólucro aprazível,
          palpitante, aperitivo do divino manjar, o primeiro elemento
          seria indigerível, inapreciável, não adaptado e não
          apropriado à natureza humana. Desafio qualquer pessoa a
          descobrir qualquer exemplo de beleza que não contenha esses
dois elementos.

Je choisis, si l’on veut, les deux échelons extrêmes de l’histoire.
Dans l’art hiératique, la dualité se fait voir au premier coup d’oeil
; la partie de beauté éternelle ne se manifeste qu’avec la permission
et sous la règle de la religion à laquelle appartient l’artiste. Dans
l’oeuvre la plus frivole d’un artiste raffiné appartenant à une de
ces époques que nous qualifions trop vaniteusement de civilisées, la
dualité se montre également ; la portion éternelle de beauté sera en
même temps voilée et exprimée, sinon par la mode, au moins par le
tempérament particulier de l’auteur. La dualité de l’art est une
conséquence fatale de la dualité de l’homme. Considérez, si cela vous
plaît, la partie éternellement subsistante comme l’âme de l’art, et
l’élément variable comme son corps. C’est pourquoi Stendhal, esprit
impertinent, taquin, répugnant même, mais dont les impertinences
provoquent utilement la méditation, s’est rapproché de la vérité,
plus que beaucoup d’autres, en disant que le Beau n’est que la
promesse du bonheur. Sans doute cette définition dépasse le but ;
elle soumet beaucoup trop le beau à l’idéal infiniment variable du
bonheur ; elle dépouille trop lestement le beau de son caractère
aristocratique ; mais elle a le grand mérite de s’éloigner décidément
de l’erreur des académiciens.
          Escolho, se preferirem, os dois escalões extremos da
          história. Na arte hierática, a dualidade salta à vista; a
          parte de beleza eterna só se manifesta com a permissão e      6
          dentro dos cânones da religião a que o artista pertence. A
          dualidade se evidencia igualmente na obra mais frívola de
          um artista refinado pertencente a uma dessas épocas que
          qualificamos, com excessiva vaidade, de civilizadas; a
          dualidade igualmente se mostra; a porção eterna de beleza
          estará ao mesmo tempo velada e expressa, se não pela moda,
          ao menos pelo temperamento particular do autor. A dualidade
          da arte é uma consequência fatal da dualidade do homem.
          Considerem, se isso lhes apraz, a parte eternamente
          subsistente como a alma da arte, e o elemento variável como
          seu corpo. É por isso que Stendhal, espírito impertinente,
          irritante, até mesmo repugnante, mas cujas impertinências
          necessariamente provocam a meditação, se aproximou mais da
          verdade do que muitos outros ao afirmar que o Belo não é
          senão a promessa da felicidade. Sem dúvida, tal definição
          excede seu objetivo, submete de forma excessiva o belo ao
          ideal indefinidamente variável da felicidade, despoja com
          muita desenvoltura o belo de seu caráter aristocrático, mas
          tem o grande mérito de afastar-se decididamente do erro dos
          acadêmicos.

J’ai plus d’une fois déjà expliqué ces choses ; ces lignes en disent
assez pour ceux qui aiment ces jeux de la pensée abstraite ; mais je
sais que les lecteurs français, pour la plupart, ne s’y complaisent
guère, et j’ai hâte moi-même d’entrer dans la partie positive et
réelle de mon sujet.
          Já expliquei estas coisas mais de uma vez; estas linhas são
          suficientes para aqueles que apreciam os exercícios do
          pensamento abstrato; mas sei que os leitores franceses, em
          sua maioria, neles pouco se comprazem e eu mesmo tenho
          pressa de entrar na parte positiva e real de meu tema.




                                                                        7
II
Le croquis de moeurs
       O croqui1 de costumes
Pour le croquis de moeurs, la représentation de la vie bourgeoise et
les spectacles de la mode, le moyen le plus expéditif et le moins
coûteux est évidemment le meilleur. Plus l’artiste y mettra de
beauté, plus l’oeuvre sera précieuse ; mais il y a dans la vie
triviale, dans la métamorphose journalière des choses extérieures, un
mouvement rapide qui commande à l’artiste une égale vélocité
d’exécution. Les gravures à plusieurs teintes du dix-huitième siècle
ont obtenu de nouveau les faveurs de la mode, comme je le disais tout
à l’heure ; le pastel, l’eau-forte, l’aqua-tinte ont fourni tour à
tour leurs contingents à cet immense dictionnaire de la vie moderne
disséminé dans les bibliothèques, dans les cartons des amateurs et
derrière les vitres des plus vulgaires boutiques. Dès que la
lithographie parut, elle se montra tout de suite très apte à cette
énorme tâche, si frivole en apparence. Nous avons dans ce genre de
véritables monuments. On a justement appelé les oeuvres de Gavarni et
de Daumier des compléments de La Comédie Humaine. Balzac lui-même,
j’en suis très convaincu, n’eût pas été éloigné d’adopter cette idée,
laquelle est d’autant plus juste que le génie de l’artiste peintre de
moeurs est un génie d’une nature mixte, c’est-à-dire où il entre une
                                                                        8
bonne partie d’esprit littéraire. Observateur, flâneur, philosophe,
appelez-le comme vous voudrez ; mais vous serez certainement amené,
pour caractériser cet artiste, à le gratifier d’une épithète que vous
ne sauriez appliquer au peintre des choses éternelles, ou du moins
plus durables, des choses héroïques ou religieuses. Quelquefois il
est poète ; plus souvent il se rapproche du romancier ou du moraliste
; il est le peintre de la circonstance et de tout ce qu’elle suggère
d’éternel. Chaque pays, pour son plaisir et pour sa gloire, a possédé
quelques uns de ces hommes-là. Dans notre époque actuelle, à Daumier
et à Gavarni, les premiers noms qui se présentent à la mémoire, on
peut ajouter Devéria, Maurin, Numa, historiens des grâces interlopes
de la Restauration, Wattier, Tassaert, Eugène Lami, celui-là presque
Anglais à force d’amour pour les éléments aristocratiques, et même
Trimolet et Traviès, ces chroniqueurs de la pauvreté et de la petite
vie.
          Para o croqui de costumes, a representação da vida burguesa
          e os espetáculos da moda, o meio mais expedito e menos
          custoso, evidentemente, é o melhor. Quanto mais beleza o
          artista lhe conferir, mais preciosa será a obra; mas há na
          vida ordinária, na metamorfose incessante das coisas
          exteriores, um movimento rápido que exige do artista
          idêntica velocidade de execução. As gravuras de várias
          tonalidades do século XVIII obtiveram novamente o favor da
          moda, como eu afirmava há pouco; o pastel, a água-forte, a
          água-tinta forneceram sucessivamente seus contingentes para
o imenso dicionário da vida moderna, disseminado nas
   bibliotecas, nas pastas dos amadores e nas vitrines das
   lojas mais comuns2. A litografia, desde o seu surgimento,
   imediatamente se mostrou bastante apta a essa enorme tarefa
   aparentemente   tão  frívola.   Possuímos,  nesse   gênero,
   verdadeiros monumentos. As obras de Gavarni e de Daumier
   foram com justiça denominadas complementos de A Comédia
   Humana3. O próprio Balzac, tenho certeza absoluta, não
   estaria longe de adotar essa ideia, pela justa razão de que
   o gênio do pintor de costumes é um gênio de uma natureza
   mista, isto é, no qual entra uma boa dose de espírito
   literário. Observador, flâneur, filósofo, chamem-no como
   quiserem, mas, para caracterizar esse artista, certamente
   seremos levados a agraciá-lo com um epíteto que não
   poderíamos aplicar ao pintor das coisas eternas, ou pelo
   menos as mais duradouras, coisas heróicas ou religiosas. Às
   vezes ele é um poeta; mais, frequentemente, aproxima-se do
   romancista ou do moralista; é o pintor do circunstancial e
   de tudo o que este sugere de eterno. Todos os países, para
   seu prazer e glória, possuíram alguns desses homens. Em
   nossa época atual, a Daumier e a Gavarni, primeiros nomes
   que nos vêm à memória, podemos acrescentar os de Devéria,
   Maurin, Numa, historiadores das ambíguas belezas da
   Restauração; Wattier, Tassaert, Eugène Lami — este último
   quase inglês, de tanto amor pelas elegâncias aristocráticas        9
   — e inclusive Trimolet e Traviès, cronistas da pobreza e da
   banalidade quotidiana.
1. “Croquis”, traduzido pela mesma palavra: “croqui”. O croqui é um
desenho rápido, na forma de esboço (o dicionário Le Robert Micro dá
para “croquis” os sinônimos “esquisse” e “ébauche”, palavras
entendidas em portugues como “esboço”).

2. “Comuns” traduz “vulgaires”. O contexto parece sugerir mais
leveza do que o pejorativo “vulgares”; embora “vulgaire”, em
francês, também seja pejorativo.

3. “A comédia Humana”, obra de Honoré de Balzac (1799 – 1850),
composta de 95 volumes, procura retratar todos os níveis da
sociedade francesa da época, em particular a florescente burguesia.
III
L’artiste, homme du monde, homme des foules et
enfant
       O artista, homem do mundo, homem das
       multidões e criança
Je veux entretenir aujourd’hui le public d’un homme singulier,
originalité si puissante et si décidée, qu’elle se suffit à elle-même
et ne recherche même pas l’approbation. Aucun de ses dessins n’est
signé, si l’on appelle signature ces quelques lettres, faciles à
contrefaire, qui figurent un nom, et que tant d’autres apposent
fastueusement au bas de leurs plus insouciants croquis. Mais tous ses
ouvrages sont signés de son âme éclatante, et les amateurs qui les
ont vus et appréciés les reconnaîtront facilement à la description
que j’en veux faire. Grand amoureux de la foule et de l’incognito, M.
C. G. pousse l’originalité jusqu’à la modestie. M. Thackeray, qui,
comme on sait, est très curieux des choses d’art, et qui dessine lui-
même les illustrations de ses romans, parla un jour de M. G. dans un
petit journal de Londres. Celui-ci s’en fâcha comme d’un outrage à sa
pudeur. Récemment encore, quand il apprit que je me proposais de
faire une appréciation de son esprit et de son talent, il me supplia,
d’une manière très impérieuse, de supprimer son nom et de ne parler     10
de ses ouvrages que comme des ouvrages d’un anonyme. J’obéirai
humblement à ce bizarre désir. Nous feindrons de croire, le lecteur
et moi, que M. G. n’existe pas, et nous nous occuperons de ses
dessins et de ses aquarelles, pour lesquels il professe un dédain de
patricien, comme feraient des savants qui auraient à juger de
précieux documents historiques, fournis par le hasard, et dont
l’auteur doit rester éternellement inconnu. Et même, pour rassurer
complétement ma conscience, on supposera que tout ce que j’ai à dire
de sa nature si curieusement et si mystérieusement éclatante, est
plus ou moins justement suggéré par les oeuvres en question ; pure
hypothèse poétique, conjecture, travail d’imagination.
          Quero entreter hoje o público de um homem singular,
          originalidade tão poderosa e tão decidida que se basta a si
          mesma e não busca qualquer aprovação. Nenhum de seus
          desenhos é assinado, se chamarmos assinatura essas poucas
          letras, passíveis de falsificação, que representam um nome,
          e que tantos a colocam faustosamente embaixo de seus
          croquis mais insignificantes. Porém, todas as suas obras
          são assinadas com sua alma resplandecente, e os amadores
          que as viram e apreciaram as reconhecerão sem dificuldade
          na descrição que delas pretendo fazer. Enamorado pela
          multidão e pelo incógnito, C. G1. leva a originalidade às
          raias da modéstia. Thackeray, que, como se sabe, interessa-
          se bastante pelas coisas de arte e desenha ele próprio as
          ilustrações de seus romances, um dia falou de G. num
pequeno jornal de Londres. Aquele irritou-se como se fosse
         um ultraje a seu pudor. Ainda recentemente, quando soube
         que eu me propunha fazer uma apreciação de seu espírito e
         talento, suplicou-me, de uma maneira muito imperiosa, que
         seu nome fosse suprimido e que só se falasse de suas obras
         como das obras de um anônimo2. Obedecerei humildemente a
         esse estranho desejo. Fingiremos acreditar, o leitor e eu,
         que G. não existe, e trataremos de seus desenhos e
         aquarelas,    pelos    quais   ele  professa    um   desdém
         aristocrático, agindo como esses pesquisadores que tivessem
         de julgar preciosos documentos históricos fornecidos pelo
         acaso   e   cujo   autor   devesse permanecer   eternamente
         desconhecido. Inclusive, para apaziguar completamente minha
         consciência, vamos supor que tudo quanto tenho a dizer
         sobre sua natureza, tão curiosamente e tão misteriosamente
         brilhante, é sugerido, mais ou menos justamente, pelas
         obras em questão; pura hipótese poética, conjetura,
         trabalho de imaginação.
      1. Trata-se do desenhista, aquarelista e gravador Constantin Guys
      (1802 - 1892).

      2. A nota 1, acima, rompe com a delicadeza de Baudelaire! Monsieur
      Constantin Guys (M. G., como é apresentado por Baudelaire), é aqui
      revelado, bem como suas pinturas.
                                                                           11
M. G. est vieux. Jean-Jacques commença, dit-on, à écrire à quarante-
deux ans. Ce fut peut-être vers cet âge que M. G., obsédé par toutes
les images qui remplissaient son cerveau, eut l’audace de jeter sur
une feuille blanche de l’encre et des couleurs. Pour dire la vérité,
il dessinait comme un barbare, comme un enfant, se fâchant contre la
maladresse de ses doigts et la désobéissance de son outil. J’ai vu un
grand nombre de ces barbouillages primitifs, et j’avoue que la
plupart des gens qui s’y connaissent ou prétendent s’y connaître
auraient pu, sans déshonneur, ne pas deviner le génie latent qui
habitait dans ces ténébreuses ébauches. Aujourd’hui, M. G., qui a
trouvé, à lui tout seul, toutes les petites ruses du métier, et qui a
fait, sans conseils, sa propre éducation, est devenu un puissant
maître, à sa manière, et n’a gardé de sa première ingénuité que ce
qu’il en faut pour ajouter à ses riches facultés un assaisonnement
inattendu. Quand il rencontre un de ces essais de son jeune âge, il
le déchire ou le brûle avec une honte des plus amusantes.
          G. é um velho. Dizem que Jean-Jacques começou a escrever
          aos quarenta e dois anos. Foi talvez por essa idade que G.,
          obcecado por todas as imagens que lhe povoavam o cérebro,
          teve a audácia de lançar tintas e cores sobre uma folha
          branca. Para dizer a verdade, ele desenhava como um
          bárbaro, como uma criança, irritando-se com a imperícia de
          seus dedos e a desobediência de seus instrumentos. Vi
          muitas dessas garatujas primitivas e confesso que a maioria
          das pessoas capazes de julgar, ou com essa pretensão, teria
podido, sem prejuízo, não adivinhar o gênio latente que
         habitava esses tenebrosos esboços. Atualmente G., que
         descobriu sozinho todos os pequenos truques do ofício e,
         sem receber conselhos, realizou sua própria formação,
         tornou-se um admirável mestre à sua maneira, conservando da
         simplicidade inicial apenas o necessário para acrescentar
         às suas mais ricas faculdades um toque desconcertante.
         Quando ele descobre uma dessas tentativas de sua juventude,
         rasga ou queima com uma vergonha das mais divertidas.




                                                                        12




      Constantin Guys,
      por Félix Nadar (1820 – 1910)

Pendant dix ans, j’ai désiré faire la connaissance de M. G., qui est,
par nature, très voyageur et très cosmopolite. Je savais qu’il avait
été longtemps attaché à un journal anglais illustré, et qu’on y avait
publié des gravures d’après ses croquis de voyage (Espagne, Turquie,
Crimée). J’ai vu depuis lors une masse considérable de ces dessins
improvisés sur les lieux mêmes, et j’ai pu lire ainsi un compte rendu
minutieux et journalier de la campagne de Crimée, bien préférable à
tout autre. Le même journal avait aussi publié, toujours sans
signature, de nombreuses compositions du même auteur, d’après les
ballets et les opéras nouveaux. Lorsque enfin je le trouvai, je vis
tout d’abord que je n’avais pas affaire précisément à un artiste,
mais plutôt à un homme du monde. Entendez ici, je vous prie, le mot
artiste dans un sens très restreint, et le mot homme du monde dans un
sens très étendu. Homme du monde, c’est-à-dire homme du monde entier,
homme qui comprend le monde et les raisons mystérieuses et légitimes
de tous ses usages ; artiste, c’est-à-dire spécialiste, homme attaché
à sa palette comme le serf à la glèbe. M. G. n’aime pas être appelé
artiste. N’a-t-il pas un peu raison ? Il s’intéresse au monde entier
; il veut savoir, comprendre, apprécier tout ce qui se passe à la
surface de notre sphéroïde. L’artiste vit très peu, ou même pas du
tout, dans le monde moral et politique. Celui qui habite dans le
quartier Breda ignore ce qui se passe dans le faubourg Saint-Germain.
Sauf deux ou trois exceptions qu’il est inutile de nommer, la plupart
des artistes sont, il faut bien le dire, des brutes très adroites, de
purs manoeuvres, des intelligences de village, des cervelles de
hameau. Leur conversation, forcément bornée à un cercle très étroit,
devient très vite insupportable à l’homme du monde, au citoyen
spirituel de l’univers.
          Durante dez anos desejei conhecer G., que é, por
          temperamento, apaixonado por viagens e muito cosmopolita.
          Sabia que durante muito tempo ele fora correspondente de um
          jornal inglês ilustrado e que nele publicara gravuras a
          partir de seus croquis de viagem (Espanha, Turquia,
          Crimeia1).  Vi,   durante   esse   tempo,  uma   quantidade   13
          considerável de desenhos improvisados sobre os próprios
          locais e pude ler, assim, uma crônica minuciosa e diária da
          campanha da Criméia, melhor do que qualquer outra. O mesmo
          jornal publicara também, sempre sem assinatura, inúmeras
          composições do mesmo autor, inspiradas nos balés e óperas
          recentes. Quando finalmente o conheci, logo vi que não se
          tratava precisamente de um artista, mas antes de um homem
          do mundo. Entenda-se aqui, por favor, a palavra artista num
          sentido muito restrito, e a expressão homem do mundo num
          sentido muito amplo. Homem do mundo, isto é, homem do mundo
          inteiro, homem que compreende o mundo e as razões
          misteriosas e legítimas de todos os seus costumes; artista,
          isto é, especialista, homem subordinado à sua palheta como
          o servo à gleba2. G. não gosta de ser chamado artista. Não
          teria ele alguma razão? Ele se interessa pelo mundo
          inteiro; quer saber, compreender, apreciar tudo o que
          acontece na superfície de nosso esferóide. O artista vive
          pouquíssimo, ou até não vive, no mundo moral e político. O
          que mora no bairro Bréda ignora o que se passa no bairro
          Saint-Germain. Salvo duas ou três exceções que não vale a
          pena mencionar, a maioria dos artistas são, deve-se convir,
          uns brutos muito hábeis, simples artesãos, inteligências
          provincianas, mentalidades de cidade pequena. Sua conversa,
          forçosamente limitada a um círculo muito restrito, torna-se
          rapidamente insuportável para o homem do mundo, para o
cidadão espiritual do universo.
      1. Crimeia (o nome francês é “Crimée”), é a região da Ucrânia
      formada por uma península que avança no mar Negro, separando-o do
      mar de Azov.

      2. Gleba: terreno, feudo a que os servos estavam subordinados.

Ainsi, pour entrer dans la compréhension de M. G., prenez note tout
de suite de ceci : c’est que la curiosité peut être considérée comme
le point de départ de son génie.
          Assim,   para  compreender  G.,  anotem   imediatamente  o
          seguinte: a curiosidade pode ser considerada como o ponto
          de partida de seu gênio.

Vous souvenez-vous d’un tableau (en vérité, c’est un tableau !) écrit
par la plus puissante plume de cette époque, et qui a pour titre
L’Homme des foules ? Derrière la vitre d’un café, un convalescent,
contemplant la foule avec jouissance, se mêle par la pensée, à toutes
les pensées qui s’agitent autour de lui. Revenu récemment des ombres
de la mort, il aspire avec délices tous les germes et tous les
effluves de la vie ; comme il a été sur le point de tout oublier, il
se souvient et veut avec ardeur se souvenir de tout. Finalement, il
se précipite à travers cette foule à la recherche d’un inconnu dont
la physionomie entrevue l’a, en un clin d’oeil, fasciné. La curiosité
est devenue une passion fatale, irrésistible !                             14
          Lembram-se de um quadro (é um quadro, na verdade!) escrito
          pelo mais poderoso autor desta época e que se intitula
          L’Homme des Foules1? Atrás das vidraças de um café, um
          convalescente, contemplando com prazer a multidão, mistura-
          se mentalmente a todos os pensamentos que se agitam à sua
          volta. Resgatado há pouco das sombras da morte, ele aspira
          com deleite todos os indícios e eflúvios da vida; como
          estava   prestes  a   tudo   esquecer,  lembra-se   e   quer
          ardentemente lembrar-se de tudo. Finalmente, precipita-se
          no meio da multidão à procura de um desconhecido cuja
          fisionomia, apenas vislumbrada, fascinou-o num relance. A
          curiosidade transformou-se numa paixão fatal, irresistível!
      1. “L’Homme des Foules”: “O Homem das Multidões”, é um texto de
      Edgar Allan Poe (1809 – 1849), The Man of the Crowd, traduzido por
      Baudelaire. Baudelaire também possui, em “Le Spleen de Paris” um
      poema chamado “As Multidões” (Les Foules).

Supposez un artiste qui serait toujours, spirituellement, à l’état du
convalescent, et vous aurez la clef du caractère de M. G.
          Imagine um artista que estivesse sempre, espiritualmente,
          em estado de convalescença e se terá a chave do caráter de
          G.

Or la convalescence est comme un retour vers l’enfance. Le
convalescent jouit au plus haut degré, comme l’enfant, de la faculté
de s’intéresser vivement aux choses, même les plus triviales en
apparence. Remontons, s’il se peut, par un effort rétrospectif de
l’imagination, vers nos plus jeunes, nos plus matinales impressions,
et nous reconnaîtrons qu’elles avaient une singulière parenté avec
les impressions, si vivement colorées, que nous reçûmes plus tard à
la suite d’une maladie physique, pourvu que cette maladie ait laissé
pures et intactes nos facultés spirituelles. L’enfant voit tout en
nouveauté ; il est toujours ivre. Rien ne ressemble plus à ce qu’on
appelle l’inspiration, que la joie avec laquelle l’enfant absorbe la
forme et la couleur. J’oserai pousser plus loin ; j’affirme que
l’inspiration a quelque rapport avec la congestion, et que toute
pensée sublime est accompagnée d’une secousse nerveuse, plus ou moins
forte, qui retentit jusque dans le cervelet. L’homme de génie a les
nerfs solides ; l’enfant les a faibles. Chez l’un, la raison a pris
une place considérable ; chez l’autre, la sensibilité occupe presque
tout l’être. Mais le génie n’est que l’enfance retrouvée à volonté,
l’enfance douée maintenant, pour s’exprimer, d’organes virils et de
l’esprit analytique qui lui permet d’ordonner la somme de matériaux
involontairement amassée. C’est à cette curiosité profonde et joyeuse
qu’il faut attribuer l’oeil fixe et animalement extatique des enfants
devant le nouveau, quel qu’il soit, visage ou paysage, lumière,
dorure, couleurs, étoffes chatoyantes, enchantement de la beauté
embellie par la toilette. Un de mes amis me disait un jour qu’étant
fort petit, il assistait à la toilette de son père, et qu’alors il
contemplait, avec une stupeur mêlée de délices, les muscles des bras,      15
les dégradations de couleurs de la peau nuancée de rose et de jaune,
et le réseau bleuâtre des veines. Le tableau de la vie extérieure le
pénétrait déjà de respect et s’emparait de son cerveau. Déjà la forme
l’obsédait et le possédait. La prédestination montrait précocement le
bout de son nez. La damnation était faite. Ai-je besoin de dire que
cet enfant est aujourd’hui un peintre célèbre ?
          Ora, a convalescença é como uma volta à infância. O
          convalescente goza, no mais alto grau, como a criança, da
          faculdade de interessar-se intensamente pelas coisas, mesmo
          por aquelas que aparentemente se mostram as mais triviais.
          Retornemos,    se    possível,    através    de  um    esforço
          retrospectivo da imaginação, às mais jovens, às mais
          matinais de nossas impressões, e constataremos que elas
          possuem um singular parentesco com as impressões tão
          vivamente coloridas que recebemos ulteriormente, depois de
          uma doença, desde que esta tenha deixado puras e intactas
          nossas faculdades espirituais. A criança vê tudo como
          novidade; ela sempre está embriagada. Nada se parece tanto
          com o que chamamos inspiração quanto a alegria com que a
          criança absorve a forma e a cor. Ousaria ir mais longe:
          afirmo que a inspiração tem alguma relação com a congestão,
          e que todo pensamento sublime é acompanhado de um
          estremecimento    nervoso,   mais   ou   menos  intenso,   que
          repercute até no cerebelo. O homem de gênio tem nervos
          sólidos, a criança os tem fracos. Naquele, a razão ganhou
um lugar considerável; nesta, a sensibilidade ocupa quase
         todo o seu ser. Mas o gênio é somente a infância
         redescoberta sem limites; a infância agora dotada, para
         expressar-se, de órgãos viris e do espírito analítico que
         lhe permite ordenar a soma de materiais involuntariamente
         acumulados. É a está curiosidade profunda e alegre que se
         deve atribuir o olhar fixo, estático e animalesco das
         crianças diante do novo, seja lá o que isso for, rosto ou
         paisagem,   luz,  brilhos,   cores,   tecidos   cintilantes,
         fascínio da beleza realçada pelo traje. Um de meus amigos
         disse-me um dia que, ainda pequeno, vira seu pai lavando-se
         e então contemplava, com uma perplexidade mesclada de
         deleite, os músculos dos braços, as gradações de cores da
         pele matizada de rosa e amarelo, e a rede azulada das
         veias. O quadro da vida exterior já o impregnava de
         respeito e se apoderava de seu cérebro. A forma já o
         obcecava e o possuía. A predestinação mostrava precocemente
         a ponta do nariz. A danação estava consumada. É preciso
         dizer que essa criança hoje é um pintor célebre?




                                                                        16




         Revue de troupes françaises en Crimée
         Constantin Guys

Je vous priais tout à l’heure de considérer M. G. comme un éternel
convalescent ; pour compléter votre conception, prenez-le aussi pour
un homme-enfant, pour un homme possédant à chaque minute le génie de
l’enfance, c’est-à-dire un génie pour lequel aucun aspect de la vie
n’est émoussé.
          Eu os exortava ainda há pouco a que considerassem G. como
          um eterno convalescente; para completar a intelecção,
          considere-o também como um homem-criança, como um homem
          dominado a cada minuto pelo gênio da infância, ou seja, um
          gênio para o qual nenhum aspecto da vida é indiferente.

Je vous ai dit que je répugnais à l’appeler un pur artiste, et qu’il
se défendait lui-même de ce titre avec une modestie nuancée de pudeur
aristocratique. Je le nommerais volontiers un dandy, et j’aurais pour
cela quelques bonnes raisons ; car le mot dandy implique une
quintessence de caractère et une intelligence subtile de tout le
mécanisme moral de ce monde ; mais, d’un autre côté, le dandy aspire
à l’insensibilité, et c’est par là que M. G., qui est dominé, lui,
par une passion insatiable, celle de voir et de sentir, se détache
violemment du dandysme. Amabam amare, disait saint Augustin. « J’aime
passionnément la passion », dirait volontiers M. G. Le dandy est
blasé, ou il feint de l’être, par politique et raison de caste. M. G.
a horreur des gens blasés. Il possède l’art si difficile (les esprits
raffinés me comprendront) d’être sincère sans ridicule. Je le
décorerais bien du nom de philosophe, auquel il a droit à plus d’un
titre, si son amour excessif des choses visibles, tangibles,
condensées à l’état plastique, ne lui inspirait une certaine
répugnance   de   celles  qui   forment  le  royaume   impalpable  du
métaphysicien. Réduisons-le donc à la condition de pur moraliste
pittoresque, comme La Bruyère.
          Dizia que me desagradava chamá-lo de puro artista e que ele
          próprio recusava esse título com uma modéstia mesclada de
          pudor aristocrático. Eu o chamaria de bom grado dândi1, e
          teria algumas boas razões para isso; pois a palavra dândi
          implica um refinamento de caráter e uma compreensão sutil
          de todo mecanismo moral deste mundo; mas, por outro lado, o
          dândi aspira à insensibilidade, e é por esse ângulo que G.,
          que é dominado por uma paixão insaciável, a de ver e de          17
          sentir, se afasta violentamente do dandismo. Amabam amare2,
          dizia Santo Agostinho. “Amo apaixonadamente a paixão”,
          diria G., com naturalidade. O dândi é entediado, ou finge
          ser, por política e razão de casta. G. tem horror às
          pessoas entediadas. Ele possui a arte extremamente difícil
          (os espíritos refinados irão me compreender) de ser sincero
          sem ser ridículo. Poderia condecorá-lo com o título de
          filósofo, que ele merece por várias razões, se seu amor
          excessivo pelas coisas visíveis, tangíveis, condensadas no
          estado plástico, não lhe inspirassem uma certa repugnância
          por aquelas que formam o reino impalpável do metafísico.
          Vamos então reduzi-lo à condição de puro moralista
          pitoresco, como La Bruyère3.
      1. Baudelaire define “dândi” no capítulo IX desse mesmo livro.

      2. “Amabam amare”, em latim: “eu amava amar”.

      3. La Bruyère: Jean de La Bruyère (1645 – 1696), moralista francês
      famoso por uma única obra, “Dos Personagens ou costumes do século”
      (Les Caractères ou les Mœurs de ce siècle).

La foule est son domaine, comme l’air est celui de l’oiseau, comme
l’eau celui du poisson. Sa passion et sa profession, c’est d’épouser
la foule. Pour le parfait flâneur, pour l’observateur passionné,
c’est une immense jouissance que d’élire domicile dans le nombre,
dans l’ondoyant dans le mouvement, dans le fugitif et l’infini. Etre
hors de chez soi, et pourtant se sentir partout chez soi ; voir le
monde, être au centre du monde et rester caché au monde, tels sont
quelques-uns des moindres plaisirs de ces esprits indépendants,
passionnés, impartiaux, que la langue ne peut que maladroitement
définir. L’observateur est un prince qui jouit partout de son
incognito. L’amateur de la vie fait du monde sa famille, comme
l’amateur du beau sexe compose sa famille de toutes les beautés
trouvées, trouvables et introuvables ; comme l’amateur de tableaux
vit dans une société enchantée de rêves peints sur toile. Ainsi
l’amoureux de la vie universelle entre dans la foule comme dans un
immense réservoir d’électricité. On peut aussi le comparer, lui, à un
miroir aussi immense que cette foule ; à un kaléidoscope doué de
conscience, qui, à chacun de ses mouvements, représente la vie
multiple et la grâce mouvante de tous les éléments de la vie. C’est
un moi insatiable du non-moi, qui, à chaque instant, le rend et
l’exprime en images plus vivantes que la vie elle-même, toujours
instable et fugitive. « Tout homme », disait un jour M. G. dans une
de ces conversations qu’il illumine d’un regard intense et d’un geste
évocateur, « tout homme qui n’est pas accablé par un de ces chagrins
d’une nature trop positive pour ne pas absorber toutes les facultés,
et qui s’ennuie au sein de la multitude, est un sot ! un sot ! et je
le méprise ! »
          A multidão é seu universo, como o ar é o dos pássaros, como
          a água, o dos peixes. Sua paixão e profissão é desposar a     18
          multidão. Para o perfeito flâneur1, para o observador
          apaixonado, é um imenso júbilo fixar residência no
          numeroso, no ondulante, no movimento, no fugidio e no
          infinito. Estar fora de casa, e contudo sentir-se em casa
          onde quer que se encontre; ver o mundo, estar no centro do
          mundo e permanecer oculto ao mundo, eis alguns dos pequenos
          prazeres   desses   espíritos   independentes,  apaixonados
          imparciais, que a linguagem não pode definir senão
          toscamente. O observador é um príncipe que frui por toda
          parte do fato de estar incógnito. O amador da vida faz do
          mundo a sua família, tal como o amador do belo sexo compõe
          sua família com toda as belezas encontradas, encontráveis
          ou inencontráveis; tal como o amador de quadros vive numa
          sociedade encantada de sonhos pintados na tela. Assim o
          apaixonado pela vida universal entra na multidão como em um
          reservatório de eletricidade. Pode-se igualmente compará-lo
          a um espelho tão imenso quanto essa multidão; a um
          caleidoscópio dotado de consciência, que, a cada um de seus
          movimentos, representa a vida múltipla e o encanto
          cambiante de todos os elementos da vida. É um eu insaciável
          do não-eu, que a cada instante o revela e o exprime em
          imagens mais vivas do que a própria vida, sempre instável e
          fugidia. “Todo homem”, disse G. um dia, numa dessas
          conversas que ele ilumina com um olhar intenso e um gesto
          evocativo, “todo homem que não é atormentado por uma dessas
tristezas de natureza demasiado concreta, o bastante para
         absorver todas as faculdades, e que se entedia no seio da
         multidão, é um imbecil! um imbecil! e o desprezo!”
      1. “flâneur” é aquele que passeia ociosamente, o que vagueia, o que
      perambula.

Quand M. G., à son réveil, ouvre les yeux et qu’il voit le soleil
tapageur donnant l’assaut aux carreaux des fenêtres, il se dit avec
remords, avec regrets : « Quel ordre impérieux ! quelle fanfare de
lumière ! Depuis plusieurs heures déjà, de la lumière partout ! de la
lumière perdue par mon sommeil ! Que de choses éclairées j’aurais pu
voir et que je n’ai pas vues ! » Et il part ! et il regarde couler le
fleuve de la vitalité, si majestueux et si brillant. Il admire
l’éternelle beauté et l’étonnante harmonie de la vie dans les
capitales, harmonie si providentiellement maintenue dans le tumulte
de la liberté humaine. Il contemple les paysages de la grande ville,
paysages de pierre caressés par la brume ou frappés par les soufflets
du soleil. Il jouit des beaux équipages, des fiers chevaux, de la
propreté éclatante des grooms, de la dextérité des valets, de la
démarche des femmes onduleuses, des beaux enfants, heureux de vivre
et d’être bien habillés ; en un mot, de la vie universelle. Si une
mode, une coupe de vêtement a été légèrement transformée, si les
noeuds de rubans, les boucles ont été détrônés par les cocardes, si
le bavolet s’est élargi et si le chignon est descendu d’un cran sur
la nuque, si la ceinture a été exhaussée et la jupe amplifiée, croyez       19
qu’à une distance énorme son oeil d’aigle l’a déjà deviné. Un
régiment passe, qui va peut-être au bout du monde, jetant dans l’air
des boulevards ses fanfares entraînantes et légères comme l’espérance
; et voilà que l’oeil de M. G. a déjà vu, inspecté, analysé les
armes, l’allure et la physionomie de cette troupe. Harnachements,
scintillements, musique, regards décidés, moustaches lourdes et
sérieuses, tout cela entre pêle-mêle en lui ; et dans quelques
minutes, le poème qui en résulte sera virtuellement composé. Et voilà
que son âme vit avec l’âme de ce régiment qui marche comme un seul
animal, fière image de la joie dans l’obéissance !
          Quando G., ao despertar, abre os olhos e vê o sol
          flamejante invadindo as vidraças, diz para si mesmo com
          remorso, com arrependimento: “Que ordem imperiosa! Que
          fanfarra de luz! Há muitas horas já, luz em toda parte! Luz
          perdida por causa de meu sono! Quantas coisas iluminadas
          poderia ter visto e não vi!” E ele sai! E observa fluir o
          rio da vitalidade, tão majestoso e brilhante. Admira a
          eterna beleza e a espantosa harmonia da vida nas capitais,
          harmonia tão providencialmente mantida no tumulto da
          liberdade humana. Contempla as paisagens da cidade grande,
          paisagens de pedra acariciadas pela bruma ou fustigadas
          pelos sopros do sol. Admira as belas carruagens, os
          garbosos cavalos, a limpeza reluzente dos lacaios, a
          destreza dos criados, o andar das mulheres ondulosas, as
          belas crianças, felizes por viverem e estarem bem vestidas;
resumindo, a vida universal. Se uma moda, um corte de
         vestuário foi levemente transformado, se os laços de fita e
         os cachos foram destronados pelas rosetas, se a mantilha se
         ampliou e o coque desceu um pouquinho na nuca, se a cintura
         foi erguida e a saia alargada, acreditem que a uma
         distância enorme seu olhar de águia já adivinhou. Um
         regimento passa, ele vai talvez ao fim do mundo, difundindo
         no ar dos bulevares suas fanfarras sedutoras e diáfanas
         como a esperança; e eis que o olhar de G. já viu,
         inspecionou, analisou as armas, o porte e a fisionomia
         dessa   tropa.   Arreios,   cintilações,   música,  olhares
         decididos, bigodes espessos e graves, tudo isso ele absorve
         simultaneamente; e em alguns minutos o poema que disso
         resulta estará virtualmente composto. E sua alma vive com a
         alma desse regimento que marcha como se fosse um único
         animal, altiva imagem da alegria na obediência!

Mais le soir est venu. C’est l’heure bizarre et douteuse où les
rideaux du ciel se ferment, où les cités s’allument. Le gaz fait
tache sur la pourpre du couchant. Honnêtes ou déshonnêtes,
raisonnables ou fous, les hommes se disent : « Enfin la journée est
finie ! » Les sages et les mauvais sujets pensent au plaisir, et
chacun court dans l’endroit de son choix boire la coupe de l’oubli.
M. G. restera le dernier partout où peut resplendir la lumière,
retentir la poésie, fourmiller la vie, vibrer la musique ; partout où   20
une passion peut poser pour son oeil, partout où l’homme naturel et
l’homme de convention se montrent dans une beauté bizarre, partout où
le soleil éclaire les joies rapides de l’animal dépravé ! « Voilà,
certes, une journée bien employée, » se dit certain lecteur que nous
avons tous connu, « chacun de nous a bien assez de génie pour la
remplir de la même façon. » Non ! peu d’hommes sont doués de la
faculté de voir ; il y en a moins encore qui possèdent la puissance
d’exprimer. Maintenant, à l’heure où les autres dorment, celui-ci est
penché sur sa table, dardant sur une feuille de papier le même regard
qu’il attachait tout à l’heure sur les choses, s’escrimant avec son
crayon, sa plume, son pinceau, faisant jaillir l’eau du verre au
plafond, essuyant sa plume sur sa chemise, pressé, violent, actif,
comme s’il craignait que les images ne lui échappent, querelleur
quoique seul, et se bousculant lui-même. Et les choses renaissent sur
le papier, naturelles et plus que naturelles, belles et plus que
belles, singulières et douées d’une vie enthousiaste comme l’âme de
l’auteur. La fantasmagorie a été extraite de la nature. Tous les
matériaux dont la mémoire s’est encombrée se classent, se rangent,
s’harmonisent et subissent cette idéalisation forcée qui est le
résultat d’une perception enfantine, c’est-à-dire d’une perception
aiguë, magique à force d’ingénuité !
          Mas a noite chegou. É a hora estranha e ambígua em que se
          fecham as cortinas do céu e se iluminam as cidades. Os
          revérberos1 se sobressaem sobre a púrpura do poente.
          Honestos ou desonestos, sensatos ou insanos, os homens
dizem: “Enfim, acabou-se o dia!” Os plácidos e os de má
   índole pensam no prazer e todos acorrem ao lugar de sua
   preferência para beber a taça do esquecimento. G. será o
   último a partir de qualquer lugar onde possa resplandecer a
   luz, ressoar a poesia, fervilhar a vida, vibrar a música;
   de todo lugar onde uma paixão possa posar diante de seus
   olhos, de todo lugar onde o homem natural e o homem
   convencional se mostrem numa beleza estranha, de todo lugar
   onde o sol ilumina as alegrias efêmeras do animal
   depravado! “Foi, com certeza, uma jornada bem empregada”,
   pensará certo leitor que todos conhecemos. “Todos têm
   talento suficiente para preenchê-la da mesma maneira.” Não!
   poucos homens são dotados da faculdade de ver; há ainda
   menos homens que possuem a capacidade de exprimir. Agora, à
   hora em que os outros estão dormindo, ele está curvado
   sobre sua mesa, lançando sobre uma folha de papel o mesmo
   olhar que há pouco dirigia às coisas, lutando com seu
   lápis, sua pena, seu pincel, lançando água do copo até o
   teto, limpando a pena na camisa, apressando, violento,
   ativo, como se temesse que as imagens lhe escapassem,
   belicoso, mas sozinho e debatendo-se consigo mesmo. E as
   coisas renascem no papel, naturais e, mais do que naturais,
   belas; mais do que belas, singulares e dotadas de uma vida
   tão entusiasta quanto a alma do autor. A fantasmagoria foi
   extraída da natureza. Todos os materiais atravancados na      21
   memória classificam-se, ordenam-se, harmonizam-se e sofrem
   essa idealização forçada que é o resultado de uma percepção
   infantil, isto é, de uma percepção aguda, mágica à força de
   ser ingênua!
1. “revérberos” são lampiões de rua.
IV
La modernité
       A modernidade
Ainsi il va, il court, il cherche. Que cherche-t-il ? A coup sûr, cet
homme, tel que je l’ai dépeint, ce solitaire doué d’une imagination
active, toujours voyageant à travers le grand désert d’hommes, a un
but plus élevé que celui d’un pur flâneur, un but plus général, autre
que le plaisir fugitif de la circonstance. Il cherche ce quelque
chose qu’on nous permettra d’appeler la modernité ; car il ne se
présente pas de meilleur mot pour exprimer l’idée en question. Il
s’agit, pour lui, de dégager de la mode ce qu’elle peut contenir de
poétique dans l’historique, de tirer l’éternel du transitoire. Si
nous jetons un coup d’oeil sur nos expositions de tableaux modernes,
nous sommes frappés de la tendance générale des artistes à habiller
tous les sujets de costumes anciens. Presque tous se servent des
modes et des meubles de la Renaissance, comme David se servait des
modes et des meubles romains. Il y a cependant cette différence, que
David, ayant choisi des sujets particulièrement grecs ou romains, ne
pouvait pas faire autrement que de les habiller à l’antique, tandis
que les peintres actuels, choisissant des sujets d’une nature
générale applicable à toutes les époques, s’obstinent à les affubler
des costumes du Moyen Age, de la Renaissance ou de l’Orient. C’est
                                                                        22
évidemment le signe d’une grande paresse ; car il est beaucoup plus
commode de déclarer que tout est absolument laid dans l’habit d’une
époque, que de s’appliquer à en extraire la beauté mystérieuse qui y
peut être contenue, si minime ou si légère qu’elle soit. La
modernité, c’est le transitoire, le fugitif, le contingent, la moitié
de l’art, dont l’autre moitié est l’éternel et l’immuable. Il y a eu
une modernité pour chaque peintre ancien ; la plupart des beaux
portraits qui nous restent des temps antérieurs sont revêtus des
costumes de leur époque. Ils sont parfaitement harmonieux, parce que
le costume, la coiffure et même le geste, le regard et le sourire
(chaque époque a son port, son regard et son sourire) forment un tout
d’une complète vitalité. Cet élément transitoire, fugitif, dont les
métamorphoses sont si fréquentes, vous n’avez pas le droit de le
mépriser ou de vous en passer. En le supprimant, vous tombez
forcément dans le vide d’une beauté abstraite et indéfinissable,
comme celle de l’unique femme avant le premier péché. Si au costume
de l’époque, qui s’impose nécessairement, vous en substituez un
autre, vous faites un contre-sens qui ne peut avoir d’excuse que dans
le cas d’une mascarade voulue par la mode. Ainsi, les déesses, les
nymphes et les sultanes du dix-huitième siècle sont des portraits
moralement ressemblants.
          Assim ele vai, corre, procura. O que procura? Certamente
          esse homem, tal como o descrevi, esse solitário dotado de
          uma imaginação ativa, sempre viajando através do grande
          deserto de homens, tem um objetivo mais elevado do que o de
um simples flâneur, um objetivo mais geral, diverso do
         prazer efêmero da circunstância. Ele busca esse algo, ao
         qual se permitirá chamar de Modernidade; pois não me ocorre
         melhor palavra para exprimir a idéia em questão. Trata-se,
         para ele, de tirar da moda o que esta pode conter de
         poético no histórico, extrair o eterno do transitório. Se
         lançarmos um olhar a nossas exposições de quadros modernos,
         ficaremos espantados com a tendência geral dos artistas de
         vestirem todas as personagens com indumentária antiga.
         Quase todas se servem das modas e dos móveis do
         Renascimento, como David se servia das modas e dos móveis
         romanos. Há, no entanto, uma diferença, pois David, tendo
         escolhido temas especificamente gregos ou romanos, não
         podia agir de outra forma senão vesti-los à moda antiga,
         enquanto os pintores atuais, escolhendo temas de uma
         natureza geral que podem aplicar a todas as épocas,
         obstinam-se em fantasiá-los com trajes da Idade Média, do
         Renascimento ou do Oriente. Evidentemente, é sinal de uma
         grande preguiça; pois é muito mais cômodo declarar que tudo
         é absolutamente feio no vestuário de uma época do que se
         esforçar por extrair dele a beleza misteriosa que possa
         conter, por mínima ou tênue que seja. A Modernidade é o
         transitório, o efêmero, o contingente, a metade da arte1,
         sendo a outra metade o eterno e o imutável. Houve uma
         modernidade para cada pintor antigo; a maior parte dos             23
         belos retratos que conhecemos das épocas passadas está
         revestida dos costumes da própria época. São perfeitamente
         harmoniosos; assim, a indumentária, o penteado e mesmo o
         gesto, o olhar e o sorriso (cada época tem seu porte, seu
         olhar e seu sorriso) formam um todo de completa vitalidade.
         Esse elemento transitório, fugitivo, cujas metamorfoses são
         tão frequentes, não temos o direito de desprezar ou de
         prescindir. Suprimindo-os, caímos forçosamente no vazio de
         uma beleza abstrata e indefinível, como aquela da mulher
         única antes do primeiro pecado. Se à vestimenta da época,
         que se impõe necessariamente, substituirmos uma outra,
         cometemos um contra-senso só desculpável no caso de uma
         máscara ditada pela moda. Assim, as deusas, as ninfas e as
         sultanas   do   século   XVIII  são   retratos   moralmente
         verossímeis.
      1. Neste capítulo temos a epígrafe do livro “Metade da Arte”, de
      Marcos Siscar: ...le transitoire, le fugitif, le contingent, la
      moitié de l’art... (... o transitório, o fugitivo, o contingente, a
      metade da arte...).

Il est sans doute excellent d’étudier les anciens maîtres pour
apprendre à peindre, mais cela ne peut être qu’un exercice superflu
si votre but est de comprendre le caractère de la beauté présente.
Les draperies de Rubens ou de Véronèse ne vous enseigneront pas à
faire de la moire antique, du satin à la reine, ou toute autre étoffe
de nos fabriques, soulevée, balancée par la crinoline ou les jupons
de mousseline empesée. Le tissu et le grain ne sont pas les mêmes que
dans les étoffes de l’ancienne Venise ou dans celles portées à la
cour de Catherine. Ajoutons aussi que la coupe de la jupe et du
corsage est absolument différente, que les plis sont disposés dans un
système nouveau, et enfin que le geste et le port de la femme
actuelle donnent à sa robe une vie et une physionomie qui ne sont pas
celles de la femme ancienne. En un mot, pour que toute modernité soit
digne de devenir antiquité, il faut que la beauté mystérieuse que la
vie humaine y met involontairement en ait été extraite. C’est à cette
tâche que s’applique particulièrement M. G.
          Sem dúvida, é importante estudar os antigos mestres para
          aprender a pintar, mas isso deve ser apenas um exercício
          supérfluo, caso nosso objetivo seja compreender o caráter
          da beleza atual. Os tecidos de Rubens ou de Véronèse não
          nos ensinarão a fazer chamalote1, cetim à rainha ou qualquer
          outro tecido de nossas fábricas, entufado, equilibrado pela
          crinolina2 ou pelos saiotes de musselina engomada. O tecido
          e a textura não são os mesmos que os da antiga Veneza ou os
          usados na corte de Catherine. Acrescentemos também que o
          corte da saia e do corpete é muito diferente, que as pregas
          são dispostas de acordo com um novo sistema, que os gestos
          e o porte da mulher atual dão a seu vestido uma vida e uma
          fisionomia que não são as da mulher antiga. Em poucas
          palavras, para que toda Modernidade seja digna de tornar-se        24
          Antiguidade, é necessário que dela se extraia a beleza
          misteriosa que a vida humana involuntariamente lhe confere.
          É a essa tarefa que G. se dedica em particular.
      1. “chamalote” traduz “la moire antique”: tecido em que a posição do
      fio produz um efeito ondeado.

      2. “Crinolina” traduz “crinoline”: tecido feito de crina.

J’ai dit que chaque époque avait son port, son regard et son geste.
C’est surtout dans une vaste galerie de portraits (celle de
Versailles, par exemple) que cette proposition devient facile à
vérifier. Mais elle peut s’étendre plus loin encore. Dans l’unité qui
s’appelle   nation,  les   professions,  les   castes,  les   siècles
introduisent la variété, non seulement dans les gestes et les
manières, mais aussi dans la forme positive du visage. Tel nez, telle
bouche, tel front remplissent l’intervalle d’une durée que je ne
prétends pas déterminer ici, mais qui certainement peut être soumise
à un calcul. De telles considérations ne sont pas assez familières
aux portraitistes ; et le grand défaut de M. Ingres, en particulier,
est de vouloir imposer à chaque type qui pose sous son oeil un
perfectionnement plus ou moins despotique, emprunté au répertoire des
idées classiques.
          Disse que cada época tinha seu porte, seu olhar e seu
          gesto. É sobretudo numa vasta galeria de retratos (a de
          Versalhes, por exemplo) que se torna fácil verificar essa
proposição. Mas ela pode estender-se mais amplamente. Na
         unidade que se chama nação, as profissões, as castas e os
         séculos introduzem a variedade, não somente nos gestos e
         nas maneiras, mas também na forma concreta do rosto. Tal
         nariz, tal boca, tal fronte correspondem ao intervalo de
         uma duração que não pretendo determinar aqui, mas que
         certamente   pode   ser   submetida   a  um cálculo.   Essas
         considerações   não   são   suficientemente familiares   aos
         retratistas; e o grande defeito de Ingres, em particular, é
         querer impor a cada tipo que posa diante de seus olhos um
         aperfeiçoamento mais ou menos compulsório colhido no
         repertório das idéias clássicas.




                                                                        25
      La grande Odalisque, 1814
      Jean Auguste Dominique Ingres (1780 – 1867)

En pareille matière, il serait facile et même légitime de raisonner a
priori. La corrélation perpétuelle de ce qu’on appelle l’âme avec ce
qu’on appelle le corps explique très bien comment tout ce qui est
matériel ou effluve du spirituel représente et représentera toujours
le spirituel d’où il dérive. Si un peintre patient et minutieux, mais
d’une imagination médiocre, ayant à peindre une courtisane du temps
présent, s’inspire (c’est le mot consacré) d’une courtisane de Titien
ou de Raphaël, il est infiniment probable qu’il fera une oeuvre
fausse, ambiguë et obscure. L’étude d’un chef-d’oeuvre de ce temps et
de ce genre ne lui enseignera ni l’attitude, ni le regard, ni la
grimace, ni l’aspect vital d’une de ces créatures que le dictionnaire
de la mode a successivement classées sous les titres grossiers ou
badins d’impures, de filles entretenues, de lorettes et de biches.
         Em semelhante matéria, seria fácil e mesmo legítimo
         raciocinar a priori. A correlação perpétua do que chamamos
         alma com o que chamamos corpo explica perfeitamente como
         tudo o que é material ou emanação do espiritual representa
         e representará sempre o espiritual de onde provém. Se um
         pintor paciente e minucioso, mas dotado de uma imaginação
         medíocre, em vez de pintar uma cortesã do tempo presente,
         inspira-se (essa é a expressão consagrada) em uma cortesã
         de Ticiano ou de Rafael, é muito provável que fará uma obra
falsa, ambígua e obscura. O estudo de uma obra-prima
         daquela época e daquele gênero não lhe ensinará nem a
         atitude, nem o olhar, nem o trejeito, nem o aspecto vital
         de uma dessas criaturas que o dicionário da moda
         sucessivamente  classificou,  com   nomes  grosseiros  ou
         maliciosos, de impuras, mulheres sustentadas, loureiras e
         mundanas1.
      1. Toda essa adjetivação diz respeito a prostitutas: “impures”, é
      traduzido por “impuras”; “filles entretenues”, literalmente: “jovens
      sustentadas”, diz respeito a mulheres que vivem com o auxílio
      financeiro de um amante; “lorettes”, é traduzido por “loureira”:
      mulher   provocante,  sedutora,   que   procura  agradar  a   todos;
      finalmente, “biches”, foi traduzido por “mundana”.




                                                                             26


      Deux biches
      Constantin Guys

La même critique s’applique rigoureusement à l’étude du militaire, du
dandy, de l’animal même, chien ou cheval, et de tout ce qui compose
la vie extérieure d’un siècle. Malheur à celui qui étudie dans
l’antique autre chose que l’art pur, la logique, la méthode générale
! Pour s’y trop plonger, il perd la mémoire du présent ; il abdique
la valeur et les priviléges fournis par la circonstance ; car presque
toute notre originalité vient de l’estampille que le temps imprime à
nos sensations. Le lecteur comprend d’avance que je pourrais vérifier
facilement mes assertions sur de nombreux objets autres que la femme.
Que diriez-vous, par exemple, d’un peintre de marines (je pousse
l’hypothèse à l’extrême) qui, ayant à reproduire la beauté sobre et
élégante du navire moderne, fatiguerait ses yeux à étudier les formes
surchargées, contournées, l’arrière monumental du navire ancien et
les voilures compliquées du seizième siècle ? Et que penseriez-vous
d’un artiste que vous auriez chargé de faire le portrait d’un pur-
sang, célèbre dans les solennités du turf, s’il allait confiner ses
contemplations dans les musées, s’il se contentait d’observer le
cheval dans les galeries du passé, dans Van Dyck, Bourguignon ou Van
der Meulen ?
          A mesma crítica aplica-se rigorosamente ao estudo do
          militar, do dândi ou mesmo dos animais, cão ou cavalo, e de
          tudo o que compõe a vida exterior de um século. Ai daquele
          que estuda, no antigo, outra coisa que não a arte pura, a
          lógica e o método geral! De tanto se enfronhar nele, perde
          a memória do presente; abdica do valor dos privilégios
          fornecidos pela circunstância, pois quase toda nossa
          originalidade vem da estampilha que o tempo imprime às
          nossas sensações. O leitor compreende antecipadamente que
          eu poderia comprovar facilmente minhas asserções por meio
          de numerosos outros objetos além da mulher. Que diriam, por
          exemplo, de um pintor de marinhas (levo a hipótese ao
          extremo) que, tendo de reproduzir a beleza sóbria e
          elegante   do   navio   moderno,   atormentasse   seus  olhos
          estudando as formas sobrecarregadas, retorcidas, a popa
          monumental de um navio antigo e os velames complicados do
          século XVI? E o que pensariam de um artista a quem tivessem
          incumbido de fazer o retrato de um puro-sangue, célebre nas
          solenidades   do   turfe,   se   ele   fosse   confinar  suas
          contemplações nos museus, se se contentasse em observar o
          cavalo nas galerias do passado, em Van Dyck, Bourguignon ou
          Van der Meulen?                                                 27
M. G., dirigé par la nature, tyrannisé par la circonstance, a suivi
une voie toute différente. Il a commencé par contempler la vie, et ne
s’est ingénié que tard à apprendre les moyens d’exprimer la vie. Il
en est résulté une originalité saisissante, dans laquelle ce qui peut
rester de barbare et d’ingénu apparaît comme une preuve nouvelle
d’obéissance à l’impression, comme une flatterie à la vérité. Pour la
plupart d’entre nous, surtout pour les gens d’affaires, aux yeux de
qui la nature n’existe pas, si ce n’est dans ses rapports d’utilité
avec leurs affaires, le fantastique réel de la vie est singulièrement
émoussé. M. G. l’absorbe sans cesse ; il en a la mémoire et les yeux
pleins.
          G., guiado pela natureza, tiranizado pela circunstância,
          enveredou por um caminho completamente diferente. Começou
          contemplando a vida e só muito tarde se esforçou para
          aprender os meios para expressá-la. Disso resultou uma
          originalidade extraordinária, na qual o que pode restar de
          bárbaro ou de ingênuo aparece como nova prova de obediência
          à impressão, como lisonja à verdade. Para a maioria dentre
          nós, sobretudo para os homens de negócios, aos olhos de
          quem a natureza existe apenas em suas relações de utilidade
          com seus negócios, o fantástico real da vida acha-se
          singularmente embotado. G. o absorve continuamente e dele
          tem a memória e os olhos repletos.
V
L’art mnémonique
       A arte mnemônica
Ce mot barbarie, qui est venu peut-être trop souvent sous ma plume,
pourrait induire quelques personnes à croire qu’il s’agit ici de
quelques dessins informes que l’imagination seule du spectateur sait
transformer en choses parfaites. Ce serait mal me comprendre. Je veux
parler d’une barbarie inévitable, synthétique, enfantine, qui reste
souvent visible dans un art parfait (mexicaine, égyptienne ou
ninivite), et qui dérive du besoin de voir les choses grandement, de
les considérer surtout dans l’effet de leur ensemble. Il n’est pas
superflu d’observer ici que beaucoup de gens ont accuse de barbarie
tous les peintres dont le regard est synthétique et abréviateur, par
exemple M. Corot, qui s’applique tout d’abord à tracer les lignes
principales d’un paysage, son ossature et sa physionomie. Ainsi, M.
G., traduisant fidèlement ses propres impressions, marque avec une
énergie instinctive les points culminants ou lumineux d’un objet (ils
peuvent être culminants ou lumineux au point de vue dramatique), ou
ses   principals    caractéristiques,    quelquefois   même   avec   une
exagération utile pour la mémoire humaine ; et l’imagination du
spectateur, subissant à son tour cette mnémonique si despotique, voit
avec netteté l’impression produite par les choses sur l’esprit de M.
                                                                           28
G. Le spectateur est ici le traducteur d’une traduction toujours
claire et enivrante.
          A palavra barbárie, que talvez tenha aparecido com
          excessiva frequência nos meus escritos, poderia induzir
          algumas pessoas a acreditar que se trata, neste caso, de
          alguns   desenhos    informes,   aos   quais   tão-somente   a
          imaginação do espectador sabe transformar em coisas
          perfeitas. Seria compreender-me erroneamente. Quero falar
          de uma barbárie inevitável, sintética, infantil, que muitas
          vezes permanece visível numa arte perfeita (mexicana,
          egípcia ou ninivita) e que resulta da necessidade de ver as
          coisas de maneira ampla, e de, principalmente, considerá-
          las no seu efeito de conjunto. Não é supérfluo observar
          aqui que muitas pessoas acusaram de barbárie todos os
          pintores cujo olhar é sintético e abreviador — Corot, por
          exemplo, que se dedica, inicialmente, a traçar as linhas
          principais de uma paisagem, sua ossatura e sua fisionomia.
          Assim, G., traduzindo fielmente as próprias impressões,
          marca com uma energia instintiva os pontos culminantes ou
          luminosos de um objeto (podem ser culminantes ou luminosos,
          do   ponto   de   vista   dramático),   ou   suas   principais
          características, algumas vezes inclusive com um exagero
          útil para a memória humana; e a imaginação do espectador,
          submetendo-se por sua vez a essa mnemônica tão despótica,
          vê com nitidez a impressão produzida pelas coisas sobre o
espírito de G. O espectador é aqui       o   tradutor   de   uma
         tradução sempre clara e inebriante.




                                                                            29
      Une matinée, la danse des nymphes
      Jean-Baptiste Camille Corot (1796 – 1875)

Il est une condition qui ajoute beaucoup à la force vitale de cette
traduction légendaire de la vie extérieure. Je veux parler de la
méthode de dessiner de M. G. Il dessine de mémoire, et non d’après le
modèle, sauf dans les cas (la guerre de Crimée, par exemple) où il y
a nécessité urgente de prendre des notes immédiates, précipitées, et
d’arrêter les lignes principales d’un sujet. En fait, tous les bons
et vrais dessinateurs dessinent d’après l’image écrite dans leur
cerveau, et non d’après la nature. Si l’on nous objecte les
admirables croquis de Raphaël, de Watteau et de beaucoup d’autres,
nous dirons que ce sont là des notes, très minutieuses, il est vrai,
mais de pures notes. Quand un véritable artiste en est venu à
l’exécution définitive de son oeuvre, le modèle lui serait plutôt un
embarras qu’un secours. Il arrive même que des hommes tels que
Daumier et M. G., accoutumés dès longtemps à exercer leur mémoire et
à la remplir d’images, trouvent devant le modèle et la multiplicité
de détails qu’il comporte, leur faculté principale troublée et comme
paralysée.
          Existe um elemento que acrescenta muito à força vital dessa
          tradução lendária da vida exterior. Refiro-me ao método de
          desenhar de G. Ele desenha de memória, e não a partir do
          modelo, salvo em casos (a guerra da Criméia, por exemplo)
          em que há a necessidade urgente de tomar notas imediatas,
rápidas, e de fixar as linhas principais de um tema. Na
         verdade, todos os bons e verdadeiros desenhistas desenham a
         partir da imagem inscrita no próprio cérebro, e não a
         partir da natureza. Se nos fizerem objeçõe quanto aos
         admiráveis croquis de Rafael, de Watteau e de muitos
         outros, diremos que são notas muito minuciosas, é verdade,
         mas simples notas. Quando um verdadeiro artista chega à
         execução definitiva de sua obra, o modelo lhe será mais um
         embaraço do que um auxílio. Há casos até em que homens como
         Daumier e G., acostumados há muito a exercitar sua memória
         e a povoá-la de imagens, têm as faculdades principais
         perturbadas e como que paralisadas diante do modelo e da
         multiplicidade de detalhes que ele comporta.




                                                                        30




      La République
      Honoré-Victorin Daumier (1808 – 1879)

Il s’établit alors un duel entre la volonté de tout voir, de ne rien
oublier, et la faculté de la mémoire qui a pris l’habitude d’absorber
vivement la couleur générale et la silhouette, l’arabesque du
contour. Un artiste ayant le sentiment parfait de la forme, mais
accoutumé à exercer surtout sa mémoire et son imagination, se trouve
alors comme assailli par une émeute de détails, qui tous demandent
justice avec la furie d’une foule amoureuse d’égalité absolue. Toute
justice se trouve forcément violée ; toute harmonie détruite,
sacrifiée ; mainte trivialité devient énorme ; mainte petitesse,
usurpatrice. Plus l’artiste se penche avec impartialité vers le
détail, plus l’anarchie augmente. Qu’il soit myope ou presbyte, toute
hiérarchie et toute subordination disparaissent. C’est un accident
qui se présente souvent dans les oeuvres d’un de nos peintres les
plus en vogue, dont les défauts d’ailleurs sont si bien appropriés
aux défauts de la foule, qu’ils ont singulièrement servi sa
popularité. La même analogie se fait deviner dans la pratique de
l’art du comédien, art si mystérieux, si profond, tombé aujourd’hui
dans la confusion des décadences. M. Frédérick-Lemaître compose un
rôle avec l’ampleur et la largeur du génie. Si étoilé que soit son
jeu de détails lumineux, il reste toujours synthétique et sculptural.
M. Bouffé compose les siens avec une minutie de myope et de
bureaucrate. En lui tout éclate, mais rien ne se fait voir, rien ne
veut être gardé par la mémoire.
          Estabelece-se assim um duelo entre a vontade de tudo ver,
          de nada esquecer, e a faculdade da memória, que adquiriu o
          hábito de absorver com vivacidade a cor geral e a silhueta,
          o arabesco do contorno. Um artista que tem o sentimento
          perfeito da forma, mas acostumado a exercitar sobretudo a
          memória e a imaginação, encontra-se então como que
          assaltado por uma turba de detalhes, todos reclamando
          justiça com a mesma fúria de uma multidão ávida por
          igualdade absoluta. Toda justiça acha-se forçosamente         31
          violada, toda harmonia destruída e sacrificada; muitas
          trivialidades assumem importância, muitos detalhes sem
          importância tornam-se usurpadores. Quanto mais o artista se
          curva com imparcialidade sobre o detalhe, mais aumenta a
          anarquia. Que seja míope ou presbita, toda hierarquia e
          toda subordinação desaparecem. É um acidente que aparece
          constantemente nas obras de um de nossos pintores mais em
          voga, cujos defeitos, aliás, são tão bem apropriados aos da
          multidão   que    contribuíram   singularmente   para   sua
          popularidade. Adivinha-se a mesma analogia no exercício da
          arte do ator, arte tão misteriosa, tão profunda, vítima nos
          dias de hoje da confusão das decadências. Frédérick
          Lemaitre desempenha um papel com a amplitude e a grandeza
          do gênio. Por mais que sua criação esteja semeada de
          detalhes luminosos, permanece sintética e escultural.
          Bouffé compõe os seus papéis com uma minúcia de míope e de
          burocrata. Nele tudo brilha, mas nada transparece, nada
          quer ser guardado pela memória.

Ainsi, dans l’exécution de M. G. se montrent deux choses : l’une, une
contention de mémoire résurrectioniste, évocatrice, une mémoire qui
dit à chaque chose : « Lazare, lève-toi ! » ; l’autre, un feu, une
ivresse de crayon, de pinceau, ressemblant presque à une fureur.
C’est la peur de n’aller pas assez vite, de laisser échapper le
fantôme avant que la synthèse n’en soit extraite et saisie ; c’est
cette terrible peur qui possède tous les grands artistes et qui leur
fait   désirer   si  ardemment   de  s’approprier  tous   les  moyens
d’expression, pour que jamais les ordres de l’esprit ne soient
altérés par les hésitations de la main ; pour que finalement
l’exécution, l’exécution idéale, devienne aussi inconsciente, aussi
coulante que l’est la digestion pour le cerveau de l’homme bien
portant qui a dîné. M. G. commence par de légères indications au
crayon, qui ne marquent guère que la place que les objets doivent
tenir dans l’espace. Les plans principaux sont indiqués ensuite par
des teintes au lavis, des masses vaguement, légèrement colorées
d’abord, mais reprises plus tard et chargées successivement de
couleurs plus intenses. Au dernier moment, le contour des objets est
définitivement cerné par de l’encre. A moins de les avoir vus, on ne
se douterait pas des effets surprenants qu’il peut obtenir par cette
méthode si simple et presque élémentaire. Elle a cet incomparable
avantage, qu’à n’importe quel point de son progrès, chaque dessin a
l’air suffisamment fini ; vous nommerez cela une ébauche si vous
voulez, mais ébauche parfaite. Toutes les valeurs y sont en pleine
harmonie, et s’il les veut pousser plus loin, elles marcheront
toujours de front vers le perfectionnement désiré. Il prépare ainsi
vingt dessins à la fois avec une pétulance et une joie charmantes,
amusantes même pour lui ; les croquis s’empilent et se superposent
par dizaines, par centaines, par milliers. De temps à autre il les
parcourt, les feuillette, les examine, et puis il en choisit
quelques-uns dont il augmente plus ou moins l’intensité, dont il        32
charge les ombres et allume progressivement les lumières.
          Assim, na execução de G. se evidenciam duas coisas: a
          primeira,   um   esforço  de    memória  ressurreicionista,
          evocadora, uma memória que diz a cada coisa: “Lázaro,
          levanta-te”; a outra, um fogo, uma embriaguez de lápis, de
          pincel, que se assemelha quase a um furor. É o medo de não
          agir com suficiente rapidez, de deixar o fantasma escapar
          antes que sua síntese tenha sido extraída e captada; é o
          pavor terrível que se apodera de todos os grandes artistas
          e que os faz desejar tão ardentemente apropriarem-se de
          todos os meios de expressão para que jamais as ordens do
          espírito sejam alteradas pelas hesitações da mão; para que
          finalmente a execução, a execução ideal se torne tão
          inconsciente, tão fluente quanto a digestão para o cérebro
          do homem sadio que acabou de jantar. G. começa por leves
          indicações a lápis, que apenas indicam a posição que os
          objetos devem ocupar no espaço. Os planos principais são
          indicados em seguida por tons em aguada, massas de início
          coloridas vagamente, levemente, porém retomadas mais tarde
          e carregadas sucessivamente com cores mais intensas. No
          último momento, o contorno dos objetos é definitivamente
          delineado com a tinta. A menos que já os tenha visto, não
          se pode imaginar os efeitos surpreendentes que G. consegue
          obter com esse método tão simples e quase elementar. Tem a
          incomparável vantagem de, em qualquer etapa de sua
progressão, cada desenho parecer suficientemente acabado;
         alguém dirá que isso é um esboço, se quiser, mas um esboço
         perfeito. Todos os valores se encontram em perfeita
         harmonia, e se G. quiser levá-los adiante. eles se
         encaminharão decididamente para o aperfeiçoamento desejado.
         Ele prepara desse modo vinte desenhos ao mesmo tempo, com
         uma petulância e alegria encantadoras, divertidas até mesmo
         para ele - os croquis empilham-se e superpõem-se às
         dezenas, às centenas, aos milhares. De vez em quando G. os
         percorre, os folheia, os examina, e depois escolhe alguns,
         nos quais aumenta mais ou menos a intensidade, carrega as
         sombras e clareia progressivamente as zonas luminosas.




                                                                       33




      Demi-mondaines
      Constantin Guys (1802-1892)

Il attache une immense importance aux fonds, qui, vigoureux ou
légers, sont toujours d’une qualité et d’une nature appropriées aux
figures. La gamme des tons et l’harmonie générale sont strictement
observées, avec un génie qui dérive plutôt de l’instinct que de
l’étude. Car M. G. possède naturellement ce talent mystérieux du
coloriste, véritable don que l’étude peut accroître, mais qu’elle
est, par elle-même, je crois, impuissante à créer. Pour tout dire en
un mot, notre singulier artiste exprime à la fois le geste et
l’attitude solennelle ou grotesque des êtres et leur explosion
lumineuse dans l’espace.
          G. dedica uma imensa importância aos fundos que, vigorosos
          ou evanescentes, sempre são de uma qualidade e de uma
          natureza apropriadas às figuras. A gama de tons e a
          harmonia geral são estritamente observadas, com um gênio
          que provém mais do instinto que do estudo. Pois G. possui,
          naturalmente, o talento misterioso do colorista, verdadeiro
          dom que o estudo pode desenvolver, mas que é, por si mesmo,
          creio, incapaz de criar. Para resumir em poucas palavras,
          nosso singular artista exprime ao mesmo tempo o gesto e a
          atitude solene ou grotesca dos seres e sua explosão
          luminosa no espaço.




                                                                        34
VI
Les annales de la guerre
       Os anais da guerra
La Bulgarie, la Turquie, la Crimée, l’Espagne ont été de grandes
fêtes pour les yeux de M. G., ou plutôt de l’artiste imaginaire que
nous sommes convenus d’appeler M. G. ; car je me souviens de temps en
temps que je me suis promis, pour mieux rassurer sa modestie, de
supposer qu’il n’existait pas. J’ai compulsé ces archives de la
guerre d’Orient (champs de bataille jonchés de débris funèbres,
charrois de matériaux, embarquements de bestiaux et de chevaux),
tableaux vivants et surprenants, décalqués sur la vie elle-même,
éléments d’un pittoresque précieux que beaucoup de peintres en renom,
placés dans les mêmes circonstances, auraient étourdiment négligés ;
cependant, de ceux-là j’excepterai volontiers M. Horace Vernet,
véritable gazetier plutôt que peintre essentiel, avec lequel M. G.,
artiste plus délicat, a des rapports visibles, si on veut ne le
considérer que comme archiviste de la vie. Je puis affirmer que nul
journal, nul récit écrit, nul livre, n’exprime aussi bien, dans tous
ses détails douloureux et dans sa sinistre ampleur, cette grande
épopée de la guerre de Crimée. L’oeil se promène tour à tour aux
bords du Danube, aux rives du Bosphore, au cap Kerson, dans la plaine
de Balaklava, dans les champs d’Inkermann, dans les campements
                                                                        35
anglais,   français,   turcs   et   piémontais,   dans les   rues  de
Constantinople, dans les hôpitaux et dans toutes les solennités
religieuses et militaires.
          A Bulgária, a Turquia, a Crimeia e a Espanha foram grandes
          festas para os olhos de G., ou melhor, para os olhos do
          artista imaginário que convencionamos chamar de G.; pois me
          lembro de vez em quando ter prometido a mim mesmo, para
          tranquilizar sua modéstia, supor que ele não existe.
          Compulsei os arquivos da guerra do Oriente (campos de
          batalha juncados de restos mortais, carroças de materiais,
          embarques de gado e de cavalos), quadros vivos e
          surpreendentes, decalcados na própria vida, elementos de um
          pitoresco precioso que muitos pintores famosos, colocados
          nas    mesmas     circunstâncias,     teriam  negligenciado
          imprudentemente; no entanto, destes excluirei naturalmente
          Horace Vernet, verdadeiro jornalista em vez de pintor
          essencial, com quem G., artista mais delicado, tem
          afinidades visíveis, se quisermos considerá-lo apenas como
          arquivista da vida. Posso afirmar que nenhum diário, nenhum
          relato escrito, nenhum livro exprime tão bem, em todos os
          seus detalhes dolorosos e em sua sinistra amplitude, a
          grande epopéia da guerra da Crimeia. O olhar vagueia
          sucessivamente pelas margens do Danúbio, pelas margens do
          Bósforo, pelo cabo Kerson, pela planície de Balaklava,
          pelos campos de Inkermann, pelos acampamentos ingleses,
franceses,   turcos    e  piemonteses,   pelas   ruas   de
         Constantinopla, pelos hospitais e por todas as solenidades
         religiosas e militares.




      Quatre équipages
      Constantin Guys                                                   36
Une des compositions qui se sont le mieux gravées dans mon esprit est
la Consécration d’un terrain funèbre à Soutari par l’évêque de
Gibraltar. Le caractère pittoresque de la scène, qui consiste dans le
contraste de la nature orientale environnante avec les attitudes et
les uniformes occidentaux des assistants, est rendu d’une manière
saisissante, suggestive et grosse de rêveries. Les soldats et les
officiers ont ces airs ineffaçables de gentlemen, résolus et
discrets, qu’ils portent au bout du monde, jusque dans les garnisons
de la colonie du Cap et les établissements de l’Inde : les prêtres
anglais font vaguement songer à des huissiers ou à des agents de
change qui seraient revêtus de toques et de rabats.
          Uma das composições que mais se gravaram em meu espírito é
          a Consécration d’un Terrain Funèbre à Scutari par l’Évêque
          de Gibraltar1. O caráter pitoresco da cena, que consiste no
          contraste da natureza oriental circundante com as atitudes
          e os uniformes ocidentais da assistência, é expresso de uma
          maneira fascinante, sugestiva e cheia de fantasia. Os
          soldados e os oficiais têm esses ares indeléveis de
          gentlemen, resolutos e discretos, que os distinguem até o
          fim do mundo, até nas guarnições da colônia do Cabo e nas
          feitorias da Índia: os pastores ingleses lembram vagamente
          meirinhos ou agentes de câmbio que tivessem vestido barrete
          e cabeção2.
      1. “Consécration d’un Terrain Funèbre à Scutari par l’Évêque de
Le peintre de la vie moderne   baudelaire
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Le peintre de la vie moderne baudelaire

  • 1. Nicolas Pelicioni de OLIVEIRA Licenciatura em Letras - Ibilce, UNESP http://nicolas-pelicioni.blogspot.com/ nicolaspelicioni@hotmail.com Algumas notas: A tradução não é minha, meu trabalho é apenas o de leitura: comparo o texto original francês à tradução, acrescentando as notas que considero importantes (em alguns casos, para justificar a tradução - eventualmente, mudo a tradução!), e acrescento imagens para contextualizar. Infelizmente, não tenho o nome do tradutor do texto em português. Os textos que utilizei foram os seguintes: BAUDELAIRE, C. Sobre a Modernidade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996. BAUDELAIRE, C. Le peintre de la vie moderne. Disponível em: < http://baudelaire.litteratura.com>. Acessado em 2 de novembro de 2012. A seguinte nota acompanha o texto que utilizei em português: “Esta obra foi digitalizada pelo grupo Digital Source para proporcionar, de maneira totalmente gratuita, o benefício de sua leitura àqueles que não podem comprá-la ou àqueles que necessitam de meios eletrônicos para ler. Dessa forma, a venda deste ebook ou até mesmo a sua troca por qualquer contraprestação é totalmente condenável em qualquer circunstância. A generosidade e a humildade é a marca da distribuição, portanto distribua este livro livremente.” Em seguida, são apresentados os sites: <http://groups.google.com/group/Viciados_em_Livros> <http://groups.google.com/group/digitalsource> Além destes, muitas das imagens foram pegas no: <http://www.wikipaintings.org/>
  • 2. Charles Baudelaire LE PEINTRE DE LA VIE MODERNE SOBRE A MODERNIDADE PAZ E TERRA Coleção Leitura © Editora Paz e Terra, 1996. Editores responsáveis: Christine Röhrig e Maria Elisa Cevasco Edição de texto: Thaís Nicoleti de Camargo Produção Gráfica: Katia Halbe Capa: Isabel Carballo
  • 3. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Baudelaire, Charles, 1821-1867. Sobre a modernidade o pintor da vida moderna / Charles Baudelaire; [organizador Teixeira Coelho]. — Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996. — (Coleção Leitura) ISBN 85-219-01984 1. Arte 2. Arte — História 3. Baudelaire, Charles, 1821-1867 4 Crítica de arte 5. Pintura 6. Usos e costumes I. Coelho, Teixeira, 1944- II. Título. III. Séries. 96-2061 CDD-709 Índices para catálogo sistemático: 1. Arte : Avaliação crítica 709 2. Arte : Estudos críticos 709 3. Arte : História 709 EDITORA PAZ E TERRA S.A. Rua do Triunfo, 177 01212-010 — São Paulo — 5P Tel.: (011)223-6522 Rua Dias Ferreira nº. 417—Loja Parte 22431-050 — Rio de Janeiro — RJ Tel.: (021) 259-8946 Conselho editorial: Celso Furtado Fernando Gasparian Roberto Schwarz Rosa Freire D’Aguiar 1996 Impresso no Brasil / Printed in Brazil
  • 4. Índice Le peintre de la vie moderne O pintor da vida moderna I Le beau, la mode et le bonheur 2 O belo, a moda e a felicidade II Le croquis de moeurs 8 O croqui de costumes III L’artiste, homme du monde, homme des foules et enfant 10 O artista, homem do mundo, homem das multidões e criança IV La modernité 22 A modernidade V L’art mnémonique 28 A arte mnemônica VI Les annales de la guerre Os anais da guerra 35 1 VII Pompes et solennités 43 Pompas e solenidades VIII Le militaire 49 O militar IX Le dandy 54 O dândi X La femme 61 A mulher XI Eloge du maquillage 64 Elogio da maquiagem XII Les femmes et les filles 71 As mulheres e as cortesãs XIII Les voitures 79 Os veículos
  • 5. I Le beau, la mode et le bonheur O belo, a moda e a felicidade Il y a dans le monde, et même dans le monde des artistes, des gens qui vont au musée du Louvre, passent rapidement, et sans leur accorder un regard, devant une foule de tableaux très intéressants, quoique de second ordre, et se plantent rêveurs devant un Titien ou un Raphaël, un de ceux que la gravure a le plus popularisés ; puis sortent satisfaits, plus d’un se disant : « Je connais mon musée. » Il existe aussi des gens qui, ayant lu jadis Bossuet et Racine, croient posséder l’histoire de la littérature. Há neste mundo, e mesmo no mundo dos artistas, pessoas que vão ao Museu do Louvre, passam rapidamente — sem se dignar a olhar — diante de um número imenso de quadros muito interessantes embora de segunda categoria e plantam-se sonhadoras diante de um Ticiano ou de um Rafael, um desses que foram mais popularizados pela gravura1; depois todas saem satisfeitas, mais de uma dizendo consigo: “Conheço o meu museu”. Há também pessoas que, por terem outrora lido Bossuet e Racine, acreditam dominar a história da literatura. 1. Gravura, aqui tem o sentido da “imagem” reproduzida no quadro, 2 não o processo técnico. Par bonheur se présentent de temps en temps des redresseurs de torts, des critiques, des amateurs, des curieux qui affirment que tout n’est pas dans Raphaël, que tout n’est pas dans Racine, que les poetae minores ont du bon, du solide et du délicieux ; et, enfin, que pour tant aimer la beauté générale, qui est exprimée par les poètes et les artistes classiques, on n’en a pas moins tort de négliger la beauté particulière, la beauté de circonstance et le trait de moeurs. Felizmente, de vez em quando aparecem justiceiros, críticos, amadores e curiosos afirmando nem tudo estar em Rafael, nem tudo estar em Racine, que os poetae minores1 possuem algo de bom, de sólido e de delicioso, e, finalmente, que mesmo amando tanto a beleza geral, expressa pelos poetas e artistas clássicos, nem por isso deixa de ser um erro negligenciar a beleza particular, a beleza de circunstância e a pintura de costumes. 1. “poetae minores”, em latim, “poeta” tem o sentido de “o que faz (alguma coisa), artista”, não somente o escritor de poesias. Assim, “poetae minores” pode ser traduzido por “artistas menores”. Je dois dire que le monde, depuis plusieurs années, s’est un peu corrigé. Le prix que les amateurs attachent aujourd’hui aux gentillesses gravées et coloriées du dernier siècle prouve qu’une réaction a eu lieu dans le sens où le public en avait besoin ;
  • 6. Debucourt, les Saint-Aubin et bien d’autres, sont entrés dans le dictionnaire des artistes dignes d’être étudiés. Mais ceux-là représentent le passé ; or c’est à la peinture des moeurs du présent que je veux m’attacher aujourd’hui. Le passé est intéressant non seulement par la beauté qu’ont su en extraire les artistes pour qui il était le présent, mais aussi comme passé, pour sa valeur historique. Il en est de même du présent. Le plaisir que nous retirons de la représentation du présent tient non seulement à la beauté dont il peut être revêtu, mais aussi à sa qualité essentielle de présent. Devo dizer que o mundo, após muitos anos, se corrigiu um pouco. O valor que os amadores atribuem hoje aos mimos1 gravados e coloridos do século passado, prova que houve uma reação na direção reclamada pelo público: Debucourt, Saint- Aubin e muitos outros entraram para o dicionário dos artistas dignos de serem estudados. Mas eles representam o passado. Ora, hoje quero me ater estritamente à pintura de costumes do presente. O passado é interessante não somente pela beleza que dele souberam extrair os artistas para quem constituía o presente, mas também como passado, por seu valor histórico. O mesmo ocorre com o presente. O prazer que obtemos com a representação do presente deve-se não apenas à beleza de que ele pode estar revestido, mas também à sua qualidade essencial de presente. 1. “mimos” traduz “gentillesses”. São os “costumes gentis do século 3 passado” registradas em arte. J’ai sous les yeux une série de gravures de modes commençant avec la Révolution et finissant à peu près au Consulat. Ces costumes, qui font rire bien des gens irréfléchis, de ces gens graves sans vraie gravité, présentent un charme d’une nature double, artistique et historique. Ils sont très souvent beaux et spirituellement dessinés ; mais ce qui m’importe au moins autant, et ce que je suis heureux de retrouver dans tous ou presque tous, c’est la morale et l’esthétique du temps. L’idée que l’homme se fait du beau s’imprime dans tout son ajustement, chiffonne ou raidit son habit, arrondit ou aligne son geste, et même pénètre subtilement, à la longue, les traits de son visage. L’homme finit par ressembler à ce qu’il voudrait être. Ces gravures peuvent être traduites en beau et en laid ; en laid, elles deviennent des caricatures ; en beau, des statues antiques. Tenho diante dos olhos uma série de gravuras de modas que começam na Revolução1 e terminam aproximadamente no Consulado2. Esses trajes que provocam o riso de muitas pessoas insensatas, essas pessoas sérias sem verdadeira seriedade apresentam um fascínio de uma dupla natureza, ou seja, artístico e histórico. Eles quase sempre são belos e desenhados com elegância, mas o que me importa, pelo menos em idêntica medida, e o que me apraz encontrar em todos ou em quase todos, é a moral e a estética da época. A idéia que o homem tem do belo imprime-se em todo o seu vestuário,
  • 7. torna sua roupa franzida ou rígida, arredonda ou alinha seu gesto e inclusive impregna sutilmente, com o passar do tempo, os traços de seu rosto. O homem acaba por se assemelhar àquilo que gostaria de ser. Essas gravuras podem ser traduzidas em belo e em feio; em feio, tornam-se caricaturas; em belo, estátuas antigas. 1. Revolução Francesa: (1789 – 1799). 2. Consulado: “Consulat” (9 – 10 de novembro de 1799 à 18 de maio de 1804) regime político da França resultante do golpe de Estado do 18 brumário, teve fim quando Napoleão Bonaparte se proclamou imperador. Les femmes qui étaient revêtues de ces costumes ressemblaient plus ou moins aux unes ou aux autres, selon le degré de poésie ou de vulgarité dont elles étaient marquées. La matière vivante rendait ondoyant ce qui nous semble trop rigide. L’imagination du spectateur peut encore aujourd’hui faire marcher et frémir cette tunique et ce schall. Un de ces jours, peut-être, un drame paraîtra sur un théâtre quelconque, où nous verrons la résurrection de ces costumes sous lesquels nos pères se trouvaient tout aussi enchanteurs que nous- mêmes dans nos pauvres vêtements (lesquels ont aussi leur grâce, il est vrai, mais d’une nature plutôt morale et spirituelle), et s’ils sont portés et animés par des comédiennes et des comédiens intelligents, nous nous étonnerons d’en avoir pu rire si étourdiment. Le passé, tout en gardant le piquant du fantôme, reprendra la lumière 4 et le mouvement de la vie, et se fera présent. As mulheres que envergavam esses trajes se pareciam mais ou menos umas às outras, segundo o grau de poesia ou de vulgaridade que as distinguia. A matéria viva tornava ondulante o que nos parece muito rígido. A imaginação do espectador pode ainda hoje movimentar e fremir esta túnica ou este xale. Talvez, um dia desses, será montado um drama num teatro qualquer, onde presenciaremos a ressurreição desses costumes nos quais nossos pais se achavam tão atraentes quanto nós mesmos em nossas pobres roupas (que também têm sua graça, é verdade, mas de uma natureza sobretudo moral e espiritual), e se forem vestidos e animados por atrizes e atores inteligentes, nós nos admiraremos de nos terem despertado o riso de modo tão leviano. O passado, conservando o sabor do fantasma, recuperará a luz e o movimento da vida, e se tornará presente. Si un homme impartial feuilletait une à une toutes les modes françaises depuis l’origine de la France jusqu’au jour présent, il n’y trouverait rien de choquant ni même de surprenant. Les transitions y seraient aussi abondamment ménagées que dans l’échelle du monde animal. Point de lacune, donc point de surprise. Et s’il ajoutait à la vignette qui représente chaque époque la pensée philosophique dont celle-ci était le plus occupée ou agitée, pensée
  • 8. dont la vignette suggère inévitablement le souvenir, il verrait quelle profonde harmonie régit tous les membres de l’histoire, et que, même dans les siècles qui nous paraissent les plus monstrueux et les plus fous, l’immortel appétit du beau a toujours trouvé sa satisfaction. Se um homem imparcial folheasse uma a uma todas as modas francesas desde a origem da França até o momento, nada encontraria de chocante nem de surpreendente. Seria possível ver as transições organizadas de forma tão gradativa quanto na escala do mundo animal. Nenhuma lacuna; logo, nenhuma surpresa. E se ele acrescentasse à vinheta que representa cada época o pensamento filosófico que mais a ocupou ou agitou, pensamento cuja lembrança é inevitavelmente evocada pela vinheta, constataria a profunda harmonia que rege toda a equipe da história, e que, mesmo nos séculos que nos parecem mais monstruosos e insanos, o imortal apetite do belo sempre foi saciado. C’est ici une belle occasion, en vérité, pour établir une théorie rationnelle et historique du beau, en opposition avec la théorie du beau unique et absolu ; pour montrer que le beau est toujours, inévitablement, d’une composition double, bien que l’impression qu’il produit soit une ; car la difficulté de discerner les éléments variables du beau dans l’unité de l’impression n’infirme en rien la nécessité de la variété dans sa composition. Le beau est fait d’un 5 élément éternel, invariable, dont la quantité est excessivement difficile à déterminer, et d’un élément relatif, circonstanciel, qui sera, si l’on veut, tour à tour ou tout ensemble, l’époque, la mode, la morale, la passion. Sans ce second élément, qui est comme l’enveloppe amusante, titillante, apéritive, du divin gâteau, le premier élément serait indigestible, inappréciable, non adapté et non approprié à la nature humaine. Je défie qu’on découvre un échantillon quelconque de beauté qui ne contienne pas ces deux éléments. Na verdade, esta é uma bela ocasião para estabelecer uma teoria racional e histórica do belo, em oposição à teoria do belo único e absoluto; para mostrar que o belo inevitavelmente sempre tem uma dupla composição, embora a impressão que produza seja uma, pois a dificuldade em discernir os elementos variáveis do belo na unidade da impressão não diminui em nada a necessidade da variedade em sua composição. O belo é constituído por um elemento eterno, invariável, cuja quantidade é excessivamente difícil determinar, e de um elemento relativo, circunstancial, que será, se quisermos, sucessiva ou combinadamente, a época, a moda, a moral, a paixão. Sem esse segundo elemento, que é como o invólucro aprazível, palpitante, aperitivo do divino manjar, o primeiro elemento seria indigerível, inapreciável, não adaptado e não apropriado à natureza humana. Desafio qualquer pessoa a descobrir qualquer exemplo de beleza que não contenha esses
  • 9. dois elementos. Je choisis, si l’on veut, les deux échelons extrêmes de l’histoire. Dans l’art hiératique, la dualité se fait voir au premier coup d’oeil ; la partie de beauté éternelle ne se manifeste qu’avec la permission et sous la règle de la religion à laquelle appartient l’artiste. Dans l’oeuvre la plus frivole d’un artiste raffiné appartenant à une de ces époques que nous qualifions trop vaniteusement de civilisées, la dualité se montre également ; la portion éternelle de beauté sera en même temps voilée et exprimée, sinon par la mode, au moins par le tempérament particulier de l’auteur. La dualité de l’art est une conséquence fatale de la dualité de l’homme. Considérez, si cela vous plaît, la partie éternellement subsistante comme l’âme de l’art, et l’élément variable comme son corps. C’est pourquoi Stendhal, esprit impertinent, taquin, répugnant même, mais dont les impertinences provoquent utilement la méditation, s’est rapproché de la vérité, plus que beaucoup d’autres, en disant que le Beau n’est que la promesse du bonheur. Sans doute cette définition dépasse le but ; elle soumet beaucoup trop le beau à l’idéal infiniment variable du bonheur ; elle dépouille trop lestement le beau de son caractère aristocratique ; mais elle a le grand mérite de s’éloigner décidément de l’erreur des académiciens. Escolho, se preferirem, os dois escalões extremos da história. Na arte hierática, a dualidade salta à vista; a parte de beleza eterna só se manifesta com a permissão e 6 dentro dos cânones da religião a que o artista pertence. A dualidade se evidencia igualmente na obra mais frívola de um artista refinado pertencente a uma dessas épocas que qualificamos, com excessiva vaidade, de civilizadas; a dualidade igualmente se mostra; a porção eterna de beleza estará ao mesmo tempo velada e expressa, se não pela moda, ao menos pelo temperamento particular do autor. A dualidade da arte é uma consequência fatal da dualidade do homem. Considerem, se isso lhes apraz, a parte eternamente subsistente como a alma da arte, e o elemento variável como seu corpo. É por isso que Stendhal, espírito impertinente, irritante, até mesmo repugnante, mas cujas impertinências necessariamente provocam a meditação, se aproximou mais da verdade do que muitos outros ao afirmar que o Belo não é senão a promessa da felicidade. Sem dúvida, tal definição excede seu objetivo, submete de forma excessiva o belo ao ideal indefinidamente variável da felicidade, despoja com muita desenvoltura o belo de seu caráter aristocrático, mas tem o grande mérito de afastar-se decididamente do erro dos acadêmicos. J’ai plus d’une fois déjà expliqué ces choses ; ces lignes en disent assez pour ceux qui aiment ces jeux de la pensée abstraite ; mais je sais que les lecteurs français, pour la plupart, ne s’y complaisent guère, et j’ai hâte moi-même d’entrer dans la partie positive et
  • 10. réelle de mon sujet. Já expliquei estas coisas mais de uma vez; estas linhas são suficientes para aqueles que apreciam os exercícios do pensamento abstrato; mas sei que os leitores franceses, em sua maioria, neles pouco se comprazem e eu mesmo tenho pressa de entrar na parte positiva e real de meu tema. 7
  • 11. II Le croquis de moeurs O croqui1 de costumes Pour le croquis de moeurs, la représentation de la vie bourgeoise et les spectacles de la mode, le moyen le plus expéditif et le moins coûteux est évidemment le meilleur. Plus l’artiste y mettra de beauté, plus l’oeuvre sera précieuse ; mais il y a dans la vie triviale, dans la métamorphose journalière des choses extérieures, un mouvement rapide qui commande à l’artiste une égale vélocité d’exécution. Les gravures à plusieurs teintes du dix-huitième siècle ont obtenu de nouveau les faveurs de la mode, comme je le disais tout à l’heure ; le pastel, l’eau-forte, l’aqua-tinte ont fourni tour à tour leurs contingents à cet immense dictionnaire de la vie moderne disséminé dans les bibliothèques, dans les cartons des amateurs et derrière les vitres des plus vulgaires boutiques. Dès que la lithographie parut, elle se montra tout de suite très apte à cette énorme tâche, si frivole en apparence. Nous avons dans ce genre de véritables monuments. On a justement appelé les oeuvres de Gavarni et de Daumier des compléments de La Comédie Humaine. Balzac lui-même, j’en suis très convaincu, n’eût pas été éloigné d’adopter cette idée, laquelle est d’autant plus juste que le génie de l’artiste peintre de moeurs est un génie d’une nature mixte, c’est-à-dire où il entre une 8 bonne partie d’esprit littéraire. Observateur, flâneur, philosophe, appelez-le comme vous voudrez ; mais vous serez certainement amené, pour caractériser cet artiste, à le gratifier d’une épithète que vous ne sauriez appliquer au peintre des choses éternelles, ou du moins plus durables, des choses héroïques ou religieuses. Quelquefois il est poète ; plus souvent il se rapproche du romancier ou du moraliste ; il est le peintre de la circonstance et de tout ce qu’elle suggère d’éternel. Chaque pays, pour son plaisir et pour sa gloire, a possédé quelques uns de ces hommes-là. Dans notre époque actuelle, à Daumier et à Gavarni, les premiers noms qui se présentent à la mémoire, on peut ajouter Devéria, Maurin, Numa, historiens des grâces interlopes de la Restauration, Wattier, Tassaert, Eugène Lami, celui-là presque Anglais à force d’amour pour les éléments aristocratiques, et même Trimolet et Traviès, ces chroniqueurs de la pauvreté et de la petite vie. Para o croqui de costumes, a representação da vida burguesa e os espetáculos da moda, o meio mais expedito e menos custoso, evidentemente, é o melhor. Quanto mais beleza o artista lhe conferir, mais preciosa será a obra; mas há na vida ordinária, na metamorfose incessante das coisas exteriores, um movimento rápido que exige do artista idêntica velocidade de execução. As gravuras de várias tonalidades do século XVIII obtiveram novamente o favor da moda, como eu afirmava há pouco; o pastel, a água-forte, a água-tinta forneceram sucessivamente seus contingentes para
  • 12. o imenso dicionário da vida moderna, disseminado nas bibliotecas, nas pastas dos amadores e nas vitrines das lojas mais comuns2. A litografia, desde o seu surgimento, imediatamente se mostrou bastante apta a essa enorme tarefa aparentemente tão frívola. Possuímos, nesse gênero, verdadeiros monumentos. As obras de Gavarni e de Daumier foram com justiça denominadas complementos de A Comédia Humana3. O próprio Balzac, tenho certeza absoluta, não estaria longe de adotar essa ideia, pela justa razão de que o gênio do pintor de costumes é um gênio de uma natureza mista, isto é, no qual entra uma boa dose de espírito literário. Observador, flâneur, filósofo, chamem-no como quiserem, mas, para caracterizar esse artista, certamente seremos levados a agraciá-lo com um epíteto que não poderíamos aplicar ao pintor das coisas eternas, ou pelo menos as mais duradouras, coisas heróicas ou religiosas. Às vezes ele é um poeta; mais, frequentemente, aproxima-se do romancista ou do moralista; é o pintor do circunstancial e de tudo o que este sugere de eterno. Todos os países, para seu prazer e glória, possuíram alguns desses homens. Em nossa época atual, a Daumier e a Gavarni, primeiros nomes que nos vêm à memória, podemos acrescentar os de Devéria, Maurin, Numa, historiadores das ambíguas belezas da Restauração; Wattier, Tassaert, Eugène Lami — este último quase inglês, de tanto amor pelas elegâncias aristocráticas 9 — e inclusive Trimolet e Traviès, cronistas da pobreza e da banalidade quotidiana. 1. “Croquis”, traduzido pela mesma palavra: “croqui”. O croqui é um desenho rápido, na forma de esboço (o dicionário Le Robert Micro dá para “croquis” os sinônimos “esquisse” e “ébauche”, palavras entendidas em portugues como “esboço”). 2. “Comuns” traduz “vulgaires”. O contexto parece sugerir mais leveza do que o pejorativo “vulgares”; embora “vulgaire”, em francês, também seja pejorativo. 3. “A comédia Humana”, obra de Honoré de Balzac (1799 – 1850), composta de 95 volumes, procura retratar todos os níveis da sociedade francesa da época, em particular a florescente burguesia.
  • 13. III L’artiste, homme du monde, homme des foules et enfant O artista, homem do mundo, homem das multidões e criança Je veux entretenir aujourd’hui le public d’un homme singulier, originalité si puissante et si décidée, qu’elle se suffit à elle-même et ne recherche même pas l’approbation. Aucun de ses dessins n’est signé, si l’on appelle signature ces quelques lettres, faciles à contrefaire, qui figurent un nom, et que tant d’autres apposent fastueusement au bas de leurs plus insouciants croquis. Mais tous ses ouvrages sont signés de son âme éclatante, et les amateurs qui les ont vus et appréciés les reconnaîtront facilement à la description que j’en veux faire. Grand amoureux de la foule et de l’incognito, M. C. G. pousse l’originalité jusqu’à la modestie. M. Thackeray, qui, comme on sait, est très curieux des choses d’art, et qui dessine lui- même les illustrations de ses romans, parla un jour de M. G. dans un petit journal de Londres. Celui-ci s’en fâcha comme d’un outrage à sa pudeur. Récemment encore, quand il apprit que je me proposais de faire une appréciation de son esprit et de son talent, il me supplia, d’une manière très impérieuse, de supprimer son nom et de ne parler 10 de ses ouvrages que comme des ouvrages d’un anonyme. J’obéirai humblement à ce bizarre désir. Nous feindrons de croire, le lecteur et moi, que M. G. n’existe pas, et nous nous occuperons de ses dessins et de ses aquarelles, pour lesquels il professe un dédain de patricien, comme feraient des savants qui auraient à juger de précieux documents historiques, fournis par le hasard, et dont l’auteur doit rester éternellement inconnu. Et même, pour rassurer complétement ma conscience, on supposera que tout ce que j’ai à dire de sa nature si curieusement et si mystérieusement éclatante, est plus ou moins justement suggéré par les oeuvres en question ; pure hypothèse poétique, conjecture, travail d’imagination. Quero entreter hoje o público de um homem singular, originalidade tão poderosa e tão decidida que se basta a si mesma e não busca qualquer aprovação. Nenhum de seus desenhos é assinado, se chamarmos assinatura essas poucas letras, passíveis de falsificação, que representam um nome, e que tantos a colocam faustosamente embaixo de seus croquis mais insignificantes. Porém, todas as suas obras são assinadas com sua alma resplandecente, e os amadores que as viram e apreciaram as reconhecerão sem dificuldade na descrição que delas pretendo fazer. Enamorado pela multidão e pelo incógnito, C. G1. leva a originalidade às raias da modéstia. Thackeray, que, como se sabe, interessa- se bastante pelas coisas de arte e desenha ele próprio as ilustrações de seus romances, um dia falou de G. num
  • 14. pequeno jornal de Londres. Aquele irritou-se como se fosse um ultraje a seu pudor. Ainda recentemente, quando soube que eu me propunha fazer uma apreciação de seu espírito e talento, suplicou-me, de uma maneira muito imperiosa, que seu nome fosse suprimido e que só se falasse de suas obras como das obras de um anônimo2. Obedecerei humildemente a esse estranho desejo. Fingiremos acreditar, o leitor e eu, que G. não existe, e trataremos de seus desenhos e aquarelas, pelos quais ele professa um desdém aristocrático, agindo como esses pesquisadores que tivessem de julgar preciosos documentos históricos fornecidos pelo acaso e cujo autor devesse permanecer eternamente desconhecido. Inclusive, para apaziguar completamente minha consciência, vamos supor que tudo quanto tenho a dizer sobre sua natureza, tão curiosamente e tão misteriosamente brilhante, é sugerido, mais ou menos justamente, pelas obras em questão; pura hipótese poética, conjetura, trabalho de imaginação. 1. Trata-se do desenhista, aquarelista e gravador Constantin Guys (1802 - 1892). 2. A nota 1, acima, rompe com a delicadeza de Baudelaire! Monsieur Constantin Guys (M. G., como é apresentado por Baudelaire), é aqui revelado, bem como suas pinturas. 11 M. G. est vieux. Jean-Jacques commença, dit-on, à écrire à quarante- deux ans. Ce fut peut-être vers cet âge que M. G., obsédé par toutes les images qui remplissaient son cerveau, eut l’audace de jeter sur une feuille blanche de l’encre et des couleurs. Pour dire la vérité, il dessinait comme un barbare, comme un enfant, se fâchant contre la maladresse de ses doigts et la désobéissance de son outil. J’ai vu un grand nombre de ces barbouillages primitifs, et j’avoue que la plupart des gens qui s’y connaissent ou prétendent s’y connaître auraient pu, sans déshonneur, ne pas deviner le génie latent qui habitait dans ces ténébreuses ébauches. Aujourd’hui, M. G., qui a trouvé, à lui tout seul, toutes les petites ruses du métier, et qui a fait, sans conseils, sa propre éducation, est devenu un puissant maître, à sa manière, et n’a gardé de sa première ingénuité que ce qu’il en faut pour ajouter à ses riches facultés un assaisonnement inattendu. Quand il rencontre un de ces essais de son jeune âge, il le déchire ou le brûle avec une honte des plus amusantes. G. é um velho. Dizem que Jean-Jacques começou a escrever aos quarenta e dois anos. Foi talvez por essa idade que G., obcecado por todas as imagens que lhe povoavam o cérebro, teve a audácia de lançar tintas e cores sobre uma folha branca. Para dizer a verdade, ele desenhava como um bárbaro, como uma criança, irritando-se com a imperícia de seus dedos e a desobediência de seus instrumentos. Vi muitas dessas garatujas primitivas e confesso que a maioria das pessoas capazes de julgar, ou com essa pretensão, teria
  • 15. podido, sem prejuízo, não adivinhar o gênio latente que habitava esses tenebrosos esboços. Atualmente G., que descobriu sozinho todos os pequenos truques do ofício e, sem receber conselhos, realizou sua própria formação, tornou-se um admirável mestre à sua maneira, conservando da simplicidade inicial apenas o necessário para acrescentar às suas mais ricas faculdades um toque desconcertante. Quando ele descobre uma dessas tentativas de sua juventude, rasga ou queima com uma vergonha das mais divertidas. 12 Constantin Guys, por Félix Nadar (1820 – 1910) Pendant dix ans, j’ai désiré faire la connaissance de M. G., qui est, par nature, très voyageur et très cosmopolite. Je savais qu’il avait été longtemps attaché à un journal anglais illustré, et qu’on y avait publié des gravures d’après ses croquis de voyage (Espagne, Turquie, Crimée). J’ai vu depuis lors une masse considérable de ces dessins improvisés sur les lieux mêmes, et j’ai pu lire ainsi un compte rendu minutieux et journalier de la campagne de Crimée, bien préférable à tout autre. Le même journal avait aussi publié, toujours sans signature, de nombreuses compositions du même auteur, d’après les
  • 16. ballets et les opéras nouveaux. Lorsque enfin je le trouvai, je vis tout d’abord que je n’avais pas affaire précisément à un artiste, mais plutôt à un homme du monde. Entendez ici, je vous prie, le mot artiste dans un sens très restreint, et le mot homme du monde dans un sens très étendu. Homme du monde, c’est-à-dire homme du monde entier, homme qui comprend le monde et les raisons mystérieuses et légitimes de tous ses usages ; artiste, c’est-à-dire spécialiste, homme attaché à sa palette comme le serf à la glèbe. M. G. n’aime pas être appelé artiste. N’a-t-il pas un peu raison ? Il s’intéresse au monde entier ; il veut savoir, comprendre, apprécier tout ce qui se passe à la surface de notre sphéroïde. L’artiste vit très peu, ou même pas du tout, dans le monde moral et politique. Celui qui habite dans le quartier Breda ignore ce qui se passe dans le faubourg Saint-Germain. Sauf deux ou trois exceptions qu’il est inutile de nommer, la plupart des artistes sont, il faut bien le dire, des brutes très adroites, de purs manoeuvres, des intelligences de village, des cervelles de hameau. Leur conversation, forcément bornée à un cercle très étroit, devient très vite insupportable à l’homme du monde, au citoyen spirituel de l’univers. Durante dez anos desejei conhecer G., que é, por temperamento, apaixonado por viagens e muito cosmopolita. Sabia que durante muito tempo ele fora correspondente de um jornal inglês ilustrado e que nele publicara gravuras a partir de seus croquis de viagem (Espanha, Turquia, Crimeia1). Vi, durante esse tempo, uma quantidade 13 considerável de desenhos improvisados sobre os próprios locais e pude ler, assim, uma crônica minuciosa e diária da campanha da Criméia, melhor do que qualquer outra. O mesmo jornal publicara também, sempre sem assinatura, inúmeras composições do mesmo autor, inspiradas nos balés e óperas recentes. Quando finalmente o conheci, logo vi que não se tratava precisamente de um artista, mas antes de um homem do mundo. Entenda-se aqui, por favor, a palavra artista num sentido muito restrito, e a expressão homem do mundo num sentido muito amplo. Homem do mundo, isto é, homem do mundo inteiro, homem que compreende o mundo e as razões misteriosas e legítimas de todos os seus costumes; artista, isto é, especialista, homem subordinado à sua palheta como o servo à gleba2. G. não gosta de ser chamado artista. Não teria ele alguma razão? Ele se interessa pelo mundo inteiro; quer saber, compreender, apreciar tudo o que acontece na superfície de nosso esferóide. O artista vive pouquíssimo, ou até não vive, no mundo moral e político. O que mora no bairro Bréda ignora o que se passa no bairro Saint-Germain. Salvo duas ou três exceções que não vale a pena mencionar, a maioria dos artistas são, deve-se convir, uns brutos muito hábeis, simples artesãos, inteligências provincianas, mentalidades de cidade pequena. Sua conversa, forçosamente limitada a um círculo muito restrito, torna-se rapidamente insuportável para o homem do mundo, para o
  • 17. cidadão espiritual do universo. 1. Crimeia (o nome francês é “Crimée”), é a região da Ucrânia formada por uma península que avança no mar Negro, separando-o do mar de Azov. 2. Gleba: terreno, feudo a que os servos estavam subordinados. Ainsi, pour entrer dans la compréhension de M. G., prenez note tout de suite de ceci : c’est que la curiosité peut être considérée comme le point de départ de son génie. Assim, para compreender G., anotem imediatamente o seguinte: a curiosidade pode ser considerada como o ponto de partida de seu gênio. Vous souvenez-vous d’un tableau (en vérité, c’est un tableau !) écrit par la plus puissante plume de cette époque, et qui a pour titre L’Homme des foules ? Derrière la vitre d’un café, un convalescent, contemplant la foule avec jouissance, se mêle par la pensée, à toutes les pensées qui s’agitent autour de lui. Revenu récemment des ombres de la mort, il aspire avec délices tous les germes et tous les effluves de la vie ; comme il a été sur le point de tout oublier, il se souvient et veut avec ardeur se souvenir de tout. Finalement, il se précipite à travers cette foule à la recherche d’un inconnu dont la physionomie entrevue l’a, en un clin d’oeil, fasciné. La curiosité est devenue une passion fatale, irrésistible ! 14 Lembram-se de um quadro (é um quadro, na verdade!) escrito pelo mais poderoso autor desta época e que se intitula L’Homme des Foules1? Atrás das vidraças de um café, um convalescente, contemplando com prazer a multidão, mistura- se mentalmente a todos os pensamentos que se agitam à sua volta. Resgatado há pouco das sombras da morte, ele aspira com deleite todos os indícios e eflúvios da vida; como estava prestes a tudo esquecer, lembra-se e quer ardentemente lembrar-se de tudo. Finalmente, precipita-se no meio da multidão à procura de um desconhecido cuja fisionomia, apenas vislumbrada, fascinou-o num relance. A curiosidade transformou-se numa paixão fatal, irresistível! 1. “L’Homme des Foules”: “O Homem das Multidões”, é um texto de Edgar Allan Poe (1809 – 1849), The Man of the Crowd, traduzido por Baudelaire. Baudelaire também possui, em “Le Spleen de Paris” um poema chamado “As Multidões” (Les Foules). Supposez un artiste qui serait toujours, spirituellement, à l’état du convalescent, et vous aurez la clef du caractère de M. G. Imagine um artista que estivesse sempre, espiritualmente, em estado de convalescença e se terá a chave do caráter de G. Or la convalescence est comme un retour vers l’enfance. Le convalescent jouit au plus haut degré, comme l’enfant, de la faculté
  • 18. de s’intéresser vivement aux choses, même les plus triviales en apparence. Remontons, s’il se peut, par un effort rétrospectif de l’imagination, vers nos plus jeunes, nos plus matinales impressions, et nous reconnaîtrons qu’elles avaient une singulière parenté avec les impressions, si vivement colorées, que nous reçûmes plus tard à la suite d’une maladie physique, pourvu que cette maladie ait laissé pures et intactes nos facultés spirituelles. L’enfant voit tout en nouveauté ; il est toujours ivre. Rien ne ressemble plus à ce qu’on appelle l’inspiration, que la joie avec laquelle l’enfant absorbe la forme et la couleur. J’oserai pousser plus loin ; j’affirme que l’inspiration a quelque rapport avec la congestion, et que toute pensée sublime est accompagnée d’une secousse nerveuse, plus ou moins forte, qui retentit jusque dans le cervelet. L’homme de génie a les nerfs solides ; l’enfant les a faibles. Chez l’un, la raison a pris une place considérable ; chez l’autre, la sensibilité occupe presque tout l’être. Mais le génie n’est que l’enfance retrouvée à volonté, l’enfance douée maintenant, pour s’exprimer, d’organes virils et de l’esprit analytique qui lui permet d’ordonner la somme de matériaux involontairement amassée. C’est à cette curiosité profonde et joyeuse qu’il faut attribuer l’oeil fixe et animalement extatique des enfants devant le nouveau, quel qu’il soit, visage ou paysage, lumière, dorure, couleurs, étoffes chatoyantes, enchantement de la beauté embellie par la toilette. Un de mes amis me disait un jour qu’étant fort petit, il assistait à la toilette de son père, et qu’alors il contemplait, avec une stupeur mêlée de délices, les muscles des bras, 15 les dégradations de couleurs de la peau nuancée de rose et de jaune, et le réseau bleuâtre des veines. Le tableau de la vie extérieure le pénétrait déjà de respect et s’emparait de son cerveau. Déjà la forme l’obsédait et le possédait. La prédestination montrait précocement le bout de son nez. La damnation était faite. Ai-je besoin de dire que cet enfant est aujourd’hui un peintre célèbre ? Ora, a convalescença é como uma volta à infância. O convalescente goza, no mais alto grau, como a criança, da faculdade de interessar-se intensamente pelas coisas, mesmo por aquelas que aparentemente se mostram as mais triviais. Retornemos, se possível, através de um esforço retrospectivo da imaginação, às mais jovens, às mais matinais de nossas impressões, e constataremos que elas possuem um singular parentesco com as impressões tão vivamente coloridas que recebemos ulteriormente, depois de uma doença, desde que esta tenha deixado puras e intactas nossas faculdades espirituais. A criança vê tudo como novidade; ela sempre está embriagada. Nada se parece tanto com o que chamamos inspiração quanto a alegria com que a criança absorve a forma e a cor. Ousaria ir mais longe: afirmo que a inspiração tem alguma relação com a congestão, e que todo pensamento sublime é acompanhado de um estremecimento nervoso, mais ou menos intenso, que repercute até no cerebelo. O homem de gênio tem nervos sólidos, a criança os tem fracos. Naquele, a razão ganhou
  • 19. um lugar considerável; nesta, a sensibilidade ocupa quase todo o seu ser. Mas o gênio é somente a infância redescoberta sem limites; a infância agora dotada, para expressar-se, de órgãos viris e do espírito analítico que lhe permite ordenar a soma de materiais involuntariamente acumulados. É a está curiosidade profunda e alegre que se deve atribuir o olhar fixo, estático e animalesco das crianças diante do novo, seja lá o que isso for, rosto ou paisagem, luz, brilhos, cores, tecidos cintilantes, fascínio da beleza realçada pelo traje. Um de meus amigos disse-me um dia que, ainda pequeno, vira seu pai lavando-se e então contemplava, com uma perplexidade mesclada de deleite, os músculos dos braços, as gradações de cores da pele matizada de rosa e amarelo, e a rede azulada das veias. O quadro da vida exterior já o impregnava de respeito e se apoderava de seu cérebro. A forma já o obcecava e o possuía. A predestinação mostrava precocemente a ponta do nariz. A danação estava consumada. É preciso dizer que essa criança hoje é um pintor célebre? 16 Revue de troupes françaises en Crimée Constantin Guys Je vous priais tout à l’heure de considérer M. G. comme un éternel convalescent ; pour compléter votre conception, prenez-le aussi pour un homme-enfant, pour un homme possédant à chaque minute le génie de l’enfance, c’est-à-dire un génie pour lequel aucun aspect de la vie n’est émoussé. Eu os exortava ainda há pouco a que considerassem G. como um eterno convalescente; para completar a intelecção, considere-o também como um homem-criança, como um homem dominado a cada minuto pelo gênio da infância, ou seja, um gênio para o qual nenhum aspecto da vida é indiferente. Je vous ai dit que je répugnais à l’appeler un pur artiste, et qu’il se défendait lui-même de ce titre avec une modestie nuancée de pudeur
  • 20. aristocratique. Je le nommerais volontiers un dandy, et j’aurais pour cela quelques bonnes raisons ; car le mot dandy implique une quintessence de caractère et une intelligence subtile de tout le mécanisme moral de ce monde ; mais, d’un autre côté, le dandy aspire à l’insensibilité, et c’est par là que M. G., qui est dominé, lui, par une passion insatiable, celle de voir et de sentir, se détache violemment du dandysme. Amabam amare, disait saint Augustin. « J’aime passionnément la passion », dirait volontiers M. G. Le dandy est blasé, ou il feint de l’être, par politique et raison de caste. M. G. a horreur des gens blasés. Il possède l’art si difficile (les esprits raffinés me comprendront) d’être sincère sans ridicule. Je le décorerais bien du nom de philosophe, auquel il a droit à plus d’un titre, si son amour excessif des choses visibles, tangibles, condensées à l’état plastique, ne lui inspirait une certaine répugnance de celles qui forment le royaume impalpable du métaphysicien. Réduisons-le donc à la condition de pur moraliste pittoresque, comme La Bruyère. Dizia que me desagradava chamá-lo de puro artista e que ele próprio recusava esse título com uma modéstia mesclada de pudor aristocrático. Eu o chamaria de bom grado dândi1, e teria algumas boas razões para isso; pois a palavra dândi implica um refinamento de caráter e uma compreensão sutil de todo mecanismo moral deste mundo; mas, por outro lado, o dândi aspira à insensibilidade, e é por esse ângulo que G., que é dominado por uma paixão insaciável, a de ver e de 17 sentir, se afasta violentamente do dandismo. Amabam amare2, dizia Santo Agostinho. “Amo apaixonadamente a paixão”, diria G., com naturalidade. O dândi é entediado, ou finge ser, por política e razão de casta. G. tem horror às pessoas entediadas. Ele possui a arte extremamente difícil (os espíritos refinados irão me compreender) de ser sincero sem ser ridículo. Poderia condecorá-lo com o título de filósofo, que ele merece por várias razões, se seu amor excessivo pelas coisas visíveis, tangíveis, condensadas no estado plástico, não lhe inspirassem uma certa repugnância por aquelas que formam o reino impalpável do metafísico. Vamos então reduzi-lo à condição de puro moralista pitoresco, como La Bruyère3. 1. Baudelaire define “dândi” no capítulo IX desse mesmo livro. 2. “Amabam amare”, em latim: “eu amava amar”. 3. La Bruyère: Jean de La Bruyère (1645 – 1696), moralista francês famoso por uma única obra, “Dos Personagens ou costumes do século” (Les Caractères ou les Mœurs de ce siècle). La foule est son domaine, comme l’air est celui de l’oiseau, comme l’eau celui du poisson. Sa passion et sa profession, c’est d’épouser la foule. Pour le parfait flâneur, pour l’observateur passionné, c’est une immense jouissance que d’élire domicile dans le nombre,
  • 21. dans l’ondoyant dans le mouvement, dans le fugitif et l’infini. Etre hors de chez soi, et pourtant se sentir partout chez soi ; voir le monde, être au centre du monde et rester caché au monde, tels sont quelques-uns des moindres plaisirs de ces esprits indépendants, passionnés, impartiaux, que la langue ne peut que maladroitement définir. L’observateur est un prince qui jouit partout de son incognito. L’amateur de la vie fait du monde sa famille, comme l’amateur du beau sexe compose sa famille de toutes les beautés trouvées, trouvables et introuvables ; comme l’amateur de tableaux vit dans une société enchantée de rêves peints sur toile. Ainsi l’amoureux de la vie universelle entre dans la foule comme dans un immense réservoir d’électricité. On peut aussi le comparer, lui, à un miroir aussi immense que cette foule ; à un kaléidoscope doué de conscience, qui, à chacun de ses mouvements, représente la vie multiple et la grâce mouvante de tous les éléments de la vie. C’est un moi insatiable du non-moi, qui, à chaque instant, le rend et l’exprime en images plus vivantes que la vie elle-même, toujours instable et fugitive. « Tout homme », disait un jour M. G. dans une de ces conversations qu’il illumine d’un regard intense et d’un geste évocateur, « tout homme qui n’est pas accablé par un de ces chagrins d’une nature trop positive pour ne pas absorber toutes les facultés, et qui s’ennuie au sein de la multitude, est un sot ! un sot ! et je le méprise ! » A multidão é seu universo, como o ar é o dos pássaros, como a água, o dos peixes. Sua paixão e profissão é desposar a 18 multidão. Para o perfeito flâneur1, para o observador apaixonado, é um imenso júbilo fixar residência no numeroso, no ondulante, no movimento, no fugidio e no infinito. Estar fora de casa, e contudo sentir-se em casa onde quer que se encontre; ver o mundo, estar no centro do mundo e permanecer oculto ao mundo, eis alguns dos pequenos prazeres desses espíritos independentes, apaixonados imparciais, que a linguagem não pode definir senão toscamente. O observador é um príncipe que frui por toda parte do fato de estar incógnito. O amador da vida faz do mundo a sua família, tal como o amador do belo sexo compõe sua família com toda as belezas encontradas, encontráveis ou inencontráveis; tal como o amador de quadros vive numa sociedade encantada de sonhos pintados na tela. Assim o apaixonado pela vida universal entra na multidão como em um reservatório de eletricidade. Pode-se igualmente compará-lo a um espelho tão imenso quanto essa multidão; a um caleidoscópio dotado de consciência, que, a cada um de seus movimentos, representa a vida múltipla e o encanto cambiante de todos os elementos da vida. É um eu insaciável do não-eu, que a cada instante o revela e o exprime em imagens mais vivas do que a própria vida, sempre instável e fugidia. “Todo homem”, disse G. um dia, numa dessas conversas que ele ilumina com um olhar intenso e um gesto evocativo, “todo homem que não é atormentado por uma dessas
  • 22. tristezas de natureza demasiado concreta, o bastante para absorver todas as faculdades, e que se entedia no seio da multidão, é um imbecil! um imbecil! e o desprezo!” 1. “flâneur” é aquele que passeia ociosamente, o que vagueia, o que perambula. Quand M. G., à son réveil, ouvre les yeux et qu’il voit le soleil tapageur donnant l’assaut aux carreaux des fenêtres, il se dit avec remords, avec regrets : « Quel ordre impérieux ! quelle fanfare de lumière ! Depuis plusieurs heures déjà, de la lumière partout ! de la lumière perdue par mon sommeil ! Que de choses éclairées j’aurais pu voir et que je n’ai pas vues ! » Et il part ! et il regarde couler le fleuve de la vitalité, si majestueux et si brillant. Il admire l’éternelle beauté et l’étonnante harmonie de la vie dans les capitales, harmonie si providentiellement maintenue dans le tumulte de la liberté humaine. Il contemple les paysages de la grande ville, paysages de pierre caressés par la brume ou frappés par les soufflets du soleil. Il jouit des beaux équipages, des fiers chevaux, de la propreté éclatante des grooms, de la dextérité des valets, de la démarche des femmes onduleuses, des beaux enfants, heureux de vivre et d’être bien habillés ; en un mot, de la vie universelle. Si une mode, une coupe de vêtement a été légèrement transformée, si les noeuds de rubans, les boucles ont été détrônés par les cocardes, si le bavolet s’est élargi et si le chignon est descendu d’un cran sur la nuque, si la ceinture a été exhaussée et la jupe amplifiée, croyez 19 qu’à une distance énorme son oeil d’aigle l’a déjà deviné. Un régiment passe, qui va peut-être au bout du monde, jetant dans l’air des boulevards ses fanfares entraînantes et légères comme l’espérance ; et voilà que l’oeil de M. G. a déjà vu, inspecté, analysé les armes, l’allure et la physionomie de cette troupe. Harnachements, scintillements, musique, regards décidés, moustaches lourdes et sérieuses, tout cela entre pêle-mêle en lui ; et dans quelques minutes, le poème qui en résulte sera virtuellement composé. Et voilà que son âme vit avec l’âme de ce régiment qui marche comme un seul animal, fière image de la joie dans l’obéissance ! Quando G., ao despertar, abre os olhos e vê o sol flamejante invadindo as vidraças, diz para si mesmo com remorso, com arrependimento: “Que ordem imperiosa! Que fanfarra de luz! Há muitas horas já, luz em toda parte! Luz perdida por causa de meu sono! Quantas coisas iluminadas poderia ter visto e não vi!” E ele sai! E observa fluir o rio da vitalidade, tão majestoso e brilhante. Admira a eterna beleza e a espantosa harmonia da vida nas capitais, harmonia tão providencialmente mantida no tumulto da liberdade humana. Contempla as paisagens da cidade grande, paisagens de pedra acariciadas pela bruma ou fustigadas pelos sopros do sol. Admira as belas carruagens, os garbosos cavalos, a limpeza reluzente dos lacaios, a destreza dos criados, o andar das mulheres ondulosas, as belas crianças, felizes por viverem e estarem bem vestidas;
  • 23. resumindo, a vida universal. Se uma moda, um corte de vestuário foi levemente transformado, se os laços de fita e os cachos foram destronados pelas rosetas, se a mantilha se ampliou e o coque desceu um pouquinho na nuca, se a cintura foi erguida e a saia alargada, acreditem que a uma distância enorme seu olhar de águia já adivinhou. Um regimento passa, ele vai talvez ao fim do mundo, difundindo no ar dos bulevares suas fanfarras sedutoras e diáfanas como a esperança; e eis que o olhar de G. já viu, inspecionou, analisou as armas, o porte e a fisionomia dessa tropa. Arreios, cintilações, música, olhares decididos, bigodes espessos e graves, tudo isso ele absorve simultaneamente; e em alguns minutos o poema que disso resulta estará virtualmente composto. E sua alma vive com a alma desse regimento que marcha como se fosse um único animal, altiva imagem da alegria na obediência! Mais le soir est venu. C’est l’heure bizarre et douteuse où les rideaux du ciel se ferment, où les cités s’allument. Le gaz fait tache sur la pourpre du couchant. Honnêtes ou déshonnêtes, raisonnables ou fous, les hommes se disent : « Enfin la journée est finie ! » Les sages et les mauvais sujets pensent au plaisir, et chacun court dans l’endroit de son choix boire la coupe de l’oubli. M. G. restera le dernier partout où peut resplendir la lumière, retentir la poésie, fourmiller la vie, vibrer la musique ; partout où 20 une passion peut poser pour son oeil, partout où l’homme naturel et l’homme de convention se montrent dans une beauté bizarre, partout où le soleil éclaire les joies rapides de l’animal dépravé ! « Voilà, certes, une journée bien employée, » se dit certain lecteur que nous avons tous connu, « chacun de nous a bien assez de génie pour la remplir de la même façon. » Non ! peu d’hommes sont doués de la faculté de voir ; il y en a moins encore qui possèdent la puissance d’exprimer. Maintenant, à l’heure où les autres dorment, celui-ci est penché sur sa table, dardant sur une feuille de papier le même regard qu’il attachait tout à l’heure sur les choses, s’escrimant avec son crayon, sa plume, son pinceau, faisant jaillir l’eau du verre au plafond, essuyant sa plume sur sa chemise, pressé, violent, actif, comme s’il craignait que les images ne lui échappent, querelleur quoique seul, et se bousculant lui-même. Et les choses renaissent sur le papier, naturelles et plus que naturelles, belles et plus que belles, singulières et douées d’une vie enthousiaste comme l’âme de l’auteur. La fantasmagorie a été extraite de la nature. Tous les matériaux dont la mémoire s’est encombrée se classent, se rangent, s’harmonisent et subissent cette idéalisation forcée qui est le résultat d’une perception enfantine, c’est-à-dire d’une perception aiguë, magique à force d’ingénuité ! Mas a noite chegou. É a hora estranha e ambígua em que se fecham as cortinas do céu e se iluminam as cidades. Os revérberos1 se sobressaem sobre a púrpura do poente. Honestos ou desonestos, sensatos ou insanos, os homens
  • 24. dizem: “Enfim, acabou-se o dia!” Os plácidos e os de má índole pensam no prazer e todos acorrem ao lugar de sua preferência para beber a taça do esquecimento. G. será o último a partir de qualquer lugar onde possa resplandecer a luz, ressoar a poesia, fervilhar a vida, vibrar a música; de todo lugar onde uma paixão possa posar diante de seus olhos, de todo lugar onde o homem natural e o homem convencional se mostrem numa beleza estranha, de todo lugar onde o sol ilumina as alegrias efêmeras do animal depravado! “Foi, com certeza, uma jornada bem empregada”, pensará certo leitor que todos conhecemos. “Todos têm talento suficiente para preenchê-la da mesma maneira.” Não! poucos homens são dotados da faculdade de ver; há ainda menos homens que possuem a capacidade de exprimir. Agora, à hora em que os outros estão dormindo, ele está curvado sobre sua mesa, lançando sobre uma folha de papel o mesmo olhar que há pouco dirigia às coisas, lutando com seu lápis, sua pena, seu pincel, lançando água do copo até o teto, limpando a pena na camisa, apressando, violento, ativo, como se temesse que as imagens lhe escapassem, belicoso, mas sozinho e debatendo-se consigo mesmo. E as coisas renascem no papel, naturais e, mais do que naturais, belas; mais do que belas, singulares e dotadas de uma vida tão entusiasta quanto a alma do autor. A fantasmagoria foi extraída da natureza. Todos os materiais atravancados na 21 memória classificam-se, ordenam-se, harmonizam-se e sofrem essa idealização forçada que é o resultado de uma percepção infantil, isto é, de uma percepção aguda, mágica à força de ser ingênua! 1. “revérberos” são lampiões de rua.
  • 25. IV La modernité A modernidade Ainsi il va, il court, il cherche. Que cherche-t-il ? A coup sûr, cet homme, tel que je l’ai dépeint, ce solitaire doué d’une imagination active, toujours voyageant à travers le grand désert d’hommes, a un but plus élevé que celui d’un pur flâneur, un but plus général, autre que le plaisir fugitif de la circonstance. Il cherche ce quelque chose qu’on nous permettra d’appeler la modernité ; car il ne se présente pas de meilleur mot pour exprimer l’idée en question. Il s’agit, pour lui, de dégager de la mode ce qu’elle peut contenir de poétique dans l’historique, de tirer l’éternel du transitoire. Si nous jetons un coup d’oeil sur nos expositions de tableaux modernes, nous sommes frappés de la tendance générale des artistes à habiller tous les sujets de costumes anciens. Presque tous se servent des modes et des meubles de la Renaissance, comme David se servait des modes et des meubles romains. Il y a cependant cette différence, que David, ayant choisi des sujets particulièrement grecs ou romains, ne pouvait pas faire autrement que de les habiller à l’antique, tandis que les peintres actuels, choisissant des sujets d’une nature générale applicable à toutes les époques, s’obstinent à les affubler des costumes du Moyen Age, de la Renaissance ou de l’Orient. C’est 22 évidemment le signe d’une grande paresse ; car il est beaucoup plus commode de déclarer que tout est absolument laid dans l’habit d’une époque, que de s’appliquer à en extraire la beauté mystérieuse qui y peut être contenue, si minime ou si légère qu’elle soit. La modernité, c’est le transitoire, le fugitif, le contingent, la moitié de l’art, dont l’autre moitié est l’éternel et l’immuable. Il y a eu une modernité pour chaque peintre ancien ; la plupart des beaux portraits qui nous restent des temps antérieurs sont revêtus des costumes de leur époque. Ils sont parfaitement harmonieux, parce que le costume, la coiffure et même le geste, le regard et le sourire (chaque époque a son port, son regard et son sourire) forment un tout d’une complète vitalité. Cet élément transitoire, fugitif, dont les métamorphoses sont si fréquentes, vous n’avez pas le droit de le mépriser ou de vous en passer. En le supprimant, vous tombez forcément dans le vide d’une beauté abstraite et indéfinissable, comme celle de l’unique femme avant le premier péché. Si au costume de l’époque, qui s’impose nécessairement, vous en substituez un autre, vous faites un contre-sens qui ne peut avoir d’excuse que dans le cas d’une mascarade voulue par la mode. Ainsi, les déesses, les nymphes et les sultanes du dix-huitième siècle sont des portraits moralement ressemblants. Assim ele vai, corre, procura. O que procura? Certamente esse homem, tal como o descrevi, esse solitário dotado de uma imaginação ativa, sempre viajando através do grande deserto de homens, tem um objetivo mais elevado do que o de
  • 26. um simples flâneur, um objetivo mais geral, diverso do prazer efêmero da circunstância. Ele busca esse algo, ao qual se permitirá chamar de Modernidade; pois não me ocorre melhor palavra para exprimir a idéia em questão. Trata-se, para ele, de tirar da moda o que esta pode conter de poético no histórico, extrair o eterno do transitório. Se lançarmos um olhar a nossas exposições de quadros modernos, ficaremos espantados com a tendência geral dos artistas de vestirem todas as personagens com indumentária antiga. Quase todas se servem das modas e dos móveis do Renascimento, como David se servia das modas e dos móveis romanos. Há, no entanto, uma diferença, pois David, tendo escolhido temas especificamente gregos ou romanos, não podia agir de outra forma senão vesti-los à moda antiga, enquanto os pintores atuais, escolhendo temas de uma natureza geral que podem aplicar a todas as épocas, obstinam-se em fantasiá-los com trajes da Idade Média, do Renascimento ou do Oriente. Evidentemente, é sinal de uma grande preguiça; pois é muito mais cômodo declarar que tudo é absolutamente feio no vestuário de uma época do que se esforçar por extrair dele a beleza misteriosa que possa conter, por mínima ou tênue que seja. A Modernidade é o transitório, o efêmero, o contingente, a metade da arte1, sendo a outra metade o eterno e o imutável. Houve uma modernidade para cada pintor antigo; a maior parte dos 23 belos retratos que conhecemos das épocas passadas está revestida dos costumes da própria época. São perfeitamente harmoniosos; assim, a indumentária, o penteado e mesmo o gesto, o olhar e o sorriso (cada época tem seu porte, seu olhar e seu sorriso) formam um todo de completa vitalidade. Esse elemento transitório, fugitivo, cujas metamorfoses são tão frequentes, não temos o direito de desprezar ou de prescindir. Suprimindo-os, caímos forçosamente no vazio de uma beleza abstrata e indefinível, como aquela da mulher única antes do primeiro pecado. Se à vestimenta da época, que se impõe necessariamente, substituirmos uma outra, cometemos um contra-senso só desculpável no caso de uma máscara ditada pela moda. Assim, as deusas, as ninfas e as sultanas do século XVIII são retratos moralmente verossímeis. 1. Neste capítulo temos a epígrafe do livro “Metade da Arte”, de Marcos Siscar: ...le transitoire, le fugitif, le contingent, la moitié de l’art... (... o transitório, o fugitivo, o contingente, a metade da arte...). Il est sans doute excellent d’étudier les anciens maîtres pour apprendre à peindre, mais cela ne peut être qu’un exercice superflu si votre but est de comprendre le caractère de la beauté présente. Les draperies de Rubens ou de Véronèse ne vous enseigneront pas à faire de la moire antique, du satin à la reine, ou toute autre étoffe
  • 27. de nos fabriques, soulevée, balancée par la crinoline ou les jupons de mousseline empesée. Le tissu et le grain ne sont pas les mêmes que dans les étoffes de l’ancienne Venise ou dans celles portées à la cour de Catherine. Ajoutons aussi que la coupe de la jupe et du corsage est absolument différente, que les plis sont disposés dans un système nouveau, et enfin que le geste et le port de la femme actuelle donnent à sa robe une vie et une physionomie qui ne sont pas celles de la femme ancienne. En un mot, pour que toute modernité soit digne de devenir antiquité, il faut que la beauté mystérieuse que la vie humaine y met involontairement en ait été extraite. C’est à cette tâche que s’applique particulièrement M. G. Sem dúvida, é importante estudar os antigos mestres para aprender a pintar, mas isso deve ser apenas um exercício supérfluo, caso nosso objetivo seja compreender o caráter da beleza atual. Os tecidos de Rubens ou de Véronèse não nos ensinarão a fazer chamalote1, cetim à rainha ou qualquer outro tecido de nossas fábricas, entufado, equilibrado pela crinolina2 ou pelos saiotes de musselina engomada. O tecido e a textura não são os mesmos que os da antiga Veneza ou os usados na corte de Catherine. Acrescentemos também que o corte da saia e do corpete é muito diferente, que as pregas são dispostas de acordo com um novo sistema, que os gestos e o porte da mulher atual dão a seu vestido uma vida e uma fisionomia que não são as da mulher antiga. Em poucas palavras, para que toda Modernidade seja digna de tornar-se 24 Antiguidade, é necessário que dela se extraia a beleza misteriosa que a vida humana involuntariamente lhe confere. É a essa tarefa que G. se dedica em particular. 1. “chamalote” traduz “la moire antique”: tecido em que a posição do fio produz um efeito ondeado. 2. “Crinolina” traduz “crinoline”: tecido feito de crina. J’ai dit que chaque époque avait son port, son regard et son geste. C’est surtout dans une vaste galerie de portraits (celle de Versailles, par exemple) que cette proposition devient facile à vérifier. Mais elle peut s’étendre plus loin encore. Dans l’unité qui s’appelle nation, les professions, les castes, les siècles introduisent la variété, non seulement dans les gestes et les manières, mais aussi dans la forme positive du visage. Tel nez, telle bouche, tel front remplissent l’intervalle d’une durée que je ne prétends pas déterminer ici, mais qui certainement peut être soumise à un calcul. De telles considérations ne sont pas assez familières aux portraitistes ; et le grand défaut de M. Ingres, en particulier, est de vouloir imposer à chaque type qui pose sous son oeil un perfectionnement plus ou moins despotique, emprunté au répertoire des idées classiques. Disse que cada época tinha seu porte, seu olhar e seu gesto. É sobretudo numa vasta galeria de retratos (a de Versalhes, por exemplo) que se torna fácil verificar essa
  • 28. proposição. Mas ela pode estender-se mais amplamente. Na unidade que se chama nação, as profissões, as castas e os séculos introduzem a variedade, não somente nos gestos e nas maneiras, mas também na forma concreta do rosto. Tal nariz, tal boca, tal fronte correspondem ao intervalo de uma duração que não pretendo determinar aqui, mas que certamente pode ser submetida a um cálculo. Essas considerações não são suficientemente familiares aos retratistas; e o grande defeito de Ingres, em particular, é querer impor a cada tipo que posa diante de seus olhos um aperfeiçoamento mais ou menos compulsório colhido no repertório das idéias clássicas. 25 La grande Odalisque, 1814 Jean Auguste Dominique Ingres (1780 – 1867) En pareille matière, il serait facile et même légitime de raisonner a priori. La corrélation perpétuelle de ce qu’on appelle l’âme avec ce qu’on appelle le corps explique très bien comment tout ce qui est matériel ou effluve du spirituel représente et représentera toujours le spirituel d’où il dérive. Si un peintre patient et minutieux, mais d’une imagination médiocre, ayant à peindre une courtisane du temps présent, s’inspire (c’est le mot consacré) d’une courtisane de Titien ou de Raphaël, il est infiniment probable qu’il fera une oeuvre fausse, ambiguë et obscure. L’étude d’un chef-d’oeuvre de ce temps et de ce genre ne lui enseignera ni l’attitude, ni le regard, ni la grimace, ni l’aspect vital d’une de ces créatures que le dictionnaire de la mode a successivement classées sous les titres grossiers ou badins d’impures, de filles entretenues, de lorettes et de biches. Em semelhante matéria, seria fácil e mesmo legítimo raciocinar a priori. A correlação perpétua do que chamamos alma com o que chamamos corpo explica perfeitamente como tudo o que é material ou emanação do espiritual representa e representará sempre o espiritual de onde provém. Se um pintor paciente e minucioso, mas dotado de uma imaginação medíocre, em vez de pintar uma cortesã do tempo presente, inspira-se (essa é a expressão consagrada) em uma cortesã de Ticiano ou de Rafael, é muito provável que fará uma obra
  • 29. falsa, ambígua e obscura. O estudo de uma obra-prima daquela época e daquele gênero não lhe ensinará nem a atitude, nem o olhar, nem o trejeito, nem o aspecto vital de uma dessas criaturas que o dicionário da moda sucessivamente classificou, com nomes grosseiros ou maliciosos, de impuras, mulheres sustentadas, loureiras e mundanas1. 1. Toda essa adjetivação diz respeito a prostitutas: “impures”, é traduzido por “impuras”; “filles entretenues”, literalmente: “jovens sustentadas”, diz respeito a mulheres que vivem com o auxílio financeiro de um amante; “lorettes”, é traduzido por “loureira”: mulher provocante, sedutora, que procura agradar a todos; finalmente, “biches”, foi traduzido por “mundana”. 26 Deux biches Constantin Guys La même critique s’applique rigoureusement à l’étude du militaire, du dandy, de l’animal même, chien ou cheval, et de tout ce qui compose la vie extérieure d’un siècle. Malheur à celui qui étudie dans l’antique autre chose que l’art pur, la logique, la méthode générale ! Pour s’y trop plonger, il perd la mémoire du présent ; il abdique la valeur et les priviléges fournis par la circonstance ; car presque toute notre originalité vient de l’estampille que le temps imprime à nos sensations. Le lecteur comprend d’avance que je pourrais vérifier facilement mes assertions sur de nombreux objets autres que la femme. Que diriez-vous, par exemple, d’un peintre de marines (je pousse l’hypothèse à l’extrême) qui, ayant à reproduire la beauté sobre et élégante du navire moderne, fatiguerait ses yeux à étudier les formes surchargées, contournées, l’arrière monumental du navire ancien et les voilures compliquées du seizième siècle ? Et que penseriez-vous d’un artiste que vous auriez chargé de faire le portrait d’un pur- sang, célèbre dans les solennités du turf, s’il allait confiner ses
  • 30. contemplations dans les musées, s’il se contentait d’observer le cheval dans les galeries du passé, dans Van Dyck, Bourguignon ou Van der Meulen ? A mesma crítica aplica-se rigorosamente ao estudo do militar, do dândi ou mesmo dos animais, cão ou cavalo, e de tudo o que compõe a vida exterior de um século. Ai daquele que estuda, no antigo, outra coisa que não a arte pura, a lógica e o método geral! De tanto se enfronhar nele, perde a memória do presente; abdica do valor dos privilégios fornecidos pela circunstância, pois quase toda nossa originalidade vem da estampilha que o tempo imprime às nossas sensações. O leitor compreende antecipadamente que eu poderia comprovar facilmente minhas asserções por meio de numerosos outros objetos além da mulher. Que diriam, por exemplo, de um pintor de marinhas (levo a hipótese ao extremo) que, tendo de reproduzir a beleza sóbria e elegante do navio moderno, atormentasse seus olhos estudando as formas sobrecarregadas, retorcidas, a popa monumental de um navio antigo e os velames complicados do século XVI? E o que pensariam de um artista a quem tivessem incumbido de fazer o retrato de um puro-sangue, célebre nas solenidades do turfe, se ele fosse confinar suas contemplações nos museus, se se contentasse em observar o cavalo nas galerias do passado, em Van Dyck, Bourguignon ou Van der Meulen? 27 M. G., dirigé par la nature, tyrannisé par la circonstance, a suivi une voie toute différente. Il a commencé par contempler la vie, et ne s’est ingénié que tard à apprendre les moyens d’exprimer la vie. Il en est résulté une originalité saisissante, dans laquelle ce qui peut rester de barbare et d’ingénu apparaît comme une preuve nouvelle d’obéissance à l’impression, comme une flatterie à la vérité. Pour la plupart d’entre nous, surtout pour les gens d’affaires, aux yeux de qui la nature n’existe pas, si ce n’est dans ses rapports d’utilité avec leurs affaires, le fantastique réel de la vie est singulièrement émoussé. M. G. l’absorbe sans cesse ; il en a la mémoire et les yeux pleins. G., guiado pela natureza, tiranizado pela circunstância, enveredou por um caminho completamente diferente. Começou contemplando a vida e só muito tarde se esforçou para aprender os meios para expressá-la. Disso resultou uma originalidade extraordinária, na qual o que pode restar de bárbaro ou de ingênuo aparece como nova prova de obediência à impressão, como lisonja à verdade. Para a maioria dentre nós, sobretudo para os homens de negócios, aos olhos de quem a natureza existe apenas em suas relações de utilidade com seus negócios, o fantástico real da vida acha-se singularmente embotado. G. o absorve continuamente e dele tem a memória e os olhos repletos.
  • 31. V L’art mnémonique A arte mnemônica Ce mot barbarie, qui est venu peut-être trop souvent sous ma plume, pourrait induire quelques personnes à croire qu’il s’agit ici de quelques dessins informes que l’imagination seule du spectateur sait transformer en choses parfaites. Ce serait mal me comprendre. Je veux parler d’une barbarie inévitable, synthétique, enfantine, qui reste souvent visible dans un art parfait (mexicaine, égyptienne ou ninivite), et qui dérive du besoin de voir les choses grandement, de les considérer surtout dans l’effet de leur ensemble. Il n’est pas superflu d’observer ici que beaucoup de gens ont accuse de barbarie tous les peintres dont le regard est synthétique et abréviateur, par exemple M. Corot, qui s’applique tout d’abord à tracer les lignes principales d’un paysage, son ossature et sa physionomie. Ainsi, M. G., traduisant fidèlement ses propres impressions, marque avec une énergie instinctive les points culminants ou lumineux d’un objet (ils peuvent être culminants ou lumineux au point de vue dramatique), ou ses principals caractéristiques, quelquefois même avec une exagération utile pour la mémoire humaine ; et l’imagination du spectateur, subissant à son tour cette mnémonique si despotique, voit avec netteté l’impression produite par les choses sur l’esprit de M. 28 G. Le spectateur est ici le traducteur d’une traduction toujours claire et enivrante. A palavra barbárie, que talvez tenha aparecido com excessiva frequência nos meus escritos, poderia induzir algumas pessoas a acreditar que se trata, neste caso, de alguns desenhos informes, aos quais tão-somente a imaginação do espectador sabe transformar em coisas perfeitas. Seria compreender-me erroneamente. Quero falar de uma barbárie inevitável, sintética, infantil, que muitas vezes permanece visível numa arte perfeita (mexicana, egípcia ou ninivita) e que resulta da necessidade de ver as coisas de maneira ampla, e de, principalmente, considerá- las no seu efeito de conjunto. Não é supérfluo observar aqui que muitas pessoas acusaram de barbárie todos os pintores cujo olhar é sintético e abreviador — Corot, por exemplo, que se dedica, inicialmente, a traçar as linhas principais de uma paisagem, sua ossatura e sua fisionomia. Assim, G., traduzindo fielmente as próprias impressões, marca com uma energia instintiva os pontos culminantes ou luminosos de um objeto (podem ser culminantes ou luminosos, do ponto de vista dramático), ou suas principais características, algumas vezes inclusive com um exagero útil para a memória humana; e a imaginação do espectador, submetendo-se por sua vez a essa mnemônica tão despótica, vê com nitidez a impressão produzida pelas coisas sobre o
  • 32. espírito de G. O espectador é aqui o tradutor de uma tradução sempre clara e inebriante. 29 Une matinée, la danse des nymphes Jean-Baptiste Camille Corot (1796 – 1875) Il est une condition qui ajoute beaucoup à la force vitale de cette traduction légendaire de la vie extérieure. Je veux parler de la méthode de dessiner de M. G. Il dessine de mémoire, et non d’après le modèle, sauf dans les cas (la guerre de Crimée, par exemple) où il y a nécessité urgente de prendre des notes immédiates, précipitées, et d’arrêter les lignes principales d’un sujet. En fait, tous les bons et vrais dessinateurs dessinent d’après l’image écrite dans leur cerveau, et non d’après la nature. Si l’on nous objecte les admirables croquis de Raphaël, de Watteau et de beaucoup d’autres, nous dirons que ce sont là des notes, très minutieuses, il est vrai, mais de pures notes. Quand un véritable artiste en est venu à l’exécution définitive de son oeuvre, le modèle lui serait plutôt un embarras qu’un secours. Il arrive même que des hommes tels que Daumier et M. G., accoutumés dès longtemps à exercer leur mémoire et à la remplir d’images, trouvent devant le modèle et la multiplicité de détails qu’il comporte, leur faculté principale troublée et comme paralysée. Existe um elemento que acrescenta muito à força vital dessa tradução lendária da vida exterior. Refiro-me ao método de desenhar de G. Ele desenha de memória, e não a partir do modelo, salvo em casos (a guerra da Criméia, por exemplo) em que há a necessidade urgente de tomar notas imediatas,
  • 33. rápidas, e de fixar as linhas principais de um tema. Na verdade, todos os bons e verdadeiros desenhistas desenham a partir da imagem inscrita no próprio cérebro, e não a partir da natureza. Se nos fizerem objeçõe quanto aos admiráveis croquis de Rafael, de Watteau e de muitos outros, diremos que são notas muito minuciosas, é verdade, mas simples notas. Quando um verdadeiro artista chega à execução definitiva de sua obra, o modelo lhe será mais um embaraço do que um auxílio. Há casos até em que homens como Daumier e G., acostumados há muito a exercitar sua memória e a povoá-la de imagens, têm as faculdades principais perturbadas e como que paralisadas diante do modelo e da multiplicidade de detalhes que ele comporta. 30 La République Honoré-Victorin Daumier (1808 – 1879) Il s’établit alors un duel entre la volonté de tout voir, de ne rien oublier, et la faculté de la mémoire qui a pris l’habitude d’absorber vivement la couleur générale et la silhouette, l’arabesque du contour. Un artiste ayant le sentiment parfait de la forme, mais accoutumé à exercer surtout sa mémoire et son imagination, se trouve alors comme assailli par une émeute de détails, qui tous demandent justice avec la furie d’une foule amoureuse d’égalité absolue. Toute
  • 34. justice se trouve forcément violée ; toute harmonie détruite, sacrifiée ; mainte trivialité devient énorme ; mainte petitesse, usurpatrice. Plus l’artiste se penche avec impartialité vers le détail, plus l’anarchie augmente. Qu’il soit myope ou presbyte, toute hiérarchie et toute subordination disparaissent. C’est un accident qui se présente souvent dans les oeuvres d’un de nos peintres les plus en vogue, dont les défauts d’ailleurs sont si bien appropriés aux défauts de la foule, qu’ils ont singulièrement servi sa popularité. La même analogie se fait deviner dans la pratique de l’art du comédien, art si mystérieux, si profond, tombé aujourd’hui dans la confusion des décadences. M. Frédérick-Lemaître compose un rôle avec l’ampleur et la largeur du génie. Si étoilé que soit son jeu de détails lumineux, il reste toujours synthétique et sculptural. M. Bouffé compose les siens avec une minutie de myope et de bureaucrate. En lui tout éclate, mais rien ne se fait voir, rien ne veut être gardé par la mémoire. Estabelece-se assim um duelo entre a vontade de tudo ver, de nada esquecer, e a faculdade da memória, que adquiriu o hábito de absorver com vivacidade a cor geral e a silhueta, o arabesco do contorno. Um artista que tem o sentimento perfeito da forma, mas acostumado a exercitar sobretudo a memória e a imaginação, encontra-se então como que assaltado por uma turba de detalhes, todos reclamando justiça com a mesma fúria de uma multidão ávida por igualdade absoluta. Toda justiça acha-se forçosamente 31 violada, toda harmonia destruída e sacrificada; muitas trivialidades assumem importância, muitos detalhes sem importância tornam-se usurpadores. Quanto mais o artista se curva com imparcialidade sobre o detalhe, mais aumenta a anarquia. Que seja míope ou presbita, toda hierarquia e toda subordinação desaparecem. É um acidente que aparece constantemente nas obras de um de nossos pintores mais em voga, cujos defeitos, aliás, são tão bem apropriados aos da multidão que contribuíram singularmente para sua popularidade. Adivinha-se a mesma analogia no exercício da arte do ator, arte tão misteriosa, tão profunda, vítima nos dias de hoje da confusão das decadências. Frédérick Lemaitre desempenha um papel com a amplitude e a grandeza do gênio. Por mais que sua criação esteja semeada de detalhes luminosos, permanece sintética e escultural. Bouffé compõe os seus papéis com uma minúcia de míope e de burocrata. Nele tudo brilha, mas nada transparece, nada quer ser guardado pela memória. Ainsi, dans l’exécution de M. G. se montrent deux choses : l’une, une contention de mémoire résurrectioniste, évocatrice, une mémoire qui dit à chaque chose : « Lazare, lève-toi ! » ; l’autre, un feu, une ivresse de crayon, de pinceau, ressemblant presque à une fureur. C’est la peur de n’aller pas assez vite, de laisser échapper le fantôme avant que la synthèse n’en soit extraite et saisie ; c’est
  • 35. cette terrible peur qui possède tous les grands artistes et qui leur fait désirer si ardemment de s’approprier tous les moyens d’expression, pour que jamais les ordres de l’esprit ne soient altérés par les hésitations de la main ; pour que finalement l’exécution, l’exécution idéale, devienne aussi inconsciente, aussi coulante que l’est la digestion pour le cerveau de l’homme bien portant qui a dîné. M. G. commence par de légères indications au crayon, qui ne marquent guère que la place que les objets doivent tenir dans l’espace. Les plans principaux sont indiqués ensuite par des teintes au lavis, des masses vaguement, légèrement colorées d’abord, mais reprises plus tard et chargées successivement de couleurs plus intenses. Au dernier moment, le contour des objets est définitivement cerné par de l’encre. A moins de les avoir vus, on ne se douterait pas des effets surprenants qu’il peut obtenir par cette méthode si simple et presque élémentaire. Elle a cet incomparable avantage, qu’à n’importe quel point de son progrès, chaque dessin a l’air suffisamment fini ; vous nommerez cela une ébauche si vous voulez, mais ébauche parfaite. Toutes les valeurs y sont en pleine harmonie, et s’il les veut pousser plus loin, elles marcheront toujours de front vers le perfectionnement désiré. Il prépare ainsi vingt dessins à la fois avec une pétulance et une joie charmantes, amusantes même pour lui ; les croquis s’empilent et se superposent par dizaines, par centaines, par milliers. De temps à autre il les parcourt, les feuillette, les examine, et puis il en choisit quelques-uns dont il augmente plus ou moins l’intensité, dont il 32 charge les ombres et allume progressivement les lumières. Assim, na execução de G. se evidenciam duas coisas: a primeira, um esforço de memória ressurreicionista, evocadora, uma memória que diz a cada coisa: “Lázaro, levanta-te”; a outra, um fogo, uma embriaguez de lápis, de pincel, que se assemelha quase a um furor. É o medo de não agir com suficiente rapidez, de deixar o fantasma escapar antes que sua síntese tenha sido extraída e captada; é o pavor terrível que se apodera de todos os grandes artistas e que os faz desejar tão ardentemente apropriarem-se de todos os meios de expressão para que jamais as ordens do espírito sejam alteradas pelas hesitações da mão; para que finalmente a execução, a execução ideal se torne tão inconsciente, tão fluente quanto a digestão para o cérebro do homem sadio que acabou de jantar. G. começa por leves indicações a lápis, que apenas indicam a posição que os objetos devem ocupar no espaço. Os planos principais são indicados em seguida por tons em aguada, massas de início coloridas vagamente, levemente, porém retomadas mais tarde e carregadas sucessivamente com cores mais intensas. No último momento, o contorno dos objetos é definitivamente delineado com a tinta. A menos que já os tenha visto, não se pode imaginar os efeitos surpreendentes que G. consegue obter com esse método tão simples e quase elementar. Tem a incomparável vantagem de, em qualquer etapa de sua
  • 36. progressão, cada desenho parecer suficientemente acabado; alguém dirá que isso é um esboço, se quiser, mas um esboço perfeito. Todos os valores se encontram em perfeita harmonia, e se G. quiser levá-los adiante. eles se encaminharão decididamente para o aperfeiçoamento desejado. Ele prepara desse modo vinte desenhos ao mesmo tempo, com uma petulância e alegria encantadoras, divertidas até mesmo para ele - os croquis empilham-se e superpõem-se às dezenas, às centenas, aos milhares. De vez em quando G. os percorre, os folheia, os examina, e depois escolhe alguns, nos quais aumenta mais ou menos a intensidade, carrega as sombras e clareia progressivamente as zonas luminosas. 33 Demi-mondaines Constantin Guys (1802-1892) Il attache une immense importance aux fonds, qui, vigoureux ou légers, sont toujours d’une qualité et d’une nature appropriées aux figures. La gamme des tons et l’harmonie générale sont strictement observées, avec un génie qui dérive plutôt de l’instinct que de l’étude. Car M. G. possède naturellement ce talent mystérieux du coloriste, véritable don que l’étude peut accroître, mais qu’elle
  • 37. est, par elle-même, je crois, impuissante à créer. Pour tout dire en un mot, notre singulier artiste exprime à la fois le geste et l’attitude solennelle ou grotesque des êtres et leur explosion lumineuse dans l’espace. G. dedica uma imensa importância aos fundos que, vigorosos ou evanescentes, sempre são de uma qualidade e de uma natureza apropriadas às figuras. A gama de tons e a harmonia geral são estritamente observadas, com um gênio que provém mais do instinto que do estudo. Pois G. possui, naturalmente, o talento misterioso do colorista, verdadeiro dom que o estudo pode desenvolver, mas que é, por si mesmo, creio, incapaz de criar. Para resumir em poucas palavras, nosso singular artista exprime ao mesmo tempo o gesto e a atitude solene ou grotesca dos seres e sua explosão luminosa no espaço. 34
  • 38. VI Les annales de la guerre Os anais da guerra La Bulgarie, la Turquie, la Crimée, l’Espagne ont été de grandes fêtes pour les yeux de M. G., ou plutôt de l’artiste imaginaire que nous sommes convenus d’appeler M. G. ; car je me souviens de temps en temps que je me suis promis, pour mieux rassurer sa modestie, de supposer qu’il n’existait pas. J’ai compulsé ces archives de la guerre d’Orient (champs de bataille jonchés de débris funèbres, charrois de matériaux, embarquements de bestiaux et de chevaux), tableaux vivants et surprenants, décalqués sur la vie elle-même, éléments d’un pittoresque précieux que beaucoup de peintres en renom, placés dans les mêmes circonstances, auraient étourdiment négligés ; cependant, de ceux-là j’excepterai volontiers M. Horace Vernet, véritable gazetier plutôt que peintre essentiel, avec lequel M. G., artiste plus délicat, a des rapports visibles, si on veut ne le considérer que comme archiviste de la vie. Je puis affirmer que nul journal, nul récit écrit, nul livre, n’exprime aussi bien, dans tous ses détails douloureux et dans sa sinistre ampleur, cette grande épopée de la guerre de Crimée. L’oeil se promène tour à tour aux bords du Danube, aux rives du Bosphore, au cap Kerson, dans la plaine de Balaklava, dans les champs d’Inkermann, dans les campements 35 anglais, français, turcs et piémontais, dans les rues de Constantinople, dans les hôpitaux et dans toutes les solennités religieuses et militaires. A Bulgária, a Turquia, a Crimeia e a Espanha foram grandes festas para os olhos de G., ou melhor, para os olhos do artista imaginário que convencionamos chamar de G.; pois me lembro de vez em quando ter prometido a mim mesmo, para tranquilizar sua modéstia, supor que ele não existe. Compulsei os arquivos da guerra do Oriente (campos de batalha juncados de restos mortais, carroças de materiais, embarques de gado e de cavalos), quadros vivos e surpreendentes, decalcados na própria vida, elementos de um pitoresco precioso que muitos pintores famosos, colocados nas mesmas circunstâncias, teriam negligenciado imprudentemente; no entanto, destes excluirei naturalmente Horace Vernet, verdadeiro jornalista em vez de pintor essencial, com quem G., artista mais delicado, tem afinidades visíveis, se quisermos considerá-lo apenas como arquivista da vida. Posso afirmar que nenhum diário, nenhum relato escrito, nenhum livro exprime tão bem, em todos os seus detalhes dolorosos e em sua sinistra amplitude, a grande epopéia da guerra da Crimeia. O olhar vagueia sucessivamente pelas margens do Danúbio, pelas margens do Bósforo, pelo cabo Kerson, pela planície de Balaklava, pelos campos de Inkermann, pelos acampamentos ingleses,
  • 39. franceses, turcos e piemonteses, pelas ruas de Constantinopla, pelos hospitais e por todas as solenidades religiosas e militares. Quatre équipages Constantin Guys 36 Une des compositions qui se sont le mieux gravées dans mon esprit est la Consécration d’un terrain funèbre à Soutari par l’évêque de Gibraltar. Le caractère pittoresque de la scène, qui consiste dans le contraste de la nature orientale environnante avec les attitudes et les uniformes occidentaux des assistants, est rendu d’une manière saisissante, suggestive et grosse de rêveries. Les soldats et les officiers ont ces airs ineffaçables de gentlemen, résolus et discrets, qu’ils portent au bout du monde, jusque dans les garnisons de la colonie du Cap et les établissements de l’Inde : les prêtres anglais font vaguement songer à des huissiers ou à des agents de change qui seraient revêtus de toques et de rabats. Uma das composições que mais se gravaram em meu espírito é a Consécration d’un Terrain Funèbre à Scutari par l’Évêque de Gibraltar1. O caráter pitoresco da cena, que consiste no contraste da natureza oriental circundante com as atitudes e os uniformes ocidentais da assistência, é expresso de uma maneira fascinante, sugestiva e cheia de fantasia. Os soldados e os oficiais têm esses ares indeléveis de gentlemen, resolutos e discretos, que os distinguem até o fim do mundo, até nas guarnições da colônia do Cabo e nas feitorias da Índia: os pastores ingleses lembram vagamente meirinhos ou agentes de câmbio que tivessem vestido barrete e cabeção2. 1. “Consécration d’un Terrain Funèbre à Scutari par l’Évêque de