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scientiæ zudia, na biologia contemporânea
A teleologiaVol. 1, No. 2, 2003, p. 183-93




               A teleologia na biologia contemporânea
                                                                   Marcelo Alves Ferreira


                                            resumo
O estatuto do pensamento teleológico nas ciências biológicas contemporâneas é foco de controvérsia.
O programa reducionista busca sua eliminação, persistindo, no entanto, perspectivas instrumentalis-
tas e realistas que buscam justificar sua permanência. Este artigo procura defender as razões para a
permanência do pensamento teleológico, sobretudo aquelas de fundo realista.

PALAVRAS-CHAVE q Teleologia. Finalismo. Biologia. Função. Reducionismo.




O uso da assim chamada “linguagem teleológica” mereceu um editorial intitulado “Mau
uso do termo ‘estratégia’” na revista BioScience, em 1984, do qual segue um trecho bas-
tante significativo:

       Alguns escritores parecem considerar o uso de terminologia teleológica do tipo
       ‘esforço para atingir objetivos’ como uma maneira de prender a atenção do leitor.
       Outros aparentemente usam-na de forma metafórica, como um método conveni-
       ente de examinar problemas. Entretanto, isto é perigoso porque leva a escrever e
       pensar descuidadamente e desorienta leitores cientificamente não preparados que
       freqüentemente tomam a metáfora como verdade. Um conhecido ... sugeriu-me
       o seguinte aviso: ‘A atribuição de propósitos a plantas não se pretende literal, e se
       for assim considerada será perigosa para sua saúde mental’. Cientistas podem ter
       objetivos e podem desenvolver estratégias de pesquisa para atingi-los, mas plan-
       tas não podem, a menos que aceitemos que elas têm inteligência e que podem
       tomar decisões. Termos como ‘estratégia’ e ‘tática’ são filosoficamente
       questionáveis quando aplicados a plantas e animais inferiores, sendo melhor
       deixá-los para os políticos, os militares e os técnicos esportivos (Kramer, 1984).

      Um elemento fundamental da imagem que a biologia contemporânea tem de si
mesma é a rejeição da argumentação teleológica (Ruse, 2000). Com maior freqüência,
trata-se da exclusão de dois tipos de explicações por não serem científicas: as que fazem

                                                                                                183
Marcelo Alves Ferreira

referência a eventos futuros como causas de eventos presentes, e as que sugerem algo
como intencionalidade orientando processos e fenômenos.
       A argumentação de Kramer é deste segundo tipo, e pressupõe que apenas a
consciência possa suportar processos teleológicos. É uma argumentação bastante re-
presentativa das discussões explícitas do problema da linguagem teleológica entre
os biólogos.
       O fato de um editorial discutir o assunto evidencia o quanto o uso pouco formal
de linguagem finalista é intenso entre biólogos, bem como o desconforto que esta lin-
guagem causa em situações em que é discutida com maior rigor metodológico. A posi-
ção que defende a exclusão total do finalismo da linguagem científica em biologia está
longe de ser unânime entre filósofos e historiadores da ciência mas, em contraste com
seu uso intenso, tem grande força na comunidade científica. Na discussão formal do
assunto, os biólogos tendem a ver o finalismo como elemento instrumental ou até mes-
mo como linguagem informal e econômica. Além das objeções já citadas, muitas ou-
tras são levantadas contra a teleologia, sobretudo envolvendo o abominável espectro
pré-científico de Aristóteles. A crítica à teleologia enquanto idéia ou linguagem meta-
fórica contém más interpretações de como ela se encontra em seu propositor mais cé-
lebre (Spassov, 1998). As objeções à subsistência do finalismo do filósofo são variadas.
A teleologia de Aristóteles seria antropocêntrica ou teologizante por se basear na ana-
logia entre processos naturais e o trabalho de um artesão racional, chegando a esten-
der a analogia a grandes objetivos cósmicos da natureza (cf. Maund, 2000). A idéia de
espécies fixas, imutáveis, seria totalmente incompatível com a biologia moderna.
Finalmente, as causas finais de Aristóteles estariam em contradição com o espírito
mecanicista da ciência contemporânea. Obviamente, quanto às espécies fixas, não há
que se questionar os críticos, mas os que vêem algum espaço para a teleologia hoje tam-
pouco gostariam de reviver Aristóteles in totum.
       Confusões entre a teleologia de Aristóteles e as concepções teológicas medievais
não são incomuns. No entanto, em Aristóteles as concepções teleológicas não envol-
vem agentes externos à natureza e a analogia entre natureza e artífice é tão somente
isto, uma analogia. A descrição do mundo natural com aspectos teleológicos decorren-
tes de um artífice é algo realista apenas para os teólogos naturais. Segundo Aristóteles
as causas que agem por necessidade são como leis gerais, e as que agem em direção a
um fim só podem ser assim entendidas com referência ao agente de cada processo e
não de um ponto de vista externo ou superior. A teleologia que se questiona na biologia
atual não é exatamente a de Aristóteles nem a dos teólogos medievais, mas sim uma
teleologia transformada e carregada de outros conceitos a ela agregados ao longo do
desenvolvimento da ciência.



184
A teleologia na biologia contemporânea

       Ao longo deste artigo, pretendo mostrar que o uso de argumentação teleológica
por biólogos não se restringe a figuras de linguagem ou vícios de expressão, havendo
razões não triviais para que este tipo de linguagem subsista com tão incômodo vigor na
prática científica atual.
       Ao longo do período moderno, a atitude dos estudiosos do mundo vivo em rela-
ção à teleologia acompanhou as mudanças conceituais da ciência de um modo especial.
Embora tenha sido alterada pela revolução científica e mais ainda pela introdução da
teoria da evolução por Darwin e Wallace, sua relação com a mentalidade dominante
entre as outras ciências foi complexa e marcada pelo estranhamento. No primeiro caso,
o mecanicismo que permeou a revolução científica procurou descrever os seres vivos
como máquinas, buscando um enfoque que eliminasse quaisquer concessões ao
finalismo. As razões pelas quais esta posição não se impôs vão além do objetivo deste
artigo, mas o recuo subseqüente pôs a maior parte dos naturalistas da segunda metade
do século XVIII e princípio do século XIX em nítido descompasso com os pesquisado-
res dos campos da física e da química. Enquanto estes repudiavam a idéia de causas
finais, os naturalistas mantinham-se abertamente ligados a ela, como mostram as pa-
lavras de Whewell em 1840:

      Um sistema é organizado quando os efeitos que ocorrem entre as partes são es-
      senciais à nossa concepção do todo; ... quando não são apenas vistos, mas previs-
      tos, não apenas esperados mas pretendidos; em resumo, quando ao invés de se-
      rem causas e efeitos, são fins e meios... (Whewell, 1999).

      Em naturalistas como Cuvier e Owen a teleologia se assentava no conceito de
adaptação que abrangia os critérios tipológicos usados para organizar a imensa diver-
sidade do mundo vivo. Para Cuvier, as funções biológicas são finalisticamente deter-
minadas de modo relacional entre os órgãos de um ser vivo e entre cada ser e seu ambi-
ente. Essas determinações relacionais eram chamadas por Cuvier de correlação de
partes e condições de existência. O conceito de adaptação era rigidamente determinista
e reforçava a idéia de espécies fixas, limitando os tipos biológicos possíveis às poucas e
estanques categorias de classificação dos animais admitidas por Cuvier. Embora isto
não fosse igualmente enfatizado por todos os naturalistas, havia um forte contexto
metafísico criacionista em que o finalismo se fundia com o argumento do desígnio,
como se via na teologia natural. A oposição a esta visão se concentrou na Naturphilosophie
em que o determinismo adaptacionista rígido era substituído por leis mais gerais, res-
ponsáveis por homologias subjacentes à adaptação, e que reintegravam os seres vivos
ao mundo material como um todo. Embora estes pensadores alternativos, como



                                                                                          185
Marcelo Alves Ferreira

Schelling, Oken, Carus e Geoffroy Saint-Hilaire1 não fossem evolucionistas no senti-
do em que Darwin viria a ser, sua visão de que há conexões entre as categorias de classi-
ficação biológica e sua versão menos determinista da adaptação enfraqueciam a
teleologia criacionista ortodoxa e fixista e possibilitavam algum dissenso e o eventual
surgimento de novas posições, como a teoria darwinista da evolução. A teleologia dos
Naturphilosophen era permeada pelo conceito de progresso e de desdobramento de
potencialidades, variando muito de autor para autor em função do caráter altamente
especulativo de suas idéias.
       Contrariamente às idéias de Cuvier, a evolução continuou em debate no final do
século XVIII, e, como se vê na formulação de Lamarck, expressando a teleologia de um
modo novo. Enquanto em seus predecessores esta aparece como um princípio
relacional, como uma harmonia estática de compossíveis,2 Lamarck confere-lhe um
caráter dinâmico. Em Lamarck a adaptação é teleológica, sem ser perfeita e estática,
resultando em um processo sem fim voltado para graus crescentes de perfeição e de
complexidade. Neste contexto, o ser humano seria o ápice provisório do processo, até
que parte da humanidade se destacasse, atingindo novo status com a continuação da
evolução.
       A mudança de atitude para com o finalismo que o pensamento de Darwin e Wallace
trouxe à biologia foi resultado da introdução do mecanismo de seleção natural. Pelo
menos quanto às formulações abertas de explicações foi o enfraquecimento da teleolo-
gia que predominou desde então. Se em Lamarck o finalismo comprometeu-se com a
noção dinâmica de um processo de transformação, em Darwin, esta transformação se
torna multidirecional, e seus vínculos com esquemas teleológicos se atenuam. A bio-
logia evolucionista trouxe para o estudo dos seres vivos o que a revolução científica e o
mecanicismo haviam proposto para a natureza em geral: a substituição de causas fi-
nais por causas eficientes imediatas, sendo, neste sentido, uma conquista final desta
revolução.
       Na formulação de Darwin a variação de características hereditárias e a seleção
natural causam a adaptação dos organismos ao ambiente. Se tentássemos classificar as
causas desta adaptação em um sentido aristotélico, a variação seria uma causa material
e a seleção uma causa eficiente. Dificilmente teremos o que oferecer como causa for-


1 Além destes, é importante mencionar J. F. Blumenbach por sua importância na biologia do final do século XVIII
(Blumenbach, Beyträge zur Naturgeschichte, de 1790, apud Mayr, 1982) e ainda W. Goethe por sua influência na cultu-
ra em geral e no desenvolvimento da morfologia em particular (Goethe, “Erster Entwurf einer allgemeinen Einleitung
in die Vergleichende Anatomie”, de 1795, publicado em 1820 em Morphologie, apud Mayr, 1982).
2 A harmonia estática aqui referida é a decorrente dos conceitos de correlação de partes e condições de existência
conforme propostos por Cuvier.


186
A teleologia na biologia contemporânea

mal e causa final. Para Darwin, no espírito do ocidente cristão, teleologia, teologia e
desígnio se interconectavam e embora não visse como defender racionalmente o ar-
gumento do desígnio, para ele toda a discussão filosófica sobre acaso e propósito era
insolúvel e angustiante (Darwin, 1860). Na instância formal de enunciar sua teoria,
Darwin não viu como algo de teleológico poderia se encaixar, uma vez que a seleção
natural lhe parecia suficiente para explicar a aparente orientação do processo. O fato
de a evolução acarretar progresso em termos de um aumento de complexidade seria
uma conseqüência do processo como um todo, mas não uma tendência necessária em
todos os casos durante todo o tempo. Crer, como alguns de seus contemporâneos, em
uma redundante manifestação de finalismo paralela à seleção natural era, para Darwin,
ir longe demais.
       Mais recentemente, o problema da existência ou não de fenômenos teleológicos
na biologia se relaciona com os dois tipos de explicação de fenômenos que convivem
na biologia: as explicações que nos remetem a causas próximas e as explicações que
envolvem causas distantes. Por exemplo, ao perguntarmos porque determinada es-
pécie de ave do hemisfério norte inicia sua migração anual em determinada data, po-
demos obter duas respostas distintas e igualmente válidas. Uma delas nos dirá que a
duração do dia, ao atingir um valor crítico, desencadeia uma resposta hormonal e neu-
rológica que inicia a migração. A outra trará informações sobre como a resposta
hormonal e neurológica veio a existir, e nos dirá que a espécie adaptou-se à variação
sazonal da disponibilidade de alimento sincronizando seu deslocamento com as esta-
ções do ano, o que se deu pela reduzida mortalidade das populações que, casualmente,
por mutação desenvolveram o comportamento hereditário de se deslocar para o sul.
Atualmente, com o conhecimento mais detalhado da fisiologia e de aspectos moleculares
dos fenômenos biológicos, as explicações físico-químicas deram tal dominância às
causas próximas que a própria idéia de causas distantes ficou enfraquecida.
       Há, intuitivamente, algo de estranho na explicação que se vale das causas dis-
tantes. Ela diz que a migração se dá em outubro para que seja possível encontrar ali-
mento em dezembro, ou ainda que uma série de eventos graduais e longínquos no tempo
conduziu a uma adaptação no presente; é uma explicação que faz referência a eventos
futuros.
       Este tipo de explicação tem apenas uma possibilidade de não contrariar nossas
noções de relação entre causa e efeito, baseadas no fluxo direcional do tempo. Esta
possibilidade é incluir a pré-ordenação dos eventos, o que parece exigir outra inclu-
são, a da intencionalidade, a da consciência. Creio que esta pequena análise esclarece a
jocosa advertência sobre saúde mental e plantas tomando decisões que aparece na ci-
tação inicial do Dr. Kramer. Mais do que isso, esta análise evidencia um elemento im-
portantíssimo do pensamento moderno, algo que sobreviveu à revolução científica e

                                                                                     187
Marcelo Alves Ferreira

seu pendor matemático: a distinção qualitativa que fazemos entre ordem e acaso. Somos
intuitivamente realistas quanto a isso. É-nos difícil conceber que a percepção que te-
mos da ordem possa ter algo de arbitrário. Mais difícil ainda nos parece imaginar que o
que chamamos de estados ordenados possa surgir espontaneamente daquilo em que
não vemos ordem. Estes pontos de vista subjacentes à axiologia da mentalidade cientí-
fica moderna é que tornam necessárias as exigências de pré-ordenação e até de cons-
ciência para que as explicações com referência ao futuro sejam pensáveis. Na verdade,
são estes pontos de vista que nos fazem formular as explicações finalistas de modo a
gerar paradoxos de causalidade. A distinção qualitativa entre ordem e acaso como as-
pectos estanques da realidade torna difícil apreender a emergência de complexidade
no mundo natural.
       Se nos ativermos contudo à seleção natural, podemos descrever todo o processo
evolutivo sem que a teleologia pareça ameaçar nossa noção de causalidade. As varia-
ções populacionais de características físicas ou comportamentais surgem totalmente
ao acaso, pela razão puramente física de que o material genético não é perfeitamente
estável. Os vários tipos de indivíduos resultantes são selecionados em um sentido to-
talmente impessoal: simplesmente alguns terão mais sucesso que outros em sobrevi-
ver e se reproduzir em função de suas características físicas e comportamentais. Temos
seleção, mas não temos um agente selecionador particular, a totalidade do ambiente
seleciona por interações físicas comuns. Quando damos explicações deste tipo, em que
só eventos físico-químicos são mencionados, a causalidade linear está preservada, sub-
sistindo o problema, nada desprezível, de que estes eventos se dão em matéria viva
previamente organizada e que se comporta contemplando fins, de modo teleológico.
Uma resposta completa a isto incluiria a maior das questões da biologia, isto é, a ori-
gem da vida. Uma resposta não exaustiva contém normalmente explicações e descri-
ções de fenômenos biológicos baseadas no conceito de programa. O comportamento
finalístico de um sistema é definido em função da existência de um programa interno a
este sistema. No caso concreto do programa genético, trata-se de uma entidade cam-
biante que antecede o organismo por milhões de anos, cujo funcionamento pressupõe
algum grau de continuidade entre o ambiente no qual o programa foi reproduzido e o
ambiente ao qual ele responderá. Dessa forma, uma cadeia de eventos naturais faz de-
saparecer a exigência intuitiva da inclusão de intencionalidade, restando apenas a pré-
ordenação gradual ancorada no traço mais fundamental de qualquer ser vivo, a repro-
dução, ou seja a transmissão do programa. A consecução desta versão das causas
distantes em biologia corresponde ao projeto normalmente chamado de reducionismo,
ou de redução ontológica dos fenômenos biológicos a seus componentes físico-quí-
micos. Para alguns, ele representa a tirania da física, para outros, representa a salvação
do pensamento racional diante das ameaças do vitalismo e do finalismo. Em termos

188
A teleologia na biologia contemporânea

menos apaixonados, o reducionismo seria a alternativa ao organicismo e a uma biolo-
gia totalmente autônoma. É claro para seus defensores que o reducionismo tem a mis-
são de preservar a unidade da ciência.
       Esse ponto de vista só se tornou possível com a genética molecular, e fez surgir o
termo teleonomia, significando a propriedade dos processos orientados a um fim em
razão de serem desencadeados por programas estabelecidos no passado. Um processo
teleonômico não tem o futuro como causa, não envolve intencionalidade e só envolve
fenômenos físicos ordinários, idênticos àqueles dos corpos menos organizados.
       A esta altura, podemos nos perguntar: por que, diante da formulação teleonômica,
a teleologia permaneceria sendo um problema a ser discutido na filosofia da biologia?
Vejo pelo menos três razões que não permitem que uma biologia expurgada de qual-
quer teleologia se estabeleça em definitivo. A primeira diz respeito ao poder heurístico
da física quanto aos fenômenos biológicos, a segunda diz respeito à questionável legi-
timidade de se tratar a teleologia como metáfora na biologia, e a terceira diz respeito ao
problema do escopo da intencionalidade e da consciência.
       A primeira razão se contrapõe ao reducionismo, cuja expressão mais crua seja
talvez a frase atribuída a Ernest Rutherford que diz que: “toda ciência ou é física ou
coleção de selos”. Se entendermos ciência como descrição de fenômenos, não há como
responder facilmente a Rutherford e teremos de nos restringir à física, ou seja, tería-
mos que acomodar a biologia em uma física expandida. Creio, no entanto, que esta se-
ria uma física com uma tal superpopulação de conceitos ad hoc e vagamente definidos
que provavelmente terminaríamos com algo como um mapa maior que o território re-
presentado. A coleção de selos de Rutherford na verdade é uma coleção de fatos, tais
como o surgimento da vida na Terra, da fotossíntese, da respiração aeróbica, dos orga-
nismos pluricelulares etc. São fatos que não têm uma conexão estabelecida com as leis
físicas, com o modo como a matéria se comporta. Melhor dizendo, é fácil descrever o
que ocorre em um organismo em termos físicos, é ainda fácil assim descrever as trans-
formações por que o organismo passa em um processo de mutação e seleção, mas des-
crever a complexidade já estabelecida não é explicá-la. Estamos aqui diante do proble-
ma dos “comos” e dos “porquês”, do problema que fez Aristóteles rejeitar as explicações
mecânicas do atomismo. Em uma escala de tempo reduzida, descrever parece perigo-
samente com explicar, mas se alargarmos temporalmente os fenômenos, veremos que
se trata de explicar a própria vida. A grande dificuldade para o reducionismo é o caráter
histórico da biologia, pois o surgimento da vida e o decorrente processo de evolução
não são decorrências necessárias do que a física nos diz sobre a matéria. Se nos per-
guntamos sobre o que alimenta a objeção dos reducionistas às categorias e conceitos
autônomos da biologia, podemos encontrar razões bastante profundas e perturbadoras.
Parece-me que as mais importantes seriam a aparente arbitrariedade dessas categorias

                                                                                      189
Marcelo Alves Ferreira

e a aparente contingência dos objetos a que elas se referem. De novo a coleção de se-
los... Entretanto, não é inevitável seguir Rutherford. Podemos simplesmente aceitar o
vazio explicativo entre a física e a biologia e suspender o julgamento quanto à autono-
mia da segunda. Podemos aceitar este vazio diante do problema científico concreto
que é a origem da vida. Se não o fazemos, estamos metafisicamente postulando a vida
como uma singularidade no universo.
       Quanto à legitimidade de apresentarmos explicações em biologia com uma lin-
guagem estritamente reducionista, creio que se trata de um procedimento intelectual-
mente dúbio. Na verdade trata-se de uma dubiedade metodológica: em um primeiro
momento, diante de qualquer fenômeno biológico, as perguntas, para serem pensáveis,
envolvem função, propósito e a metáfora de um projeto. Diante do modo de reprodu-
ção de uma espécie, das proporções de uma estrutura, ou do padrão de uma migração,
ninguém honestamente se pergunta: “Como as mutações nos genes dessa característi-
ca vieram a se estabelecer por seleção?” A pergunta efetiva seria “Em que esta caracte-
rística serve à sobrevivência, qual sua função?” Visto por outro ângulo, o problema está
em supor a priori que a teleologia seja uma metáfora. Como alternativa, podemos nos
aproximar de um conceito realista de teleologia com relação à seleção natural. Pode-
mos tomar a analogia aristotélica do artífice em termos impessoais. A analogia darwi-
nista entre seleção artificial e seleção natural já foi duramente questionada inúmeras
vezes; a versão mais forte desse questionamento propõe simplesmente que a seleção
natural seja uma tautologia vazia. Segundo esta proposta, tudo o que a seleção natural
nos diz é que a evolução ocorre devido à sobrevivência dos indivíduos mais adaptados
selecionados pelo meio, e que os biólogos definem adaptação em termos de sucesso
reprodutivo e sobrevivência. Em suma, seleção natural seria reduzida à “sobrevivência
dos que sobrevivem” (Bethel, 1976). Embora os evolucionistas liguem adaptação ao
sucesso reprodutivo e à sobrevivência, isto não é tudo. Há ainda a afirmação de que
características físicas e comportamentais concretas e específicas (e portanto empi-
ricamente testáveis) são a causa da sobrevivência diferencial, e que características fa-
voráveis em uma situação deverão sê-lo em situações semelhantes. Infelizmente isto é
freqüentemente deixado como implícito em textos científicos, talvez pelo constrangi-
mento de ressaltar algo por demais óbvio do ponto de vista de quem escreve. Dificil-
mente se escreve com todas as letras que as características dos indivíduos afetam
probabilisticamente sua sobrevivência e reprodução de modo sistemático. O fato de
não haver um selecionador consciente identificável na seleção natural não leva a que
não haja critérios de seleção. O ambiente é composto por padrões físicos que admitem
diferencialmente as interações com organismos. Em contrapartida, o programa gené-
tico é o registro acumulado dessas interações. A teleologia pode ser mantida em um
sentido forte, além do instrumentalismo. Basta que concedamos que, na analogia

190
A teleologia na biologia contemporânea

darwinista, ao criador humano de animais corresponda um selecionador difuso e im-
pessoal na natureza (cf. Bedau, 1991). Parece conceder muito, mas não é uma perspec-
tiva tão assustadora se levarmos em conta que o projetista natural abandonou mais de
noventa por cento de seus projetos, que correspondem à extinção global estimada pela
paleontologia. Não se trata aqui de hilozoísmo, mas de que o cerne dos fenômenos em
questão é a reprodução, um contexto em que a causa final evolutiva e a causa eficiente
tendem a se confundir. Nas mais sintéticas definições, a primeira seria a simples con-
tinuação do ser vivo pela reprodução a longo prazo, e a segunda seria a própria repro-
dução e suas perturbações pelas mutações e pela mortalidade.
       A questão do escopo da consciência e da intencionalidade é das mais difíceis de
se abordar, mas como acarreta conseqüências importantes para a biologia em geral e
para a biologia evolutiva em particular, sua conexão com a teleologia não pode ser ig-
norada. O texto de Kramer que citei no início deste artigo afirma que “Cientistas po-
dem ter objetivos e podem desenvolver estratégias de pesquisa para atingi-los, mas
plantas não podem [...]”. Não há como saber as razões exatas de Kramer para ter opta-
do por plantas e não por carnívoros ou primatas em sua exemplificação. Talvez por maior
efeito cômico, talvez por cautela. Se atenuarmos os contrastes do texto trocando as
estratégias de pesquisa por táticas de sobrevivência, e as plantas por animais relativa-
mente mais complexos, teremos que pensar na possibilidade de que o comportamento
do animal pode ter algum nível de intencionalidade. Mais do que isso, teremos que
levar em conta que o comportamento faz parte das pressões seletivas internas a cada
organismo, tendo influência sobre a evolução. Obviamente não chegamos a validar a
noção de projeto para dar sustentação à teleologia, mas teremos algo mais que um
selecionador impessoal difuso no ambiente. Isto já foi examinado por vários teóricos
da evolução, tendo sido destacado em textos de Karl Popper como avanços no
neodarwinismo (Popper, 1974). Ações conscientes e intencionais acarretam proces-
sos teleológicos, como o comportamento humano. Mesmo que ocorrendo com alcance
temporal estreito, frações dessas ações tornam os traços de finalismo do processo
evolutivo menos impensáveis de uma perspectiva mais ampla. Só podemos considerar
a consciência e a intencionalidade como exclusividades humanas em termos ideológicos
e não em termos científicos. Além disso, temos que nos lembrar (como não fez Kramer)
que o cientista do exemplo do texto inicial é tão objeto de estudo da biologia quanto as
plantas o são. A existência de teleologia nos fenômenos de que participa, inclusive a
evolução de sua própria espécie, será tão disputável quanto for sua consciência.
       Uma última consideração sobre a rejeição da teleologia na biologia contempo-
rânea se faz necessária. A diferença entre explicações por causas mecânicas imediatas
e por causas finais, ou dizendo de outra forma, a diferença entre a abordagem reducio-
nista e a organicista vai além dos seus aspectos técnicos ou epistemológicos. Trata-se

                                                                                     191
Marcelo Alves Ferreira

de explicações em torno do como e do porquê. Quando obtemos respostas acerca de
como se dá um fenômeno, podemos chegar a conseqüências úteis do conhecimento.
Úteis em um sentido baconiano, de dominação da natureza. Por outro lado, as respos-
tas acerca dos porquês se voltam para a satisfação da contemplação da natureza, mais
em consonância com a mentalidade dos gregos antigos como Aristóteles ou dos filóso-
fos escolásticos. Nos termos de Etienne Gilson, saber por que os pássaros voam não
parece aos modernos tão útil quanto saber como eles voam e assim construir máquinas
voadoras (Gilson, 1971, apud Lepeltier, 1999). Embora não possamos creditar a rejei-
ção ao finalismo apenas a esses valores utilitaristas, não está descartado que eles te-
nham o seu papel nela.


                                                                       Marcelo Alves Ferreira
                                                Biólogo, pós-graduando do Departamento de Filosofia
                                          da Universidade de São Paulo, integrante do Projeto Temático
                                                 “Estudos de filosofia e história da ciência” da FAPESP
                                                                                  piktor67@yahoo.com.br



                                             abstract
The status of teleological thought in contemporary biology entails controversy. The supporters of the
reductionist programme in biology strive to eliminate it, whereas instrumental and realist interpreta-
tions of the problem seek a justification for its permanence. This article tries to defend the reasons for
the permanence of teleological thought, particularly those of realist background.

KEYWORDS q Teleology. Finalism. Biology. Function. Reductionism.




referências bibliográficas
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192
A teleologia na biologia contemporânea

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                                                                                                         193

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Teleologia na biologia contemporânea

  • 1. scientiæ zudia, na biologia contemporânea A teleologiaVol. 1, No. 2, 2003, p. 183-93 A teleologia na biologia contemporânea Marcelo Alves Ferreira resumo O estatuto do pensamento teleológico nas ciências biológicas contemporâneas é foco de controvérsia. O programa reducionista busca sua eliminação, persistindo, no entanto, perspectivas instrumentalis- tas e realistas que buscam justificar sua permanência. Este artigo procura defender as razões para a permanência do pensamento teleológico, sobretudo aquelas de fundo realista. PALAVRAS-CHAVE q Teleologia. Finalismo. Biologia. Função. Reducionismo. O uso da assim chamada “linguagem teleológica” mereceu um editorial intitulado “Mau uso do termo ‘estratégia’” na revista BioScience, em 1984, do qual segue um trecho bas- tante significativo: Alguns escritores parecem considerar o uso de terminologia teleológica do tipo ‘esforço para atingir objetivos’ como uma maneira de prender a atenção do leitor. Outros aparentemente usam-na de forma metafórica, como um método conveni- ente de examinar problemas. Entretanto, isto é perigoso porque leva a escrever e pensar descuidadamente e desorienta leitores cientificamente não preparados que freqüentemente tomam a metáfora como verdade. Um conhecido ... sugeriu-me o seguinte aviso: ‘A atribuição de propósitos a plantas não se pretende literal, e se for assim considerada será perigosa para sua saúde mental’. Cientistas podem ter objetivos e podem desenvolver estratégias de pesquisa para atingi-los, mas plan- tas não podem, a menos que aceitemos que elas têm inteligência e que podem tomar decisões. Termos como ‘estratégia’ e ‘tática’ são filosoficamente questionáveis quando aplicados a plantas e animais inferiores, sendo melhor deixá-los para os políticos, os militares e os técnicos esportivos (Kramer, 1984). Um elemento fundamental da imagem que a biologia contemporânea tem de si mesma é a rejeição da argumentação teleológica (Ruse, 2000). Com maior freqüência, trata-se da exclusão de dois tipos de explicações por não serem científicas: as que fazem 183
  • 2. Marcelo Alves Ferreira referência a eventos futuros como causas de eventos presentes, e as que sugerem algo como intencionalidade orientando processos e fenômenos. A argumentação de Kramer é deste segundo tipo, e pressupõe que apenas a consciência possa suportar processos teleológicos. É uma argumentação bastante re- presentativa das discussões explícitas do problema da linguagem teleológica entre os biólogos. O fato de um editorial discutir o assunto evidencia o quanto o uso pouco formal de linguagem finalista é intenso entre biólogos, bem como o desconforto que esta lin- guagem causa em situações em que é discutida com maior rigor metodológico. A posi- ção que defende a exclusão total do finalismo da linguagem científica em biologia está longe de ser unânime entre filósofos e historiadores da ciência mas, em contraste com seu uso intenso, tem grande força na comunidade científica. Na discussão formal do assunto, os biólogos tendem a ver o finalismo como elemento instrumental ou até mes- mo como linguagem informal e econômica. Além das objeções já citadas, muitas ou- tras são levantadas contra a teleologia, sobretudo envolvendo o abominável espectro pré-científico de Aristóteles. A crítica à teleologia enquanto idéia ou linguagem meta- fórica contém más interpretações de como ela se encontra em seu propositor mais cé- lebre (Spassov, 1998). As objeções à subsistência do finalismo do filósofo são variadas. A teleologia de Aristóteles seria antropocêntrica ou teologizante por se basear na ana- logia entre processos naturais e o trabalho de um artesão racional, chegando a esten- der a analogia a grandes objetivos cósmicos da natureza (cf. Maund, 2000). A idéia de espécies fixas, imutáveis, seria totalmente incompatível com a biologia moderna. Finalmente, as causas finais de Aristóteles estariam em contradição com o espírito mecanicista da ciência contemporânea. Obviamente, quanto às espécies fixas, não há que se questionar os críticos, mas os que vêem algum espaço para a teleologia hoje tam- pouco gostariam de reviver Aristóteles in totum. Confusões entre a teleologia de Aristóteles e as concepções teológicas medievais não são incomuns. No entanto, em Aristóteles as concepções teleológicas não envol- vem agentes externos à natureza e a analogia entre natureza e artífice é tão somente isto, uma analogia. A descrição do mundo natural com aspectos teleológicos decorren- tes de um artífice é algo realista apenas para os teólogos naturais. Segundo Aristóteles as causas que agem por necessidade são como leis gerais, e as que agem em direção a um fim só podem ser assim entendidas com referência ao agente de cada processo e não de um ponto de vista externo ou superior. A teleologia que se questiona na biologia atual não é exatamente a de Aristóteles nem a dos teólogos medievais, mas sim uma teleologia transformada e carregada de outros conceitos a ela agregados ao longo do desenvolvimento da ciência. 184
  • 3. A teleologia na biologia contemporânea Ao longo deste artigo, pretendo mostrar que o uso de argumentação teleológica por biólogos não se restringe a figuras de linguagem ou vícios de expressão, havendo razões não triviais para que este tipo de linguagem subsista com tão incômodo vigor na prática científica atual. Ao longo do período moderno, a atitude dos estudiosos do mundo vivo em rela- ção à teleologia acompanhou as mudanças conceituais da ciência de um modo especial. Embora tenha sido alterada pela revolução científica e mais ainda pela introdução da teoria da evolução por Darwin e Wallace, sua relação com a mentalidade dominante entre as outras ciências foi complexa e marcada pelo estranhamento. No primeiro caso, o mecanicismo que permeou a revolução científica procurou descrever os seres vivos como máquinas, buscando um enfoque que eliminasse quaisquer concessões ao finalismo. As razões pelas quais esta posição não se impôs vão além do objetivo deste artigo, mas o recuo subseqüente pôs a maior parte dos naturalistas da segunda metade do século XVIII e princípio do século XIX em nítido descompasso com os pesquisado- res dos campos da física e da química. Enquanto estes repudiavam a idéia de causas finais, os naturalistas mantinham-se abertamente ligados a ela, como mostram as pa- lavras de Whewell em 1840: Um sistema é organizado quando os efeitos que ocorrem entre as partes são es- senciais à nossa concepção do todo; ... quando não são apenas vistos, mas previs- tos, não apenas esperados mas pretendidos; em resumo, quando ao invés de se- rem causas e efeitos, são fins e meios... (Whewell, 1999). Em naturalistas como Cuvier e Owen a teleologia se assentava no conceito de adaptação que abrangia os critérios tipológicos usados para organizar a imensa diver- sidade do mundo vivo. Para Cuvier, as funções biológicas são finalisticamente deter- minadas de modo relacional entre os órgãos de um ser vivo e entre cada ser e seu ambi- ente. Essas determinações relacionais eram chamadas por Cuvier de correlação de partes e condições de existência. O conceito de adaptação era rigidamente determinista e reforçava a idéia de espécies fixas, limitando os tipos biológicos possíveis às poucas e estanques categorias de classificação dos animais admitidas por Cuvier. Embora isto não fosse igualmente enfatizado por todos os naturalistas, havia um forte contexto metafísico criacionista em que o finalismo se fundia com o argumento do desígnio, como se via na teologia natural. A oposição a esta visão se concentrou na Naturphilosophie em que o determinismo adaptacionista rígido era substituído por leis mais gerais, res- ponsáveis por homologias subjacentes à adaptação, e que reintegravam os seres vivos ao mundo material como um todo. Embora estes pensadores alternativos, como 185
  • 4. Marcelo Alves Ferreira Schelling, Oken, Carus e Geoffroy Saint-Hilaire1 não fossem evolucionistas no senti- do em que Darwin viria a ser, sua visão de que há conexões entre as categorias de classi- ficação biológica e sua versão menos determinista da adaptação enfraqueciam a teleologia criacionista ortodoxa e fixista e possibilitavam algum dissenso e o eventual surgimento de novas posições, como a teoria darwinista da evolução. A teleologia dos Naturphilosophen era permeada pelo conceito de progresso e de desdobramento de potencialidades, variando muito de autor para autor em função do caráter altamente especulativo de suas idéias. Contrariamente às idéias de Cuvier, a evolução continuou em debate no final do século XVIII, e, como se vê na formulação de Lamarck, expressando a teleologia de um modo novo. Enquanto em seus predecessores esta aparece como um princípio relacional, como uma harmonia estática de compossíveis,2 Lamarck confere-lhe um caráter dinâmico. Em Lamarck a adaptação é teleológica, sem ser perfeita e estática, resultando em um processo sem fim voltado para graus crescentes de perfeição e de complexidade. Neste contexto, o ser humano seria o ápice provisório do processo, até que parte da humanidade se destacasse, atingindo novo status com a continuação da evolução. A mudança de atitude para com o finalismo que o pensamento de Darwin e Wallace trouxe à biologia foi resultado da introdução do mecanismo de seleção natural. Pelo menos quanto às formulações abertas de explicações foi o enfraquecimento da teleolo- gia que predominou desde então. Se em Lamarck o finalismo comprometeu-se com a noção dinâmica de um processo de transformação, em Darwin, esta transformação se torna multidirecional, e seus vínculos com esquemas teleológicos se atenuam. A bio- logia evolucionista trouxe para o estudo dos seres vivos o que a revolução científica e o mecanicismo haviam proposto para a natureza em geral: a substituição de causas fi- nais por causas eficientes imediatas, sendo, neste sentido, uma conquista final desta revolução. Na formulação de Darwin a variação de características hereditárias e a seleção natural causam a adaptação dos organismos ao ambiente. Se tentássemos classificar as causas desta adaptação em um sentido aristotélico, a variação seria uma causa material e a seleção uma causa eficiente. Dificilmente teremos o que oferecer como causa for- 1 Além destes, é importante mencionar J. F. Blumenbach por sua importância na biologia do final do século XVIII (Blumenbach, Beyträge zur Naturgeschichte, de 1790, apud Mayr, 1982) e ainda W. Goethe por sua influência na cultu- ra em geral e no desenvolvimento da morfologia em particular (Goethe, “Erster Entwurf einer allgemeinen Einleitung in die Vergleichende Anatomie”, de 1795, publicado em 1820 em Morphologie, apud Mayr, 1982). 2 A harmonia estática aqui referida é a decorrente dos conceitos de correlação de partes e condições de existência conforme propostos por Cuvier. 186
  • 5. A teleologia na biologia contemporânea mal e causa final. Para Darwin, no espírito do ocidente cristão, teleologia, teologia e desígnio se interconectavam e embora não visse como defender racionalmente o ar- gumento do desígnio, para ele toda a discussão filosófica sobre acaso e propósito era insolúvel e angustiante (Darwin, 1860). Na instância formal de enunciar sua teoria, Darwin não viu como algo de teleológico poderia se encaixar, uma vez que a seleção natural lhe parecia suficiente para explicar a aparente orientação do processo. O fato de a evolução acarretar progresso em termos de um aumento de complexidade seria uma conseqüência do processo como um todo, mas não uma tendência necessária em todos os casos durante todo o tempo. Crer, como alguns de seus contemporâneos, em uma redundante manifestação de finalismo paralela à seleção natural era, para Darwin, ir longe demais. Mais recentemente, o problema da existência ou não de fenômenos teleológicos na biologia se relaciona com os dois tipos de explicação de fenômenos que convivem na biologia: as explicações que nos remetem a causas próximas e as explicações que envolvem causas distantes. Por exemplo, ao perguntarmos porque determinada es- pécie de ave do hemisfério norte inicia sua migração anual em determinada data, po- demos obter duas respostas distintas e igualmente válidas. Uma delas nos dirá que a duração do dia, ao atingir um valor crítico, desencadeia uma resposta hormonal e neu- rológica que inicia a migração. A outra trará informações sobre como a resposta hormonal e neurológica veio a existir, e nos dirá que a espécie adaptou-se à variação sazonal da disponibilidade de alimento sincronizando seu deslocamento com as esta- ções do ano, o que se deu pela reduzida mortalidade das populações que, casualmente, por mutação desenvolveram o comportamento hereditário de se deslocar para o sul. Atualmente, com o conhecimento mais detalhado da fisiologia e de aspectos moleculares dos fenômenos biológicos, as explicações físico-químicas deram tal dominância às causas próximas que a própria idéia de causas distantes ficou enfraquecida. Há, intuitivamente, algo de estranho na explicação que se vale das causas dis- tantes. Ela diz que a migração se dá em outubro para que seja possível encontrar ali- mento em dezembro, ou ainda que uma série de eventos graduais e longínquos no tempo conduziu a uma adaptação no presente; é uma explicação que faz referência a eventos futuros. Este tipo de explicação tem apenas uma possibilidade de não contrariar nossas noções de relação entre causa e efeito, baseadas no fluxo direcional do tempo. Esta possibilidade é incluir a pré-ordenação dos eventos, o que parece exigir outra inclu- são, a da intencionalidade, a da consciência. Creio que esta pequena análise esclarece a jocosa advertência sobre saúde mental e plantas tomando decisões que aparece na ci- tação inicial do Dr. Kramer. Mais do que isso, esta análise evidencia um elemento im- portantíssimo do pensamento moderno, algo que sobreviveu à revolução científica e 187
  • 6. Marcelo Alves Ferreira seu pendor matemático: a distinção qualitativa que fazemos entre ordem e acaso. Somos intuitivamente realistas quanto a isso. É-nos difícil conceber que a percepção que te- mos da ordem possa ter algo de arbitrário. Mais difícil ainda nos parece imaginar que o que chamamos de estados ordenados possa surgir espontaneamente daquilo em que não vemos ordem. Estes pontos de vista subjacentes à axiologia da mentalidade cientí- fica moderna é que tornam necessárias as exigências de pré-ordenação e até de cons- ciência para que as explicações com referência ao futuro sejam pensáveis. Na verdade, são estes pontos de vista que nos fazem formular as explicações finalistas de modo a gerar paradoxos de causalidade. A distinção qualitativa entre ordem e acaso como as- pectos estanques da realidade torna difícil apreender a emergência de complexidade no mundo natural. Se nos ativermos contudo à seleção natural, podemos descrever todo o processo evolutivo sem que a teleologia pareça ameaçar nossa noção de causalidade. As varia- ções populacionais de características físicas ou comportamentais surgem totalmente ao acaso, pela razão puramente física de que o material genético não é perfeitamente estável. Os vários tipos de indivíduos resultantes são selecionados em um sentido to- talmente impessoal: simplesmente alguns terão mais sucesso que outros em sobrevi- ver e se reproduzir em função de suas características físicas e comportamentais. Temos seleção, mas não temos um agente selecionador particular, a totalidade do ambiente seleciona por interações físicas comuns. Quando damos explicações deste tipo, em que só eventos físico-químicos são mencionados, a causalidade linear está preservada, sub- sistindo o problema, nada desprezível, de que estes eventos se dão em matéria viva previamente organizada e que se comporta contemplando fins, de modo teleológico. Uma resposta completa a isto incluiria a maior das questões da biologia, isto é, a ori- gem da vida. Uma resposta não exaustiva contém normalmente explicações e descri- ções de fenômenos biológicos baseadas no conceito de programa. O comportamento finalístico de um sistema é definido em função da existência de um programa interno a este sistema. No caso concreto do programa genético, trata-se de uma entidade cam- biante que antecede o organismo por milhões de anos, cujo funcionamento pressupõe algum grau de continuidade entre o ambiente no qual o programa foi reproduzido e o ambiente ao qual ele responderá. Dessa forma, uma cadeia de eventos naturais faz de- saparecer a exigência intuitiva da inclusão de intencionalidade, restando apenas a pré- ordenação gradual ancorada no traço mais fundamental de qualquer ser vivo, a repro- dução, ou seja a transmissão do programa. A consecução desta versão das causas distantes em biologia corresponde ao projeto normalmente chamado de reducionismo, ou de redução ontológica dos fenômenos biológicos a seus componentes físico-quí- micos. Para alguns, ele representa a tirania da física, para outros, representa a salvação do pensamento racional diante das ameaças do vitalismo e do finalismo. Em termos 188
  • 7. A teleologia na biologia contemporânea menos apaixonados, o reducionismo seria a alternativa ao organicismo e a uma biolo- gia totalmente autônoma. É claro para seus defensores que o reducionismo tem a mis- são de preservar a unidade da ciência. Esse ponto de vista só se tornou possível com a genética molecular, e fez surgir o termo teleonomia, significando a propriedade dos processos orientados a um fim em razão de serem desencadeados por programas estabelecidos no passado. Um processo teleonômico não tem o futuro como causa, não envolve intencionalidade e só envolve fenômenos físicos ordinários, idênticos àqueles dos corpos menos organizados. A esta altura, podemos nos perguntar: por que, diante da formulação teleonômica, a teleologia permaneceria sendo um problema a ser discutido na filosofia da biologia? Vejo pelo menos três razões que não permitem que uma biologia expurgada de qual- quer teleologia se estabeleça em definitivo. A primeira diz respeito ao poder heurístico da física quanto aos fenômenos biológicos, a segunda diz respeito à questionável legi- timidade de se tratar a teleologia como metáfora na biologia, e a terceira diz respeito ao problema do escopo da intencionalidade e da consciência. A primeira razão se contrapõe ao reducionismo, cuja expressão mais crua seja talvez a frase atribuída a Ernest Rutherford que diz que: “toda ciência ou é física ou coleção de selos”. Se entendermos ciência como descrição de fenômenos, não há como responder facilmente a Rutherford e teremos de nos restringir à física, ou seja, tería- mos que acomodar a biologia em uma física expandida. Creio, no entanto, que esta se- ria uma física com uma tal superpopulação de conceitos ad hoc e vagamente definidos que provavelmente terminaríamos com algo como um mapa maior que o território re- presentado. A coleção de selos de Rutherford na verdade é uma coleção de fatos, tais como o surgimento da vida na Terra, da fotossíntese, da respiração aeróbica, dos orga- nismos pluricelulares etc. São fatos que não têm uma conexão estabelecida com as leis físicas, com o modo como a matéria se comporta. Melhor dizendo, é fácil descrever o que ocorre em um organismo em termos físicos, é ainda fácil assim descrever as trans- formações por que o organismo passa em um processo de mutação e seleção, mas des- crever a complexidade já estabelecida não é explicá-la. Estamos aqui diante do proble- ma dos “comos” e dos “porquês”, do problema que fez Aristóteles rejeitar as explicações mecânicas do atomismo. Em uma escala de tempo reduzida, descrever parece perigo- samente com explicar, mas se alargarmos temporalmente os fenômenos, veremos que se trata de explicar a própria vida. A grande dificuldade para o reducionismo é o caráter histórico da biologia, pois o surgimento da vida e o decorrente processo de evolução não são decorrências necessárias do que a física nos diz sobre a matéria. Se nos per- guntamos sobre o que alimenta a objeção dos reducionistas às categorias e conceitos autônomos da biologia, podemos encontrar razões bastante profundas e perturbadoras. Parece-me que as mais importantes seriam a aparente arbitrariedade dessas categorias 189
  • 8. Marcelo Alves Ferreira e a aparente contingência dos objetos a que elas se referem. De novo a coleção de se- los... Entretanto, não é inevitável seguir Rutherford. Podemos simplesmente aceitar o vazio explicativo entre a física e a biologia e suspender o julgamento quanto à autono- mia da segunda. Podemos aceitar este vazio diante do problema científico concreto que é a origem da vida. Se não o fazemos, estamos metafisicamente postulando a vida como uma singularidade no universo. Quanto à legitimidade de apresentarmos explicações em biologia com uma lin- guagem estritamente reducionista, creio que se trata de um procedimento intelectual- mente dúbio. Na verdade trata-se de uma dubiedade metodológica: em um primeiro momento, diante de qualquer fenômeno biológico, as perguntas, para serem pensáveis, envolvem função, propósito e a metáfora de um projeto. Diante do modo de reprodu- ção de uma espécie, das proporções de uma estrutura, ou do padrão de uma migração, ninguém honestamente se pergunta: “Como as mutações nos genes dessa característi- ca vieram a se estabelecer por seleção?” A pergunta efetiva seria “Em que esta caracte- rística serve à sobrevivência, qual sua função?” Visto por outro ângulo, o problema está em supor a priori que a teleologia seja uma metáfora. Como alternativa, podemos nos aproximar de um conceito realista de teleologia com relação à seleção natural. Pode- mos tomar a analogia aristotélica do artífice em termos impessoais. A analogia darwi- nista entre seleção artificial e seleção natural já foi duramente questionada inúmeras vezes; a versão mais forte desse questionamento propõe simplesmente que a seleção natural seja uma tautologia vazia. Segundo esta proposta, tudo o que a seleção natural nos diz é que a evolução ocorre devido à sobrevivência dos indivíduos mais adaptados selecionados pelo meio, e que os biólogos definem adaptação em termos de sucesso reprodutivo e sobrevivência. Em suma, seleção natural seria reduzida à “sobrevivência dos que sobrevivem” (Bethel, 1976). Embora os evolucionistas liguem adaptação ao sucesso reprodutivo e à sobrevivência, isto não é tudo. Há ainda a afirmação de que características físicas e comportamentais concretas e específicas (e portanto empi- ricamente testáveis) são a causa da sobrevivência diferencial, e que características fa- voráveis em uma situação deverão sê-lo em situações semelhantes. Infelizmente isto é freqüentemente deixado como implícito em textos científicos, talvez pelo constrangi- mento de ressaltar algo por demais óbvio do ponto de vista de quem escreve. Dificil- mente se escreve com todas as letras que as características dos indivíduos afetam probabilisticamente sua sobrevivência e reprodução de modo sistemático. O fato de não haver um selecionador consciente identificável na seleção natural não leva a que não haja critérios de seleção. O ambiente é composto por padrões físicos que admitem diferencialmente as interações com organismos. Em contrapartida, o programa gené- tico é o registro acumulado dessas interações. A teleologia pode ser mantida em um sentido forte, além do instrumentalismo. Basta que concedamos que, na analogia 190
  • 9. A teleologia na biologia contemporânea darwinista, ao criador humano de animais corresponda um selecionador difuso e im- pessoal na natureza (cf. Bedau, 1991). Parece conceder muito, mas não é uma perspec- tiva tão assustadora se levarmos em conta que o projetista natural abandonou mais de noventa por cento de seus projetos, que correspondem à extinção global estimada pela paleontologia. Não se trata aqui de hilozoísmo, mas de que o cerne dos fenômenos em questão é a reprodução, um contexto em que a causa final evolutiva e a causa eficiente tendem a se confundir. Nas mais sintéticas definições, a primeira seria a simples con- tinuação do ser vivo pela reprodução a longo prazo, e a segunda seria a própria repro- dução e suas perturbações pelas mutações e pela mortalidade. A questão do escopo da consciência e da intencionalidade é das mais difíceis de se abordar, mas como acarreta conseqüências importantes para a biologia em geral e para a biologia evolutiva em particular, sua conexão com a teleologia não pode ser ig- norada. O texto de Kramer que citei no início deste artigo afirma que “Cientistas po- dem ter objetivos e podem desenvolver estratégias de pesquisa para atingi-los, mas plantas não podem [...]”. Não há como saber as razões exatas de Kramer para ter opta- do por plantas e não por carnívoros ou primatas em sua exemplificação. Talvez por maior efeito cômico, talvez por cautela. Se atenuarmos os contrastes do texto trocando as estratégias de pesquisa por táticas de sobrevivência, e as plantas por animais relativa- mente mais complexos, teremos que pensar na possibilidade de que o comportamento do animal pode ter algum nível de intencionalidade. Mais do que isso, teremos que levar em conta que o comportamento faz parte das pressões seletivas internas a cada organismo, tendo influência sobre a evolução. Obviamente não chegamos a validar a noção de projeto para dar sustentação à teleologia, mas teremos algo mais que um selecionador impessoal difuso no ambiente. Isto já foi examinado por vários teóricos da evolução, tendo sido destacado em textos de Karl Popper como avanços no neodarwinismo (Popper, 1974). Ações conscientes e intencionais acarretam proces- sos teleológicos, como o comportamento humano. Mesmo que ocorrendo com alcance temporal estreito, frações dessas ações tornam os traços de finalismo do processo evolutivo menos impensáveis de uma perspectiva mais ampla. Só podemos considerar a consciência e a intencionalidade como exclusividades humanas em termos ideológicos e não em termos científicos. Além disso, temos que nos lembrar (como não fez Kramer) que o cientista do exemplo do texto inicial é tão objeto de estudo da biologia quanto as plantas o são. A existência de teleologia nos fenômenos de que participa, inclusive a evolução de sua própria espécie, será tão disputável quanto for sua consciência. Uma última consideração sobre a rejeição da teleologia na biologia contempo- rânea se faz necessária. A diferença entre explicações por causas mecânicas imediatas e por causas finais, ou dizendo de outra forma, a diferença entre a abordagem reducio- nista e a organicista vai além dos seus aspectos técnicos ou epistemológicos. Trata-se 191
  • 10. Marcelo Alves Ferreira de explicações em torno do como e do porquê. Quando obtemos respostas acerca de como se dá um fenômeno, podemos chegar a conseqüências úteis do conhecimento. Úteis em um sentido baconiano, de dominação da natureza. Por outro lado, as respos- tas acerca dos porquês se voltam para a satisfação da contemplação da natureza, mais em consonância com a mentalidade dos gregos antigos como Aristóteles ou dos filóso- fos escolásticos. Nos termos de Etienne Gilson, saber por que os pássaros voam não parece aos modernos tão útil quanto saber como eles voam e assim construir máquinas voadoras (Gilson, 1971, apud Lepeltier, 1999). Embora não possamos creditar a rejei- ção ao finalismo apenas a esses valores utilitaristas, não está descartado que eles te- nham o seu papel nela. Marcelo Alves Ferreira Biólogo, pós-graduando do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo, integrante do Projeto Temático “Estudos de filosofia e história da ciência” da FAPESP piktor67@yahoo.com.br abstract The status of teleological thought in contemporary biology entails controversy. The supporters of the reductionist programme in biology strive to eliminate it, whereas instrumental and realist interpreta- tions of the problem seek a justification for its permanence. This article tries to defend the reasons for the permanence of teleological thought, particularly those of realist background. KEYWORDS q Teleology. Finalism. Biology. Function. Reductionism. referências bibliográficas BEDAU, M. A. “Can biological teleology be naturalized?” In: The Journal of Philosophy, 88, 1991, p. 647-55. BETHEL, T. “Darwin’s Mistake.” In: Harper’s Magazine, fev., 1976, p. 70-5. DARWIN, C. The Correspondence of Charles Darwin. Volume 8 - 1860. Cambridge, Cambridge University Press, 1993. GILSON, E. D’Aristote a Darwin et retour - essai sur quelques constantes de la biophilosophie. Paris, Vrin, 1971. KRAMER, P. J. “Misuse of the term ‘strategy’.” In: BioScience, 34, 1984, p. 405. LEPELTIER, T. “Can one do without the notion of finality?” In: Revue de Livres, 1999. URL: http:// assoc.wanadoo.fr/revue.de.livres/, obtido em 14/05/2002. 192
  • 11. A teleologia na biologia contemporânea MAUND, B. “Proper functions and aristotelian functions in biology.” In: Studies in History and Philosophy of the Biological and Biomedical Sciences, 31, 1, 2000, p. 155-78. MAYR, E. The growth of biological thought. Cambridge (Mass.), Harvard University Press, 1982. POPPER, K. “Darwinism as a metaphysical research programme.” In: SCHILPP, P. A. (org.). The philo- sophy of Karl Popper, Volume I. La Salle (Ill.), Open Court, 1974, p.133-43. RUSE, M. “Teleology: yesterday, today, and tomorrow?” In: Studies in History and Philosophy of the Biological and Biomedical Sciences, 31, 1, 2000, p. 213-32. SCHILPP, P. A. (org.). The philosophy of Karl Popper, Volume I. La Salle (Ill.), Open Court, 1974. SPASSOV, S. “Biological teleology in contemporary science.” In: V.V.A.A. Proceedings of the 20th world congress of philosophy. Boston, Paideia Project on-line (University of Boston), 1998. URL: http:// www.bu.edu/wcp/Papers/Scie/ScieSpas.htm, obtido em 14/05/2002. V.V.A.A. Proceedings of the 20th world congress of philosophy. Boston, Paideia Project on-line (University of Boston), 1998. URL: http://www.bu.edu/wcp/index.html WHEWELL, W. Philosophy of the inductive sciences: works in the philosophy of science 1830-1914. Ed. de A. Pyle. Chicago, The University of Chicago Press, 1999. 193