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Tudo começou no longo envelhecer do inverno, gélido e rijo. As nuvens
rabugentas, gritando com a lua, e a chuva pesada encharcara os meus
ombros. Questiono-me porque não tirara o guarda-chuva do bengaleiro, aquele
antigo e dourado bengaleiro com o dálmata de porcelana a proteger. Sempre
que o olho revivo fragmentos da minha meninez em que o coloria e o trazia
debaixo dos meus braços.
       Mas estava particularmente fresco, nem agasalhada me sentira, foi pura
insolência e rebeldia minha. Foi um instinto supérfluo que devia ter calculado.
Mas confesso a elegância da noite, apesar da geada, estava agradavelmente
bom para caminhar e reaver a forma que perdi no Natal passado.

       Desde nova que sinto presenças que me roubam a bonança e o fôlego,
mas aquele vulto negro e nublado que me cercou foi mais que isso, roubou-me
o coração e os sentidos. Foi um fervor incrivelmente abafado e sufocante que
me ocupara o corpo. Calculei que ele estava apenas de passagem, e que seria
apenas uma coincidência – se elas existem – algo que não mais me seria dado
e atirado tão facilmente para as mãos, um reencontro talvez desejado mas
pouco trabalhado. E se um dia o encontrei, ele de olhos azuis, motivados e
destemidos, que tem cabelo dourado, cor de mel torrado. Estupendamente
ousado, com coração cheio e sofisticado. Entrou sem temores pela porta dos
meus braços. Esteve no ponto certo, com o condimento e modos certos, não
mais acrescentaria, talvez mudasse a feição do seu sorriso, tornando-o mais
rasgado e pontiagudo. Ele é um padrão de Deus, ao qual rezo e acredito em
seus bem-feitos e milagres. Milagres dos quais, revelam o horizonte e a
confiança das minhas miragens num deserto alaranjado.
       Puder vê-lo como um reflexo turvo do céu, sentir a sua mão de encontre
ao meu rosto, chamá-lo no silêncio ruidoso do meu pensamento, talvez tenha
aberto e criado aquilo que se crê chamar de fé, fé de querê-lo no limiar dos
meus devaneios. Ele não mais muda, e se algum dia o fizer, se por alguma
circunstância mo retirarem dos braços, eu descansarei, pois sempre que lhe
pedi a mão, ele singelo e frágil, me deu as duas.
        Aquele encontro, em perfeita luz da noite, arrefecida e serena, com o
mar agitado. Com o frenesim das suas mãos, grandes e largas, que me
aprisionaram fortemente e com paixão nos seus braços, braços enormes e
carentes do meu aroma. Eu sentira pelo olhar dele, que teria agido bem, que o
facto de o nosso reconciliar lhe limpara os medos antigos. O ambiente que nos
foi dado, e as bebidas quentes acalmara-nos. Fintava-o sempre que podia, tal
como ele a mim, pois sempre fomos bons ouvintes e interlocutores com os
olhos. O ensinara a ter calma com o mundo, e com a humanidade, deveria lhe
ter dito e falado do orgulho colossal que nunca perdera dele. Ele aprendera
rapidamente, tão veloz como um cavalo de corrida. Pouco fala e dúvidas não
advêm. Não lhe peço muito, pouco menos o mundo, exijo-lhe sentido de ordem
e gosto pelo seu espírito, pela sua consciência e inteligência. Ensinara-o a
avaliar a sua baixa auto-estima, baixa no sentido de débil, pois ele sempre fora
um homem bem-parecido e elegante, ligeiramente magro mas forte, com força
de invocar todas as energias. Ele conseguira ser muito com tão pouco que lhe
deram e lhe tiravam com o seu desenvolvimento. Um homem com o sentido


                                       1
prático apurado, e pouco dado ao teórico, sempre o caracterizara como sendo
profundo e íntimo do seu próprio toque.
       Com aquele sorriso que desorienta os atalhos do mundo, me levara ao
éden sem fim, infinito. Me recolhera do oásis mediterrânico, completo e quente,
agradavelmente sufocante, oriundo do picante extremo da sua boca. Ele
voltara com meias e demoradas reviravoltas, sem medidas ou contestações,
voltara outro e desigual, com o espírito sereno e o ritmo apressado. Fugiu mas
não se entregou ao céu sem mim, ele me queria no limiar e no patamar do seu
pescoço, onde o pecado da tentação carnal lhe escapara do controlo que eu
domino, escapara dos lábios e me revistara o corpo.
       O despira sem ele saber, enquanto dormia, rasgara-lhe as roupas que
lhe resguardaram o coração, tirara-lhe a pele e os músculos ficando com os
seus ossos, ossos fortes dos quais são os meus pilares, esses mesmo pilares
que amanha serão os meus vitrais prontos para reflectir a luz do sol em tons e
valores discrepantes. Amanha enquanto ele acorda, seus olhos não abrirão,
não enquanto eu intervier em cada fechar das pálpebras, onde a minha
imagem não desaparece, onde a força do meu amor por ele vence as
derrocadas das montanhas e os nevões das serras.
       Terei lugar na nuvem mais agasalhada do céu, e não deixarei que ele
salte de nuvem em nuvem, pois a minha é maior que qualquer outra é
soberana nele, e será a mais clara num céu azul, céu esse que pertence aos
seus olhos. Ontem lhe fechei as portas do coração, fechei-as com vigor e com
barulho, um estrondo que ecoou no meu peito, descabido e impotente, perdeu
a força e a firmeza. Mas hoje o reacendi onde mais longe ele chegou, não no
fundo mas em todo o meu coração. Neste culminar incessante de sentir aquilo
que nos desperta a memória para factos infelizes, tristes ao ponto de
vagarosamente me degolar aos poucos e em cheio, num alvo avermelhado em
carne viva.
      Meu coração foi atingido pela seta larga e comprida do seu apaixonante
cupido, que as mãos dele não negam tal encarnação. Hoje poderia ter o seu
rasto nos meus lençóis, onde o sabor dele vencia os paladares salgados
insonsos dos meus dedos. Sei que ele vê perante o silencio das minhas
lágrimas, que tem um dom instintivo e risca quem e onde me deixei ficar. Sei
que ele apaga as luzes da rua quando não consigo adormecer, que cala o
barulho monótono e silencioso da noite para puder me envolver com a cama
grande e solitária - não para um corpo só - onde descanso fielmente com o seu
coração indomesticável nas mãos. Sei que ele me protege dos monstros que
me perseguem debaixo da cama, aqueles que me amedrontam sempre que ele
vai embora, e me deixa à mercê deles. Notei que ele aquece o frio gélido dos
meus olhos, e que deixa ferver o ambiente do meu ninho, onde o fiz sentir,
embora em ocasiões, a magia de ter e não mais perder.
       Levitei sem ajudas, perante a sua magia, magia de meditar o meu
espírito, ao qual se encanta e desenha pelo divino sem fim que se define pelo
seu ar cúmplice do meu tentador atrevimento ousado por ele, em cada
pequena proibição do pecado, singelo e promíscuo do nosso amor. Ele
caminhou livremente pelas bordas do chocolate quente que me preenche a
gosto a minha boca, criando efeitos resplandecentes e sensuais, até ao apogeu
da sedução, onde o deixei criar caprichos e quimeras reais em pedaços

                                      2
temporários do contentamento autêntico, puro e duro ao qual se chama amor, e
ao qual levanta questões racionais.
       Decididamente lhe caracterizava como um deus dono de um vulcão,
quente e activo para erupções, fervilha e explode com facilidade, possui uma
lava espessa e delicadamente quente onde queima e mata, seja de desejo ou
sofrimento. E culpo-o de me roubar o sono, em plena noite graciosa e boémia
que me chama para a vida em outra grandeza, onde a consciência é deixada a
arder no inferno sob o seu vulcão.
       Calculo que a minha falta de controlo, se domine e hipnotize pelo calmo
pacífico e azul dos seus olhos, cor de mar salgado, com um pouco de areia
vertendo no fundo, e o fundo será negro? Tão negro quanto o poço de
chocolate escaldante e estimulante que ele derretera com o olhar. Aquela
extravagância de algemar o que lhe surte provocantes efeitos, dos quais não
orienta, e se deixara ir, num compasso ritmado, pelo barulho do seu coração
enfraquecido.
       Deveria o ter avisado do desastre que crio na minha alma, o género de
hipérboles que me levam ao descalabro, o declínio das fronteiras que nos
afastam entre o oceano filósofo e maduro. O sábio caminhar tão e mais
piedoso que o nosso próprio olhar. Ele não deveria ter invadido o meu barco de
contrafeitas confianças, ele poderia se ter afogado no rio supérfluo e gélido da
minha boca, não o quis tentar, e se o seduzi foi meu corpo a querer
experimentar, se o satisfiz com meu firme encanto magnético, não o implorei,
foi meu congénito acto natural. Se ele me suplicou que não destruísse nem
sepultasse a clareira e a cascata do nosso sacrificado amor, amor eterno, que
arde e congela o coração, não mais vacilarei em me apaixonar por cada
pedaço e cada rasto dele, que navega junto ao mar.
       Ele tem algo que me atrai e seduz o juízo, abrasa e derrete tudo o que
aquece. E se ele me deseja, se me vê sempre que fecha os olhos, ou até
mesmo se me sente a pegar na sua mão antes de adormecer, confesso que eu
realmente apareço em vagas decadências da sua memória, e quando repousa
na cama e se deixa levar pela tentação de fugir à humanidade, eu cumpro
minha jura de o levantar, erguer a sua cabeça e que não mais se humilhe com
baixos choros, pequenos e delicados pontos fracos que o ferem e comem o
coração. O olhar amargo que me foge das mãos, não mais que um coração
partido, gélidas palavras e rasos olhares. Apenas vai pelo trilho dos meus
braços, e assim eu, somente, levo-o de defronte ao melhor e ao proveito do
mundo. Sou capaz de fazer com que não se esqueça que amanha é outro dia,
do qual eu sou o fruto proibido, ousado e perdido.
       Ele que caminha no horizonte do Olimpo, que entristece cada pedaço de
sombra, muda rotas e rumos do meu destino, e porque será? Não chega pisar
meu ego, e deitar fora meu sorriso, ainda pega no mundo e pendura-lo nos
meus ombros. Não sei se lhe chame amor ou apenas obsessão sua, e não sei
como me posso ver a seus olhos, se mos fecha. Como me aguento? Viajando
sempre que falo dele, isso basta para repor as energias, tal e qual como se ele
fosse o céu. Um céu sempre azul, sem nuvens nem chuva, um pouco difícil de
calar os trovões, mas que céu seria ele se me negasse o sol? E eu que mar
seria se não lhe deixasse deitar ou nascer em mim? Que mar seria eu se não
tivesse a sua presença sobre mim, não seria monótona a vida do mundo sem a

                                       3
nossa junção? É difícil esquecer tal facto, esse mesmo facto que nos
perseguirá até ao fim, eu nunca deixarei de ser aquilo que ele me reflecte, tal
como o seu céu reflecte sob o meu mar, algo mais puro do que límpido,
pacífico e eterno. E nem mesmo uma maré cheia, ou uma tempestade sua,
tornaria o nosso amor menos perfeito. Nem um fraquejar do sol, nem uma onda
alta, dominaria algo que nosso coração controla. Ele pode virar o sol, e deixar
ficar o cinzento das nuvens, mas uns dos meus tsunamis davam a volta ao
mundo à procura do seu calor novamente. Não me falta força de mover
mundos e fundos, verter as almas de quem não acredita, afundar todos os
navios para ele me olhar de novo.
       Enquanto dormíamos juntos, na cama pequena e estreita, onde os seus
braços me cercaram a cabeça e as suas mãos se prolongaram para além dos
ombros. Confesso-lhe que foi bom adormecer com a sua pele e com a sua
imagem nos meus olhos, acordar e sorrir para ele sabendo que estava ali e não
saíra mais, que sou sua prioridade e o seu o seu coração. Foi bom quando ele
me amarrava com força entre o pescoço, embora ele não estivesse consciente
tomo esse acto como uma reacção da sua parte, uma forma de me segurar
para não mais cair.
       E no entanto a fé não resulta da minha esperança contínua por ele, ele
constituiu o sabor da amargura do meu sofrido paladar. Com ele existe a
tendência para perder o interesse pessoal e vê-lo como meu pesar da
consciência distinta do fogo do seu coração. Ele com o tempo sagrado que nos
fez voar, conseguiu destruir o inferno do mundo, conseguiu com que o céu
fosse sempre um caminho e uma vantagem para guardar na gaveta do meu
íntimo. Sem ele a objectividade da interpretação do meu estilo de vida, perde-
se num conjunto de rituais e rotinas, modelares e nómadas. Ele encontra-me
onde o choro toca no riso, espera-me onde e com a aventura que preciso, onde
o mundo começa e onde a felicidade tem pernas.
       Enquanto o admirava na cama minúscula, a sua pele se salientava, onde
as veias se comiam umas às outras, pressenti o nervosismo à flor da pele, o
folgar prolongado da respiração incontrolável. Presumi então que o matava aos
poucos, que a minha historia tórrida entre e com ele lhe provocara enumeras
sensações mortais que lhe dissecavam o espírito. Afastei-me minuciosamente,
sem o consentimento dele, fui-me como o vento se perde nas serras, onde a
esperança é vencida pelas derrocadas da chuva. Senti pena mas felizmente
não passara disso. Com ou sem ele me sigo nos passos fugidios do diabo, com
ou sem a terra debaixo dos meus pés.
       Voltei às raízes da minha origem, larguei aquela terra a que chamara
“casa” e uma nova etapa me salvara, um longo pesar abateu sobre mim, ele
tinha sumido, como se nunca tivesse existido, tinha se varrido como a poeira.
       Aproximei-me então do meu novo canto, onde o mar é a primeira vista
da janela e nesta época o mar é bravo e a areia, a tomara como apenas terra
desfeita. Nem mesmo um forte chocolate quente me aquecera o corpo, frio e
pálido, ausente daquele homem que criara à semelhança do meu coração.
Nunca mais o procurara, e a coragem de um telefonema desaparecera, fugi e
arrependo-me, pois todos os dias me deparara a ouvir à mesma hora as
mesmas mensagens de voz que ele me enchera nas desesperadas manhas
longe dele.

                                      4
Assumi a culpa de deixar para trás a hipótese de ter uma família, com
três pequenos rapazes a gritar e a pedir o novo jogo de consola ou o novo
carro de brincar, descartei a possibilidade de ter um marido presente de boas
famílias, bons actos e bom salário. Ignorei a ideia de ter um casamento divino
com um vestido branco titânio comprido e um véu bege presenteado de uma
tiara de ouro branco. Para não falar que desperdicei uma lua-de-mel entre a
Índia e o Brasil, terras quentes e deleitosas. Fugi da casa de sonho, grande e
com piscina interior.
      Fi-lo, deixei-o e magoei-o, morro de pensar, morro de o ter deixado. Hoje
o quero, o preciso e o amo. Mas peço desculpa a impertinência, mas este
romance nunca terá fim!




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O fim e o início
 

Romance

  • 1. Tudo começou no longo envelhecer do inverno, gélido e rijo. As nuvens rabugentas, gritando com a lua, e a chuva pesada encharcara os meus ombros. Questiono-me porque não tirara o guarda-chuva do bengaleiro, aquele antigo e dourado bengaleiro com o dálmata de porcelana a proteger. Sempre que o olho revivo fragmentos da minha meninez em que o coloria e o trazia debaixo dos meus braços. Mas estava particularmente fresco, nem agasalhada me sentira, foi pura insolência e rebeldia minha. Foi um instinto supérfluo que devia ter calculado. Mas confesso a elegância da noite, apesar da geada, estava agradavelmente bom para caminhar e reaver a forma que perdi no Natal passado. Desde nova que sinto presenças que me roubam a bonança e o fôlego, mas aquele vulto negro e nublado que me cercou foi mais que isso, roubou-me o coração e os sentidos. Foi um fervor incrivelmente abafado e sufocante que me ocupara o corpo. Calculei que ele estava apenas de passagem, e que seria apenas uma coincidência – se elas existem – algo que não mais me seria dado e atirado tão facilmente para as mãos, um reencontro talvez desejado mas pouco trabalhado. E se um dia o encontrei, ele de olhos azuis, motivados e destemidos, que tem cabelo dourado, cor de mel torrado. Estupendamente ousado, com coração cheio e sofisticado. Entrou sem temores pela porta dos meus braços. Esteve no ponto certo, com o condimento e modos certos, não mais acrescentaria, talvez mudasse a feição do seu sorriso, tornando-o mais rasgado e pontiagudo. Ele é um padrão de Deus, ao qual rezo e acredito em seus bem-feitos e milagres. Milagres dos quais, revelam o horizonte e a confiança das minhas miragens num deserto alaranjado. Puder vê-lo como um reflexo turvo do céu, sentir a sua mão de encontre ao meu rosto, chamá-lo no silêncio ruidoso do meu pensamento, talvez tenha aberto e criado aquilo que se crê chamar de fé, fé de querê-lo no limiar dos meus devaneios. Ele não mais muda, e se algum dia o fizer, se por alguma circunstância mo retirarem dos braços, eu descansarei, pois sempre que lhe pedi a mão, ele singelo e frágil, me deu as duas. Aquele encontro, em perfeita luz da noite, arrefecida e serena, com o mar agitado. Com o frenesim das suas mãos, grandes e largas, que me aprisionaram fortemente e com paixão nos seus braços, braços enormes e carentes do meu aroma. Eu sentira pelo olhar dele, que teria agido bem, que o facto de o nosso reconciliar lhe limpara os medos antigos. O ambiente que nos foi dado, e as bebidas quentes acalmara-nos. Fintava-o sempre que podia, tal como ele a mim, pois sempre fomos bons ouvintes e interlocutores com os olhos. O ensinara a ter calma com o mundo, e com a humanidade, deveria lhe ter dito e falado do orgulho colossal que nunca perdera dele. Ele aprendera rapidamente, tão veloz como um cavalo de corrida. Pouco fala e dúvidas não advêm. Não lhe peço muito, pouco menos o mundo, exijo-lhe sentido de ordem e gosto pelo seu espírito, pela sua consciência e inteligência. Ensinara-o a avaliar a sua baixa auto-estima, baixa no sentido de débil, pois ele sempre fora um homem bem-parecido e elegante, ligeiramente magro mas forte, com força de invocar todas as energias. Ele conseguira ser muito com tão pouco que lhe deram e lhe tiravam com o seu desenvolvimento. Um homem com o sentido 1
  • 2. prático apurado, e pouco dado ao teórico, sempre o caracterizara como sendo profundo e íntimo do seu próprio toque. Com aquele sorriso que desorienta os atalhos do mundo, me levara ao éden sem fim, infinito. Me recolhera do oásis mediterrânico, completo e quente, agradavelmente sufocante, oriundo do picante extremo da sua boca. Ele voltara com meias e demoradas reviravoltas, sem medidas ou contestações, voltara outro e desigual, com o espírito sereno e o ritmo apressado. Fugiu mas não se entregou ao céu sem mim, ele me queria no limiar e no patamar do seu pescoço, onde o pecado da tentação carnal lhe escapara do controlo que eu domino, escapara dos lábios e me revistara o corpo. O despira sem ele saber, enquanto dormia, rasgara-lhe as roupas que lhe resguardaram o coração, tirara-lhe a pele e os músculos ficando com os seus ossos, ossos fortes dos quais são os meus pilares, esses mesmo pilares que amanha serão os meus vitrais prontos para reflectir a luz do sol em tons e valores discrepantes. Amanha enquanto ele acorda, seus olhos não abrirão, não enquanto eu intervier em cada fechar das pálpebras, onde a minha imagem não desaparece, onde a força do meu amor por ele vence as derrocadas das montanhas e os nevões das serras. Terei lugar na nuvem mais agasalhada do céu, e não deixarei que ele salte de nuvem em nuvem, pois a minha é maior que qualquer outra é soberana nele, e será a mais clara num céu azul, céu esse que pertence aos seus olhos. Ontem lhe fechei as portas do coração, fechei-as com vigor e com barulho, um estrondo que ecoou no meu peito, descabido e impotente, perdeu a força e a firmeza. Mas hoje o reacendi onde mais longe ele chegou, não no fundo mas em todo o meu coração. Neste culminar incessante de sentir aquilo que nos desperta a memória para factos infelizes, tristes ao ponto de vagarosamente me degolar aos poucos e em cheio, num alvo avermelhado em carne viva. Meu coração foi atingido pela seta larga e comprida do seu apaixonante cupido, que as mãos dele não negam tal encarnação. Hoje poderia ter o seu rasto nos meus lençóis, onde o sabor dele vencia os paladares salgados insonsos dos meus dedos. Sei que ele vê perante o silencio das minhas lágrimas, que tem um dom instintivo e risca quem e onde me deixei ficar. Sei que ele apaga as luzes da rua quando não consigo adormecer, que cala o barulho monótono e silencioso da noite para puder me envolver com a cama grande e solitária - não para um corpo só - onde descanso fielmente com o seu coração indomesticável nas mãos. Sei que ele me protege dos monstros que me perseguem debaixo da cama, aqueles que me amedrontam sempre que ele vai embora, e me deixa à mercê deles. Notei que ele aquece o frio gélido dos meus olhos, e que deixa ferver o ambiente do meu ninho, onde o fiz sentir, embora em ocasiões, a magia de ter e não mais perder. Levitei sem ajudas, perante a sua magia, magia de meditar o meu espírito, ao qual se encanta e desenha pelo divino sem fim que se define pelo seu ar cúmplice do meu tentador atrevimento ousado por ele, em cada pequena proibição do pecado, singelo e promíscuo do nosso amor. Ele caminhou livremente pelas bordas do chocolate quente que me preenche a gosto a minha boca, criando efeitos resplandecentes e sensuais, até ao apogeu da sedução, onde o deixei criar caprichos e quimeras reais em pedaços 2
  • 3. temporários do contentamento autêntico, puro e duro ao qual se chama amor, e ao qual levanta questões racionais. Decididamente lhe caracterizava como um deus dono de um vulcão, quente e activo para erupções, fervilha e explode com facilidade, possui uma lava espessa e delicadamente quente onde queima e mata, seja de desejo ou sofrimento. E culpo-o de me roubar o sono, em plena noite graciosa e boémia que me chama para a vida em outra grandeza, onde a consciência é deixada a arder no inferno sob o seu vulcão. Calculo que a minha falta de controlo, se domine e hipnotize pelo calmo pacífico e azul dos seus olhos, cor de mar salgado, com um pouco de areia vertendo no fundo, e o fundo será negro? Tão negro quanto o poço de chocolate escaldante e estimulante que ele derretera com o olhar. Aquela extravagância de algemar o que lhe surte provocantes efeitos, dos quais não orienta, e se deixara ir, num compasso ritmado, pelo barulho do seu coração enfraquecido. Deveria o ter avisado do desastre que crio na minha alma, o género de hipérboles que me levam ao descalabro, o declínio das fronteiras que nos afastam entre o oceano filósofo e maduro. O sábio caminhar tão e mais piedoso que o nosso próprio olhar. Ele não deveria ter invadido o meu barco de contrafeitas confianças, ele poderia se ter afogado no rio supérfluo e gélido da minha boca, não o quis tentar, e se o seduzi foi meu corpo a querer experimentar, se o satisfiz com meu firme encanto magnético, não o implorei, foi meu congénito acto natural. Se ele me suplicou que não destruísse nem sepultasse a clareira e a cascata do nosso sacrificado amor, amor eterno, que arde e congela o coração, não mais vacilarei em me apaixonar por cada pedaço e cada rasto dele, que navega junto ao mar. Ele tem algo que me atrai e seduz o juízo, abrasa e derrete tudo o que aquece. E se ele me deseja, se me vê sempre que fecha os olhos, ou até mesmo se me sente a pegar na sua mão antes de adormecer, confesso que eu realmente apareço em vagas decadências da sua memória, e quando repousa na cama e se deixa levar pela tentação de fugir à humanidade, eu cumpro minha jura de o levantar, erguer a sua cabeça e que não mais se humilhe com baixos choros, pequenos e delicados pontos fracos que o ferem e comem o coração. O olhar amargo que me foge das mãos, não mais que um coração partido, gélidas palavras e rasos olhares. Apenas vai pelo trilho dos meus braços, e assim eu, somente, levo-o de defronte ao melhor e ao proveito do mundo. Sou capaz de fazer com que não se esqueça que amanha é outro dia, do qual eu sou o fruto proibido, ousado e perdido. Ele que caminha no horizonte do Olimpo, que entristece cada pedaço de sombra, muda rotas e rumos do meu destino, e porque será? Não chega pisar meu ego, e deitar fora meu sorriso, ainda pega no mundo e pendura-lo nos meus ombros. Não sei se lhe chame amor ou apenas obsessão sua, e não sei como me posso ver a seus olhos, se mos fecha. Como me aguento? Viajando sempre que falo dele, isso basta para repor as energias, tal e qual como se ele fosse o céu. Um céu sempre azul, sem nuvens nem chuva, um pouco difícil de calar os trovões, mas que céu seria ele se me negasse o sol? E eu que mar seria se não lhe deixasse deitar ou nascer em mim? Que mar seria eu se não tivesse a sua presença sobre mim, não seria monótona a vida do mundo sem a 3
  • 4. nossa junção? É difícil esquecer tal facto, esse mesmo facto que nos perseguirá até ao fim, eu nunca deixarei de ser aquilo que ele me reflecte, tal como o seu céu reflecte sob o meu mar, algo mais puro do que límpido, pacífico e eterno. E nem mesmo uma maré cheia, ou uma tempestade sua, tornaria o nosso amor menos perfeito. Nem um fraquejar do sol, nem uma onda alta, dominaria algo que nosso coração controla. Ele pode virar o sol, e deixar ficar o cinzento das nuvens, mas uns dos meus tsunamis davam a volta ao mundo à procura do seu calor novamente. Não me falta força de mover mundos e fundos, verter as almas de quem não acredita, afundar todos os navios para ele me olhar de novo. Enquanto dormíamos juntos, na cama pequena e estreita, onde os seus braços me cercaram a cabeça e as suas mãos se prolongaram para além dos ombros. Confesso-lhe que foi bom adormecer com a sua pele e com a sua imagem nos meus olhos, acordar e sorrir para ele sabendo que estava ali e não saíra mais, que sou sua prioridade e o seu o seu coração. Foi bom quando ele me amarrava com força entre o pescoço, embora ele não estivesse consciente tomo esse acto como uma reacção da sua parte, uma forma de me segurar para não mais cair. E no entanto a fé não resulta da minha esperança contínua por ele, ele constituiu o sabor da amargura do meu sofrido paladar. Com ele existe a tendência para perder o interesse pessoal e vê-lo como meu pesar da consciência distinta do fogo do seu coração. Ele com o tempo sagrado que nos fez voar, conseguiu destruir o inferno do mundo, conseguiu com que o céu fosse sempre um caminho e uma vantagem para guardar na gaveta do meu íntimo. Sem ele a objectividade da interpretação do meu estilo de vida, perde- se num conjunto de rituais e rotinas, modelares e nómadas. Ele encontra-me onde o choro toca no riso, espera-me onde e com a aventura que preciso, onde o mundo começa e onde a felicidade tem pernas. Enquanto o admirava na cama minúscula, a sua pele se salientava, onde as veias se comiam umas às outras, pressenti o nervosismo à flor da pele, o folgar prolongado da respiração incontrolável. Presumi então que o matava aos poucos, que a minha historia tórrida entre e com ele lhe provocara enumeras sensações mortais que lhe dissecavam o espírito. Afastei-me minuciosamente, sem o consentimento dele, fui-me como o vento se perde nas serras, onde a esperança é vencida pelas derrocadas da chuva. Senti pena mas felizmente não passara disso. Com ou sem ele me sigo nos passos fugidios do diabo, com ou sem a terra debaixo dos meus pés. Voltei às raízes da minha origem, larguei aquela terra a que chamara “casa” e uma nova etapa me salvara, um longo pesar abateu sobre mim, ele tinha sumido, como se nunca tivesse existido, tinha se varrido como a poeira. Aproximei-me então do meu novo canto, onde o mar é a primeira vista da janela e nesta época o mar é bravo e a areia, a tomara como apenas terra desfeita. Nem mesmo um forte chocolate quente me aquecera o corpo, frio e pálido, ausente daquele homem que criara à semelhança do meu coração. Nunca mais o procurara, e a coragem de um telefonema desaparecera, fugi e arrependo-me, pois todos os dias me deparara a ouvir à mesma hora as mesmas mensagens de voz que ele me enchera nas desesperadas manhas longe dele. 4
  • 5. Assumi a culpa de deixar para trás a hipótese de ter uma família, com três pequenos rapazes a gritar e a pedir o novo jogo de consola ou o novo carro de brincar, descartei a possibilidade de ter um marido presente de boas famílias, bons actos e bom salário. Ignorei a ideia de ter um casamento divino com um vestido branco titânio comprido e um véu bege presenteado de uma tiara de ouro branco. Para não falar que desperdicei uma lua-de-mel entre a Índia e o Brasil, terras quentes e deleitosas. Fugi da casa de sonho, grande e com piscina interior. Fi-lo, deixei-o e magoei-o, morro de pensar, morro de o ter deixado. Hoje o quero, o preciso e o amo. Mas peço desculpa a impertinência, mas este romance nunca terá fim! 5