Este documento apresenta um estudo sobre o impacto do apoio das organizações da Aliança ACT no Brasil ao movimento e às comunidades quilombolas entre 1996 e 2009. O estudo inclui:
1) Uma introdução sobre o contexto histórico e legal da questão quilombola no Brasil.
2) Cinco estudos de caso de comunidades quilombolas apoiadas: São Francisco do Paraguaçu, Marambaia, Baixo Sul da Bahia, comunidades do Rio Grande do Sul e Maranhão.
3) Uma análise
2. MARA VANESSA FONSECA DUTRA (Org.)
DIREITOS
QUILOMBOLAS:
Um estudo do impacto da
cooperação ecumênica
Rio de Janeiro
KOINONIA Presença Ecumênica e Serviço
2011
3.
4.
5. Esta publicação foi feita a partir do relatório final do estudo de impacto sobre o apoio das organizações da Aliança ACT no
Brasil ao movimento e às comunidades quilombolas, encerrado em agosto de 2011.
Pesquisa, texto e edição: Mara Vanessa Fonseca Dutra
Texto histórico: Lúcia Andrade
Revisão: Carla Borges, Lucyvanda Moura e Beatriz de Souza Lima
Transcrição de gravações: Beatriz de Souza Lima
Projeto gráfico e diagramação: Renato Palet
Fotos: Duca Lessa (Comunidades do Rio Grande do Sul), Jota Santos (Maranhão), Marisol Soto Romero (Baixo Sul da Bahia e São Francisco
do Paraguaçu), Zezzynho Andraddy (Marambaia). Algumas fotos da Parte III são do acervo de Koinonia, do acervo do CAPA, do acervo da CPP
e de Mara Vanessa F. Dutra.
Produção gráfica: Centro de Estudos Bíblicos - CEBI
Organizações participantes:
Coordenadoria Ecumênica de Serviço/CESE – Eliana Rolemberg (Diretora Executiva), Alonso Roberts, Augusto Santiago “Caju” Rosana Fer-
,
nandes (Assessores).
KOINONIA Presença Ecumênica e Serviço – Rafael Soares de Oliveira (Diretor Executivo) e Ana Gualberto (Assessora).
Fundação Luterana de Diaconia/FLD – Carlos Gilberto Bock (Secretário Executivo), Dezir Garcia (Assessor Administrativo), Juliana Mazura-
na (Assessora de Projetos), Susanne Buchweitz (Assessora de Comunicação). CAPA-Sul – Rita Surita (Coordenadora), Antonio Leonel Rodrigues
Soares, Claudio Pinto Nunes, Daniel Roberto Soares, Daniela Silveira Lessa, Eduardo Medeiros de Medeiros, Islair Radtke (Equipe Técnica).
Christian Aid: Mara Manzoni Luz (Representante no Brasil), Caroline Garcia (Assessora de Performance do Programa da América Latina e
Caribe) e Aidan Timlin (Responsável pela Estratégia Corporativa & Performance).
EED: Luciano Wolff (Responsável pelo Programa do Brasil)
As equipes das entidades envolvidas criaram comissões, uma nacional e outra internacional, para coordenar o trabalho.
Pessoas entrevistadas:
São Francisco do Paraguaçu: Agnaldo Neves dos Santos, Alexandro dos Santos, Antonio Tiago Cruz de Carvalho, Rosimeire Gomes
Garcia (Babi), José Lopes Conceição (Brama), Celcidinha, Crispim Antonio Carvalho, Crispim dos Santos (Rabicó), Dionice de Santana (D. Bibiu),
Demevaldo dos Santos , Eugênio dos Santos Sena, Fábio Ferreira de Jesus, Maria Lúcia dos Santos Gomes, Onildo, Ozório Brito, Teodoro Brito,
Railda de Santana, Vitória Gomes da Cruz, e outros membros da comunidade. Assessora da Comissão Pastoral da Pesca: Maria José Pacheco.
Marambaia: Alessandra Saturnino, Bárbara Guerra, Beatriz Inocêncio (Biá), Cristina, Dionato de Lima Eugênio (Seu Naná), Guido Eugênio,
Joeci Gomes do Nascimento Eugênio, Mara Elisabeth Machado Barbosa, Monique Alves, Nilton Carlos Alves, Sônia Maria Machado, Vânia Guer-
ra e outras pessoas da comunidade. José Mauricio Arruti, antropólogo e professor da PUC-RJ. Daniel Sarmento, procurador do Ministério Público
Federal. Advogadas da ONG Mariana Crioula: Aline Lopes e Ana Cláudia Diogo Tavares . Representante da Conaq: Ronaldo dos Santos.
Baixo Sul da Bahia: Ana Célia dos Santos Pereira, Andrea Mendes do Rosário, Carla Damiana, Domingos da Hora (Domão), Jerônimo (Seu
Caboclo), Joerlindo, José Ramos, Joseildo do Rosário, Maria Andrelice Silva dos Santos (Del), Maria da Hora, Marilene Silva dos Santos, Martinho,
Reginaldo, Renilda Ramos de Souza, Seu Bonfim (Domingos), Silvia Regina Ramos de Souza, Virgínia Santos (Dona Moça)
Comunidades do Rio Grande do Sul: Torrão: Alessandra, Arlete, Cleusa, Darci, Geneci, Graciano, José, Lurdes Helena, Mara, Márcia, Nil-
za, Salvonei. Monjolo: Darci, Deleci, Erasmo, Ilaine, Jairo, Jerri, Jorge, Margarete, Noêmia, Rosangela, Rosaura, Valnei. Cerro das Velhas: Libânia de
Matos e Roberto de Matos. Maçambique: Carmem, Dilma, Eliane, Juslaine, Jussara, Maria de Lurdes, Maria Jaci, Maria Joana, Maria, Olga, Sandra.
Emater: Karin Peglow. MDA: Carla Rech.
Maranhão: Centro de Cultura Negra (CCN): Raimundo Maurício Matos Paixão, Ivan Rodrigues Costa, Maria do Socorro Guterres, Ana
Amélia Bandeira Barros. Sociedade Maranhense de Defesa dos Direitos Humanos: Luís Antônio Pedrosa. Ministério Público Federal: Alexandre
Silva Soares. Conselho Estadual da Igualdade Etnicorracial: Luiz Alves Ferreira. Ex-Secretário Adjunto da Secretaria Extraordinária da Igualdade
Racial (Gov. Jackson Lago): Silvio Bembém. Aconeruq: Ivo Fonseca Silva, Justo Evangelista, Maria de Jesus (D, Dijé), D. Nice (de Penalva). Soassim:
Gilda. Santa Maria dos Pinheiros: Seu Tinoco e toda a comunidade. Santa Rosa dos Pretos: Anacleta e Libânio Pires. Filipa: D. Nielza.
6. ÍNDICE
Apresentação ........................................................................................................................... 9
Casos estudados ...................................................................................................................... 11
Parte I: HISTÓRICO E CONTEXTO DA QUESTÃO
QUILOMBOLA NO BRASIL
1. As comunidades quilombolas no Brasil ....................................................................................................................... 16
2. Direito à terra e ao território - marcos legais .............................................................................................................. 19
3. Mobilização para a garantia de direitos ........................................................................................................................ 23
Parte II: ESTUDOS DE CASO:
São Francisco do Paraguaçu ........................................................................................................................................................ 32
Marambaia .............................................................................................................................................................................................. 46
Baixo Sul da Bahia ............................................................................................................................................................................... 58
Comunidades do Rio Grande do Sul ...................................................................................................................................... 72
Maranhão ................................................................................................................................................................................................ 86
Parte III: REFLEXÕES SOBRE O CAMINHO PERCORRIDO,
OS IMPACTOS E SUA SUSTENTABILIDADE
1. Algumas reflexões iniciais ..................................................................................................................................................... 102
2. Principais impactos ................................................................................................................................................................... 104
2.1. Afirmação da identidade e enfrentamento ao racismo .............................................................................. 102
2.2. Direito à terra e ao território - titulação e integridade territorial ........................................................... 107
2.3. Movimento e organização quilombola ................................................................................................................ 110
2.4. Incidência em/sobre políticas governamentais ............................................................................................ 115
2.5. Acesso a serviços e melhoria da qualidade de vida ....................................................................................... 117
3. Contribuição da cooperação ecumênica ..................................................................................................................... 120
Contribuição da Christian Aid e do EED .................................................................................................................... 121
Valor agregado da cooperação ecumênica ................................................................................................................. 122
Impactos das ações diretas das agências em relação às comunidades quilombolas .......................... 124
Sustentabilidade dos impactos e a contribuição da cooperação ecumênica ......................................... 124
A Aliança ACT no Brasil e o apoio aos quilombolas .......................................................126
As Organizações Brasileiras da Aliança ACT e o apoio às comunidades quilombolas ....126
Rsumo executivo ................................................................................................................... 127
Referências bibliográficas ......................................................................................................135
Páginas eletrônicas consultadas .........................................................................................136
7. SIGLAS UTILIZADAS
AATR Associação de Advogados de Trabalhadores Rurais no Estado da Bahia
ABA Associação Brasileira de Antropologia
ABEP Associação Brasileira de Estudos Populacionais
ABIPEME Associação Brasileira de Institutos de Pesquisa de Mercado
ACONERUQ Associação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas do Maranhão
ACQUILERJ Associação de Comunidades Quilombolas do Estado do Rio de Janeiro
ADCT Ato das Disposições Constitucionais Transitórias
ADIN Ação Direta de Inconstitucionalidade
ALERJ Comissão de Meio Ambiente da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro
Amubs Associação dos Municípios do Baixo Sul da Bahia
ARQIMAR Associação de Remanescentes de Quilombo da Ilha da Marambaia
ARQMO Associação das Comunidades Remanescentes de Quilombos do Município de Oriximiná
BNDES Banco Nacional de Desenvolvimento
CADIM Centro de Adestramento da Ilha da Marambaia
CAPA Centro de Apoio ao Pequeno Agricultor
CCN Centro de Cultura Negra do Maranhão
CEAP Centro de Articulação de Populações Marginalizadas
CEDEFES Centro de Documentação Eloy Ferreira da Silva
CEDENPA Centro de Estudos e Defesa do Negro do Pará
CESE Coordenadoria Ecumênica de Serviço
CJP Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de Salvador
CNACNRQ Comissão Nacional Provisória de Articulação das Comunidades Rurais Quilombolas
COHRE Centro pelo Direito à Habitação e contra Despejos
COMIN Conselho de Missão entre Índios
Conaq Comissão Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas
CONIC Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil
CONTAG Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura
CPI-SP Comissão Pró Índio de São Paulo
CPP Comissão Pastoral da Pesca
CPT Comissão Pastoral da Terra
CRQ Comunidade Remanescente de Quilombo
DESC/FASE Projeto de Direitos Econômicos Sociais e Culturais da Federação de Órgãos para Assistência
Social e Educacional
DFID Departamento de Desenvolvimento Internacional (sigla em inglês)
DHESCA Direitos Humanos, Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais
DIS Programa de Desenvolvimento Integral Sustentável
EED Serviço Evangélico de Desenvolvimento (sigla em alemão)
EFA Escola Família Agrícola
ELCA Igreja Evangélica Luterana na América (sigla em inglês)
EMATER Empresa Brasileira de Assistência Técnica e Extensão Rural
FCP Fundação Cultural Palmares
FE Brasil Fórum Ecumênico Brasil
FETAEMA Federação dos Trabalhadores e Trabalhadoras na Agricultura do Estado do Maranhão
FLD Fundação Luterana de Diaconia
GDASI Grupo de Defesa Ambiental e Social de Itacuruçá
8. GTF Fundo de Governança e Transparência (sigla em inglês)
IDH Índice de Desenvolvimento Humano
IDES Instituto de Desenvolvimento Sustentável, ligado à Fundação Odebrecht
IECLB Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil
IN Instrução Normativa
Incra Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária
INEP Instituto Nacional de Ensino e Pesquisa
INESC Instituto de Estudos Socioeconomicos
ITERMA Instituto de Terras do Maranhão
MDA Ministério do Desenvolvimento Agrário
MDS Ministério do Desenvolvimento Social e de Combate à Fome
MEC Ministério da Educação
MMA Ministério do Meio Ambiente
MNU Movimento Negro Unificado
MP Ministério Público
MPF Ministério Público Federal
MST Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra
OAB Ordem dos Advogados do Brasil
OIT Organização Internacional do Trabalho
ONG Organização Não Governamental
OQ Observatório Quilombola
PAA Programa de Aquisição de Alimentos
PAC Programa de Aceleração do Crescimento
PAD Processo de Articulação e Diálogo
PAMN Programa de Apoio ao Movimento Negro
PDT Partido Democrático Trabalhista
PETI Programa de Erradicação do Trabalho Infantil
PIDESC Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais
PMDB Partido do Movimento Democrático Brasileiro
PNAE Programa Nacional de Alimentação Escolar
PPM Pão Para o Mundo
PQRN Projeto Quilombo: Resistência Negra
PT Partido dos Trabalhadores
PVN Projeto Vida de Negro
RENAP Rede Nacional de Advogados Populares
REJU Rede Ecumênica da Juventude
RTID Relatório Técnico de Identificação e Delimitação
SASOP Serviço de Assessoria a Organizações Populares Rurais
SECADI Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão
SEDUC Secretaria de Estado de Educação
SENAR Serviço Nacional de Aprendizagem Rural
SEPPIR Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial da Presidência da República
SEPROMI Secretaria de Promoção da Igualdade Racial do Estado da Bahia
SFP São Francisco do Paraguaçu
SMDDH Sociedade Maranhense de Defesa de Direitos Humanos
STR Sindicato de Trabalhadores Rurais
TI Terra Indígena
UFMA Universidade Federal do Maranhão
9.
10. Apresentação
E
ste estudo tem por ob-
jetivo avaliar o impacto
do apoio das organiza-
ções da Aliança ACT no Brasil
ao movimento e às comunidades
quilombolas desde 1996 até 2009.
Considera-se como impacto a
mudança que permanece e que
faz diferença. A identificação des-
se impacto deve colaborar para
um aprofundamento da compre-
ensão de como as organizações
que compõem a Aliança ACT po-
dem contribuir para a superação
da situação de injustiça social e de
pobreza e para a reflexão sobre de
que forma essa contribuição pode
ser aperfeiçoada.
O estudo contou com o apoio
da Christian Aid e do EED, mem-
bros europeus da Aliança ACT e
foi realizado a partir do trabalho
do Comitê Nacional do Estudo de
Impacto, formado por represen-
tantes das três organizações parti-
cipantes da Aliança ACT no Brasil:
Koinonia – Presença Ecumênica
e Serviço, CESE – Coordenado- uma boa aproximação da situa- e o valor agregado da contribuição
ria Ecumênica de Serviço e FLD ção quilombola no Brasil a partir das agências ecumênicas.
– Fundação Luterana de Diaconia, do trabalho das três organizações A metodologia para identificar
e pela representante do escritório mencionadas. os impactos foi adaptada do mé-
da Christian Aid no Brasil. A proposta metodológica todo da Christian Aid “Fazendo a
A realidade quilombola é tra- consistiu em ouvir as pessoas Diferença”, baseado nas percepções
balhada pelas três instituições. Por nas comunidades e observar as dos beneficiários e de outros atores
isso, e por sua importância históri- mudanças significativas em suas envolvidos sobre as mudanças e,
ca e simbólica na luta pela justiça vidas, especialmente no que se re- sempre que possível, identifican-
social no Brasil, foi escolhida como fere ao direito territorial, com um do a percepção dos entrevistados
tema deste estudo de impacto, com olhar atento às questões de gênero sobre as causas e as formas como
foco no direito territorial. A abor- e à juventude e com vistas a tra- essas ocorreram, com um cuidado
dagem se dá a partir do conceito de çar um olhar comparativo entre especial em relação à contribuição
desenvolvimento transformador, a situação antes e depois da inter- das organizações da Aliança ACT.
que orienta a ação da Aliança ACT, venção. Também buscou captar Para tal utilizou-se entrevistas
e no marco dos Direitos Humanos, em que medida as comunidades semiestruturadas com grupos fo-
Econômicos, Sociais, Culturais e relacionam/atribuem essas mu- cais (uma adaptação da proposta
Ambientais/DHESCA. danças à atuação das organizações de mini-oficinas, da metodologia
A metodologia utilizada foram de apoio. Foram ouvidas, ainda, as citada da Christian Aid); entrevis-
os estudos de caso. Foram selecio- equipes técnicas das organizações tas individuais, complementando
nadas cinco situações distintas, de apoio direto e da Aliança ACT informações com participantes
tanto em relação à localização no Brasil (KOINONIA, CESE, dos grupos focais ou entrevistan-
geográfica quanto à natureza do FLD, CAPA - Centro de Apoio do outros atores; e a observação
problema vivido e da intervenção ao Pequeno Agricultor e CCN em campo: visitas às comunida-
realizada: São Francisco do Para- – Centro de Cultura Negra do des, participação em reuniões e
guaçu (Bahia); Marambaia (Rio de Maranhão); e as coordenações ou outros eventos. Considerou-se
Janeiro); Baixo Sul (Bahia); Mara- diretorias das três organizações apropriado trabalhar de maneira
nhão/Centro de Cultura Negra; brasileiras analisadas e também informal, devido ao fato de nem
e comunidades quilombolas do da Christian Aid e do EED. Tais sempre ser possível reunir todas
Território Sul do Rio Grande do entrevistas abordaram a contri- as pessoas em uma única oficina
Sul. Embora esses cinco casos não buição da cooperação internacio- e por priorizar uma ferramen-
esgotem o panorama, oferecem nal ao tema quilombola no Brasil ta com caráter mais etnográfico,
11. 10
A FLD possui um recorte claro,
com definição geográfica e terri-
torial devido à sua forma e local de
atuação e, por isso, decidiu-se estu-
dar o trabalho do CAPA-Sul, cujo
foco é o desenvolvimento susten-
tável com base na agricultura fami-
liar desenvolvida por comunidades
quilombolas daquela região. Koi-
nonia tem notável incidência em
âmbito nacional e internacional,
com destaque para o Observatório
Quilombola, apresentando possi-
bilidades de aprofundamento em
comunidades no Rio de Janeiro e
na Bahia. A CESE apoia muitas co-
munidades e organizações quilom-
bolas em todo o país por meio do
Programa de Pequenos Projetos,
além de sua atuação estratégica de
advocacy e de comunicação.
A partir desse crivo, procurou-
se identificar os casos que trouxes-
sem mais elementos para a com-
preensão das diversas situações
vivenciadas pelas comunidades
quilombolas hoje no Brasil. Duas
situações foram definidas como
emblemáticas pela reconhecida re-
sistência das comunidades e pelo ta-
manho da desigualdade do enfren-
valorizando os momentos infor- Este documento está estru- tamento pela garantia dos direitos
mais, a observação, as conversas, turado em três partes: a primeira territoriais: Marambaia, no Rio de
o não programado. O foco, nesse refere-se à contextualização da Janeiro (Koinonia) e São Francisco
momento, era captar a percepção questão quilombola no Brasil hoje, do Paraguaçu, na Bahia (CESE).
dos sujeitos envolvidos, que subsi- traçando um rápido histórico e O Maranhão tem relevante
diaria a análise qualitativa. apontando os principais desafios importância histórica para a luta
Os momentos com os grupos para a garantia dos direitos territo- e o movimento quilombola. A
focais foram muito ricos e gera- riais dessas comunidades. A segun- decisão foi de não focalizar em
ram intensos debates. Muitas ve- da é composta pelos cinco estudos uma comunidade específica, mas
zes, o número de participantes, de caso mencionados; e a terceira no trabalho do parceiro institu-
aos poucos, ia crescendo, incor- contém uma reflexão sobre os cional da CESE e da Christian
porando outros interessados da principais aprendizados, desafios Aid, o Centro de Cultura Negra
comunidade. As falas resultantes e recomendações à luz dos casos do Maranhão/CCN, com atuação
das entrevistas individuais estão analisados de forma a contribuir em várias regiões do estado. Além
identificadas ao longo do docu- para o avanço da garantia dos di- disso, considerou-se a realização
mento. No caso das falas retiradas reitos quilombolas no Brasil como do Programa de Apoio ao Mo-
dos grupos focais, são considera- parte da luta por superar a injustiça vimento Negro/PAMN (CESE/
das como coletivas e, portanto, social e a pobreza. EZE1), entre 1996 e 2002.
sem identificação individual. Finalmente, o Baixo Sul da
Para melhor compreensão dos Por que esses casos foram Bahia apresenta uma experiência
casos estudados, foi feita também selecionados? singular: em relativamente pouco
uma revisão de relatórios, publica- A decisão sobre quais situações tempo (desde 2007), um conjun-
ções e outros materiais pertinen- destacar neste estudo considerou to de comunidades negras rurais
tes. Outro cuidado foi fazer um alguns elementos. Como ponto de passa a assumir a identidade qui-
registro fotográfico das comunida- partida, era necessário ter a atuação lombola – que estava sendo “im-
des visitadas. Para isso, fotógrafos direta e recente das organizações posta” pelos governos municipais
locais acompanharam as visitas. envolvidas: CESE, FLD e Koinonia. como forma de angariar recursos
federais – e se organiza para ga-
rantir seus direitos, tornando-se
1
EZE (Evangelische Zentralstelle fur Entwicklungshilfe eV – Associação Evangélica para rapidamente um novo ator políti-
Cooperação em Desenvolvimento) foi um dos componentes que formaram o EED. co coletivo na região.
12. 11
SÃO FRANCISCO DO Marambaia é outro caso em- limitação (RTID) pelo Incra,
PARAGUAÇU OU DO blemático, dessa vez da luta de em 2006.
BOQUEIRÃO (BAHIA) uma comunidade quilombola
São Francisco do Paraguaçu contra o aparato militar do Es- BAIXO SUL DA BAHIA
tornou-se um caso emblemáti- tado, mais precisamente a Ma- Na região chamada de “Cos-
co para o movimento quilom- rinha de Guerra. Marambaia ta do Dendê”, na Bahia, há um
bola no Brasil ao ser alvo de funciona como uma espécie de conjunto de dezoito comu-
polêmica gerada pela grande “teste” para o estado de direito nidades quilombolas com as
mídia para criar opinião pú- no país: de um lado está a co- quais Koinonia trabalha des-
blica contrária aos interesses munidade quilombola, dotada de 2007. Essas comunidades
quilombolas. Uma reportagem de todos os referenciais neces- têm se organizado a partir da
veiculada em maio de 2007 no sários para seu reconhecimento pressão dos governos munici-
horário nobre da TV Globo, legal e a regularização de suas pais, que, no intuito de captar
canal com maior audiência no terras; de outro, o interesse fun- recursos federais destinados
país, acusava a comunidade e diário militar, representando o a comunidades quilombolas,
seus aliados de forjarem um Estado. começaram a “estimular” seu
“falso quilombo”. Essa reporta- A Marinha se utiliza do dis- reconhecimento legal sem que
gem foi parte da onda violenta curso ambientalista para criar elas sequer soubessem do que
de acusações desse tipo contra ou reforçar um argumento de se tratava.
comunidades quilombolas em racismo ambiental, afirmando É relevante notar como o grupo
todo o país e teve forte reper- que a comunidade quilombola de comunidades tem consegui-
cussão negativa na opinião pú- “faveliza” a ilha. A comunidade do se articular, resistir à pressão
blica nacional. foi alvo de campanha da mídia dos governos locais e tornar-se
A CESE vem apoiando a comu- (Jornal O Globo) a partir desse um ator político com voz pró-
nidade de São Francisco do Pa- falso argumento ambientalista. pria. No entanto, essa experiên-
raguaçu por meio do Programa Também está presente neste cia também é representativa das
de Pequenos Projetos, (apoios caso a estratégia de criminali- dificuldades e perigos da “corri-
à Comissão Pastoral da Pesca/ zação: a Marinha utiliza instru- da” desenfreada dos municípios
CPP, que atua diretamente na mentos coercitivos de caráter por recursos federais com base
comunidade desde 2005, e à policial, como os inquéritos, a na declaração da existência de
Associação dos Remanescentes fim de aterrorizar os ilhéus. comunidades quilombolas, que
de Quilombo de São Francisco Koinonia vem atuando em Ma- consiste em um evidente mau
do Paraguaçu – Boqueirão), e rambaia desde 2002, apoiando uso do instrumento de autoa-
de ações de comunicação e de a organização e a luta dos qui- tribuição e gera sérios atrope-
advocacy. lombolas e levando o caso para los no processo de apropriação
Esse caso é representativo de instâncias nacionais e interna- dessa identidade.
tantos outros que enfrentam cionais. A atuação no local foi O aspecto mais delicado desse
desafios semelhantes e con- fundamental para a elaboração fenômeno reside na regulariza-
grega elementos ilustrativos da da metodologia de interven- ção fundiária, já que os gover-
situação quilombola. O coro- ção de Koinonia, assim como nos municipais acenam para as
nelismo local, que reflete a per- para a criação do Observatório comunidades com as possíveis
petuação da aristocracia agrária Quilombola (portal na Internet melhorias trazidas por projetos
no poder no Brasil, o poder de com notícias e análises da situ- especiais quilombolas (água,
influência política e jurídica dos ação quilombola no país)2. luz, casas etc.), mas não discu-
fazendeiros envolvidos, que têm A resistência da comunidade, tem a titulação coletiva da ter-
orquestrado uma situação de os ganhos jurídicos logrados, ra. Isso ocorre numa região em
criminalização do movimento, que possibilitaram uma dimi- que a única forma de comuni-
levando inclusive à morte de nuição da coerção da Marinha dades expulsas de seus territó-
duas lideranças da comunida- e da expulsão dos ilhéus, são rios terem acesso à terra foram
de, e o racismo ambiental – que alguns dos fatores que levam os assentamentos de reforma
apresenta os quilombolas como os quilombolas da Marambaia agrária, ou em que o órgão
depredadores do meio ambiente a persistirem na luta e a acredi- fundiário do estado titulou em
e os fazendeiros como ambien- tarem na vitória final, mesmo lotes individuais parte de ou-
talistas (ou preservacionistas) frente a adversário tão pode- tras comunidades e em que, ao
– são exemplos de elementos roso. O caso da Marambaia foi mesmo tempo, a especulação
presentes neste e em tantos ou- motivo de intervenção da Casa imobiliária provocada pelo tu-
tros casos no país. Civil da Presidência da Repú- rismo começa a se intensificar.
blica, originando a revogação
MARAMBAIA (RIO DE da publicação do Relatório
JANEIRO) Técnico de Identificação e De- 2
Ver: http://www.koinonia.org.br/oq/
13. 12
COMUNIDADES QUI- área do CAPA-Sul: Cerro das tudos, realizou encontros de
LOMBOLAS DO TER- Velhas, Torrão, Monjolo e Ma- comunidades negras rurais
RITÓRIO SUL DO RIO çambique. com até três mil pessoas, orga-
GRANDE DO SUL O trabalho político de tecer es- nizou e participou de mobili-
Hoje existem 43 comunidades sas parcerias, bem como o pro- zações na longa trajetória de
quilombolas reconhecidas pela cesso de autorreconhecimento luta quilombola em favor da
Fundação Cultural Palmares e dessas comunidades, frente ao regularização de suas terras.
com processos de regulariza- racismo existente no país e re- Em 1995, o CCN criou o Proje-
ção fundiária abertos no Incra forçado pelo mito da não exis- to Quilombo: Resistência Ne-
na região do Território da Ci- tência de populações negras na gra (PQRN), com o objetivo de
dadania Sul do Rio Grande do região, representa um grande trabalhar o fortalecimento da
Sul. A simples existência dessas avanço e um enorme desafio identidade quilombola a partir
comunidades na região já causa para a atuação da própria IE- de ações educativas e político-
um grande estranhamento para CLB, para o movimento negro culturais. O foco do trabalho
muitos, acostumados a pensar e para o nascente movimento do PQRN são as escolas das
em um sul sem negros. quilombola no Rio Grande do comunidades, formando pro-
Essa tem sido a atuação do Sul. O maior desafio está na fessores e buscando incidir em
CAPA-Sul, projeto da FLD, que questão fundiária, já que as co- suas práticas pedagógicas, mas
começou a trabalhar com os munidades quilombolas hoje também atuando diretamente
quilombolas desde 2002. Cria- ocupam áreas extremamente com crianças, jovens e mulhe-
do para trabalhar inicialmente limitadas, cercadas em parte res, entendendo o processo
com os agricultores luteranos, por fazendeiros, mas em gran- educativo como caminho de
grande parte da minoria po- de parte por agricultores fami- fortalecimento da organização
merana3, a FLD/CAPA foi aos liares da “colônia” pomerana, das comunidades.
poucos ampliando seu público, que também são uma minoria O trabalho pioneiro no Mara-
trabalhando com acampados e com um histórico de dif ícil nhão propiciou que, em 1997,
assentados da reforma agrária, acesso à terra. fosse criada a primeira orga-
com pescadores, com indíge- nização quilombola de nível
nas, com quilombolas, cola- MARANHÃO/CENTRO estadual do país, a Associa-
borando, assim, para uma re- DE CULTURA NEGRA ção das Comunidades Negras
flexão interna promovida pela (CCN) Rurais Quilombolas do Ma-
Igreja Evangélica de Confissão A primeira comunidade qui- ranhão (Aconeruq). Tanto o
Luterana no Brasil – IECLB a lombola que recebeu algum CCN como a SMDDH consi-
respeito de quem são os mais tipo de demarcação, ainda que deram a criação da Aconeruq
marginalizados. não como tal, mas sim como como um impacto significa-
O diferencial aqui é o foco no reserva extrativista, foi Frechal, tivo de sua intervenção. Ela
desenvolvimento sustentável no Maranhão. Junto ao Pará, o foi parte da criação da atual
– produção e comercialização Maranhão foi um dos estados Conaq (Comissão Nacional de
de alimentos e de artesanato, onde o movimento quilombo- Articulação das Comunidades
permitindo que os quilombo- la se iniciou. O Projeto Vida de Negras Rurais Quilombolas) e
las passassem a fazer parte da Negro (PVN), desenvolvido é uma das quatro organizações
rede organizada da agricultura pelo Centro de Cultura Negra quilombolas consideradas
familiar na região (cooperati- (CCN) e pela Sociedade Mara- mais consolidadas, dentre as
vas, centros de venda, feiras) e nhense de Defesa de Direitos vinte existentes no país.
a acessar projetos de governo Humanos (SMDDH) desde Atualmente, o CCN tem atua-
que favorecem o aumento da 1988 com o objetivo de mape- do mais diretamente no Médio
renda dos agricultores. A par- ar as comunidades negras ru- Mearim e no Baixo Parnaíba,
ticipação dos quilombolas em rais do Maranhão, é um marco regiões com alto grau de ten-
espaços políticos (Fórum de histórico importante por seu são fundiária4 - com recorte
Agricultura Familiar, Colegia- pioneirismo. Desenvolveu específico para o trabalho com
do do Território) é um signifi- uma metodologia de mapea- as quebradeiras de coco de ba-
cativo avanço em relação à situ- mento das comunidades que baçu. Continua trabalhando
ação de total invisibilidade em gerou grande envolvimento em parceria com a CESE, seja
que viviam essas comunidades. e mobilização da população por meio do Programa de Pe-
Para este estudo, foram visi- quilombola no estado. O PVN quenos Projetos ou em espa-
tadas quatro comunidades na produziu laudos, publicou es- ços comuns, como o Progra-
ma Água, Terra e Território,
3
Os pomeranos formam uma etnia descendente de tribos eslavas e germânicas que vivem da ICCO.
na região histórica da Pomerânia ao longo da costa do Mar Báltico. Para este estudo, três comuni-
4
Flaviano Pinto Neto, líder da comunidade quilombola do Charco, no estado do Maranhão, dades foram visitadas: Santa
foi morto a tiros em 30 de outubro de 2010. A denúncia foi feita pela Anistia Internacional.
14. 13
Maria dos Pinheiros, Filipa e níveis de identificação de im- enfrentam no caminho para
Santa Rosa dos Pretos, todas no pactos – um, a partir das co- a titulação de suas terras, ao
município de Itapecuru-Mirim. munidades mesmas, em rela- longo de um período em que
Essas comunidades haviam ção ao trabalho do CCN; outro, o estado foi normatizando
iniciado seus processos de ti- a partir do trabalho do CCN cada vez mais o processo, em
tulação na época do PAMN5 e em relação à questão quilom- que mais legislação foi criada,
contaram com a atuação tanto bola no estado e no país. Pro- em que projetos especiais de
do PVN como do PQRN. Tam- curou-se observar como essas desenvolvimento quilombola
bém foi feita uma revisão da in- comunidades veem o CCN e foram desenvolvidos pelo go-
tervenção mais ampla do CCN, avaliam essa relação; e qual a verno federal, em que o tema
considerando a situação geral reflexão que o CCN faz sobre quilombola se transformou
das comunidades e do movi- a parceria com a CESE e com a numa questão nacional, mas
mento quilombola no Mara- Christian Aid. em que, ao mesmo tempo,
nhão, tomando como foco a Esse caso permite observar pouco se avançou na resolu-
Aconeruq. as principais dificuldades que ção da situação fundiária das
No caso do Maranhão, há dois as comunidades quilombolas comunidades em todo o país.
5
De 1996 a 2002, o CCN fez parte do Programa de Apoio ao Movimento Negro (PAMN),
da CESE em parceria com a antiga EZE (depois EED). A sistematização dessa experi-
ência gerou a publicação “Racismo no Brasil: por que um programa com quilombos?”. A
partir do PAMN, o CCN desenvolveu uma parceria com a Christian Aid (ainda em vigência
em 2010), para o apoio ao PQRN e para o desenvolvimento institucional do CCN.
17. 16
1. As comunidades quilombolas no Brasil1
Origem de agentes da sociedade de seu cia de quilombos contemporâneos
A origem dos quilombos rela- entorno (comerciantes, tavernei- no Brasil é relativamente recente.
ciona-se com o processo de resis- ros, fazendeiros, escravos, negros Apenas em 1988, com a promulga-
tência ao regime de escravidão ne- libertos).2 Tais relações eram parte ção da nova Constituição Federal,
gra que vigorou no Brasil1 por 300 das estratégias engendradas pelos o Estado brasileiro reconheceu a
anos. Tais grupos se constituíram a negros para escapar do jugo dos existência desse grupo social e lhes
partir de uma grande diversidade senhores e garantir sua autonomia garantiu o direito à propriedade de
de processos e estratégias de resis- econômica.3 suas terras.
tência: as fugas com ocupação de A abolição da escravidão em Na luta mais recente para fazer
terras livres; o recebimento de ter- 1888 não significou o fim de tais valer esse direito, homens e mulhe-
ras por herança, doação ou como grupos sociais, que permaneceram res quilombolas vão, aos poucos,
pagamento de serviços prestados e resistiram em suas terras, sendo superando a invisibilidade e eviden-
ao Estado; a compra de terras; ou por muitas décadas ignorados pelo ciando mais uma face da diversida-
ainda, a permanência nas áreas que Estado brasileiro e invisíveis à so- de sociocultural do Brasil. Como
ocupavam e cultivavam no interior ciedade. Até hoje, tais comunida- coloca o antropólogo José Maurício
de grandes propriedades. des constituem grupos étnicos que Arruti, trata-se de uma categoria so-
Apesar do seu caráter de resis- compartilham de uma identidade cial relativamente recente:
tência e contestação, os quilombos, que os singulariza e que constitui a
base para a sua organização, mobili- representa uma força social
mesmo no período da escravidão,
zação e ação política, especialmente relevante no meio rural brasileiro,
não eram física ou economicamen- dando nova tradução àquilo que
te comunidades isoladas. No que no que se refere a seu relacionamen-
era conhecido como comunida-
tange à sua localização, era comum to com os demais grupos e com o des negras rurais (mais ao centro,
que estivessem situados nas proxi- poder público.4 sul e sudeste do país) e terras de
midades de centros urbanos ou de preto (mais ao norte e nordeste),
fazendas. Os quilombolas manti- Invisibilidade e reconhe- que também começa a pene-
nham também relações comerciais cimento trar o meio urbano, dando nova
significativas com uma ampla gama O reconhecimento da existên- tradução a um leque variado de
situações que vão desde antigas
comunidades negras rurais atingi-
das pela expansão dos perímetros
urbanos até bairros no entorno de
terreiros de candomblé.5
A existência de quilombos con-
temporâneos é uma realidade lati-
no-americana. Tais comunidades
são encontradas em países como
Colômbia, Equador, Suriname,
Honduras, Belize e Nicarágua. Em
diversos deles – como ocorre no
Brasil – seu direito às terras tradicio-
nais é assegurado por instrumentos
legais.
No Brasil, estimativas do movi-
mento social apontam a existência
de cerca de três mil comunidades
quilombolas. Essa cifra é endossa-
da pela Secretaria de Políticas de
Promoção da Igualdade Racial da
Presidência da República (SEPPIR),
1
Este trecho foi redigido por uma especialista convidada, Lúcia Andrade, da Comissão Pró-Índio de São Paulo, e serviu como ponto de
partida e de diálogo para a análise final.
2
REIS, João José GOMES, Flávio dos Santos “Introdução - Uma História da Liberdade”, In: Liberdade por Um Fio. História dos Quilom-
bos no Brasil, Reis Gomes (Org.), Companhia das Letras, São Paulo, 1996: 9 - 25.
3
GOMES, Flávio dos Santos, “Quilombos do Rio de Janeiro no século XIX” In: Liberdade por Um Fio. História dos Quilombos no Brasil,
Reis Gomes (Org.), Companhia das Letras, São Paulo, 1996: 282.
4
A identidade étnica de tais grupos pode estar baseada em diferentes fatores, tais como a auto classificação, uma ancestralidade comum,
uma estrutura de organização política própria, um sistema de produção particular (incluem-se aí as formas específicas de relação com os
seus territórios), em características raciais, em elementos linguísticos e religiosos, ou em símbolos específicos.
5
In: ARRUTI, José Maurício Mocambo, antropologia e história do processo de formação quilombola, Bauru, SP, EDUSC, 2006: 26.
18. 17
que afirma que o número de comu- estão distribuídas por todas as re- lombolas regularizados, 25 foram
15
nidades quilombolas identificadas giões do país,13 ocupando biomas tramitados pelo governo federal, 75
chega a 3.5246, embora o Cadastro bastante diversos. Em sua maioria, por governos estaduais e outros por
Geral de Remanescentes de Comu- encontram-se na zona rural, mas meio de títulos concedidos pelo go-
nidades de Quilombos da Fundação existem também grupos localiza- verno federal e governos estaduais
Cultural Palmares registre a apenas dos em área urbana. Dentre os es- (cada um para uma porção do terri-
1.527 grupos7. tados com grande concentração de tório), somando 971.376,0752 hec-
Há de se ressaltar a grande lacu- comunidades quilombolas, pode- tares onde reside uma população
na quanto às informações censitá- mos citar Maranhão, Minas Gerais, estimada em 11.491 famílias.16
rias (governamentais ou não) sobre Bahia e Pará. Quase metade dos territórios ti-
as comunidades quilombolas. Os As comunidades quilombolas tulados está localizada no Pará. Em
estudos disponíveis ainda são insu- se caracterizam pela prática do sis- segundo lugar, está o Maranhão,
ficientes para nos fornecer um qua- tema de uso comum de terras, con- com 22% do total de territórios re-
dro geral da situação das comunida- cebidas como um espaço coletivo e gularizados. Nas duas situações, o
des quilombolas no Brasil, embora indivisível. O território é ocupado e número significativo de titulações
apresentem alguns dados relevantes explorado por meio de regras con- advém da atuação dos governos es-
sobre grupos ou regiões específicos. sensuais entre os diversos grupos fa- taduais acionados pelo movimento
Contudo, ainda não se dispõe de le- miliares que compõem as comuni- quilombola daqueles estados. No
vantamentos ou estimativas confiá- dades, cujas relações são orientadas Maranhão, todas as regularizações
veis sobre sua população ou sobre a pela solidariedade e ajuda mútua.14 foram realizadas pelo Instituto de
dimensão de seus territórios. Seus territórios étnicos consti- Terras do Maranhão e no caso do
No esforço de suprir a lacuna tuem um dos pilares de sua existên- Pará, o Instituto de Terras do Pará
de informações, há que se destacar cia enquanto grupo social. Portanto, foi responsável pela entrega de 50%
a iniciativa pioneira do Projeto Vida assegurar aos quilombolas o direito dos títulos.
de Negro (PVN), desenvolvido à propriedade de seus territórios é
desde 1988 pelo Centro de Cultura garantir não somente a sua sobre- Estado Número de Territórios
Negra (CCN)8 e a Sociedade Mara- vivência física, mas também a sua Amapá 3
nhense de Defesa dos Direitos Hu- cultura e modo de vida próprio. Bahia 5
manos (SMDDH)9 com o objetivo Tais características determinam
Goiás 1
de mapear as comunidades negras que a titulação das terras quilom-
Maranhão 23
rurais do Maranhão.10 bolas se diferencie da regulariza-
A organização Koinonia Pre- ção fundiária mais habitual, que Mato Grosso 1
sença Ecumênica e Serviço figura costuma distribuir lotes individuais Mato Grosso do Sul 2
também entre as entidades que para cada família, padronizados de Minas Gerais 1
têm se preocupado em levantar, acordo com o tipo de exploração, Pará 49
sistematizar e disponibilizar infor- na maioria agrícola, e a localização Pernambuco 2
mações sobre as comunidades qui- do imóvel. Piauí 5
lombolas, divulgando reportagens, Embora o direito das comuni- Rio de Janeiro 2
ensaios acadêmicos e fotográficos dades quilombolas à propriedade Rio Grande do Sul 2
e artigos analíticos sobre o tema no das terras originárias/ocupadas
Rondônia 1
Observatório Quilombola11, criado esteja assegurado na Constituição
São Paulo 6
em 2005.12 desde 1988, apenas 185, uma ínfima
parcela de 6% das 3.000 que se esti- Sergipe 1
Os Territórios ma existir, lograram regularizar seus TOTAL 104
As comunidades quilombolas territórios. Dos 104 territórios qui- Fonte: Comissão Pró-Índio de São Paulo, agosto de 2010
6
In: SEPPIR, Comunidades Quilombolas Brasileiras - Regularização Fundiária e Políticas Públicas, Brasília, 2010: 8. Acessado em
12/07/2010 https://gestaoseppir.serpro.gov.br/.arquivos/relatorio_gestao_pbq2009
7
In: Fundação Cultural Palmares www.palmares.gov.br, consulta em 9/07/2010.
8
Ver: http://www.ccnma.org.br/
9
Ver:HTTP://WWW.smdh.org.br/
10
Segundo o CCN (Centro de Cultura Negra do Maranhão) e a SMDDH (Sociedade. Maranhense de Defesa dos Direitos Humanos), “para
o surgimento e implementação do PVN, foi decisiva a participação solidária de agências de cooperação internacional”, entre elas a CESE
e a EZE (agora EED). In: CCN SMDDH, Vida de Negro no Maranhão: Uma experiência de luta, organização e resistência nos territórios
quilombolas, São Luis, maio de 2005: 41.
11
Ver: HTTP://www.koinonia.org.br/oq/default.asp
12
No universo de ONGs podemos citar também os trabalhos do CEDEFES (Centro de Documentação Eloy Ferreira da Silva) dedicados às
comunidades quilombolas de Minas Gerais e o monitoramento da legislação, ações judiciais e processos administrativos de âmbito nacional
desenvolvido pela Comissão Pró-Índio de São Paulo.
13
Somente nos estados do Acre e Roraima não se tem informação sobre a existência de comunidades quilombolas.
14
ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE ANTROPOLOGIA, “Documento do Grupo de Trabalho sobre Comunidades Negras Rurais”, Rio de
Janeiro, 17/18 de outubro de 1994.
15
A diferença entre o número de comunidades (180) e terras (104) deve-se aos casos em que em um mesmo território titulado vivem mais
de uma comunidade.
16
In: Comissão Pró-Índio de São Paulo www.cpisp.org.br/terras
19. 18
Direitos Humanos Eco- de invasões e tampouco das conse- Também são preocupantes os
nômicos, Sociais, Culturais quências das mudanças climáticas. dados referentes a saneamento bá-
e Ambientais A insegurança quanto à terra e sico, um elemento sintomático para
As comunidades quilombolas à moradia dificulta o planejamen- a melhoria das taxas de desnutrição
vivenciam uma situação de desigual- to e a adoção de medidas voltadas infantil. Apenas pouco mais de 30%
dade socioeconômica e de violação para o desenvolvimento susten- das residências quilombolas en-
de direitos humanos, econômicos, tado dos territórios quilombolas trevistadas estavam ligadas à rede
sociais, culturais e ambientais. e afeta, entre outros, o direito à pública de água e esgoto ou dispu-
A morosidade do governo na alimentação adequada. Os resul- nham de fossa séptica.20
efetivação das titulações coloca os tados da “Chamada Nutricional Um artigo que analisa os dados
quilombolas em situação de vulne- Quilombola 2006”17 evidenciam a da “Chamada Nutricional Quilom-
rabilidade, mais suscetíveis às cres- realidade de insegurança alimentar bola 2006” destaca a situação de desi-
centes pressões do agronegócio, da vivenciada por essas populações. gualdade vivida pelos quilombolas:
mineração, de empreendimentos Uma das conclusões do estudo é
que “do ponto de vista da nutrição Conforme a classificação da
de infraestrutura e dos programas
de menores de cinco anos, fica es- Associação Brasileira de Insti-
governamentais de “segurança na- tutos de Pesquisa de Mercado
cional” Nas diversas regiões do país,
. tabelecido que se constituem em
(Abipeme) constata-se que 57%
registram-se conflitos envolvendo grupo com altos riscos de desnu- das famílias quilombolas entre-
territórios quilombolas, como os trição, igualando-se às crianças do vistadas encontram-se dentro da
vividos pelas comunidades Maram- nordeste urbano de uma década classe E, o que significa crianças
baia (Rio de Janeiro), São Francisco anterior à ‘Chamada’” (1996).18 de zero a cinco anos vivendo em
do Paraguaçu (Bahia) e as localiza- A pesquisa do Ministério do residências desprovidas de insta-
das no Baixo Parnaíba (Maranhão), Desenvolvimento Social e Combate lações e equipamentos mínimos.
à Fome indica que a proporção de De acordo com a Associação
objeto dos estudos de caso apre-
crianças de até cinco anos desnutri- Brasileira de Estudos Populacio-
sentados pela presente avaliação de nais – Abep (2003), esse grupo
impacto. das é 76,1% maior do que na popu-
populacional encontra-se inclu-
Consequentemente, muitas co- lação brasileira e 44,6% maior do que ído entre os 4% mais pobres da
munidades têm o acesso aos recur- na população rural. A incidência de sociedade brasileira. 21
sos naturais dos seus territórios cer- meninos e meninas com déficit de
ceado pela ação de terceiros. Outras peso nessas comunidades é de 8,1% Tal desigualdade reflete-se tam-
sofrem com os impactos ambien- — maior também do que entre as bém no acesso à educação. O Rela-
tais de empreendimentos vizinhos crianças do semiárido brasileiro tório do Fundo das Nações Unidas
ou sobrepostos às suas terras, tais (6,6%). para a Infância (Unicef)22 de 2009 in-
como hidroelétricas, clui os quilombolas entre
madeireiras, minera- Desnutrição infantil os grupos que estão em
doras e os grandes em- (% de crianças até 5 anos com déficit de peso) situação mais vulnerável
preendimentos de mo- 8,1% quando se trata do ple-
nocultura de eucalipto. 6,6% no exercício do direito
4,6% 5,6 %
É importante destacar de aprender, juntamen-
que inexistem progra- te com as meninas e os
mas ou políticas gover- meninos que vivem no
namentais que visem campo, os indígenas e as
Quilombolas População População Semi-árido
proteger os territórios crianças e os adolescen-
quilombolas e seus brasileira rural
tes com deficiência. O
recursos naturais dos Unicef avalia que a edu-
impactos de grandes Fontes: Pesquisa de Orçamentos Familiares, Pesquisa Nacional so- cação oferecida nas co-
bre Demografia e Saúde e Chamada Nutricional Quilombola 200619
projetos, das ameaças munidades quilombolas
17
Estudo pioneiro do Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome realizado junto a 60 comunidades quilombolas (3.000
famílias) em 22 estados do país em 2006.
18
Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome, Chamada Nutricional Quilombola 2006 - Resumo Executivo, Brasília, maio de
2007: 7
19
PNUD “Desnutrição é 76% maior entre quilombolas”, Brasília, 16/05/2007 www.pnud.org.br/raca/reportagens/index.
php?id01=2684lay=rac
20
SILVA, Helena Oliveira et alli, “Diagnóstico das Condições de Vida nas Comunidades Incluídas na Chamada Nutricional Quilombola, In:
Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, Políticas Sociais e Chamada Nutricional Quilombola: estudos sobre condições
de vida nas comunidades e situação nutricional das crianças, Cadernos de Estudos Desenvolvimento Social em Debate. – N. 9, Brasília,
2008:45
21
Idem, ibidem: 42-43
22
Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) Situação da Infância e da Adolescência Brasileira 2009 – O Direito de Aprender:
Potencializar avanços e reduzir desigualdades, Brasília, 2009.
20. 19
é, em geral, bastante precária: comunidades quilombolas situ- dessas comunidades em concluir
adas nos estados do Semiárido, os estudos no campo. Apesar de
As escolas frequentemente existem 846 escolas de Ensino concentrar a maioria dos estabele-
estão distantes das casas dos alu- Fundamental e apenas nove de cimentos de ensino quilombolas da
nos, não apresentam infraestrutu- Ensino Médio, segundo dados região (423), o Maranhão não tinha
ra adequada ao seu funcionamen- do Censo Escolar 2007.24 uma escola sequer que oferecesse o
to e poucas conseguem oferecer Ensino Médio.26
o Ensino Fundamental completo. Os dados sobre as escolas O Relatório informa que nos
Além de serem poucos para aten- quilombolas na Amazônia Legal últimos anos, os quilombolas tor-
der a demanda, os professores, em também revelam dificuldades: em naram-se foco de políticas públicas
sua maioria, não têm a formação
2007, apenas 15% dos 2.449 docen- específicas e de ações desenvolvi-
adequada para dar aulas.23
tes tinham Ensino Superior e 73% das por diferentes organizações da
haviam concluído o Ensino Médio, sociedade civil. Com isso, verifi-
O documento afirma ainda que
segundo o Censo Escolar (Inep/ cou-se uma melhora nos indicado-
[...] é comum nessas comuni- MEC). Nas escolas não quilombo- res educacionais relativos a eles. O
dades a presença de classes mul- las da região esse índice foi de 54% e Unicef pondera, contudo, que “ain-
tisseriadas. Em geral, as crianças 45%, respectivamente.25 da há enormes desafios a enfrentar
fazem as séries iniciais e, depois, Ainda segundo o Unicef, em para garantir a essas crianças e a es-
precisam se deslocar longas dis- 2007, somente 148 alunos cursavam ses adolescentes o acesso à escola
tâncias para complementar os o Ensino Médio em escolas quilom- e uma educação de qualidade, que
estudos. No Ensino Médio, a bolas na Amazônia, o que revela a efetivamente atenda às suas neces-
oferta é ainda mais crítica: nas
dificuldade dos meninos e meninas sidades de aprendizagem”.27
2. Direito à terra e ao território - Marcos legais28
Na América do Sul, três cons-
tituições reconhecem direitos de
comunidades quilombolas: as da
Colômbia, do Brasil e do Equador. A
Colômbia foi o primeiro país a tratar
em sua constituição do direito à ter-
ra dos afro-colombianos em 1991,
direito que foi regulamentado pela
Lei 70/1993 e Lei 397/1997.
No Equador, a constituição de
1998 já reconhecia aos afro-equa-
torianos direitos coletivos às suas
terras. A nova constituição de 2008
reafirma tais direitos. O Equador
conta também com a Ley de los
Derechos Colectivos de los Pue-
blos Negros o Afroecuatorianos,
de 2006, que assegura os direitos
dos povos negros sobre as suas ter-
ras ancestrais.
Na América Central, a constitui-
ção da Nicarágua, de 1987, garante
às “comunidades da costa atlântica”
as formas comunais de propriedade
das terras e o procedimento para
titulação dessas terras está regu-
lamentado pela Lei 445/2002. Em pecifica que as mesmas devem ser estão assegurados na Constituição
Honduras a Ley de Propiedad de tituladas de forma coletiva. Federal e nas constituições dos Es-
2004 reconhece o direito dos afro- No Brasil, os direitos territo- tados da Bahia, Goiás, Maranhão,
hondurenhos às suas terras e es- riais das comunidades quilombolas Mato Grosso e Pará. Seus direitos
23
Idem: 28
24
Idem: 69
25
Idem: 93.
26
Idem: 92.
27
Idem: 23.
28
Todos os marcos legais mencionados nesta parte podem ser encontrados em: http://www.cpisp.org.br/htm/leis/
21. 20
estão garantidos também na Con- popular, mas não alcançou o nú- denamento fundiário.
venção 169 da Organização Inter- mero necessário de assinaturas para
nacional do Trabalho, sobre Povos permitir a sua tramitação. Em 20 de Direitos à terra e ao ter-
Indígenas e Tribais, instrumento agosto de 1987 a proposta voltou a ritório
internacional ratificado pelo Brasil ser apresentada, sendo formalizada Outros dois artigos da Cons-
em 2003 e que, portanto, tem força pelo Deputado Constituinte Carlos tituição Brasileira também reco-
de lei em nosso país. Alberto Caó (PDT-RJ).30 Foi apro- nhecem direitos das comunidades
vada “no apagar das luzes” graças quilombolas, ainda que não haja
O Artigo 68 da Consti- às intensas negociações políticas menção específica a elas: os artigos
tuição Federal conduzidas por representantes do 215 e 216 do Capítulo III, sobre
O dispositivo constitucional29 movimento negro do Rio de Janeiro, Educação, Cultura e Desporto.
que garante aos quilombolas a pro- dentre eles, o próprio Dep. Carlos O artigo 215 determina que o
priedade de suas terras é fruto de Alberto Caó e a Deputada Benedita Estado proteja as manifestações
uma articulação do movimento da Silva (PT/RJ).31 culturais afro-brasileiras. Já o artigo
negro, responsável também pela O fato de a Assembleia Cons- 216 considera os bens de natureza
inclusão de dispositivo semelhante tituinte ter coincidido com o pe- material e imaterial dos diferentes
em constituições estaduais. ríodo do Centenário da Abolição grupos formadores da sociedade
O objetivo da iniciativa era re- contribuiu para a conformação de brasileira, entre os das comunida-
parar a injustiça histórica cometida um cenário favorável à aprovação des negras – formas de expressão,
pela sociedade escravocrata bra- do Artigo 68. Outro fator que cons- modos de criar, fazer e viver – como
sileira contra o povo negro. Uma pirou favoravelmente foi o desco- patrimônio cultural brasileiro, a ser
reparação que se concretizaria por nhecimento sobre a realidade das promovido e protegido pelo Poder
meio do reconhecimento dos di- comunidades quilombolas e as im- Público.
reitos das comunidades de descen- plicações do que estava sendo apro- Conforme explica a Procurado-
dentes dos antigos escravos possibi- vado. Os constituintes não tinham ra Isabel Cristina Groba, em função
litando-lhes, finalmente, o acesso à ideia do impacto da aprovação do dos artigos 215 e 216 da Constitui-
propriedade de suas terras. artigo uma vez que se imaginava ção pode-se afirmar que a obrigação
A proposta foi inicialmente que beneficiaria um número muito do Estado para com as comunida-
apresentada à Assembleia Nacional restrito de comunidades e não teria des quilombolas não se restringe ao
Constituinte na forma de emenda maiores consequências sobre o or- reconhecimento da propriedade:
A norma do artigo 68 do
ADCT deve ser vista sempre em
cotejo com as normas de pre-
servação cultural desses grupos
na condição de formadores da
sociedade nacional, assegurando-
se-lhes a oportunidade de conti-
nuarem a reproduzir-se de acordo
com as suas tradições, sob pena
de estarem feridos os princípios
maiores fundadores de nossa Re-
pública. Os seus modos de fazer
e viver são os bens imateriais a
que alude a Constituição de 1988,
competindo destarte ao Poder
Público, com a colaboração da co-
munidade, proteger tal patrimô-
nio por todos os meios e formas
de acautelamento e preservação,
assegurando a sua permanência
contra todos os atos públicos e
privados tendentes a descaracteri-
zar-lhes o traço cultural ou atentar
contra a sua forma de viver. 32
Dessa forma, a Constituição per-
29
Artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias: “Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando
suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”.
30
TRECCANI, Girolamo D. Terras de Quilombo - Caminhos e entraves do processo de titulação, Belém, Secretaria Executiva da Justiça/Pro-
grama Raízes, 2006: 77.
31
In: ARRUTI, Op. Cit: 67.
VIEIRA, Isabel Cristina Groba, palestra reproduzida In: “ANDRADE, Lúcia M. M. de (org.) Desafios para o Reconhecimento das Terras
Quilombolas, São Paulo, Comissão Pró-Índio de São Paulo, 1997: 51-52.
22. 21
mite interpretar que o direito dos
quilombolas à terra está associado
ao direito à preservação de sua cul-
tura e organização social específica,
legitimando, portanto, o conceito de
território, entendido como espaço de
reprodução física e social.
O direito ao território está as-
segurado também pela Convenção
169 sobre Povos Indígenas e Tri-
bais da Organização Internacional
do Trabalho (OIT)33 que determi-
na que se reconheçam os direitos
de propriedade e de posse desses
povos sobre as terras que tradicio-
nalmente ocupam (artigo 14). O
tratado internacional estabelece,
ainda, que o termo “terras” deverá
“incluir o conceito de territórios, o
que abrange a totalidade do habitat
das regiões que os povos interessa-
dos ocupam ou utilizam de alguma
outra forma” (artigo 13).
Consonante com as normas
superiores, o Decreto 4.887/ 2003,
que estabelece os procedimentos outubro de 1999 quando a 11ª ree- editou o Decreto nº 3.912 que, ao
para titulação das terras quilom- dição da Medida Provisória 1.911 regulamentar o procedimento para
bolas, também reconhece que são delegou ao Ministério da Cultura a titulação das terras de quilombo,
“terras ocupadas por remanescentes competência para titular as terras restringiu o alcance do Artigo 68. O
das comunidades dos quilombos as quilombolas. A mudança de com- decreto estabeleceu que apenas as
utilizadas para a garantia de sua re- petência refletia a decisão do gover- “terras que eram ocupadas por qui-
produção física, social, econômica e no Fernando Henrique Cardoso de lombos no ano de 1888” e as que es-
cultural” (artigo 2º, § 2º). não realizar desapropriações para tavam “ocupadas por remanescen-
assegurar a titulação das terras de tes das comunidades dos quilombos
Histórico da normatiza- quilombo. Em consonância com tal em 5 de outubro de 1988” poderiam
ção federal orientação, em novembro de 2000, a ser contempladas pelo Artigo 68.
O Artigo 68 é autoaplicável, ou Fundação Cultural Palmares outor- Tal classificação temporal, que
seja, não necessita de norma que o gou um “pacote de titulações” sem não encontrava qualquer respaldo
regulamente, produzindo efeitos por a desapropriação ou anulação dos no texto constitucional, restringia
si só, independente de normatização títulos de terceiros incidentes nas enormemente os potenciais bene-
complementar.34 Portanto, as normas terras quilombolas, nem tampouco ficiários do artigo 68. Os principais
inferiores não vêm para regulamen- a retirada dos ocupantes não qui- atingidos pela medida foram os qui-
tá-lo, mas sim para orientar a ação do lombolas. Dez das doze comunida- lombolas de áreas de conflito que na
Poder Executivo quantos aos proce- des “beneficiadas” com esses títulos data da promulgação da Constitui-
dimentos para identificar, delimitar e sofrem até hoje com o conflito gera- ção não se encontravam na posse
titular as terras quilombolas. do por essa medida e não têm livre de seus territórios, justamente em
Data de novembro de 1995 a pri- acesso aos recursos naturais de suas decorrência das disputas.
meira iniciativa para normatização terras. Na gestão do governo Lula, O resultado do Decreto
dos procedimentos de regularização o Incra abriu novo processo para 3.921/2001 foi a completa parali-
dessa categoria de terras: a Portaria regularizar essas áreas, com vistas sação das titulações das terras de
307 do Incra, que determinava que as a proceder às devidas desapropria- quilombo por parte do governo
comunidades quilombolas tivessem ções e reassentamentos. federal. Nenhuma terra de quilom-
suas áreas demarcadas e tituladas. Em 10 de setembro de 2001, bo foi regularizada durante/sob a
Tal regulamentação vigorou até o presidente Fernando Henrique vigência desse decreto.
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As comunidades quilombolas constituem grupos étnicos e, assim sendo, enquadram-se na definição de “povo tribal” do artigo 1.1.a. da C
169 da OIT e são sujeitos dos direitos estabelecidos na Convenção. O governo brasileiro reconhece a aplicabilidade da C 169 às comunida-
des, por exemplo, na Instrução Normativa Incra 57/2009 (artigo 2º). Decisões da Justiça Brasileira também referendam o entendimento de
que as comunidades quilombolas são grupos específicos sobre os quais a Convenção 169 da OIT se aplica.
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Sobre o tema, o jurista Dalmo Dallari afirma que “Essa norma, que define e garante direitos fundamentais, é auto-aplicável, por força do que
dispõe o parágrafo 1 do artigo 5 da Constituição. E o referido artigo 68 não exige lei regulamentadora, sendo juridicamente perfeita a edição
de decreto federal, estabelecendo regras administrativas visando dar àquela norma constitucional efetividade prática, possibilitando o gozo
dos direitos” In: DALLARI, Dalmo de Abreu: “Direitos constitucionais dos quilombos” In; Gazeta Mercantil, Caderno A - Pág. 1023/3/2009.
23. 22
Histórico de aprovação de normas federais sobre Já as normas dos demais estados fo-
procedimentos para titulação das terras quilombolas ram aprovadas entre 2002 e 2010.
De forma geral, as normas esta-
Ano Norma Conteúdo duais definem procedimentos mais
1995 Portaria Incra n.º 307 Determinou que as comunidades quilombolas tivessem suas áreas céleres e eficazes para identificação,
demarcadas e tituladas. delimitação e titulação das terras
1999 11ª reedição da Me- Delegou ao Ministério da Cultura a competência para titular as quilombolas. E, por isso, têm se cons-
dida Provisória 1.911 terras quilombolas. tituído num importante instrumento
2001 Decreto n.º 3.912 Regulamentou o procedimento para titulação das terras de quilom- de garantia de direitos. Dos 104 terri-
bo. Restringiu o alcance do Artigo 68 ao estabelecer que apenas tórios quilombolas regularizados até
as “terras que eram ocupadas por quilombos no ano de 1888” e as o momento, 75 foram titulados por
que estavam “ocupadas por remanescentes das comunidades dos governos estaduais, e somente 25
quilombos em 5 de outubro de 1988” poderiam ser contempladas pelo governo federal. Outras cinco
pelo Artigo 68. terras foram regularizadas por meio
2003 Decreto n.º 4.887 Regulamentou o procedimento para titulação das terras de de títulos concedidos pelo governo
quilombo (revogou o decreto de 2001). federal e governos estaduais (cada
2008 Instrução Normativa Gerou retrocessos na garantia de direitos por meio da introdução uma para uma porção do território).
Incra nº 49 de empecilhos burocráticos nos procedimentos para identificação e
titulação das terras quilombolas. Políticas públicas
Criou as condições para a retomada das titulações: adotou uma A luta dos quilombolas permitiu
conceituação adequada de comunidade e de terra de quilombo que programas e ações do governo
com a adoção do critério da autoidentificação; reconheceu a pos- federal e estadual fossem criados
sibilidade de desapropriação de propriedades incidentes em terras para assegurar políticas públicas
de quilombos e atribuiu a competência de condução do processo específicas, ampliando o reconheci-
ao Incra. mento de direitos para além da ga-
rantia territorial.
Normas federais atuais Os obstáculos foram acresci- Exemplo disso é o Programa
Atendendo à reivindicação dos dos progressivamente por meio de Brasil Quilombola, que tem por fi-
quilombolas, o governo do presi- sucessivas normativas: a Instrução nalidade coordenar as ações gover-
dente Lula, em 20 de novembro de Normativa Incra nº 16/2004; a Ins- namentais que almejam garantir o
2003, editou nova regulamentação trução Normativa Incra nº 20/2005, direito à terra, à documentação bási-
sobre a matéria. O Decreto nº 4.887 a Portaria Fundação Cultural Palma- ca, alimentação, saúde, esporte, lazer,
de 2003 criou as condições para a res nº 98/2007 e, finalmente, a mais moradia adequada, serviços de infra-
retomada das titulações, uma vez polêmica delas, a Instrução Normati- estrutura, previdência social, educa-
que adotou uma conceituação ade- va Incra nº 49/2008, reeditada como ção e cultura para as comunidades
quada de comunidade e de terra de IN 57 em 2009, como explicaremos quilombolas. O Programa é coorde-
quilombo com a adoção do critério adiante. Conforme analisaremos, tais nado pela SEPPIR e agrega 23 órgãos
da autoidentificação; reconheceu a mudanças consubstanciam o recuo da administração pública federal.36
possibilidade de desapropriação de do governo federal. Programas de apoio específicos
propriedades incidentes em terras de para as comunidades quilombolas
quilombos e atribuiu a competência Legislações estaduais também foram criados no âmbito
de condução do processo ao Incra. Atualmente, nove estados con- estadual. O primeiro estado a ado-
Os avanços do Decreto tam com leis próprias disciplinando tar uma iniciativa desse tipo foi o de
4.887/2003, no entanto, foram mi- o processo para a regularização das São Paulo, que em 1997 criou um
nados pelo próprio governo ao longo terras de quilombo: Bahia, Espírito Programa de Cooperação Técnica
dos anos e à medida que as pressões Santo, Maranhão, Pará, Paraíba, Piauí, e de Ação Conjunta que congrega
contrárias às titulações das terras Rio Grande do Norte, Rio Grande do atualmente a Procuradoria Geral do
quilombolas foram crescendo. Por Sul e São Paulo. Estado, a Secretaria da Justiça e da
meio de normas internas ao Incra É no Pará que se registra a mais Defesa da Cidadania, a Secretaria
e a Fundação Cultural Palmares, o antiga iniciativa de normatização: o do Meio Ambiente, a Secretaria da
governo Lula acabou por introduzir Decreto 663 de 20 de fevereiro de Cultura, a Secretaria de Agricultura e
uma série de empecilhos burocráti- 1992, que já não está mais em vigor. Abastecimento, a Secretaria da Edu-
cos nos procedimentos para a regu- A mais recente iniciativa ocorreu no cação, a Casa Civil e a Secretaria da
larização das terras quilombolas que Maranhão, em abril de 2010 com a Habitação, e visa à regularização das
tornaram o processo mais moroso e aprovação da Lei 9.169.35 As leis em terras de quilombolas e à implanta-
custoso e, consequentemente, mais vigor em São Paulo e no Pará datam, ção de “medidas socioeconômicas,
difícil de ser concluído. respectivamente, de 1997 e de 1998. ambientais e culturais”.
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Fonte: Comissão Pró-Índio de São Paulo http://www.cpisp.org.br/htm/leis/index.html
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In: SEPPIR, Comunidades Quilombolas Brasileiras - Regularização Fundiária e Políticas Públicas, Brasília, 2010: 6. Acessado em 12/07/2010
https://gestaoseppir.serpro.gov.br/.arquivos/relatorio_gestao_pbq2009
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Fonte: Comissão Pró-Índio de São Paulo, http://www.cpisp.org.br/htm/leis/legislacao_estadual.aspx