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:: Artigos
Limites éticos
Rivaldo Chinem
19/3/2015 09:00:00
Flávio Canalonga, parceiro de inúmeras reportagens,
fotógrafo dos melhores, sempre dizia que gostava do
pessoal novo no jornalismo porque eles traziam ânimo para os mais experientes. Perguntado
em uma palestra se sou favorável ou contra o fato de alguns profissionais da área se passar por
outra pessoa na busca pela informação, se isso era ou não ético, tive de responder de forma
cruel aos ouvidos atentos daquela plateia de novatos ou pretensos e futuros profissionais da
mídia. Respondi que na busca pela verdade valia tudo. Mesmo mentir? - insistiu outro
estudante.
Como o espírito crítico norteia a vida e a cabeça dos jovens que tanto encantavam meu amigo
Canalonga, dei o exemplo de uma pessoa a quem fui encarregado de entrevistar, um
torturador confesso, que havia colocado no pau família inteira de operários sob acusação de
uma fábrica de tratores de terem desviado material. A mãe dos rapazes suspeitos, ela mesma
submetida à longa sessão de choques elétricos e de pauladas, havia descrito como agia este
policial, truculento e sádico. Fui à delegacia onde ele estava lotado. Esperei horas. Quando
chegou, me identifiquei como religioso, não podia dizer em meio àquela multidão que passava
nos corredores escuros que era repórter, caso contrário nem seria atendido. Visivelmente
nervoso, pedi calma e apontei o banco para que se sentasse ao meu lado. Disse que havíamos
feito oração em seu nome, que a “comunidade religiosa” estava preocupada com suas atitudes
agressivas e ferozes, que ele nunca seria perdoado, mas que eu mesmo faria sua absolvição,
caso ele confessasse para mim que havia torturado. Ele confessou. Foi manchete na última
página do jornal, que em muitas bancas, por iniciativa dos jornaleiros, se transformou em
primeira página. Soube por um advogado que militava na área de direitos humanos que o meu
entrevistado cursava Direito à noite e que nunca havia revelado sua profissão para os colegas.
Ao entrar na classe, todos o esperavam com o jornal na mão. Ele foi embora da faculdade e
nunca mais voltou. Anos mais tarde me contaram que o torturador concluiu o curso.
Não sei se a atenta plateia de jovens estudantes se convenceu do que afirmei, que vale tudo
na busca da notícia, mas hoje, passadas tantas décadas do fato relatado, não sei se faria da
forma que fiz, mas sei que corria o risco de voltar para a redação sem a notícia e ouvir a
ordem do meu chefe: “se vira”.
Rivaldo Chinem é autor vários livros, como “Terror Policial” com Tim Lopes
(Global), Sentença – Padres e Posseiros do Araguaia” (Paz e Terra), “Imprensa Alternativa
– Jornalismo de Oposição e Inovação” (Ática), “Comunicação Corporativa” (Escala com
prefácio de Heródoto Barbeiro), “Marketing e Divulgação da Pequena Empresa” (Senac) na
5ª.edição, “Assessoria de Imprensa – como fazer” (Summus) na 3ª. Edição, “Jornalismo de
Guerrilha – a imprensa alternativa brasileira da censura à Internet” editora Disal, ,
“Comunicação empresarial – teoria e o dia-a-dia das Assessorias de Comunicação” , editora
Horizonte, “Introdução à comunicação empresarial”, editora Saraiva, “Comunicação
Corporativa” editora Escala com prefácio de Heródoto Barbeiro ; e "Comunicação
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