1. Francisco Queiroz
coordenação geral
coordenação do volume
Câmara Municipal de Vila Nova de Gaia
Solar Condes de Resende
Gabinete de História, Arqueologia e Património (ASCR-CQ)
2021
PatrimOnio
Cultural de Gaia
´
PatrimOnio DEGAIA
NOMUNDO
´
J.A. GonCalves GuimarAes
~
,
2. TÍTULO
Património de Gaia no Mundo
COORDENAÇÃO-GERAL
J. A. Gonçalves Guimarães
COORDENAÇÃO DESTE VOLUME
Francisco Queiroz
AUTORES DOS TEXTOS
Alda Bessa
Ana Filipa Correia
Ana Pessoa
Ana Venâncio
André Dangelo
Andréa Bachettini
Annelise Montone
António Conde
Cláudia Emanuel
Cristina Moscatel
Daniele Fonseca
Fabiane R. Moraes
Fabíola Franco Pires
Fernando Cerqueira Barros
Francisco Queiroz
J. A. Gonçalves Guimarães
José Francisco Alves
José Guilhermo Abreu
Keli Scolari
Manuel Ferreira da Silva
Margarete R. F. Gonçalves
Margarida Rebelo Correia
Maria Isabel Moura Ferreira
Mariana Rodrigues
Marilene da Silva
Paula Santos Triães
Rosário Salema de Carvalho
Susana Moncóvio
GABINETE DE HISTÓRIA, ARQUEOLOGIA E PATRIMÓNIO (ASCR-CQ)
Equipa técnica
Eva Baptista, Licínio Santos e Maria de Fátima Teixeira
Administração
Amélia Cabral
SOLAR CONDES DE RESENDE
Técnica superior - Área da Cultura
Susana Guimarães
Apoio à pesquisa bibliográfica e documental
Celeste Pinho
Fotografia adicional
CMVNG - EMPCI – Equipa Multidisciplinar de Protocolo,
Comunicação e Imagem – Eng.ª Ilda Henriques
Fotógrafo: João Luís Teixeira
EDIÇÃO
Câmara Municipal de Vila Nova de Gaia/Amigos do Solar
Condes de Resende - Confraria Queirosiana
Solar Condes de Resende, travessa Condes de Resende, 110
4410-264 Canelas, Vila Nova de Gaia
DESIGN
Omnisinal (Paginação por André Oliveira)
IMPRESSÃO
Mota e Ferreira - Artes Gráficas
TIRAGEM
00.000 unidades
DATA DA EDIÇÃO
00/00/0000
Património Cultural de Gaia
ISBN: 000-000-000-000-0
Depósito Legal: VG-000-0000
3. 3
Memória como consciência do tempo. Esta é, para mim, a melhor defi-
nição deste meticuloso trabalho que agora apresentamos. No prefácio do
primeiro volume falei em memória como consciência do tempo e no papel
que a Câmara Municipal de Vila Nova de Gaia, enquanto instituição, tem
procurado desempenhar na construção desta memória como consciência e
perceção do tempo. Um esforço materializado em dez volumes que nos pre-
tendem transportar para uma viagem pela nossa identidade coletiva, com
uma análise profunda que é agora partilhada com todos.
Estes dez volumes são, assim, uma viagem no tempo, permitindo ao leitor
conhecer melhor a Gaia do passado, projetada no presente. Depois de um
primeiro volume dedicado à memória de quem marcou indelevelmente o
nosso concelho, e que tem por título «Património Humano: personalidades
gaienses», chegou agora o momento de conhecer o Património de Gaia no
Mundo. Somos uma terra de pintores, arquitetos e escultores, que daqui saí-
ram e para aqui regressaram, deixando dentro e fora do país a identidade da
nossa cidade impressa nas suas obras.
DE VILA NOVA DE GAIA PARA O MUNDO
4. 4
Este projeto é uma experiência. Um experimentar olhar para Gaia do
ponto de vista do que, em termos culturais e de património, mais a marcou e
mais a marca ainda. Pelo punho, pelo trabalho e pela sabedoria de um vasto
leque de profissionais, vamos resgatar para o futuro um passado que a todos
diz respeito.
Este volume, em particular, refere-se a edifícios, patrimónios e obras de
arte seculares, custeadas ou executadas por gaienses, e que podem ser apre-
ciadas fora e dentro do concelho. Da pintura à escultura, da cerâmica à arte
sacra, passando pela grande tradição gaiense de santeiros e escultores em
madeira, ou até mesmo por um tipo de património de caráter mais utilitá-
rio – como, por exemplo, o primeiro carro de bombeiros de Vila Nova de
Gaia, existente no Museu das Curiosidades, em Mirandela –, muito há por
descobrir ao longo destas páginas, mas também muito poderá ter ficado por
dizer, escrever e estudar, dada a magnitude do que de bom se fez e se faz
nesta cidade.
É possível que mais destaque se tenha dado a determinadas áreas, como
é o caso da escultura, mas tal não pode ser surpreendente, uma vez que a
qualidade dos escultores gaienses, sobretudo da segunda metade do século
XIX e da primeira metade do século XX, salta à vista de todos, conhece-
dores ou não desta arte. É, portanto, inevitável dar um grande destaque a
nomes como José Joaquim Teixeira Lopes e António Teixeira Lopes, figuras
de referência incontornável no panorama nacional e internacional. Gaia sabe
honrar as suas raízes e colocar no devido lugar todos aqueles que fizeram
e fazem desta cidade um “Todo um Mundo”. Aliás, estar em Vila Nova de
Gaia e não visitar a Casa-Museu Teixeira Lopes assemelha-se a ir a Roma e
não ver o Papa! Aqui permanece o mobiliário original, além dos originais da
obra do Mestre António Teixeira Lopes (em gesso, mármore, bronze e vários
desenhos a sanguínea, carvão, lápis e sépia). A coleção é extensa, o prazer da
visita, esse, é inenarrável.
A herança dos Teixeira Lopes, em particular do pai, também se materia-
liza na cerâmica, com uma forte ligação à Fábrica da Cerâmica das Devesas,
onde trabalhou e iniciou os seus primeiros contactos nesta área. Este é, hoje,
um dos mais relevantes imóveis com valor histórico e cultural do concelho,
tendo uma importância arqueológica e arquitetónica ímpar que a Câmara
pretende preservar, através do futuro Museu da Cidade. O significado his-
tórico da atividade industrial no concelho, e em particular a relação com os
movimentos artísticos centrados nas figuras de Soares dos Reis e Teixeira
Lopes, confere àquele complexo industrial um valor excecional de enorme
importância estratégica para o desenvolvimento futuro da cidade, reforçado
pela localização privilegiada da fábrica junto à estação de comboios das De-
vesas. Também os painéis de azulejos que compõem o muro que circunda as
ruínas deste espaço já estão classificados e vão ser preservados, numa valo-
rização de outra das artes que tão bem caracteriza a nossa cidade e o nosso
passado coletivo. É nosso dever defender e preservar este património.
5. 5
Não posso deixar de falar de arte sacra. Ao percorrer o extenso território
de Vila Nova de Gaia, é fácil perceber a importância e a riqueza do patrimó-
nio histórico aqui existente, sendo que a arte sacra e religiosa assume um
lugar de relevo. Em cada uma das 24 freguesias, existem inúmeras igrejas,
capelas e mosteiros que, além de guardarem peças de elevado interesse artís-
tico, são elementos de grande valor patrimonial, estético e histórico.
Vila Nova de Gaia é tudo isto. Gaia faz e é história. É património. É tradi-
ção que enche de vida o concelho em notas de genuinidade e de autenticida-
de que lhe fortalecem o carácter. O seu património pode ver-se multiplicado
em postais pelo mundo fora, mas é cá dentro, no nosso coração, no nosso
pulsar, que está a essência desta cidade.
Termino com uma palavra de profundo agradecimento a toda a equipa
coordenada pelo Prof. Dr. Gonçalves Guimarães, pelo empenho, pela pai-
xão, pela inestimável partilha. Encerro este prefácio da mesma forma que
terminei o primeiro de dez volumes de um património literário que muito
me orgulha deixar como herança às gerações vindouras: “consultar um des-
tes volumes é vermo-nos ao espelho, é um olhar sobre nós mesmos e sobre
a realidade que nos envolve. E, já agora, a partir daí projetarmos o nosso
futuro coletivo”.
Vila Nova de Gaia, 25 de março de 2022
Eduardo Vítor Rodrigues
Presidente da Câmara Municipal de Vila Nova de Gaia
6.
7. 7
Desde 1982 que o então criado Gabinete de História e Arqueologia de Vila
Nova de Gaia iniciou o levantamento, estudo e divulgação profissional do pa-
trimónio gaiense em textos, palestras, exposições e publicações disponibilizadas
ao público ao longo destes anos. Porém nunca de uma forma tão sistematizada
como no presente projeto denominado Património Cultural de Gaia (PACUG)
proposto pelo presidente da Câmara Municipal de Vila Nova de Gaia, Prof.
Doutor Eduardo Vítor Rodrigues, ao atual Gabinete de História, Arqueologia e
Património, integrado na associação cultural Amigos do Solar Condes de Resen-
de – Confraria Queirosiana. Para a sua concretização este grupo de investigação
organizou dez equipas de profissionais, uma para cada volume temático, dirigi-
das pelo respetivo coordenador e compostas por investigadores com curriculum
académico adequado e obra produzida na respetiva área temática.
Tendo de imediato deitado mãos ao trabalho, rapidamente se constatou que
os ritmos de investigação e de produção de cada um dos dez volumes em que
irá materializar-se o projeto iam ser diversos, pois na realidade os diferentes
patrimónios gaienses, além de se encontrarem com pesos culturais muito de-
sencontrados, estavam em situação de possibilidades de abordagem, e até de
acesso, também diferentes. Será fácil perceber que o Património Arqueológico,
por exemplo, se comparado com o Artístico, o primeiro existe em muito menor
quantidade e é de mais difícil identificação, pois embora existam em Gaia mui-
tas estações arqueológicas, em grande parte delas não foi sequer ainda iniciada
qualquer intervenção ou, no caso das que parcialmente o foram, o seu espólio
não foi ainda devidamente patrimonializado, para além de pequenas exceções.
Por outro lado, quase toda a produção artística das áreas não performativas
- Escultura, Pintura, Tapeçaria… - logo desde a sua conceção e criação nasce
para ser imediatamente património, isto é, concebida, executada, vendida, exibi-
da, interpretada, visitada e usufruída como tal.
Estas questões concretas que se materializam neste projeto são suportadas
por uma constante reflexão teórica sobre o que é o Património e o que o indi-
vidualiza face à História, à Arqueologia, à Arquitetura, à Museologia, à Geogra-
fia, ao próprio Turismo e a outras disciplinas do conhecimento, que nos levam
ao entendimento de que Património são todas as manifestações da Natureza e
todas as criações humanas, materiais ou imateriais, com memória e qualidade,
suscetíveis de originarem mais valias culturais no presente e que devem ser trans-
mitidas ao futuro conservadas e valorizadas, como testemunhos insubstituíveis
das pessoas e épocas que nos precederam e como herança do porvir. É por essa
PATRIMÓNIO CULTURAL DE GAIA (PACUG)
ESPALHADO PELO MUNDO
8. 8
razão que os povos de expressão inglesa o designam como Heritage (herança).
Mas também sabemos que a apreensão prática do seu conceito, não no sentido
individual, mas coletivo, não é fácil, mesmo para muitos profissionais daquelas
áreas. O Património, ainda que muito privado, é sempre coletivamente entendi-
do como público e, neste caso, queremos que assim seja assumido por toda a
Comunidade Gaiense.
Daí que os volumes do PACUG vão sendo terminados a velocidades diferen-
tes, pois existem neles, nos seus temas, nos seus coordenadores e em muitos dos
seus autores, tempos diferentes para a apreensão do objeto ou a sua construção,
a sua disponibilização interpretativa e a sua divulgação.
Por todos estes motivos o primeiro volume publicado deste projeto foi sobre
o Património Humano. Personalidades Gaienses, aqueles que ao longo de vinte séculos
deixaram de si memória e marcas no território, manifestações da sua identidade
em instituições que ainda perduram, uma certa maneira de ser e de pensar onde
a atualidade se revê.
Uma grande parte destas pedras vivas não nasceu no território gaiense, o que
não é para estranhar se nos lembrarmos que esta terra sempre foi estrada de che-
gada e porto de partida. Desde o século V a. C., para além de um escasso fundo
étnico indígena ibérico, que certamente sempre esteve presente, aqui chegaram
túrdulos-velhos, cartagineses, romanos, suevos, visigodos, mouros, vikings, astu-
ro-leoneses, galegos, europeus de várias latitudes, nómadas do Leste, africanos,
brasileiros e orientais, para além de portugueses de todo o País. O painel étnico
local sempre foi diversificado e multicultural e isso reflete-se no seu Património
Humano, o qual, estando por estudar nas suas origens e evolução, ao longo
de últimos dois mil anos, ainda que com enormes hiatos por preencher, subli-
mou-se num painel de duzentas e cinquenta e uma personalidades descritas no
primeiro volume, algumas das quais conhecidas da História mundial, outras da
europeia, muitas da nacional, outras apenas da regional e local, muitas delas já
conhecidas de outras memórias coletivas – mas porventura menos conhecidas
as suas ligações a Gaia – outras apenas presentes em memórias restritas e outras
esquecidas para o devir, que assim as resgatamos até da distraída ingratidão dos
tempos.
Determinando o critério historiográfico deste projeto em que só seriam con-
siderados os homens e mulheres que incorporaram na sua vida e obra alguma
gaialidade para além da geografia ou da circunstância do nascimento e que tives-
sem falecido antes de 31 de dezembro de 2000, constatamos assim que a grande
maioria dos biografados viveram no século XIX (65%); enquanto que no século
XVIII, 13%; e no século XX, apenas 11%, tantos como os restantes que viveram
nos 1700 anos anteriores, sendo certo que entre os séculos II e o VII, durante
600 anos, ninguém por aqui se individualizou a ponto de haver notícias suas para
uma simples página. Ou então ainda permanece nas arcas do olvido à espera que
a investigação histórica o revele.
Apesar destas assimetrias, tal reflete uma grande coerência, pelo menos esta-
tística, entre aquele primeiro volume já publicado e este que agora se apresenta e
certamente com os que se seguirão. Estando ligada à definição – até do nome –
do país a haver, por se situar na principal passagem do Rio Douro a unir o Sul ao
9. 9
Norte e, tendo fornecido homens e mulheres para a Expansão portuguesa e eu-
ropeia, depois do período em que definhou por ter sido integrada no Termo do
Porto, uma estrutura centralizadora em proveito daquela cidade, Vila Nova de
Gaia desenvolveu-se imenso a partir do século XVIII com a construção naval e a
implantação de inúmeros armazéns ribeirinhos para acolherem produtos nacio-
nais para exportação (vinho, cortiça, azeite e fruta) para o Norte da Europa, mas
também para as relações comerciais com o Brasil, e sobretudo com a criação da
Companhia Geral da Agricultura das Vinhas do Alto Douro cujas estruturas ofi-
cinais, em Vila Nova e em Lever, iniciaram aqui a era industrial. No século XIX,
para além do crescimento da zona ribeirinha como grande estrutura portuária na
metade sul do porto flúvio-marítimo do Douro terminal, até à criação do Porto
de Leixões, também o seu desenvolvimento se evidenciou como importante área
de construção naval, tanoaria e caixotaria, cerâmica, serralharia, cortiça, moagem
e outras atividades, transformando-se numa potência oficinal que continuou a
exportar para o Brasil, de onde lhe chegavam o açúcar, couros, madeiras, arroz
e muitos outros produtos. No século XX viu criar aqui o Entreposto do Vinho
do Porto com o seu exclusivismo e protecionismo estatais que contribuíram
para a dispersão de todas aquelas outras atividades para diferentes paragens e o
consequente empobrecimento do município, não apenas no seu tecido material,
mas também no humano, com exceção do setor artístico, que continuou pujante.
Mostra-se assim que os diversos patrimónios não existem desligados da História
que os emoldura, quer na sua génese e conceção, quer no destino final.
Pelo que se publicou sobre as figuras gaienses consideradas, que não são ob-
viamente todas as possíveis, mas aquelas que os historiadores encontraram no
tempo previsto para a conclusão do volume, facilmente se verifica que este Pa-
trimónio Humano Gaiense, longe de se restringir ao pátrio berço, muito dele se
foi ao mundo e aí permanece em obras e, às vezes, também em memórias locais
pouco conhecidas, ou mesmo desconhecidas na terra-mãe.
Não será pois de estranhar que no livro que agora se edita sobre o Patrimó-
nio de Gaia no Mundo haja uma grande coincidência de nomes e tempos entre
os dois volumes no que diz respeito a ambos os patrimónios, o humano e o
aqui produzido, que levaram à consolidação da imagem de Vila Nova de Gaia
como terra de arquitetos, pintores e escultores presente em muitas outras, desde
modestas vilas até às grandes cidades, em Portugal inteiro e pelo Mundo, este
magnificado nesse imenso Brasil. Nos dias de hoje, através da deambulação in-
dividual ou coletiva em trabalho ou em vilegiatura, graças às facilidades da ima-
gem, esse Património percorre todo o Mundo. Os autores deste volume, na sua
maioria historiadores, mas também alguns outros profissionais de áreas afins que
com os primeiros colaboram, estão aqui a descrevê-lo e a explicá-lo.
J. A. Gonçalves Guimarães
Coordenador geral
10. 10
Fig. 1 – Frontispício com alegoria às artes e à
indústria cerâmica na sucursal da Fábrica de
Cerâmica das Devesas na Pampilhosa. Foto de
Francisco Queiroz.
Fig. 2 – Uma das balaustradas em barro ver-
melho do mostruário subsistente na fachada
principal da sucursal da Fábrica de Cerâmica
das Devesas na Pampilhosa. Foto de Francisco
Queiroz. Já depois de escrita esta introdução, o
mostruário de balaustradas foi demolido por or-
dem do proprietário, o Município da Mealhada,
o que bem mostra a fragilidade deste Patrimó-
nio, sobretudo quando escasseiam estudos que
demonstrem a sua importância.
Devido sobretudo à sua situação geográfica si-
multaneamente costeira e na embocadura de um
grande rio, desde tempos imemoriais que Vila Nova
de Gaia foi local privilegiado de chegadas. Porém,
foi também terra de partidas. Nos dois sentidos, os
protagonistas desta mobilidade enriqueceram com o
que levaram e com o que trouxeram. Várias marcas
desta mobilidade - tangíveis e, em alguns casos, in-
tangíveis - são hoje particularmente valiosas. Alguns
dos que chegaram trouxeram obras ou colecções
que, pelos mais diversos motivos, são presentemen-
te consideradas como valores patrimoniais, ainda
que detidos por privados. Em contrapartida, muitos
gaienses, directa ou indirectamente, deixaram nou-
tras latitudes obras hoje entendidas como bem patri-
monial. É este, em suma, o Património que integra
o presente volume do projecto Património Cultural
de Gaia, intitulado Património de Gaia no Mundo.
Este volume refere-se a edifícios e obras de arte
oferecidas, custeadas ou executadas por gaienses e
hoje fruíveis fora do concelho de naturalidade ou
origem dos seus autores ou encomendantes. Como
é óbvio, muito Património ficou de fora ou foi ape-
nas mencionado vagamente, quer por já não existir
integralmente, quer por não ser fruível, por desco-
nhecimento da sua existência, por falta de dados já
pesquisados sobre o tema, por falta de investigado-
res idóneos disponíveis para os tratar no presen-
te volume, por falta de espaço no mesmo, ou por
carência de tempo. Como a nossa intenção inicial,
assumidamente idealista, foi obter um volume o
mais abrangente possíveI, esta introdução, além de
aludir vagamente aos textos do volume, menciona
também vários exemplos de Património relevante
que não foram tratados em qualquer texto. Deste
modo, não só evitamos que o volume seja omisso
relativamente a tópicos importantes, como também
alertamos para temáticas que requerem mais estudo.
De acordo com os propósitos do próprio pro-
jecto editorial Património Cultural de Gaia, faz-se
um ponto da situação relativamente ao Património
Gaiense no Mundo: o que já se sabe; o que se pen-
sava já saber mas que afinal precisa de ser revisto ou
completado; e o muito que ainda está por estudar.
O PATRIMÓNIO GAIENSE NO MUNDO
INTRODUÇÃO
11. 11
Para os séculos que precederam a centúria de Oi-
tocentos, as obras de arte e outros artefactos que de
Gaia saíram e subsistiram, no caso dos que são hoje
de proveniência identificável e estão minimamente
estudadas não se encontram, em geral, muito distan-
tes. O mesmo aplica-se, naturalmente, a bens imó-
veis executados por artistas de Gaia. Na sua maioria,
localizam-se na vizinha cidade do Porto - o princi-
pal núcleo de encomendas de toda a região norte
do país. Contudo, os pedreiros de Gaia tinham, no
Porto, a concorrência dos pedreiros do aro norte
desta cidade, onde havia granito de boa qualidade
para cantarias - facto que se nota também na pró-
pria história da construção do emblemático edifício
setecentista dos Clérigos, em grande parte dirigida
pelo mestre Manuel António de Sousa, de Vilar de
Andorinho (LOPES; QUEIROZ, 2014: 157). Di-
ficilmente os pedreiros de Gaia iriam dirigir obras
a norte do Porto. A sul do concelho, os pedreiros
de Gaia tinham menor concorrência e mais falta de
boa pedra, embora também menos núcleos urbanos
pujantes e com clientela suficientemente endinheira-
da para fazer encomendas, sobretudo considerando
que transportar pedras, nessa época, não era fácil em
longas distâncias. De qualquer modo, há muito por
pesquisar sobre este tema.
No caso da cerâmica gaiense anterior a Oito-
centos, essa ter-se-á dispersado por locais bastante
mais distantes, sendo de referir, por exemplo, que a
própria obra régia do Convento de Mafra terá sido
fornecida com telha produzida em Gaia - o que diz
muito do bom conceito que tinham as olarias do
concelho, nomeadamente em Santa Marinha (es-
pecialmente em Coimbrões) e na Madalena. A lou-
ça branca de Vila Nova de Gaia, nomeadamente a
das suas mais antigas fábricas setecentistas, como
Cavaco e Santo António do Vale da Piedade, seria
também distribuída por várias partes de Portugal
continental, e não só, sobretudo para clientes com
maior poder aquisitivo, como fidalgos, ou casas con-
ventuais. Porém, trata-se de outro tema que requer
bastante pesquisa para que possamos obter uma
ideia da dispersão destas peças pelo território portu-
guês. De qualquer modo, como eram quase todos de
uso comum, tais artefactos cerâmicos foram sendo
substituídos e hoje não é fácil encontrá-los com pro-
veniência identificada e fruíveis como Património.
Por um lado, a louça de barro comum, sobretudo
aquela concebida para cozinhar, foi sendo substi-
tuída no século XIX por louça de ferro. No século
PATRIMÓNIO DE GAIA NO MUNDO
Fig. 3 – Aspecto do acervo cerâmico do GEDEPA
(Grupo Etnográfico de Defesa do Património e
Ambiente da Região de Pampilhosa), com peças
de barro vermelho para telhados e formas em
gesso, provenientes das fábricas da Pampilhosa
fundadas por gaienses. Foto de Francisco Queiroz.
12. 12
XIX surgiram também fábricas que começaram a
produzir louça cerâmica de outros tipos, a qual foi
substituindo a mais antiga existente.
É de supor que, para as antigas possessões ultra-
marinas - sobretudo para o Brasil - já antes do sécu-
lo XIX saíram oficiais de pedraria ou de olaria gaien-
ses, havendo mesmo alguns casos documentados da
influência de Gaia no Brasil. Um deles é José Pereira
dos Santos, arquitecto de Gaia do período barroco
com obra relevante no Brasil, abordado logo ao iní-
cio deste volume. Para as centúrias que precedem
Oitocentos há também notícia de artistas gaienses
da área das madeiras com obra fora do concelho,
como Serafim da Silva Soares, entalhador represen-
tado com peças em Braga (LEÃO, 2005: 148).
Contudo, foi com o século XIX que Gaia efec-
tivamente se projectou de modo visível para todo
o país, para o Brasil, e também para as principais
cidades das antigas colónias, com artefactos, ou com
outro tipo de realizações que ainda hoje podem ser
apreciadas, musealizadas ou in situ.
A tradição cerâmica gaiense, num contexto de
forte procura no Porto e noutros centros urbanos,
desenvolveu-se ao ponto de Vila Nova de Gaia ter
sido, entre o último terço de Oitocentos e os pri-
meiros anos de Novecentos, o principal núcleo por-
tuguês de produção de cerâmica para decoração de
edifícios e um dos principais núcleos de produção,
quer de louça decorativa e utilitária, quer de materiais
de construção. No presente volume, alguns textos
dão conta disso mesmo. Assim, são abordados os
azulejos para revestimento de fachadas e de interio-
res, a estatuária e todo o tipo de ornamentos cerâmi-
cos para platibandas e jardins, além de ornatos para
telhados. O presente volume inclui uma abordagem
de enquadramento ao tema e ainda abordagens es-
pecíficas sobre casos particularmente interessantes:
o do concelho de Ovar (onde a sede de concelho
é conhecida como “cidade museu do azulejo”, ha-
vendo largas dezenas de aplicações com artefactos
provenientes de Gaia), o do concelho da Mealhada
(onde a presença da cerâmica gaiense foi marcante,
sobretudo devido à sucursal da Fábrica de Cerâmi-
ca das Devesas na Pampilhosa e à sua concorrente
fábrica de Mourão, Teixeira Lopes & Ca.), e o de S.
Mamede de Ribatua (devido a ser a localidade de
origem da família Teixeira Lopes). É também abor-
dada neste volume a importância das artes cerâmi-
cas de Gaia no nascimento da indústria de cerâmica
decorativa na Ilha de S. Miguel, nos Açores.
Fig. 4 e 5 – Aguadeiro e Varina, figuras de cos-
tumes de José Joaquim Teixeira Lopes, na Casa
Museu Fernando de Castro, Porto. Foto de Fran-
cisco Queiroz.
INTRODUÇÃO
13. 13
Ainda dentro do tema da cerâmica oitocentista
produzida em Gaia, o presente volume inclui um
texto sobre o acervo do Museu Nacional Soares
dos Reis, no Porto, e do Museu do Açude, no Rio
de Janeiro, sendo de notar que a cerâmica de Gaia
está representada em vários outros museus e colec-
ções. Em nenhum dos textos são referidas as peças
de costumes fabricadas em Gaia no século XIX, as
quais serão possivelmente das melhores que, do gé-
nero, se fizeram em Portugal, sendo particularmen-
te notável a colecção da Sociedade de Geografia de
Lisboa (CRUZ, 2017). Em textos à parte, merece-
ram também destaque neste volume: o acervo do
Instituto Portucale de Cerâmica Luso-Brasileira, de
São Paulo, nomeadamente as peças das fábricas das
Devesas, Pereira Valente e Santo António do Vale
da Piedade; os painéis historiados da Igreja de S. Vi-
cente, em Braga, de José Joaquim Teixeira Lopes; e a
presença de artefactos cerâmicos gaienses em Pelo-
tas, no Rio Grande do Sul (Brasil). É de realçar que
não se conhecem em Portugal várias das peças de
fabrico gaiense mencionadas nos textos sobre acer-
vos existentes no Brasil.
Infelizmente, apesar da grande tradição gaiense
de santeiros e escultores em madeira, de Oitocen-
tos e da primeira metade de Novecentos, o presente
volume inclui poucos conteúdos sobre a temática. A
icónica imagem em madeira da Rainha Santa Isabel,
de António Teixeira Lopes e Albino Barbosa, e a
iconografia da Nossa Senhora do Rosário de Fáti-
ma são os únicos textos que receberam tratamento
à parte. O já referido texto sobre artefactos gaienses
em Pelotas também inclui arte sacra em madeira. Po-
rém, o tema da arte sacra executada em Gaia, quer
através de peças localizadas em Portugal continental
e ilhas, quer através de peças subsistentes no Brasil
(e mesmo em paragens ainda mais distantes), requer
maior desenvolvimento em estudos posteriores. A
título de exemplo, José Fernandes Caldas tem obras
de imaginária sacra no Bom Jesus de Braga (o grupo
do descimento da cruz, por exemplo), na Capela de
Nossa Senhora dos Anjos da Rua dos Bragas, no
Porto (SILVA, 1980), na Ericeira (Santo António
e Santa Maria Madalena), ou nas Velas, na Ilha de
S. Jorge (Nossa Senhora do Rosário), apenas para
mencionar alguns exemplos documentados (LEÃO,
2005: 112-113). José Fernandes Caldas deixou tam-
bém obras no Brasil, não só em igrejas, mas também
em praças, sendo conhecidos os casos do busto do
Barão de Rio Branco em Ribeirão Preto, de 1913, e
o monumento a Verdi.
Fig. 6 – Estátua do Judeu Errante, concebida por
José Joaquim Teixeira Lopes, no Hotel Manta, em
Pelotas, Brasil. Foto de José Francisco Alves.
Fig. 7 – Sé da Guarda, imagem de Nossa Senhora
de Lourdes, esculpida por José Fernandes Caldas
e pintada por Albino Pinto Rodrigues Barbosa em
1905. Foto de Francisco Queiroz.
PATRIMÓNIO DE GAIA NO MUNDO
14. 14
João de Afonseca Lapa é outro artista oitocentis-
ta estabelecido em Gaia que teria merecido um texto
à parte, pela qualidade da obra e pelo modo como
esta se disseminou (BARBOSA, 1991; LEÃO, 2005:
102-103). Conhecem-se obras suas no Santuário do
Senhor de Matosinhos (de 1865), no Bom Jesus de
Braga (da década de 1880), na Igreja de Fão (o Sa-
grado Coração de Jesus, de 1895, pintado por Diogo
Coimbra Sampaio), no Calvário de S. Martinho de
Mouros (dois Cristos, de 1896, pintados por Albino
Barbosa), em Guimarães (na Ordem Terceira de S.
Francisco), em diversas igrejas da Póvoa de Varzim
e de Vila do Conde (de onde era natural o artista),
no Santuário da Assunção de Monte Córdova, em
Santo Tirso (de 1901), em Santo Aleixo do Tâmega,
concelho de Ribeira de Pena (Nossa Senhora Rainha
dos Anjos, de 1893), e na Fajã de Cima, no concelho
de Ponta Delgada. Há também obras suas no Bra-
sil, nomeadamente na cidade de Oliveira, em Minas
Gerais (de 1876, obras tombadas como Património
histórico), e em Porto Alegre, onde a sua imagem de
Nossa Senhora dos Navegantes é objecto de grande
devoção. João de Afonseca Lapa tem também obras
nos Estados Unidos da América, nomeadamente em
Fall River, Massachusetts, e até em Goa (na Basílica
do Bom Jesus, de 1906). Por norma, as peças assi-
nadas por João de Afonseca Lapa contêm a menção
à sua oficina e a indicação de que se situava em Vila
Nova de Gaia.
Relativamente à arquitectura, para o século XIX
há que mencionar os Sardinha, de Pedroso (QUEI-
ROZ, 2002: II, 518-520). Esta verdadeira dinastia de
mestres pedreiros que - num processo muito comum
na segunda metade de Oitocentos - culminou num
Fig. 8 – Detalhe da flagelação de Jesus, de João de
Afonseca Lapa, numa das capelas do Bom Jesus
de Braga. Foto de Francisco Queiroz.
Fig. 9 – S. José, por António Soares dos Reis, na
capela privativa da família Pestana, no Porto. Foto
de Francisco Queiroz.
Fig. 10 – Viana do Castelo, Teatro Sá de Miranda, projectado pelo arquitecto
gaiense José Geraldo da Silva Sardinha («O Occidente», n.º 230, 11 de Maio
de 1885, p. 108).
INTRODUÇÃO
15. 15
arquitecto formado pela Academia de Belas Artes
do Porto (do qual viria a ser director), influenciou
bastante a arquitectura da cidade do Porto duran-
te todo o século XIX. João da Silva - também co-
nhecido como João Geraldo da Silva Sardinha - foi
o primeiro mestre pedreiro da Igreja da Trindade,
equiparado a arquitecto, tendo construído os arcos
da abóbada. O seu filho, Francisco Geraldo da Sil-
va Sardinha (falecido em 1884), trabalhou também
nesta obra como ajudante, obra essa que – numa
fase mais tardia – foi dirigida pelo filho deste e neto
daquele, José Geraldo da Silva Sardinha (1845-1906;
SARDINHA, 1984:17).
José Geraldo da Silva Sardinha, projectou e/ou
dirigiu a obra de muitos edifícios fora de Gaia, pú-
blicos e privados. A título de exemplo, destacamos:
a capela da secção privativa da Ordem da Trindade
no Cemitério de Agramonte (no Porto), o Grande
Hotel do Porto, o Colégio dos Órfãos de S. Caetano
(em Braga), e o Teatro Sá de Miranda (em Viana
do Castelo). Para o século XX, no presente volume
são abordados alguns arquitectos de Gaia com obra
relevante fora do concelho, como José Teixeira Lo-
pes, Francisco de Oliveira Ferreira ou António Júlio
Teixeira Lopes. Outros, porém, acabaram por não
ser contemplados, como Manuel Marques.
Relativamente à escultura, este volume não pode-
ria deixar de mencionar com algum detalhe algumas
das inúmeras obras de vários artistas de Gaia espa-
lhadas pelo país e fora dele. Depois da cerâmica, a
escultura é possivelmente o tema com mais textos
neste volume, o que não surpreende, atendendo à
qualidade dos escultores de Gaia, sobretudo na se-
gunda metade do século XIX e na primeira metade
do século XX. Predominam aqui os textos sobre
escultura pública. Assim, são mencionadas à parte
obras emblemáticas como a estátua alegórica de “O
Porto”, o monumento a D. Afonso Henriques, em
Guimarães, ou o monumento a Avelar Brotero, no
Jardim Botânico de Coimbra. São também aborda-
dos vários monumentos em memória dos mortos
da Guerra Peninsular e da Primeira Grande Guerra
concebidos e/ou executados por artistas de Gaia em
vários pontos do país. São ainda analisadas outras
obras de escultura no espaço público fora de Portu-
gal, como as portas da Candelária, no Rio de Janeiro,
e o monumento ao General Bento Gonçalves, na
cidade de Rio Grande. Porém, ficaram por abordar
outras importantes obras de artistas gaienses no
Brasil, como o monumento ao Barão de Rio Bran-
co, em Ribeirão Preto. Mesmo no que diz respeito
Fig. 11 – Conde de Ferreira, por José Joaquim
Teixeira Lopes, no jardim que precede o hospital
com o seu nome. Foto de Francisco Queiroz.
Fig. 12 – Monumento dedicado a D. Pedro V na
Praça da Batalha, no Porto. Foto de Francisco
Queiroz.
PATRIMÓNIO DE GAIA NO MUNDO
16. 16
a Portugal continental, ficaram por tratar neste vo-
lume obras relevantes no espaço público de artistas
gaienses, como as estátuas de santos concebidas por
António Soares dos Reis para a capela dos Pesta-
nas, no Porto (Fig. 10), ou o monumento público
dedicado a Passos Manuel, colocado em 1864 no
passeio público de Matosinhos e hoje noutra parte
desta cidade. Este monumento foi uma das primei-
ras colaborações entre António Almeida da Costa
e José Joaquim Teixeira Lopes, precedendo a pró-
pria Fábrica de Cerâmica das Devesas (QUEIROZ,
2002: II, 20).
A escultura pública da autoria de José Joaquim
Teixeira Lopes por si só mereceria um texto à par-
te. Desde o monumento a D. Pedro V na Praça da
Batalha, ao monumento ao Conde de Ferreira no
hospital com o seu nome, passando por uma das
figuras de remate do edifício do Hospital de Santo
António, José Joaquim Teixeira Lopes marcou o pa-
norama da escultura pública na cidade do Porto na
segunda metade do século XIX (PORTELA, 2004).
Neste volume não são analisadas outras obras fun-
damentais de José Joaquim Teixeira Lopes, como o
baptistério da Sé do Porto.
A produção de António Teixeira Lopes para es-
cultura pública também não foi objecto de uma aná-
lise detalhada. Aquela que terá sido talvez a obra de
maior impacto - o monumento a Eça de Queiroz em
Lisboa - mereceu um texto à parte. Porém, ficaram
por abordar outras obras merecedoras de análise,
como o busto de João Franco em Guimarães, ou
um fogão de sala em mármore no Palácio da Bolsa,
no Porto (LEÃO, 2005: 76). Ficaram por analisar
também obras de António Teixeira Lopes em outros
suportes, como uma de ourivesaria em Oliveira de
Azeméis (LEÃO, 2005: 64-67).
Relativamente a escultores que foram discípulos
e/ou colaboradores de António Teixeira Lopes, o
presente volume inclui diversas menções a escultura
pública, sobretudo sobre a obra de Rodolfo Pinto de
Couto no Brasil, até aqui pouco conhecida. O escul-
tor José de Oliveira Ferreira recebe também algumas
menções, assim como Joaquim Gonçalves da Silva.
Porém, estes mereceriam um texto à parte, no se-
gundo caso sobretudo pelos seus trabalhos de deco-
ração arquitectónica, nomeadamente na Ourivesaria
Reis, e no Teatro S. João, edifícios situados no Porto.
Apesar disso, os mais importantes escultores gaien-
ses da segunda metade de Oitocentos e da primeira
metade de Novecentos são neste volume abordados
INTRODUÇÃO
Fig. 13 – Baptistério da Sé do Porto. Foto de Fran-
cisco Queiroz.
Fig. 14 – Grupo escultórico no portal do Museu
Militar de Lisboa, de António Teixeira Lopes.
Foto de Francisco Queiroz.
17. 17
em textos sobre acervos de museus portugueses: o
Museu Nacional Soares dos Reis, o Museu Nacio-
nal de Arte Contemporânea, em Lisboa, e o Mu-
seu Malhoa, nas Caldas da Rainha. António Soares
dos Reis, António Fernandes de Sá, Augusto Santo,
António Alves de Sousa, Joaquim Meireles, Gladys
Giddy, José Fernandes de Sousa Caldas, José Pereira
dos Santos, Diogo de Macedo, António de Azevedo,
José Maria de Sá Lemos, Adolfo Marques, e Manuel
Ventura Teixeira Lopes são os escultores com obras
analisadas nesses textos. O volume inclui também:
um texto sobre o monumento a António Enes, obra
de António Teixeira Lopes em Moçambique; outro
sobre o busto de Camões, de José Fernandes de
Sousa Caldas, em Vigo; outro sobre a prolixa obra
de escultura pública de Henrique Moreira; outro so-
bre a obra de Zeferino Couto fora de Gaia; e outro
ainda sobre a obra de António de Azevedo em Fa-
malicão, sendo que este artista deixou peças outras
em outras localidades, aqui não abordadas.
Em termos de escultura, o Património gaiense
no mundo seria virtualmente impossível de tratar,
mesmo num volume à parte, atendendo à quantida-
de de peças e ao facto de muito estar por estudar re-
lativamente a vários artistas e suas obras. Apenas a
título de exemplo, mencionamos algumas obras que
não puderam ter a devida atenção neste volume:
o monumento a Fernandes Tomás na Figueira da
Foz, de António Fernandes de Sá; a sua obra Rapto
de Ganimedes, cujo bronze se encontra num jardim
do Porto, o busto do monumento ao Marquês de
Pombal, em Pombal, igualmente obra de Fernandes
de Sá; as figuras alegóricas sobre a tribuna da presi-
dência e sobre uma das tribunas do corpo diplomá-
tico na sala das sessões da Assembleia da República,
de António Teixeira Lopes; ou a estátua em bronze
da chamada Fonte do Garoto, na Pampilhosa do
Botão, de 1915, igualmente da autoria de António
Teixeira Lopes. Este volume também praticamen-
te não aborda os bronzes de Adelino Sá Lemos
nem os monumentos públicos devidos à oficina
do filho, José Maria Sá Lemos, nomeadamente em
Mirandela, Estremoz ou Paredes de Coura (LEÃO,
2005: 20, 131).
O presente volume é enriquecido com um tex-
to sobre a Fonte Ramos Pinto, no Rio de Janeiro,
que, não tendo sido concebida por artistas gaien-
ses, foi encomendada por uma importante empresa
de Gaia.
PATRIMÓNIO DE GAIA NO MUNDO
Fig. 15 – Monumento a Fernandes Tomás (postal
antigo).
Fig. 16 – O Rapto de Ganímedes, no Porto. Foto
de Francisco Queiroz.
18. 18
Infelizmente, por circunstâncias várias, neste vo-
lume a pintura de autores gaienses está quase ausen-
te. É certo que a pintura, em Gaia, ficou na sombra
da escultura. Ainda assim, o incontornável Guilher-
me Camarinha é abordado em texto próprio, devido
à presença da sua obra em edifícios públicos do país,
a começar pela grande tapeçaria existente na sala de
leitura da Biblioteca Nacional, de 1965, e por ou-
tra tapeçaria na Assembleia Legislativa Regional da
Madeira, no Funchal. Este artista tem outras obras
no Funchal, nomeadamente na própria capela do
Cemitério das Angústias, em material cerâmico e re-
presentando S. Miguel e as Almas, datando da déca-
da de 1950. Tal obra não é analisada no texto deste
volume sobre a cerâmica gaiense existente em cemi-
térios portugueses, visto que o texto incide sobretu-
do sobre a segunda metade de Oitocentos e sobre
a primeira metade de Novecentos. Por conseguinte,
não são analisadas neste volume obras relevantes em
suporte cerâmico feitas em Gaia e que podem ser
encontradas em cemitérios tão distantes como o da
Lagoa, na Ilha de S. Miguel (neste caso, da autoria
do pintor de azulejos Fernando Gonçalves).
O presente volume inclui também um texto so-
bre outras marcas de Gaia na tumulária existente no
país, que não as consubstanciadas em peças de ce-
râmica. Assim, são abordados túmulos concebidos
e/ou executados por António Soares dos Reis, José
Joaquim Teixeira Lopes, António Teixeira Lopes
e o seu irmão José Teixeira Lopes, António Fer-
nandes de Sá, e os irmãos José e Francisco Oliveira
Ferreira. Um texto à parte incide sobre o túmulo
Andresen, dos irmãos Teixeira Lopes, no Cemitério
de Agramonte.
Ainda sobre o tema da cerâmica, este volume in-
clui um texto sobre a azulejaria do século XX pro-
duzida na Fábrica do Carvalhinho depois de esta se
instalar no Arco do Prado, vinda do sítio do Carva-
lhinho, no Porto. Centra-se sobretudo na produção
de painéis figurativos, ainda que seja apenas um re-
sumo forçosamente redutor, pois a produção desta
fábrica, após a sua instalação em Vila Nova de Gaia,
é bastante extensa. Em texto à parte, são menciona-
dos os painéis que nesta fábrica foram feitos para
colocação no Santuário da Senhora dos Remédios,
em Lamego, onde António Teixeira Lopes e Fran-
cisco de Oliveira Ferreira também deixaram obra.
Alguns registos devocionais da Fábrica do Carvalhi-
nho são ainda mencionados num outro texto. Um
dos pintores que mais projectou a Fábrica do Carva-
lhinho foi Paulino Gonçalves, natural de Mafamude.
INTRODUÇÃO
Fig. 17 – A influência da chamada “escola de es-
cultura” de Gaia é bem visível em vários locais da
Pampilhosa, no concelho da Mealhada. Foto de
Francisco Queiroz.
Fig. 18 – A influência de Gaia no Património In-
dustrial do país afere-se pelo número de fábricas
que imitaram a Fábrica de Cerâmica das Devesas
em termos tecnológicos e mesmo em termos de
gama de produção. Na imagem, o escritório da
Fábrica Oliveira Rocha, em Oliveira do Bairro,
fundada por filhos de um dos sócios da Fábrica
das Devesas. Foto de Francisco Queiroz.
19. 19
PATRIMÓNIO DE GAIA NO MUNDO
Fig. 20 – Detalhe do grande painel de azulejos de Viseu pintados em 1931 por Joaquim Lopes. Foto de Francisco Queiroz.
Fig. 19 – Grande painel de azulejos executado na Fábrica do Agueiro para o Rossio de Viseu. Os azulejos foram pintados em 1931 por Joaquim
Lopes. Foto de Francisco Queiroz.
20. 20
Porém, do período em que a fábrica ainda estava no
Porto, este volume não reflecte a sua obra, a qual
mereceria um estudo à parte. O espólio da Fábrica
do Carvalhinho que pertenceu ao seu último admi-
nistrador, existente no Porto, também não se encon-
tra abordado neste volume.
Vários outros autores das áreas da cerâmica e da
escultura ficaram por abordar ou foram neste volu-
me mencionados apenas com uma diminuta parte
da sua obra. Em grande medida, essa falha deve-se
a falta de conhecimento já produzido sobre o tema.
A título de exemplo, em Gaia foi fabricado muito
mosaico hidráulico, mas este tema nem sequer é
abordado no volume. Em Gaia foi produzido muito
vidro - destacando-se a fábrica de André Michon,
no Cavaco - e sabemos que foram produzidas peças
decorativas. Contudo, falta ainda o conhecimento
sobre estas peças e sobre onde se encontram e po-
dem ser fruídas. O mesmo aplica-se a obras decora-
tivas em cimento, nomeadamente de uma efémera
fábrica gaiense dirigida por Francisco de Oliveira
Ferreira. Sabemos que algumas peças atribuíveis a
esta fábrica subsistem em Espinho, mas trata-se de
um tema ainda por estudar. A produção da Empresa
Electro-Cerâmica do Candal foi, não só decorativa,
como também utilitária. É possível que o legado da
fábrica, em termos de peças utilitárias, subsista em
várias partes do país, assim como sucede de modo
mais visível relativamente à Fábrica de Cerâmica de
Valadares, pois em várias partes de Portugal - e mes-
mo em Espanha - podemos encontrar louça sanitá-
ria em uso com a marca desta fábrica. A Fábrica de
Cerâmica de Valadares deixou-nos painéis de azule-
jos historiados, nomeadamente em Espinho.
E uma vez que falamos de Património com ca-
rácter utilitário, não podemos deixar de mencionar o
primeiro carro de bombeiros de Vila Nova de Gaia,
existente no chamado Museu das Curiosidades, em
Romeu (Mirandela).
Já para meados do século XX, a fábrica de car-
roçarias de Avintes poderá estar representada em
espólios de viaturas antigas, mas este foi um tema
que não foi possível tratar no volume que aqui se
apresenta. Algumas outras peças utilitárias com uma
vertente artística de cariz popular, por circunstân-
cias várias foram incorporadas em vários museus em
Portugal e mesmo no estrangeiro. Ficaram também
por analisar as Artes Gráficas e Publicitária gaien-
ses, nomeadamente as relacionadas com o Vinho
do Porto e as fábricas de conservas espalhados por
INTRODUÇÃO
Fig. 21 – Romeu, Museu das Curiosidades. Deta-
lhe do primeiro carro de bombeiros de Vila Nova
de Gaia, de 1839. Foto de Francisco Queiroz.
Fig. 22 – Capela de Santo António dos Esqueci-
dos. Foto de Francisco Queiroz.
21. 21
diversas colecções do país. Nesta área, destacou-se
a Litografia de Apolino da Costa Reis, de que nos
ocorre mencionar certo diploma ganho por Carlos
Relvas numa exposição fotográfica, o qual foi exe-
cutado na Real Tipografia e Litografia Lusitana e se
encontra na Golegã, exposto na casa-estúdio deste
célebre proprietário e fotógrafo amador.
Insistimos, muito fica por abordar neste volume,
mas o seu registo nesta introdução permitirá que
não fique esquecido. E já agora, a propósito do Pa-
trimónio forâneo existente em Gaia que foi conce-
bido e executado noutras paragens (o qual aparecerá
noutros volumes), não podemos deixar de mencio-
nar a Capela de Santo António dos Esquecidos, ori-
ginalmente erguida em Braga, adossada à Igreja de
S. João do Souto e à Capela dos Coimbras, e hoje
duplamente esquecida na mata da Quinta de Soei-
me, em Vilar de Andorinho.
Em suma, este volume é uma súmula, mas tam-
bém um ponto da situação, reflectindo o que já se
sabe e, por omissão, o que ainda precisa de ser traba-
lhado ou revisto. Algum conhecimento já produzido
não se encontra vertido no volume por factores me-
ramente circunstanciais, mas a maior parte do que
está ausente do volume deve-se, efectivamente, a fal-
ta de investigação consistente ou sistemática. Nesse
sentido, o volume que aqui se apresenta é também
um repto para o muito que está ainda por fazer, no
sentido de melhor se conhecer o Património Gaien-
se no Mundo.
Cumpre-nos agradecer aos autores deste volume,
não só pelos seus textos, mas também pelas achegas
que deram a outros textos e que, em muitos casos,
não puderam traduzir-se em referências explícitas
à ajuda prestada. Agradecemos também a todas as
demais instituições e pessoas que, de algum modo,
estiveram envolvidas na concepção e produção des-
te volume, as quais são mencionadas no seu final.
Por último, expressamos a nossa gratidão ao
coordenador geral da obra, pela confiança demons-
trada e ainda à equipa permanente do projecto, por
toda a colaboração.
Madalena, Gaia, Abril de 2019
Francisco Queiroz
Coordenador do Volume
PATRIMÓNIO DE GAIA NO MUNDO
BIBLIOGRAFIA
- BARBOSA, Jorge (1991) - O escultor João d’Affonseca
Lapa. «Póvoa de Varzim. Boletim Cultural», vol. XX-
VIII, n.º 1, p. 15-115.
- CRUZ, António Teixeira Lopes (2017) - As figuras de
costumes populares de José Joaquim Teixeira Lopes. Arte, Cultura
e Património do Romantismo. Actas do 1º Colóquio “Saudade
Perpétua”; coordenação de Francisco Queiroz. Porto:
CEPESE, 2017, p. 380-423.
- LEÃO, Manuel (2005) - A Arte em Vila Nova de Gaia.
Gaia: Fundação Manuel Leão.
- LOPES, Beatriz Hierro; QUEIROZ, Francisco (2013)
- A Igreja e a Torre dos Clérigos. Porto: Irmandade dos Clé-
rigos.
- PORTELA, Ana Margarida (2004) - O monumento a D.
Pedro V no Porto. Elementos para a história das oficinas de es-
cultura e de cantaria no século XIX. «Boletim da Associação
Cultural Amigos do Porto», 3.ª série, n.º 22, p. 125-164.
- QUEIROZ, José Francisco Ferreira (2002) – Os Cemité-
rios do Porto e a arte funerária oitocentista em Portugal. Consoli-
dação da vivência romântica na perpetuação da memória. Porto:
Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Tese de
doutoramento.
- SARDINHA, António (1984) – José Geraldo da Silva
Sardinha. Mestre arquitecto, natural de Gaia. ´«Boletim da
Associação Cultural Amigos de Gaia», n.º 16.
- SILVA, Pinho da (1980) - Nossa Senhora dos Anjos, obra-
-prima de Fernandes Caldas, escultor gaiense. «Boletim da
Associação Cultural Amigos de Gaia», n.º 8, p. 33-36.
22. 22
SUMÁRIO
TEXTO AUTOR/ES P.
FALTA FALTA FALTA FALTA Eduardo Vítor Rodrigues 3
Património Cultural de Gaia (PACUG) espalhado pelo Mundo J. A. Gonçalves Guimarães 7
Património Gaiense no Mundo Francisco Queiroz 10
ATÉ AO SÉCULO XIX
José Pereira dos Santos: Arquiteto e Mestre de Obras de
Grijó nas Minas Setecentistas
André Dangelo 26
DO SÉCULO XIX/INÍCIOS DO SÉCULO XX - ESCULTURA, ARQUITETURA, PINTURA, ARTE SACRA, TUMULÁRIA
Documento e Tradição: a Estátua “O Porto” e os Artistas João
da Silva e João Joaquim Alves de Sousa Alão
Susana Moncóvio 38
Estátua de Afonso Henriques de Soares dos Reis José Guilherme Abreu 42
Estátua de Brotero de Soares dos Reis José Guilherme Abreu 48
Soares dos Reis e Teixeira Lopes no Museu Nacional Soares
dos Reis, Porto
Paula Santos Triães 50
O Monumento a Eça de Queiroz, em Lisboa, de António
Teixeira Lopes
Francisco Queiroz 60
A Imagem da Rainha Santa Isabel Francisco Queiroz 64
Marcas de Gaia na Tumulária Portuguesa Francisco Queiroz 66
O Monumento Funerário de João Henrique Andresen Alda Bessa 82
DO SÉCULO XIX/INÍCIOS DO SÉCULO XX - CERÂMICA, METAIS E OUTROS SUPORTES
A Faiança de Gaia nas Coleções do Museu Nacional Soares
dos Reis
Margarida Rebelo Correia 86
Azulejaria, Estatuária, e Outros Ornamentos Cerâmicos
de Fabrico Gaiense em Edifícios e Jardins Portugueses e
Brasileiros (séculos XIX-XX)
Francisco Queiroz 102
Azulejaria e Ornamentação Cerâmica Gaiense no Concelho
de Ovar (séculos XIX-XX)
Maria Isabel Moura Ferreira 120
Marcas de Gaia na Arquitetura Bairradina Cláudia Emanuel 132
A Influência de Gaia na Cerâmica de Produção Açoriana Cristina Moscatel; Francisco Queiroz 138
Os Teixeira Lopes em Ribatua Fabíola Franco Pires; Fernando Cerqueira Barros 144
Painéis de Azulejos na Igreja de S. Vicente, em Braga, de José
Joaquim Teixeira Lopes
Francisco Queiroz 146
A Cerâmica Gaiense nos Cemitérios Portugueses Francisco Queiroz 148
O Acervo do Instituto Portucale de Cerâmica Luso-Brasileira,
em S. Paulo, Brasil
Marilene da Silva 156
23. 23
A Coleção de Cerâmica do Museu do Açude, Rio de Janeiro,
Brasil
Ana Pessoa; Mariana Rodrigues 170
Arte Sacra e Artefatos Cerâmicos Gaienses em Pelotas,
Brasil
Andréa L Bachettini; Annelise Montone; Daniele
Fonseca; Fabiane R. Moraes; Keli Scolari;
Margarete R. F. Gonçalves
178
Arte dos Metais: de Gaia para o País Francisco Queiroz 184
DO SÉCULO XX
Escultores de Gaia no Museu Nacional de Arte
Contemporânea e de José Malhoa (Caldas da Rainha)
Paula Santos Triães 188
Outros Escultores de Gaia no Museu Nacional Soares dos
Reis
Paula Santos Triães 200
As Portas da Igreja da Candelária, Rio de Janeiro, Brasil José Francisco Alves 210
O Monumento ao General Bento Gonçalves, Rio Grande do
Sul, Brasil
José Francisco Alves 212
Rodolfo Pinto do Couto e o Brasil José Francisco Alves 214
A Fonte Ramos Pinto: um Monumento que Celebra Gaia e o
Vinho do Porto no Brasil
Ana Filipa Correia 222
Os Escultores Gaienses e os Monumentos ao Povo e Heróis
da Guerra Peninsular no Porto, em Lisboa e em Arrifana
J. A. Gonçalves Guimarães 224
A “Escola de Escultura de Gaia” e os Monumentos aos Mortos
da Grande Guerra (1914 – 1918) em Portugal, França e Angola
J. A. Gonçalves Guimarães 230
Monumento a António Enes: uma Obra de António Teixeira
Lopes em Moçambique
Susana Moncóvio 236
A Obra de Francisco Oliveira Ferreira e José Oliveira
Ferreira, Fora de Gaia
Manuel Ferreira da Silva 240
O Arquiteto António Júlio Teixeira Lopes e a “Obra da Rua” Fabíola Franco Pires; Fernando Cerqueira Barros 256
Painéis e Revestimentos Figurativos da Fábrica do
Carvalhinho
Rosário Salema de Carvalho; Ana Venâncio 262
Artistas de Gaia no Santuário de Nossa Senhora dos
Remédios de Lamego
Susana Moncóvio 280
A Obra Artística do Escultor António de Azevedo em Vila
Nova de Famalicão – Júlio Brandão e Cupertino de Miranda
António Conde 284
Vila Nova de Gaia e a Iconografia de Nossa Senhora do
Rosário de Fátima
Susana Moncóvio 286
A Produção Escultórica de Henrique Moreira José Guilherme Abreu 292
O Busto de Camões em Vigo de Sousa Caldas José Guilherme Abreu 308
Obras de Guilherme Camarinha: Diversidade tipológica e
Dispersão Geográfica
Susana Moncóvio 310
A Obra Artística do Escultor Zeferino Couto em Terras do
Minho (Fafe, Braga e Amares)
António Conde 328
AUTORES DOS TEXTOS DESTE VOLUME
AGRADECIMENTOS
ÍNDICE REMISSIVO
26. 26
Fig. 1 – Assento de batismo de José Pereira dos
Santos, Arquivo Distrital do Porto; ano da con-
sulta 2005.
NOTAS
(1) Outra localidade que aparece entre as 18 existentes
em Grijó é o lugar chamado de Vendas. Como sabemos
que José Pereira Arouca era neto pelo lado paterno de
um tal António Pereira e sua mulher Maria Fernandes,
moradores do lugar das Vendas de Grijó, talvez fosse
realmente um parente mais distante de José Pereira dos
Santos, com quem teria aprendido o ofício de pedreiro,
segundo informações do Segundo Vereador de Maria-
na em seu manuscrito de 1790.
Pouco se sabe da vida de José Pereira dos Santos an-
tes de sua chegada à região das Minas por volta de 1750.
As pesquisas até o momento foram feitas a partir de
dados de seu testamento presente em Portugal e de um
importante processo judicial que respondeu em Mariana,
onde o arquiteto e mestre de obras assim se declarou pe-
rante ao Juiz:
Que é mestre pedreiro e arquiteto, q. a seu cargo tem tomado,
e pelo seu oficio obras de m.to avultados preços, p.r cuja expe-
dição das mesmas necessita de fabrica conducente a todas ellas
suas qualid.es sem a q.al de nenhúa sorte podia dar expediente
e menos trabalhar p.a poder pagar a seus credores. (Revista
Anuário do Museu da Inconfidência, 1954: 134).
Nasceu, conforme revelaram nossas pesquisas junto
ao Arquivo Distrital do Porto, aos 5 dias do mês de fe-
vereiro de 1719, na freguesia de São Salvador de Grijó,
sendo o segundo filho do casal Inácio Pereira dos Santos
e sua mulher Maria Francisca. Era neto paterno de João
Antônio e Agada Pereira, do lugar de Pisão da fregue-
sia de Pedroso, e materno de Manoel Nogueira e Maria
Francisca, do lugar dos Corveiros, na freguesia de Grijó
(Fig. 1). José Pereira dos Santos era o segundo de uma
família de cinco irmãos.
Localidade ligada à tradição do ofício de pedreiro na
região do Porto, a antiga freguesia de Grijó, Vila Nova
de Gaia, com o seu convento de São Salvador e a povoa-
ção adjacente, em épocas mais remotas formava um dos
maiores coutos de Portugal. A documentação desse pe-
ríodo, aponta que na localidade de Grijó, existiam dezoi-
to lugares e aldeias, entre elas Corveiros1
(COSTA, 1983:
70), lugar de onde José Pereira dos Santos era natural.
Do ponto de vista da crítica especializada em História
da Arte e da Arquitetura do Brasil, inicialmente José Pe-
reira dos Santos é muito pouco citado, sendo localizado
trabalhando em cidades periféricas aos grandes centros,
onde se aglomeravam as grandes realizações do mundo
da construção e da arquitetura nas Minas setecentistas.
No ano de 1750, há registro em que se encontra assumin-
do por trezentas e trinta oitavas de ouro «[...] de me as-
sentar toda a pedraria da hobra da igreja dos aplicados do
JOSÉ PEREIRA DOS SANTOS
ARQUITETO E MESTRE DE OBRAS DE GRIJÓ NAS MINAS SETECENTISTAS
PATRIMÓNIO DE GAIA NO MUNDO
27. 27
S.or S. Braz do Sasohi [...]» (Revista Anuário do Museu da
Inconfidência, 1954, p. 130) Em 1751, ele ainda aparece
administrando essa obra, pois acerta com Bartolomeu
Roiz Rabello e Manoel Marques Franco por outras tre-
zentas e trinta oitavas «[...] de me fazer todas as madeiras
na forma da m.a obrigação pa. a Capella de Suasuy do Sr.
S. Braz, na forma de huas condiçoens das d.as madeiras
q. se achão em meu puder [...]» (Idem, idem, idem). Nessa
época, José Pereira dos Santos já tem 31 anos e por isso
pode ser considerado um oficial experiente, que imigrou
em idade considerada bastante avançada para Minas e
frente a seus contemporâneos, o que indica a necessidade
de novas pesquisas nos arquivos portugueses, e que ain-
da estão em aberto. Através da documentação publicada
por Judith Martins, sabemos que aos 23 de janeiro de
1752 ajustou pelo «[...] preço e quantia de vinte e quatro
mil cruzados [...]» (MARTINS, 1974-2: 205) a obra da
nova capela de Nossa Senhora do Rosário de Mariana.
Nessa obra, uma das primeiras construídas em alvenaria
de pedra na região de Ouro Preto e Mariana, José Pe-
reira dos Santos conseguiu, enfim, chegar ao mercado
de construção dos grandes centros, talvez por ser peri-
to na nova tecnologia de construção, num momento em
que se iniciava uma nova demanda para os processos e
tecnologias construtivas que marcariam as grandes obras
empreendidas na Capitania de Minas.
Entre 1740 e 1750, dentro desse novo contexto tec-
nológico do mundo da construção em Minas Gerais, a
sorte parece ter sorrido para José Pereira dos Santos, que
seguramente era perito na tecnologia de pedra e cal, e
torna-se rapidamente um protagonista no meio dos ar-
rematantes portugueses da antiga Vila Rica. A partir de
1753, inicia-se o período de ouro da arquitetura religiosa
naquela localidade, com arrematações de obras religiosas
revolucionárias para a arquitetura mineira setecentista.
São essas grandes obras que quebram a hegemonia de
uma arquitetura de tradição jesuíta e chã nas Minas e a
fazem transitar para uma linguagem nova, marcada pelas
influências do barroco e do rococó. São essas obras que,
do ponto de vista arquitetônico, vão estruturar o grande
amadurecimento estético e construtivo da cultura arqui-
tetônica luso-brasileira do período, sendo que duas delas,
talvez as mais revolucionárias, serão arrematadas pelo
mestre José Pereira dos Santos: São Pedro dos Clérigos
em Mariana e Nossa Senhora do Rosário em Ouro Preto,
arrematadas em 1753 e 1754, das quais teceremos outros
comentários no desenvolvimento deste texto.
Dentro desse quadro histórico, algumas questões ar-
quitetônicas ainda não estão bem claras sobre esse pro-
fissional. Uma delas é sobre quais eram exatamente as
competências de José Pereira dos Santos neste período,
tema sobre o qual pretendemos avançar neste artigo,
Fig. 2 - Fachada da igreja de Nossa Senhora do
Rosário de Mariana, Minas Gerais (MG), proje-
to original de José Pereira dos Santos, 1753. Foto
André Dangelo, 2018.
ATÉ AO SÉCULO XIX
28. 28
principalmente em relação ao campo da arquitetura. Re-
tornando à documentação conhecida, vemos que o mes-
mo se declarava pedreiro, arquiteto, arrematante e ho-
mem de fábrica. Mas qual seria o perfil de arquiteto do
mestre José Pereira dos Santos? Como e com quem teria
se formado em Portugal? Qual teriam sido seus modelos
arquitetônicos? E principalmente, qual o papel que hoje
lhe cabe na historiografia da arquitetura setecentista em
Minas Gerais?
Para responder às três primeiras questões, devemos
primeiro recorrer aos princípios da cultura arquitetônica
vigentes no Norte de Portugal entre 1700 e 1750, para
buscar pistas e respostas, já que ainda não existem regis-
tros da atividade de José Pereira dos Santos em Portugal.
Recorrendo inicialmente a Padre Raphael Bluteau, no
seu Vocabulario Portuguez e Latino, amplamente citado nos
estudos de Rafael Moreira3
, é possível perceber impre-
cisões acerca do entendimento da profissão visíveis na
falta de clareza que as definições do referido Vocabulário
tecem. No caso da Arte e da Arquitetura, principalmente,
essas confusões se estabelecem profundamente, sendo o
artista definido como aquele que é «destro em alguma
arte» e que arquiteto «não só he o que faz plantas, e de-
senhos de edifícios, mas também o mestre de obras, e o
que sabe, e põe em execução a arte de edificar», tornan-
do, assim, por demais genérico qualquer valor de juízo
que busque conceitos precisos sobre a atribuição profis-
sional neste segmento, e demostrando a falta de clareza
sobre o que era realmente o papel do arquiteto dentro da
cultura portuguesa setecentista. Nota-se que José Pereira
dos Santos estaria bastante enquadrado neste perfil já que
se declarava mestre pedreiro e arquiteto conjuntamente.
Outra questão importante a ser analisada neste contexto
temporal, é se o mestre José Pereira dos Santos, como
arquiteto, seria fruto de um meio artístico e arquitetônico
onde o papel da criatividade era analisado em função de
conceitos da retórica como decoro, agudeza e do enge-
nho presentes numa obra? Ou ele seria, por outro lado,
um arquiteto de formação mais pragmática, educado no
canteiro de obras? Apto a riscar arquitetura, mas pouco
ilustrado nestas metáforas filosóficas sofisticadas de uma
arquitetura refinada na sua significação, nascida e difun-
dida apenas nos meios de formação erudita da Academia
ou aulas regulares? A partir da análise de suas obras, e do
pouco que conhecemos da sua carreira artística, tende-
mos a pensar que ele se ajustaria mais à segunda hipótese,
pois nunca abandonou a gramatica e o léxico arquitetôni-
co do maneirismo chão, parecendo ser, inclusive, muito
influenciado pelo pragmatismo da Engenharia Militar do
seu tempo. Mas é uma pergunta que continuará em aber-
to, posto que não pode ser comprovada pela documenta-
ção conhecida. Uma outra questão importante que se co-
loca é: sendo ele arquiteto, quais seriam os modelos por
Fig. 3 - Levantamento arquitetônico da igreja
de Nossa Senhora do Rosário de Mariana. Foto
André Dangelo, 2006.
PATRIMÓNIO DE GAIA NO MUNDO
29. 29
ele utilizados? Seriam aqueles principalmente vinculados
à tratadística, sendo ela erudita, ou aos manuais? Teria
tido ele conhecimentos de estudos das ordens clássicas
e dos princípios da geometria euclidiana? Dominaria os
métodos de traçados geométricos, fundamentais tanto
para o auxílio nas traças em papel, bem como para a sua
transposição para a obra de pedraria?
É possível afirmar hoje que, tanto no Brasil como em
Portugal, circulou durante o século XVIII uma ampla
tratadística, que se constituía dos tratados de Vitruvio,
Vignola, Blondel, Serlio, Pozzo, Palladio, além dos trata-
dos de Engenharia Militar de Azevedo Fortes e de Pinto
Alpoim, que apareciam frequentemente nos catálogos
dos livreiros e nas bibliotecas particulares do período.
Seriam estes os textos aos quais teria tido acesso José
Pereira dos Santos? Infelizmente, o único risco seu que
conhecemos foi aquele feito para a Casa de Câmara e
Cadeia de Mariana, onde podemos ver que expressa bem
o conhecimento do repertório de parte dessa tratadísti-
ca, como também uma perícia no uso dos traçados re-
guladores e das regras de composição vinculadas ao uso
da geometria, além de parecer ter uma certa predileção
pelo repertório de formas e de linguagem arquitetônica
do maneirismo português. Entretanto, este é um projeto
apresentado apenas em 1762, quando já fazia 12 anos
que José Pereira dos Santos trabalhava em Minas. Até
que ponto, o que vemos nesse projeto é mais fruto de um
aprendizado erudito nas Minas do que da sua formação
mais prática em Portugal? Até que ponto ele, como tantos
outros mestres portugueses nas Minas, como Francisco
de Lima Cerqueira ou José Pereira Arouca, não descobriu
o gosto pela erudição na arquitetura no ambiente cultural
diferenciado vigente nas Minas da segunda metade do
século XVIII, onde essa profissão parece ter alcançado
um prestígio, mais ao gosto italiano, do que permane-
ceu vinculado ao papel da arquitetura típico da cultura
portuguesa do período? Essa pergunta se faz necessária
para entendermos a arquitetura de José Pereira dos San-
tos. Isso porque, se fizermos uma análise formal e de lin-
guagem aplicada nos projetos a ele atribuídos entre 1750
e 1753, como a Matriz de São Brás, ou igreja de Nossa
Senhora do Rosário de Mariana (Fig. 2 e 3), verificaremos
que existe uma diferença estilística significativa entre o
espírito arquitetônico que norteia esses projetos e o risco
proposto em 1762 para a Câmara e Cadeia de Mariana.
A análise da igreja do Rosário e da sede municipal,
ambos projetos em Mariana dos quais temos certeza da
atribuição, deixa bem claro que se trata de dois momen-
tos distintos da carreira do conhecido arquiteto e mestre
de obras. Mas como justificar as discordâncias formais
em um mesmo homem? Como um arquiteto que não
demonstra inicialmente nenhum talento inovador na sua
Fig. 4 - Assinatura de José Pereira dos Santos
no documento de arrematação da igreja de São
Pedro dos Clérigos de Marina, MG; Arquivo
Histórico do IPHAN, Mariana, MG; ano do re-
gistro, 2006.
Fig. 5 - Fachada lateral da igreja de São Pedro
dos Clérigos de Mariana, MG, arrematada por
José Pereira dos Santos em 1753. Foto André
Dangelo, 2019.
Fig. 6 - Levantamento arquitectónico da igreja
de São Pedro dos Clérigos de Mariana, MG.
Projeto original de Antônio Pereira de Souza
Calheiros de 1753 e arrematante José Pereira dos
Santos. Foto André Dangelo, 2006.
ATÉ AO SÉCULO XIX
30. 30
arquitetura, como atesta a obra do Rosário de Mariana,
arrematada em 1753, dez anos depois, se apresenta como
um homem de gosto bem mais atualizado e sofisticado.
Uma resposta para essa questão somente será possível
se conseguirmos verificar com quem e em quais obras
José Pereira dos Santos trabalhou entre 1753 e 1762, a
fim de tentar mapear essa evolução. Nessa retrospectiva,
notamos que é exatamente no ano de 1753 que a histó-
ria da arquitetura religiosa setecentista mineira vai passar
por uma mudança de rumos definitiva para seu futuro
estético e formal, como já salientamos anteriormente. O
importante evento que irá transformar a cultura arqui-
tetônica luso-brasileira se dá a 22 de outubro de 1753,
com a arrematação por José Pereira dos Santos do pro-
jeto da igreja de São Pedro dos Clérigos de Mariana (Fig.
4). Projeto audacioso e renovador, totalmente estranho
ao gosto maneirista da primeira metade do século XVIII
em Minas, herdeiro ainda das tradições chãs portuguesas
trazidas pelos Jesuítas, foi elaborado pelo Dr. Antônio
Pereira de Souza Calheiros, nascido em Braga em 1705,
doutor em Sagrados Cânones por Coimbra e arquiteto
amador nas Minas, composto e organizado a partir de
um partido arquitetônico barroco, de duas elipses entre-
laçadas (Fig. 5 e 6).
É um projeto revolucionário dentro da cultura arqui-
tetônica luso-brasileira. Quase na mesma época, uma se-
gunda versão de espaços curvilíneos, mais aprimorada,
foi elaborada pelo mesmo arquiteto para a construção
da igreja de Nossa Senhora do Rosário de Ouro Preto,
também arrematada pelo mesmo mestre de obras, José
Pereira dos Santos (Fig. 7 e 8).
É bastante provável que o encontro entre esses dois
portugueses imigrados nas Minas – o mestre de obras e
homem de fábrica José Pereira dos Santos e o amador em
arquitetura, doutor em Sagrados Cânones em Coimbra e
erudito Doutor Antônio Pereira de Souza Calheiros4 –,
unidos pelo destino nas obras de São Pedro dos Clérigos
de Mariana e Nossa Senhora do Rosário de Ouro Preto,
pode ter feito toda a diferença para a carreira de arquiteto
de José Pereira dos Santos. O Doutor Calheiros, homem
de prestígio e de talento ímpar no seu tempo – ainda que
tenha sido descartada sua importância cultural pelos his-
toriadores do período moderno no Brasil –, foi frequen-
tador do Colégio das Artes em Coimbra e conhecedor da
tratadística italiana do Renascimento e do
Barroco, como também de gravuras do Barroco da
Europa Central. Os estudos contemporâneos têm dado a
ele, cada vez mais, o papel de um dos homens de melhor
preparo acadêmico para exercer nesta região tão distante,
a arte e a arquitetura de maneira refinada, só tendo por
concorrentes, os poucos engenheiros militares que atua-
vam nas Minas e que tinham outras prioridades.
Fig. 7 - Fachada frontal e lateral da igreja de Nos-
sa Senhora do Rosário de Ouro Preto, MG, pro-
jetada por Antonio Pereira de Souza Calheiros
e arrematada por José Pereira dos Santos, 1754.
Foto André Dangelo, 2018.
Fig. 8 - Levantamento arquitetônico da igreja de
Nossa Senhora do Rosário de Ouro Preto, MG.
Projeto original de Antonio Pereira de Souza
Calheiros, 1754 e arrematante José Pereira dos
Santos; digitalização: André Dangelo, 2005.
PATRIMÓNIO DE GAIA NO MUNDO
31. 31
Sabemos, atualmente, que ele tinha pleno domínio da
arte da geometria e dos traçados geométricos, bases dos
seus projetos arquitetônicos feitos no Brasil, tanto para a
excepcional igreja de São Pedro dos Clérigos do Rio de
Janeiro, de 1733, já demolida (Fig. 9 e 10), e as já citadas
igrejas de São Pedro dos Clérigos em Mariana e de Nossa
Senhora do Rosário em Ouro Preto, ambos projetos de
1753.
Não devemos, entretanto, diminuir o talento do mes-
tre de obras de José Pereira dos Santos nesse encontro
de personalidades artísticas pois ele certamente apresen-
tava um diferencial de conhecimento técnico entre seus
colegas de ofício. Ele arrematou essas duas igrejas, tão
complexas de se edificar, numa época onde ainda se en-
contravam em plena atividade vários profissionais por-
tugueses consagrados do mundo da construção, muito
mais conhecidos do que ele como Domingos Moreira de
Oliveira, José Álvares Viana e Manoel Francisco Lisboa,
e mesmo assim, ele foi o único construtor que apareceu
para enfrentar o desafio de construir algo tão estranho
à cultura arquitetônica luso-brasileira do período. Além
disso, a consulta à documentação dessa arrematação de-
mostra, pela leitura dos documentos, que ele teve am-
pla solidariedade entre os colegas de ofício. Para nos
atermos apenas à documentação da arrematação de São
Pedro, obra tão exótica para a cultura arquitetônica do
período, José Pereira dos Santos apresentou à poderosa
Irmandade dos padres nada menos do que doze fiadores
para garantir a empreitada. Entre eles, três dos mais im-
portantes construtores do seu tempo: Manoel Francisco
Lisboa e Domingos Moreira de Oliveira, além do jovem
José Pereira Arouca.
No campo da especulação artística, é possível pensar
que possa ter sido um enorme diferencial nessa emprei-
tada a favor do mestre José Pereira dos Santos suas habi-
lidades como arquiteto, o que facilitaria o entendimento
das plantas tão complexas saídas da prancheta erudita
do Dr. Antônio Calheiros. Por outro lado, não se deve
descartar a possibilidade de que José Pereira dos Santos
tenha trabalhado e se formado no canteiro da obra de
São Pedro dos Clérigos no Porto, traçada e construída
sob uma planimetria geométrica baseada em uma elipse
(Fig. 11).
A prática arquitetónica revela que não se implanta no
canteiro de obras dois espaços tão revolucionários, como
seriam a igrejas do Clérigos de Mariana e o a igreja do
Rosário de Ouro Preto, sem que o seu arquiteto esteja
por perto para discutir e tirar as dúvidas do empreiteiro
sobre o melhor processo par ser passar do risco à exe-
cução, em uma escala de 1:1, ademais em um projeto de
formas tão complexas e tão longe da tradição luso-brasi-
leira. Logicamente, esse contato teria deixado refinamen-
Fig. 9 - Fachada frontal da igreja de São Pedro
dos Clérigos no Rio de Janeiro (RJ), demolida
em 1950. Projeto atribuído ao Dr. Antonio Pe-
reira de Souza Calheiros, 1733; Arquivo do
IPHAN – RJ,1942.
Fig.10 - Levantamento arquitetônico da igreja de
São Pedro dos Clérigos do Rio de Janeiro, 1733,
RJ, projeto atribuído ao Dr. Antonio Pereira de
Souza Calheiros, 1733; Arquivo do IPHAN –
RJ; digitalização: André Dangelo, 2005.
ATÉ AO SÉCULO XIX
32. 32
tos e amadurecimentos possíveis explicariam a evolução
arquitetônica na carreira de José Pereira dos Santos. Os
levantamentos da igreja do Rosário de Ouro Preto feitos
pelo arquiteto e professor Paulo Ferreira Santos para sua
tese de doutoramento em 1951 demostram bem a com-
plexidade de linhas e pontos auxiliares que teriam sido
necessários utilizar para construir o traçado geométrico
das duas elipses entrelaçadas que organizam a planta do
edifício, além do bombeamento do frontispício, quase
em paralelismo com a curvatura da elipse. Não é algo
simples de se fazer naquele período, com a mão de obra
e os meios existentes (Fig. 12).
A história da cultura arquitetônica em Portugal, aliás,
está repleta de artistas que começaram como simples pe-
dreiros ou carpinteiros e que, aprendendo com o traba-
lho prático as bases essenciais do ofício e as regras fun-
damentais da atividade construtiva, tornaram-se, através
da excelência da sua prática, arquitetos de reconhecida
competência, como é o caso do famoso João Antunes,
que iniciou a sua atividade exatamente como pedreiro e
que, posteriormente, tornou-se um dos principais arqui-
tetos barrocos de Portugal nos primeiros anos do século
XVIII. Os estudos do professor e pesquisador português
Joaquim Jaime Ferreira-Alves defendem a normalidade
das migrações profissionais dentro do mundo artístico
português, principalmente pela diversidade de profissio-
nais ligados ao ato do projeto.
Nunca saberemos ao certo como se deu essa relação
aqui apenas intuída, e que talvez nunca se possa provar
documentalmente. Entretanto, uma coisa nos parece
certa. Desse canteiro de obras, José Pereira dos Santos
partiu para vôos mais altos no cenário da construção,
fruto do levado grau de prestígio alcançado pela obra
ali realizada, sem, entretanto, ter-se convertido ao gos-
to da planimetria do estilo italiano, presente na obra do
Doutor Calheiros. Somente através dos novos estudos da
sociedade híbrida do mundo da mineração, cujos limites
sociais não eram bem claros e as contingências sempre
incertas sobre o destino do imigrado, poder-se-ia expli-
car esse encontro improvável em Lisboa, no Porto, ou
mesmo em Braga. Reuniram-se nas Minas um magistra-
do erudito que, fugindo da sua distinção, exercia a função
de arquiteto, e outro imigrado, humilde, fruto do mundo
da fábrica e do canteiro; aproximados por uma obra que
tornou-se um marco revolucionário na região das Minas,
mais preparada para especular sobre o espaço do que
conservar valores culturais.
Documentalmente, sabemos que vencida essa eta-
pa, em 1756, José Pereira dos Santos parte para a mais
importante arrematação de sua carreira. Em 8 de abril
daquele ano ele arremata a primeira tentativa dos pode-
rosos irmãos Terceiros Carmelitas de Vila Rica para a
Fig. 11 - Fachada frontal da igreja de São Pedro
dos Clérigos no Porto (PT), projeto e construção
de Nicolau Nasoni, 1731. Foto André Dangelo,
2017.
PATRIMÓNIO DE GAIA NO MUNDO
33. 33
construção de sua igreja, pela importância de 1000 cru-
zados. Segundo as atas do 1o Livro de Termos da Ordem
Terceira do Carmo de Vila Rica, à fl. 23, essa arrematação
foi feita sob um projeto feito por dois irmãos amado-
res de arquitetura de nome João Peixoto e Ventura Alves
Carneiro. O projeto, no entanto, não foi adiante, causan-
do prejuízos à Ordem e ao arrematante. Neste período
também esteve atuando em uma série de obras civis em
Mariana, bem como esteve presente no Rio de Janeiro
fazendo obras na casa de um oficial de Vila Rica.
Em 1762, José Pereira dos Santos, enfim apresenta
o elegante projeto de construção da Casa de Câmara e
Cadeia de Mariana, só arrematado em 1768 sob a res-
ponsabilidade de José Pereira Arouca, apontado como
continuador da sua obra pela crítica especializada. Como
já mencionado anteriormente, esse projeto é o único re-
gistro gráfico da obra arquitetônica de José Pereira dos
Santos que chegou ao nosso tempo, ainda que incomple-
to, constando de três plantas: uma elevação da fachada
principal e duas plantas do edifício com comentários. Ele
foi localizado pelo então diretor do Arquivo Público Mi-
neiro, Dr. João Gomes Teixeira, na Biblioteca Municipal
de São Paulo, o chamado Códice Matoso, da coleção Fe-
lix Pacheco, como explica o Dr. Paulo Thedim Barreto,
que publicou a documentação no seu hoje clássico tra-
balho Casas de Câmara e Cadeia, publicado pelo antigo
DPHAN em 1949 (Fig. 13).
Fig. 12 - Levantamentos feitos pelo pesquisador
Paulo Francisco Santos em 1951 para levantamen-
to cadastral da igreja de Nossa Senhora do Rosá-
rio de Ouro Preto, 1951; SANTOS, 1951: 173
Fig. 13 - Projeto original para a Câmara e Cadeia de Mariana., MG; José Pereira dos Santos, 1772; códice Matoso; Museu Paulista (BARRETO, 1949: 325).
ATÉ AO SÉCULO XIX
34. 34
A análise do projeto demostra claramente como
o arquiteto amadureceu ao longo de dez anos traba-
lhando na região das Minas em obras das mais diversas
escalas e programas. O arquiteto que apresentou esse
projeto para os vereadores do Senado da Câmara de
Mariana, tem pouco do espirito rústico do arquiteto re-
cém imigrado que chegou a Minas dez anos atrás e que
projetou em Mariana a tímida e sem brilho igreja de
Nossa Senhora do Rosário, como já salientamos ante-
riormente, mal proporcionada e totalmente vinculada
ao gosto conservador e chão da primeira metade do sé-
culo XVIII. Desse primeiro projeto, o único elemento
de destaque e mais sofisticado que vemos transplantado
para o Rosário de Ouro Preto é a linguagem das sacadas
do coro, que estão em sintonia com o estilo geral de
época, onde os elementos de cantaria começaram a ser
mais utilizados, empregando a ordem dórica. Na análise
do projeto da Câmara e Cadeia de Mariana, é nítido que
o arquiteto já dominava a geometria e o recurso do tra-
çado geométrico com perfeição, afim de proporcionar
o projeto a partir de uma ideia de módulo, defendida
por Paulo Thedim Barreto (Fig. 14). Seria fruto da sua
formação em Portugal, ou de um contato em Minas
com a tratadística especializada, talvez até uma herança
do seu contato com o Dr. Calheiros?
São ambas hipóteses bem prováveis e não exclu-
dentes se analisarmos sua obra, onde esse recurso é
explorado em abundância, sendo que este poderia ser
aproveitado mesmo em composições vinculadas a uma
linguagem volumétrica mais tradicional (Fig. 15 e 16).
Segundo a análise apurada do professor e arquiteto
Paulo Thedim Barreto:
... a concepção arquitetônica adotada na Casa de Câmara
e Cadeia de Mariana ressalta a diagonalidade: o frontispí-
cio foi concebido como um retângulo áureo. Ele estudou a
composição e decomposição desse retângulo como também as
relações dos espaços internos, inclusive vãos e varandas, com
o quadrado… no projeto, predomina a forma do quadrado
ou, então, a dos retângulos por ele gerados. Retangular é a
planta; aliás um duplo quadrado. O módulo geométrico é o
quadrado, originando muitas vezes “retângulos dinâmicos”,
isto é, retângulos de proporções irracionais. Essas figuras
encontramo-las ordenando ritmos através de “diagramas
abstratos”. Podemos dizer que foram moduladas segunda a
“divina proporção”. (BARRETO, 1949: 231).
A linguagem do projeto também é reveladora sobre
o cuidadoso observador que se tornou José Pereira dos
Santos da produção da arquitetura que se fazia nas Mi-
Fig. 14 - Projeto para a Câmara e Cadeia de Ma-
riana, MG; proposta de Paulo Thedim Barreto
para o traçado geométrico do edifício (BARRE-
TO, 1949).
Fig. 15 - Fachada frontal da Casa da Câmara e
Cadeia de Mariana, MG, na atualidade. Foto
André Dangelo, 2019.
Fig. 16 - Fachada frontal e lateral da Casa da Câ-
mara e Cadeia de Mariana, MG, na atualidade.
Foto André Dangelo, 2019.
Fig.17 - Escada do pátio interno da Quinta da
Costa (depois Solar Condes de Resende) em
Gaia, séc. XVII. Foto Maria de Fátima Teixeira.
PATRIMÓNIO DE GAIA NO MUNDO
35. 35
nas e no Rio de Janeiro. Das observações das obras do
Engenheiro Militar Alpoim no Paço Imperial do Rio
de Janeiro e da Casa dos Governadores em Vila Rica
e seus ritos de decoro e retórica, frutos da pragmatici-
dade formal da Engenharia Militar, certamente veio a
opção sofisticada e simbólica em escolher usar o mo-
delo de janela com sobreverga em segmento de arco,
aos moldes daquela utilizada na obra do Paço Imperial.
A arquitetura das casas nobres do Porto e de Gaia
(Fig. 17), como no Solar Condes de Resende nesta úl-
tima localidade, cuja solução da escadaria desenvolvi-
da em quatro lanços laterais paralelos à fachada, talvez
possa ter sido um dos seus modelos de inspiração para
aqui aplicar, de modo bastante atualizado e elegante,
na Casa de Câmara e Cadeia de Mariana. Aqui também
José Pereira dos Santos, fugindo do repertório barroco
vinculado à obra de Nicolau Nasoni no Porto, prefere
manter-se fiel às suas raízes portuguesas e continua a
utilizar, não os parapeitos em gradil de formas movi-
mentadas, mas a austeridade do gosto chão, projetando
os parapeitos em cantaria, solução também presente no
citado Solar Condes de Resende. Apenas nos arranques
é que a obra se moderniza, utilizando elementos de can-
taria mais barrocos, com a aplicação de volutas. Teria o
jovem José Pereira dos Santos trabalhado na reformula-
ção setecentista da Casa da Quinta da Costa em Canelas
Solar Condes de Resende)? É uma pergunta ainda em
aberto, já que as influências dessa escadaria são, de fato,
muito nítidas. Ainda considerando a organização espa-
cial desta escadaria, poderíamos afirmar que seu maior
desenvolvimento se dá num amplo patamar interme-
diário, criando uma espécie de tribuna formada pelo
patamar superior, que garante uma expressão teatral
ao conjunto da escadaria, em conformidade com seu
uso pelas autoridades nas cerimônias cívicas (Fig. 18 e
19). A escadaria é resolvida, com já salientámos, com
parapeitos maciços de pedra com corrimão, em que
José Pereira dos Santos utiliza quartilhas, marcações
horizontais, inclinadas e verticais (cunhais e pilastras
com pirolas – pináculos). A articulação da escada com
o volume do edifício é, de fato, uma criação arquitetô-
nica de qualidade, que evidencia seu talento, dentro do
seu estilo nitidamente português. Ela monumentaliza,
movimenta, divide e organiza a entrada da composição,
mas de forma austera e tradicional, ainda que comple-
tada por um pórtico em cantaria lavrada de elegante
formato, este sim, mais barroco, com verga esculpida
em três curvas, e coroado por um brasão com as armas
de Portugal, tudo esculpido em pedra sabão (Fig. 20).
Fig.18 - Detalhe do aranque da escadaria da
Casa de Câmara e Cadeia de Mariana, MG.
Foto André Dangelo, 2019.
Fig. 19 - Detalhe da tribuna de acesso ao se-
gundo pavimento com a portada monumental
e a trapeira improvisada em sineira na Casa da
Camara e Cadeia de Mariana, MG. Foto André
Dangelo, 2019.
Fig. 20 - Detalhe da portada barroca monumen-
tal que dá acesso ao salão nobre do segundo pa-
vimento com a portada monumental que inclui
as artes de pedra-sabão as armas de Portugal,
tudo isso excutado numa pedra-sabão de grande
qualidade pelo empreiteiro português José Perei-
ra Arouca. Foto André Dangelo, 2019.
ATÉ AO SÉCULO XIX
36. 36
A volumetria do edifício é muito bem amarrada, à
moda das casas nobres do Norte, com cunhais muito
bem proporcionados que estruturam as cimalhas que
fecham o coroamento do volume. Tudo isso executado
em cantaria de pedra-sabão (Fig. 21).
Na composição da fachada, o arquiteto marca o rit-
mo das aberturas a partir do jogo de seis janelas rasga-
das de cada lado do segundo pavimento, com balcões
com lajes de pedra e guarda-corpos de ferro trabalhado,
que originalmente seriam protegidos com grades de fer-
ro em adufas, recurso muito utilizado naquele período e
também presente nas sacadas do Paço do Rio de Janeiro
e do Palácio dos Governadores em Minas.
Talvez seja esta mais uma vinculação à retórica de
gosto oficial que o edifício público deveria representar
(Fig. 22). Alinhadas com as janelas superiores, no andar
térreo abrem-se de cada lado duas janelas vedadas por
grossos balaústres de ferro.
O sistema construtivo adotado foi a alvenaria por-
tante de pedra e cal, com grossas paredes perimetrais e
em algumas paredes de divisória do pavimento superior
o tradicional adobe. Os pisos são de lajes de quartzito
no pavimento térreo e assoalhos de tábuas largas no
superior ( Fig. 23).
Infelizmente, José Pereira dos Santos veio a falecer
neste mesmo de ano de 1762. O projeto da Câmara e
Cadeia de Mariana, assim, tornou-se e o seu “epitáfio”
e também o atestado do seu talento. Foi a obra onde
o seu nome como arquiteto ficou mais ficou ligado e
registrado na história de Minas, como um dos seus mais
talentosos artistas no campo da arquitetura e da cons-
trução da segunda metade do século XVIII.
Todo esse prestígio também transformou José Pe-
reira dos Santos em um homem rico e de “fábrica”, o
que mostra também sua competência como empreiteiro
e administrador.
Ao falecer, deixou diversos bens: casas no “fim da
rua nova” em Ouro Preto, roça em Rio Manso, três
juntas de boi, dezenove bestas, bens em Portugal, di-
versas ferramentas nas obras (entre elas roda de guin-
dar, taboados, paus, mitões de ferro, cordas, alavancas),
gamelalas, caixões de guardar farinha e feijão e pratos,
candeias e barris, e 5 escravos domésticos e 27 escravos
numa propriedade rural.
Também foi um homem de créditos e débitos de
toda a ordem, chegando inclusive a passar todos os
bens em seu nome, a fim de se livrar de penhoras, para
um tal de Manoel de Sá Portella, o que lhe deu muita
dor de cabeça para reaver os seus bens.
Fig. 21 - Detalhe dos cunhais em pedra-sabão
que compõe a amarração arquitetônica do edi-
cifio e ajudam a exprimir esse ar de arquitetura
erutida e sofisticada de influência portuguesa.
Foto André Dangelo, 2019.
Fig. 22 - Detalhe do arranjo das janelas só pri-
meiro e segundo pavimento, fruto de uma lin-
guagem muito influenciada pela engenharia mi-
litar. Foto André Dangelo, 2019.
PATRIMÓNIO DE GAIA NO MUNDO
37. 37
José Pereira dos Santos faleceu em 18 de julho de
1762, solteiro, aos 43 anos de idade, sendo sepultado
na igreja do Carmo de Ouro Preto, conforme desejo
expresso no seu testamento:
... a concepção arquitetônica adotada na Casa de Câmara
e Cadeia de Mariana ressalta a diagonalidade: o frontispí-
cio foi concebido como um retângulo áureo. Ele estudou a
composição e decomposição desse retângulo como também as
relações dos espaços internos, inclusive vãos e varandas, com
o quadrado… no projeto, predomina a forma do quadrado
ou, então, a dos retângulos por ele gerados. Retangular é a
planta; aliás um duplo quadrado. O módulo geométrico é o
quadrado, originando muitas vezes “retângulos dinâmicos”,
isto é, retângulos de proporções irracionais. Essas figuras
encontramo-las ordenando ritmos através de “diagramas
abstratos”. Podemos dizer que foram moduladas segunda a
“divina proporção”. (BARRETO, 1949: 231).
José Pereira dos Santos era ainda irmão das Irmanda-
des do S.S. Sacramento e das Almas, em Mariana.
André Guilherme Dornelles Dangelo
BIBLIOGRAFIA
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- SMITH, Robert C. (1967) - Nicolau Nasoni, arquitec-
to do Porto. Lisboa: Livros Horizonte.
Fig. 23 - Levantamento arquitetônico atual da Casa de Câmara e Cadeia
de Mariana, MG, projeto arquitetônico de José Pereira Arouca de 1762 e
construída pelo mestre português José Pereira Arouca entre os anos de 1778 a
1795; digitalização: André Dangelo, 2005.
ATÉ AO SÉCULO XIX
38. 38
DOCUMENTO E TRADIÇÃO
A ESTÁTUA “O PORTO” E OS ARTISTAS JOÃO DA SILVA
E JOÃO JOAQUIM ALVES DE SOUSA ALÃO
No dia 19 de agosto de 1818, a vereação em exer-
cício na Câmara Municipal do Porto, constituída por
José de Souza e Melo, João Monteiro de Sousa Car-
valho, José Maria Brandão e Francisco de Sousa Cir-
ne, firmou contrato com o mestre pedreiro João da
Silva para a execução de uma «figura de pedra repre-
sentando o “Porto”». Segundo o documento, o artista
morava na freguesia de Pedroso e comprometia-se a
executar a estátua para ser colocada no acrotério do
frontão da nova casa dos Paços do Concelho, pela
quantia de trezentos e quarenta e três mil e duzentos
reis em metal [343$200], pagos por três pagamentos
iguais. A câmara fornecia a madeira para as pranchas
e outros materiais para que a operação de içamento
para o seu local definitivo decorresse em segurança.
Foi fiador Francisco José de Moura Almeida Couti-
nho, tendo sido abatido o montante de setenta e seis
mil e oito centos réis [76$800] por uma jarra de pedra,
elemento decorativo inicialmente previsto, mas que
foi substituído por esta escultura. Assinou «João da
S.ª» (AHMP, 1818: 103-103v).
Ao longo dos tempos, os Paços do Concelho do
Porto estiveram sedeados em diversas instalações, de
modo mais ou menos provisório, mas em 1815 o prín-
cipe regente D. João VI autorizou a aquisição do pa-
lacete Monteiro Moreira, uma construção setecentista,
em barroco joanino, no lado norte da praça Nova, no
qual foi necessário efetuar as devidas obras de adapta-
ção às novas funções públicas. O mestre pedreiro Ma-
nuel Luís Nogueira, de Paranhos, tomou a empreitada
de acrescento da fachada, mas, após o seu falecimento,
foi João da Silva quem prosseguiu o projeto até à sua
conclusão. Assim, este artista de Vila Nova de Gaia
encontra-se associado às obras de reabilitação arqui-
tetónica do edificado e sua nobilitação, nomeadamen-
te através do remate ornamental figurativo: “O Por-
to”. Sobre os espaços interiores, aspetos decorativos
e artísticos, existem algumas descrições (ALLEGRO,
1908: 277-278).
Fig. 1 - Estátua “O Porto”, praça da Liberdade
ângulo NO com a avenida dos Aliados, Porto.
Foto da autora, 2018.
Fig. 2 - Estátua “O Porto”, praça da Liberdade
ângulo NO com avenida dos Aliados, Porto. Foto
da autora, 2018.
PATRIMÓNIO DE GAIA NO MUNDO
39. 39
Embora a ata da vereação identifique apenas o
mestre pedreiro João da Silva, a tradição vinculou o
escultor João Joaquim Alves de Sousa Alão à execu-
ção da estátua “O Porto” desde, pelo menos, 1869,
mais de trinta anos após o seu falecimento [no Rio de
Janeiro, em 1837], quando José Marcelino Peres Pin-
to escreveu nos Apontamentos para a Cidade do Porto: «a
estatua que remata o frontispício, e que representa o
Porto, foi feita pelo exímio estatuário portuense João
Joaquim Alão» (PINTO, 1869: 131).
Uma opinião reforçada por Alberto Pimentel no
seu Guia do viajante na cidade do Porto e seus arrabaldes, de
1877, onde refere:
«A estátua do Porto foi cinzelada por João Joaquim
Alão» (PIMENTEL, 1877: 132). Contudo, essa atri-
buição não acompanha o elogioso destaque que João
Pereira Baptista Vieira Soares lhe fez, enquanto autor
dos modelos em madeira para as estátuas da fachada
Fig. 3 – AHMP, Vereação de de agosto de 1818.
DO SÉCULO XIX AO INÍCIO DE XX | ESCULTURA, ARQUITETURA, PINTURA, ARTE SACRA E TUMULÁRIA
Fig. 4 - Estátua “O Porto”, praça da Liberdade ângulo NO com avenida dos
Aliados, Porto. Foto da autora, 2018.
40. 40
da igreja da Ordem Terceira de São Francisco do Por-
to, em O Heroísmo e a Gratidão ou Portugal Restaurado
[…], escrito em 1844, (BPMP, Ms. 1226: 25-26), nem
por Henrique Duarte e Sousa Reis nos seus Aponta-
mentos para a verdadeira história antiga e moderna da Cidade
do Porto, escrito em 1872, pois cita elementos da ata da
vereação de 1818 (BPMP, Ms. 1274, 18v).
No entanto, a complementaridade artística entre os
dois intervenientes torna plausível a sua associação,
atendendo a que a realização da «maquete em barro
e o transporte da figura para o granito» correspon-
de a fases consecutivas da execução da estátua (VI-
TORINO, 1940: 591). Estudos recentes referem uma
remota representação do «patrono civil portuense»,
designado na época medieval por «pedra do Porto» e
na época moderna apenas «Porto», a qual teria servi-
do de modelo, ou recuperada a sua simbologia, para a
nova escultura em granito: «a figura de um guerreiro
romano, equipado com couraça, escudo (com armas
da cidade), lança, gládio e elmo, este sobrepujado por
uma dragão» (AFONSO, 2003, ABREU, 2007: 71).
Fig. 6 - Praça da Liberdade, edifício dos Paços do Concelho, 19. Postal Grandes Armazéns Hermínios. Cortesia M. Morais Marques.
PATRIMÓNIO DE GAIA NO MUNDO
Fig. 5 - Estátua “O Porto” (pormenor). Foto da
autora, 2018.
41. 41
BIBLIOGRAFIA
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Porto: CMP, vol. III, fasc. 4, p. 586-595.
DO SÉCULO XIX AO INÍCIO DE XX | ESCULTURA, ARQUITETURA, PINTURA, ARTE SACRA E TUMULÁRIA
De 1819 até 1916, a Praça Nova foi tomando no-
vas designações: praça da Constituição (1820), praça
Nova, praça de D. Pedro IV (1833), da República e da
Liberdade (1910 até à atualidade), mas os elementos de
representação da edilidade asseguraram a identidade
deste fórum, tema desenvolvido pelo escritor Alberto
Pimentel (PIMENTEL, 1916). Durante esse período,
o centro cívico portuense foi palco de acontecimen-
tos de âmbito nacional, nomeadamente a proclama-
ção da Revolução Liberal (1820), a Alçada miguelis-
ta (1829), o 31 de Janeiro (1891), ou a proclamação
da República (1910), e a figura ornamental tornou-se
um ex-libris, personificando temas humorísticos pela
mão de Sebastião Sanhudo ou de Manuel Monterroso,
distinguindo-se aos olhos dos viajantes pela sua exce-
cionalidade (JACKSON, 2007: 145), sendo atualmente
considerada pelos académicos uma precoce manifes-
tação de «estatuária civil» no espaço urbano portuense
(ABREU, 2012: 71; AFONSO, 2003).
Em 1916, o vetusto edifício municipal foi demoli-
do para rasgar a avenida que culminava com os novos
Paços do Concelho, e a estátua foi apeada, momento
registado pelo fotógrafo amador José Humberto Gon-
çalves (Illustração, 1916: 733), tendo sido colocada
sobre um pedestal junto do Paço Episcopal, edifício
onde se instalaram provisoriamente os serviços mu-
nicipais (BASTO, 1972: 280-306; SOUSA, 2012: 29-
55). Em 1935, foi transferida para o Palácio de Cristal,
onde uma placa atribuía a autoria a Manuel Joaquim
Alão (VITORINO, 1940: 594), mais recentemente, es-
teve junto da “Casa dos 24”, uma obra do arquiteto
Fernando Távora que recuperou a volumetria do edi-
fício municipal medieval a partir das suas fundações
(2002), mas também a simbólica articulação entre o
poder civil e o poder religioso, pela proximidade à Sé
e ao Cabido do Porto. Por fim, a estátua encontra-se
agora num lugar próximo do primitivo, e da estátua
de D. Pedro IV, na praça da Liberdade no ângulo NO
com a avenida dos Aliados, o eixo nobre da cidade.
Esta nova localização de “O Porto” permite apre-
ciar a monumentalidade da escultura de vulto exe-
cutada numa só pedra, a plasticidade e a diversidade
volumétrica na modelação, atendendo à natureza do
material, bem como a inusitada confluência de refe-
rências, salientando-se o dragão sobre o elmo. En-
quanto o plano posterior apresenta escassa modelação,
no plano anterior a figura destaca-se do fundo numa
perfeita articulação anatómica, reflete uma linguagem
clássica, projeta-se em diversos eixos, observando a
correção ótica, aspetos que assentam no modelo que
lhe deu origem e na mestria técnica do cinzelador.
Susana Moncóvio