O documento discute diferentes abordagens para introduzir estudantes de direito às noções gerais da ciência jurídica, incluindo a enciclopédia jurídica, filosofia do direito, sociologia jurídica e teoria geral do direito. Conclui que a introdução à ciência do direito é a abordagem mais adequada para fornecer o pré-conhecimento científico necessário antes de estudos jurídicos especializados.
2. INTRODUÇÃO
A introdução à ciência do Direito responde, no curso jurídico, à
necessidade de uma disciplina geral. Os cursos superiores, desenvolvidos por
disciplinas especializadas, reclamam que ao estudo setorial preceda outro
geral. Esta conveniência é mais veemente no curso jurídico, cujo objeto é
histórico: regras obrigatórias de conduta na sociedade de um tempo, o que,
provavelmente, levou Benjamin de Oliveira Filho a reivindicar para a
introdução caráter eminentemente cultural.
Não é, aliás, este imperativo apenas de ordem didática. O saber
jurídico, qualquer que seja o nível em que o consideremos, só pode ser bem
exposto e compreendido, se o seu estudo se inaugura pelo exame das suas
generalidades, pretensão mais ambiciosa e fecunda do que a sua simples
visão sintética sugerida por A. B. Alves da Silva.
Objetivo de tal natureza sempre foi almejado. Várias foram as
tentativas de alcançálo: a enciclopédia jurídica, a filosofia do Direito, a
sociologia jurídica, a teoria geral do Direito e a introdução à ciência do
Direito.
Enciclopédia jurídica
A enciclopédia jurídica foi a mais remota. Adotava por padrão a
estrutura do Corpus Juris, tradicional codificação do Direito romano.
Pretendem alguns que a obra de Gulielmus Durantis 12371326), o
Speculum Judiciale (1275), seja considerada pioneira no gênero, o que outros
contestam. O texto de Durantis abrangia o Direito romano e o canônico,
destinandose mais propriamente às autoridades judiciárias do que ao estudo
do Direito.
A literatura enciclopédica floresceu a partir do século XVI, quando se
divulgaram numerosos trabalhos compreendendo todos os ramos do direito
de maneira sistemática, entre os quais se destacaram os de Lagus e Hunnius,
atribuindo alguns a este último a verdadeira fundação da enciclopédia
jurídica.
No século XVIII, resultante do divórcio entre a filosofia e as ciências
positivas, duas tendências passaram a atuar na enciclopédia jurídica, do que
3. decorreu que algumas obras se inclinassem no sentido dogmático ou positivo,
como a de Stéphane Pütter, e outras no sentido filosófico, como a de
Nettelbladt.
No começo do século XIX, sob influência de Georg Wilhelm Friedrich
Hegel (17701831) e Friedrich Wilhelm Joseph Schelling (17751854),
procurase fazer da enciclopédia uma ciência própria, não mero repositório
mais ou menos ordenado de informações. Surgiram, assim, as enciclopédias
de Karl Pütter, Friedlaender, Rudhart, Heinrich Ahrens (18081874), Walter e
outros.
A partir da segunda metade do século XIX a literatura enciclopédica
entra em decadência, não merecendo referência senão à obra de Adolf
Merkel (18361896), cuja primeira parte é dedicada já ao estudo da teoria
geral do direito: conceito, caracteres, divisão e gênese do Direito; elementos,
divisão e gênese das relações jurídicas; aplicação do Direito e ciências
jurídicas.
O trabalho dos enciclopedistas, sem embargo da amplitude teórica de
algumas de suas obras, era, principalmente, de organização do Direito
positivo. Não podia a enciclopédia emanciparse da experiência jurídica,
alcançar conceitos gerais e servir, assim, de instrumento útil para um
conhecimento jurídico de base não empírica.
Adquirir uma idéia sucinta das parcelas, como pondera Eusébio de
Queiroz Lima, não é ter uma noção exata do todo. E além disso, repara
Ernesto Eduardo Borga, por sua orientação empirista, atendose aos fatos,
somente poderia resultar numa teoria do Direito Positivo, nunca numa teoria
que abarcasse o direito todo, menos ainda o conceito elaborado em vista do
Direito Positivo.
Filosofia do direito
A filosofia do direito integrou, durante muito tempo, o currículo
jurídico, proporcionando ao estudante contato com as mais gerais noções
jurídicas. E é certo, conforme anota Huntington Cairns, que a especulação
jurídica, através de toda a sua história, apesar do fato de que o seu objeto em
grande parte é existencial, tomou mais da filosofia do que da ciência.
4. É fora de dúvida, porém, que por ela não se poderia jamais iniciar o
estudo do Direito. Não se conclua daí, que não tenha valiosa significação no
elenco das disciplinas jurídicas. Apenas, o saber filosófico, do ponto de vista
lógico, senão cronológico, deve suceder ao científico. O conhecimento
filosófico é a síntese mais alta que o homem alcança, a nenhuma síntese se
atinge, com exatidão e coerência, sem a prévia análise dos elementos que a
pressupõem. A atividade filosófica é crítica em alto nível, e os níveis mais
altos de crítica não podem ser alcançados sem que antes tenham sido
percorridos os inferiores. O saber filosófico só pode ser atingido apoiado em
conhecimento anterior mais modesto porque é saber de remate. Nem é viável
pretender a filosofia de um objeto sem o seu prévio conhecimento científico,
dado que aquela, explica Joseph Vialatoux, é um retour, uma reentrada, uma
reflexão de um saber ao menos começado.
A tendência geral, em nossos dias, é deslocar a filosofia jurídica do
currículo de graduação para o de pósgraduação, posição de culminância
que já lhe fora assinalada por Alessandro Levi. Também o nosso Pedro Lessa
(18591921), que entendeu ter sido um erro grave a eliminação dessa
disciplina dos cursos jurídicos, pretendia vêla situada no último ano da
academia.
Sociologia jurídica
Podemos estudar os fatos sociais na sua generalidade, naquilo que
todos têm em comum, examinálos, portanto, em sentido lato; paralelamente,
podemos considerar alguns deles que têm qualificação própria e promovem
um processo adaptativo peculiar. A sociologia geral, consoante Nicholai S.
Timacheff, estuda a sociedade em nível altamente generalizado ou abstrato, e
as ciências sociais particulares, sob um determinado e específico aspecto.
Segundo Pitirim Sorokim (18891998), a linha de demarcação existente entre
estas e aquela decorre do fato de que, se existem, dentro de uma classe de
fenômenos, N subclasses, deve haver N + 1 disciplinas para estudálas: N
para estudar cada subclasse e mais uma para estudar aquilo que é comum a
todas, bem como a correlação entre elas.
O fato jurídico, sendo social, pode ser objeto de uma delas, a sociologia
jurídica. Sucede, porém, que a sociologia jurídica considera o Direito sob o
aspecto da sua causalidade histórica, que é apenas um elemento para
compreendêlo. O Direito é, antes de tudo, norma e valor. Não cabe
5. compreendido na sua universalidade sem a pesquisa das exigências éticas que
inspiram suas regras, ao que não atende a sociologia jurídica.
Esta é, ademais, uma ciência de temática polêmica e de contornos
relativamente imprecisos, o que a inabilita para servir de disciplina geral nos
estudos jurídicos. É o que assinala, também, André Franco Montoro, quando
a caracteriza como disciplina que ainda não se consolidou suficientemente,
no sentido de não dispor de um corpo sistemático de conclusões, com objeto e
métodos definidos, atraso de desenvolvimento que atribui à hostilidade de
dois setores afins: de um lado, os juristas resistem à penetração, em seu
campo, de uma disciplina estranha à dogmática jurídica, e, de outro, os
sociólogos desconfiam da objetividade e do caráter científico de estudos
vinculados à normatividade jurídica.
Além disso, a sociologia jurídica não focaliza, nem lhe caberia fazer, a
regra jurídica em si, na sua estrita significação normativa. Dedicase à
análise dos seus pressupostos fáticos, os fatores sociais que a determinam. E
estes, relevantes que sejam para o sociólogo ou o historiador, não satisfazem
à necessidade de préconhecimento científico do ordenamento jurídico,
porque dele não proporcionam uma noção autêntica e metódica.
Teoria geral do Direito.
A teoria geral do Direito, no campo dos estudos jurídicos, refletiu a
influência avassaladora do positivismo do século XIX. Escola antimetafísica,
o positivismo alimentava a convicção de que a filosofia jamais alcançaria,
como sempre se propusera, o conhecimento das essências. Sob sua feição
ortodoxa, importava verdadeira contestação da autonomia do conhecimento
filosófico, dado que entendia caber a este a missão de integrar e coordenar o
conhecimento científico.
No setor dos estudos jurídicos, a filosofia positivista engendrou a teoria
geral do direito, que devia substituir a filosofia jurídica. O jurista partiria da
análise da realidade históricosocial para, por comparação e indução, alçar
se aos conceitos. Ciência, conforme pretendia ser, a sua primordial
característica seria a de subordinarse ao método científico. Nenhum saber
jurídico poderia convergir para outro objeto que não o próprio direito
positivo. Ao jurista competia observar as instituições, determinar as suas
6. afinidades, assinalar as suas relações permanentes, e, finalmente, por
indução, alcançar as respectivas noções gerais.
Embora a teoria geral do Direito não tenha ocupado a posição que
almejava, uma vez que dava por sucumbida a filosofia jurídica – diagnóstico
em que falhou totalmente, pois, como assinala Alceu Amoroso Lima (1893),
assistimos nos últimos anos a um recrudescimento em torno dos fundamentos
filosóficos do Direito, como talvez jamais se tenha visto no decorrer de toda a
história certo é que se integrou definitivamente na doutrina do direito.
É indubitável, porém, que ela não exaure os nossos conhecimentos
teóricos. Basta ter em mente que condenava a fracasso qualquer tentativa de
conhecimento jurídicofilosófico, o que contradiz toda a cultura jurídica
contemporânea.
Introdução à ciência do Direito
A introdução é uma disciplina cuja meta mais pretensiosa está na
formulação de princípios gerais aplicáveis ao conhecimento jurídico. É uma
disciplina epistemológica, não uma disciplina jurídica em sentido restrito,
porque não estuda uma normatividade jurídica histórica. Não se ocupa de
normas jurídicas, de sistemas de direito positivo, de nenhum ordenamento
jurídico vigente. É uma ciência da ciência do direito. Considera as noções
gerais do direito, tal como podem ser abstratamente formuladas, quase
sempre fazendo omissão dos seus matizes históricos reais.
Uma das suas características mais típicas é o seu sentido pragmático.
Seu conteúdo não é rigoroso, exato, rígido. Defensável, até certo ponto, é
incluir ou excluir dele certas matérias. Constituemna noções que professores
e tratadistas entendem adequadas para a iniciação ao curso de Direito. Essa
circunstância gera a diversidade dos programas de ensino.
Uma das facetas da sua preocupação prática está em que ela deve
servir de trânsito entre o curso médio e o superior. Problema que é hoje
objeto de preocupações e cuidados, justificando a reivindicação de um
processo de integração da escola média com a universidade.
As dificuldades da passagem daquela a esta não são exclusivas do
curso jurídico. Afligem, em parte, os candidatos a outros cursos, como o de
7. Medicina, o de Engenharia, o de Economia, etc. No curso de Direito, porém,
como enfatiza Gaston May, se agravam. Em relação a outros, o currículo
médio proporciona, de algum modo, conhecimento prévio que terá utilidade
direta no curso superior. Em Medicina, por exemplo, o estudante já se
contactou com a Biologia e a Física. Em Engenharia, as noções de Física e de
Matemática obtidas no curso médio são de vantagem decisiva no superior.
Para o estudante de Direito, no entanto, há um hiato entre o curso médio e o
superior. É por isso que a introdução, sem prejuízo do seu núcleo de idéias
gerais a que corresponde, em princípio, a chamada teoria geral do Direito
colige noções não jurídicas, mas filosóficas, sociológicas e, eventualmente,
também históricas, e delas se utiliza como ponte entre o curso médio e o
superior.
Para justificála, ainda poderiam ser citadas as palavras de que se
serviu Cousin para pleitear a criação dessa disciplina em França, transcritas
por Lucien Brun: “Quando os jovens estudantes se apresentam em nossas
escolas, a jurisprudência é para eles um país novo do qual ignoram
completamente o mapa e a língua. Dedicamse de início ao estudo do Direito
Civil e ao do Direito romano, sem bem conhecer o lugar dessa parte do
Direito no conjunto da ciência jurídica, e chega o momento em que, ou se
desgostam da aridez desse estudo especial, ou contraem o hábito dos detalhes
e a antipatia pelas vistas gerias. Um tal método de ensino é bem pouco
favorável a estudos amplos e profundos. Desde muito tempo os bons espíritos
reclamam um curso preliminar que tenha por objeto orientar de algum modo
os jovens estudantes no labirinto da jurisprudência; que dê uma vista geral de
todas as partes da ciência jurídica, assinale o objeto distinto e especial de
cada uma delas, e, ao mesmo tempo, sua recíproca dependência e o laço
íntimo que as une; um curso que estabeleça o método geral a seguir no estudo
do Direito, com as modificações particulares que cada ramo reclama; um
curso, enfim, que faça conhecer as obras importantes que marcaram o
progresso da ciência. Um tal curso reabilitaria a ciência do Direito para a
juventude, pelo caráter de unidade que lhe imprimiria, e exerceria uma
influência feliz sobre o trabalho dos alunos e seu desenvolvimento intelectual
e moral”.
Complementarmente, é válido observar que a introdução atua como
verdadeiro teste vocacional. A experiência mostra que o universitário de
outros cursos, pelo trato anterior com matérias que a eles pertencem, tem, de
um modo geral, embora imprecisamente, relativa informação quanto à
natureza dos dotes pessoais que lhe serão preferentemente reclamados. O
8. discípulo que no curso colegial sente predileção pela Matemática tem
razoável probabilidade de êxito no curso de Engenharia, ou em outro em que
o conhecimento matemático seja básico. Já o estudante de Direito
habitualmente se inclina para o curso por uma escolha negativa. É a falta de
ajuste às ciências experimentais, quase sempre, que o leva do colégio à
faculdade, quando não uma inclinação literária ou um simples pendor para as
leituras propiciatórias de cultura geral. Essa escolha no escuro encerra o
risco de uma opção a que não corresponda inclinação autêntica.
O estudo jurídico, como o de qualquer curso superior, é especializado,
o que importa dizer que resultado melhor é obtido quando tentado por quem
possui real inclinação para as matérias que o integram. Por isso, a
introdução, dando ao estudante um primeiro contato com o curso, facultalhe
julgar das suas próprias habilitações e retificar ou confirmar uma escolha
que pode ter feito sem os elementos imprescindíveis à sua decisão.
9. SUMÁRIO
1. Dados filosóficos
1.1 Realidade e valor
1.2 Homem e valor
1.3 Direito e justiça
2. Dados sociológicos
2.1 Fato social
2.2 Sociedades humanas
2.3 Fenômeno político
3. Dados sociofilosóficos
3.1 Normatividade social
3.2 Normas éticas e normas técnicas
3.3 Normas morais e normas jurídicas
3.4 Normas convencionais
4. Disciplinas jurídicas
4.1 Disciplinas fundamentais e auxiliares
4.2 Filosofia jurídica
4.3 Ciência do Direito
4.4 Teoria geral do Direito
5. Noções fundamentais
5.1 Norma jurídica
5.2 Norma, sanção e coação
5.3 Sanções jurídicas
5.4 Fontes do Direito
5.5 Direito subjetivo
5.6 Direitos pessoais e direitos reais
5.7 Proteção dos direitos subjetivos
5.8 Dever jurídico
5.9 Relação jurídica
5.10 Atos jurídicos
10. 5.11 Sujeito de Direito
5.12 Objeto do Direito
5.13 Ato ilícito
6. Instituições jurídicas
6.1 Instituições jurídicas
6.2 O Estado
6.3 Personalidade
6.4 Família
6.5 Propriedade
6.6 Posse
6.7 Obrigações
6.8 Sucessão
7. Enciclopédia jurídica
7.1 Classificação das normas jurídicas
7.2 Problemas de classificação
7.3 Critérios de classificação
7.4 Direito Constitucional
7.5 Direito Administrativo
7.6 Direito Penal
7.7 Direito Processual
7.8 Direito do Trabalho
7.9 Direito Internacional Público
7.10 Direito Civil
7.11 Direito Comercial
7.12 Direito Internacional Privado
8. Técnica jurídica
8.1 Técnica jurídica
8.2 Vigência da lei
8.3 Interpretação
8.4 Integração
8.5 Eficácia da lei no espaço
8.6 Eficácia da lei no tempo
Bibliografia consultada
12. 1.1 REALIDADE E VALOR
1.1.1 Realidade e valor
Gustav Radbruch (18781949), reportandose às doutrinas de Wilhelm
Windelband (18481915) e Heinrich Rickert (18631936), considera básica a
distinção entre realidade e valor. Comenta, com evidente acerto, que em meio
aos dados de nossa experiência, surgidos de maneira uniforme em nossas
próprias vivências, realidade e valor mostramsenos mesclados. Homens e
coisas, saturados de valor e de desvalor, aparecem associados sem que
possamos fazer entre eles nítida distinção.
Quando refletimos sobre a nossa experiência, percebemos que o valor
não está nas coisas e sim em nós mesmos. Se digo de uma tela que é bela, a
beleza não está nela, mas no meu julgamento. Se digo de um ente que é útil, a
sua utilidade não lhe é intrínseca, mas um atributo que lhe confiro.
O primeiro ato da consciência parece ser o de formular uma
reivindicação do próprio eu, libertando dos dados de experiência aqueles que
são pessoais, e isso leva a distinguir realidade de valor.
Realidade e valor pertencem a setores autônomos; realidade é
objetividade; valor, subjetividade. Não podemos falar de valores como se
fossem reais ainda que para Max Scheler (18751929), segundo Alfred Stern,
nos sejam dados antes de toda experiência e, portanto, aprioristicamente; e
nem de realidades como se um valor lhes fosse inerente. Ao valor
correspondente uma essência própria, também à realidade, outra. Realidade e
valor são inconfundíveis. Uma é, outro deve ser. A realidade existe, é um
atributo do ser; o valor se afirma, é um julgamento do sujeito, sem o qual o
mundo, observa Wilhelm Schapp, não teria interesse para o homem.
Essa distinção é básica para a filosofia jurídica, porque o direito julga o
comportamento. Nenhum julgamento pode, logicamente, existir sem a idéia de
um valor, porque julgar é comparar um objeto a um valor, para concluir da sua
compatibilidade ou incompatibilidade. O direito, fazendo apreciação da
conduta, porque discrimina entre lícito e ilícito, importa estimação de valores.
Não pertence, portanto, na sua irredutível essência, ao plano da realidade.
13. 1.1.2 Ser e dever ser
Da distinção entre realidade e valor resultam duas posições: a que se
refere ao ser dos entes e a que se refere ao dever ser do homem. E, como
corolários dessas, os conceitos de lei natural e lei ética, distinção essa cujo
desconhecimento, conforme Raimundo Farias Brito (18621917), atenta
contra a natureza das coisas e a mais comum experiência.
1.1.2.1 Juízos enunciativos e valorativos
Esses conceitos são alcançados através de juízos que são a alavanca
fundamental da atividade cognitiva da inteligência humana, o que deles faz
sejam inteiramente diversos das representações, mesmo considerados do ponto
de vista psicológico, como afirma Franz Brentano (18381917).
A experiência tem por objeto coisas e fatos individualizados. Sobre ela
a mente do homem elabora o conhecimento. Mas assim não faria, não fosse a
sua possibilidade de formular juízos,
Essa aglutinação pode darse por análise ou por síntese, isto é, ou
consiste numa decomposição do objeto da experiência em seus elementos
intrínsecos, ou num acrescentamento ao objeto de algo que não lhe pertence
por essência. Há, portanto, juízos analíticos e sintéticos. Segundo Emmanuel
Kant (17241804), a quem coube formular com clareza a distinção, os
analíticos não ampliam nosso conhecimento, apenas desenvolvem o conceito e
o tornam mais inteligível. Ao contrário, os sintéticos são autênticos juízos de
experiência e sobre eles se constróem todas as ciências explicativas.
Além do mais, construídos os juízos sintéticos na base da observação,
podem eles mesmos ser ligados, numa segunda operação lógica, cujo nível de
criatividade é maior. Se temos noções resultantes da experiência de duas
coisas singulares e conseguimos aglutinálas, formamos uma terceira noção
representativa de uma nova realidade, cuja criação dependeu da experiência
apenas indiretamente. E nesse processo atingimos, progressivamente, níveis
cada vez mais altos de compreensão e generalidade. Como explica G. J.
Romanes, a partir do mais simples juízo possível e, portanto, da mais simples
proposição (correspondente gramatical do juízo), a inteligência humana eleva
se de um modo uniforme e ininterrupto. Nem é outra a lição de Kant, quando
ensina que os juízos estabelecem uma unidade entre as nossas representações,
14. pois que a uma representação imediata substituem outra mais elevada que
contém a primeira, assim como várias outras, de modo que muitos
conhecimentos possíveis são reunidos em um só.
Os juízos atendem à diferença entre natureza e valor. Há juízos
pertinentes à compreensão do mundo natural e juízos que traduzem valores e
definem atitudes do homem sensibilizados por eles. Daí a distinção entre
juízos enunciativos e juízos valorativos. Podemos dizer é isto, ou dizer deve
ser isto. Às vezes a cópula verbal é ser, outras, dever ser. Quando usamos ser,
para coordenar duas idéias, formulamos um juízo enunciativo. Se a
coordenação se faz com dever ser, o juízo é valorativo. Os enunciativos são
juízos de experiência; os valorativos, estimativos de valor.
Os enunciativos são descritivos. Quando dizemos de algo que é,
fazemos apenas uma descrição, tanto mais perfeita quanto mais impessoal. A
atitude do naturalista é de completa neutralidade: é narração de uma
experiência. Por isso, dizemos que os juízos enunciativos são teóricos.
Medemse pelo critério da veracidade, isto é, podem ser verdadeiros ou falsos.
Um juízo enunciativo é verdadeiro quando há coincidência entre o liame que
prende as idéias no juízo e o que existe entre as coisas ou fatos a que elas se
referem, quando, na frase magistral de Joaquín Xirau (1895), o seu perfil se
calca sobre o perfil do ser. Se declaramos que A é B, e de fato existir uma
ligação objetiva entre A e B, igual à que afirmamos, temos um juízo
verdadeiro. Ele vincula, logicamente, idéias de realidades, também
naturalmente vinculadas. Há perfeita identidade entre a teoria do fato e ele
próprio. Falso é um juízo equivocado, no qual se pretende estabelecer
logicamente relação inexistente no plano da realidade.
Os juízos verdadeiros dividemse em verdadeiros necessários e
verdadeiros contingentes, distinção equivalente à que se faz entre verdades de
razão e verdades de fato, claramente feita por Gottfried Wilhelm von Leibniz
(16461716), a qual, na observação de Manoel Garcia Morente (18881942),
resulta da necessidade de se determinar a curva geral do desenvolvimento das
ligações existentes entre os vários estados internos da percepção. Há idéias
ligadas entre si por necessidade lógica, de maneira que é impossível a sua
recíproca desvinculação. Quando o elo que une duas idéias tem essa natureza,
o juízo que indica a relação é descritivo necessário. Ao dizermos que a linha
reta é a distância mais curta entre dois pontos, estamos fazendo uma
afirmativa que a razão assevera ser inconcebível negar em qualquer situação.
Se declaramos que duas coisas iguais a uma terceira também o são entre si,
15. afirmamos uma verdade de razão, porque esta evidencia a impossibilidade de
haver duas coisas que, sendo iguais a uma terceira, não o sejam entre si.
Nesses exemplos enunciamos juízos verdadeiros, descrevendo realidades tais
como são, e necessariamente verdadeiros, porque não podemos conceber
circunstância, no tempo e no espaço, capaz de desmentir a ligação lógica
estabelecida entre as idéias no juízo.
Um juízo verdadeiro contingente descreve uma realidade como ela se
apresenta, mas, sendo essa realidade suscetível de transformações (pode ter
sido uma ontem, pode ser outra hoje, poderá amanhã ser uma terceira), a
veracidade do juízo fica condicionada a uma certa circunstância de tempo e
espaço. Se descrita como é hoje, formulamos um juízo; se como será amanhã,
talvez formulemos outro juízo. Assim, em referência à temperatura ambiente,
se dizemos que está quente, podemos ter feito um juízo verdadeiro, pelo fato
de estar efetivamente quente. Se, horas depois, ao calor suceder o frio, o juízo
verdadeiro será outro. Como o próprio objeto do juízo é contingente, ele é
válido para cada momento da experiência.
Os juízos valorativos da conduta são práticos, porque servem à
realização de um fim. E postulativos, dado que enunciam exigências positivas
ou negativas de procedimento.
1.1.2.2 Lei natural e lei ética
Os juízos enunciativos e valorativos conduzem aos conceitos de lei
natural e lei ética. A natural é a fórmula mais evoluída do enunciativo; a ética,
a mais evoluída do valorativo prático.
Segundo Emmanuel Kant, a filosofia tem esses dois objetos,
abrangendo ambas as leis, em dois sistemas particulares, ainda que ambicione
sua síntese final.
Conquanto não possamos admitir lei natural sem juízo enunciativo, nem
lei ética sem juízo valorativo, existe distinção entre lei natural e juízo
enunciativo, lei ética e juízo valorativo.
Numa experiência, submetemos um pedaço de metal à ação do calor.
Verificamos que o metal se dilatou, e declaramos que o metal X, submetido ao
calor, se dilatou. Este é um juízo descritivo verdadeiro. Pela multiplicação da
16. experiência e a análise das suas condições passamos a uma lei geral: o calor
dilata os corpos. Quando alcançamos uma noção geral que explica toda a
experiência realizada e possível, temos uma lei natural.
Se deixamos cair um objeto, constatamos que ele cai em direção à
Terra. Pelo mesmo processo, chegamos a determinar a lei da gravidade. A lei
natural é a generalização exemplar de um juízo enunciativo. Se não
pudéssemos assim construir, adverte Émile Meyerson (18591933), de nada
nos valeriam as regras que formulássemos sobre a experiência dos fenômenos,
que são infinitamente diversos.
Surge, assim, o conceito abstrato de causa, pelo qual se estabelecem
relações entre o passado e o presente, que são, a rigor, meramente prováveis
devendo a lei natural desempenhar, como observa José Juan Bruera, uma
função meramente sinótica das regularidades constatadas pela experiência, as
quais, embora praticamente equivalentes à certeza, dela apenas são,
teoricamente, aproximativas.
Esta é uma contingência lógica do método indutivo, que se eleva das
sensações à generalidade, ainda que adotado com as cautelas recomendadas
por Francis Bacon (15611626): elevarse lentamente, seguindo marcha
gradual, sem saltar nenhum degrau.
Bertrand Russel (18721970) dános uma clara idéia dos princípios a
que esse método está submetido:
a) quando uma coisa de uma certa espécie, A, for achada com
freqüência associada com outra de espécie diversa, B, e nunca for achada
dissociada da coisa da espécie B, quanto maior seja o número de casos em que
A e B se achem associados, maior será a probabilidade de que se achem
associados em um novo caso no qual saibamos que uma delas está presente;
b) nas mesmas circunstâncias, um número suficiente de casos de
associação converterá a probabilidade da nova associação em quase certeza e
fará com que se aproxime de um modo indefinido da certeza.
Ainda que o mesmo raciocínio não se possa aplicar à lei ética (tanto
mais que a radical distinção entre natureza e valor já foi antes ressaltada), nem
por isso podemos ignorar a significação da experiência na orientação da
conduta. Vendo uma pessoa agredir outra, julgamos que não deve proceder
17. assim; valorizamos uma situação, e, portanto, fazemos um juízo valorativo
(não deve ser), diante de um acontecimento humano, circunscrito a uma
experiência singular. A Ética, disciplina filosófica, habilitanos a alcançar a lei
ética, norma de conduta válida para uma universalidade de situações. O juízo
valorativo, feito em função do incidente singular, só gera lei quando conduz a
regras gerais com pretensão de validade universal. Consoante ensina Wilhelm
Dilthey (18331911), construímos generalizações acerca de estados afetivos,
valores vitais, virtudes e deveres, e estes recebem por sua vez força dos
sentimentos e impulsos que surgem da imitação do concreto neles contido e do
sentimento tranqüilo que a sua subordinação nos infunde.
Os predicados que distinguem juízo descritivo e valorativo permitem a
distinção entre lei ética, com as suas características próprias, e lei natural, com
as suas qualificações particulares.
A lei natural é um porquê explicativo da realidade, é verdadeira ou
falsa, exatamente porque o binômio verdadeerro prevalece no mundo teórico.
Se dizemos que quando ocorre A ocorre B, essa afirmativa é uma lei natural,
se assim acontecer no plano da realidade ao qual se refere. A lei natural
apresenta os fenômenos, dandolhes explicação coincidente com a sua própria
realidade intrínseca. Caso não coincidam explicação e realidade, estaremos
diante de uma lei falsa, porque todas as leis da natureza assentam no
pressuposto, que não é científico, mas filosófico, da invariabilidade da ordem
natural, a qual nos concede prever os fatos uns pelos outros, sem o que,
consoante afirma Henri Poincaré (18541912), não se pode aceitar a
legalidade e a possibilidade mesma da ciência. Como explica David Hume
(17111776), todos os raciocínios concernentes à causa e ao efeito, que são os
científicos, estão fundados na experiência e todos os raciocínios tirados da
experiência estão fundados na suposição de que o curso da natureza
continuará sendo uniformemente o mesmo.
A lei ética é válida ou inválida. Não é verdadeira ou falsa, porque, no
campo do comportamento, verdade e erro não têm presença, dado que
pertencem ao plano das enunciações. Uma lei é justa ou injusta, fundamentada
ou arbitrária, eqüitativa ou violenta. É válida, neste sentido filosófico, quando
expressa um valor autêntico e lhe é fiel; inválida, quando não traduz um valor
ou o faz de modo inadequado.
Uma lei natural é presumidamente invariável, não pode ser, em
nenhuma circunstância, em nenhum momento, desmentida pela experiência.
18. Podemos acumular séculos de observação, concluir uma lei natural, mas se
uma experiência desmentila, passa a ser falsa. Terseá constatado, então, o
acerto da observação de André Cresson, quando afirma que uma lei natural se
apoia em verificações que são como zero em relação à generalização que se
lhe atribui.
Já com a lei ética acontece diversamente. Só podemos aceitar a sua
existência se ela for suscetível de infração. O pressuposto de qualquer uma é o
de que se dirige a pessoas livres. Quando se diz devese fazer assim, está
implicitamente admitido outro procedimento.
Entre lei natural e lei ética fez Hermann Ulrich Kantorowicz (1877
1940), um paralelo diferenciador de extrema clareza, ao afirmar que aquela
descreve invariáveis relações causais ou conexões estruturais (de fatos,
mudanças, quantidades, propriedades); impõe obrigações, não sobre a conduta
humana, mas, no caso de veracidade, sobre a inteligência; constitui matéria de
cognição e prova, não de sanções, sim de conseqüências; não de autoridade,
sim de experiência; não de consciência, sim de ciência; não de deveres, sim de
acontecimentos constantes. A lei natural gira em torno do que é real, enquanto
que as normas de conduta prescrevem um comportamento que pode ser ou não
real, mas que deveria ser real.
1.2 HOMEM E VALOR
Há valores diversos. Segundo o ensinamento de Scheler, são absolutos,
maneiras de sentir que não dependem da sensibilidade e da vida, e podem ser
classificados numa escala crescente de perfeição:
a) úteis (utilidade);
b) vitais (nobreza, saúde, força);
c) espirituais (conhecimento, arte, direito);
d) religiosos (sagrado).
A cada valor corresponde o seu oposto, um desvalor. Assim, à utilidade
corresponde a inutilidade, à nobreza o comum, à saúde a doença, à força o
19. despauperamento, à verdade o erro, ao belo o feio, ao lícito o ilícito, ao sagrado
o profano.
1.2.1 Atitudes ante os valores
Diante dos valores, o homem assume atitudes diferentes. Uma delas é
avalorativa; a Segunda, valorativa; a terceira, supravalorativa, e a última,
referencial.
Nossa atitude cega aos valores, de neutralidade e indiferença, é
avalorativa. Se nos situamos em posição de sensibilidade aos valores, esta, em
contraste com a precedente, é valorativa. Entre essas posições extremas,
radicalmente opostas, há posições mistas, que participam das antecedentes.
Uma é a referencial, na qual não nos encaminhamos diretamente para os
valores, mas nos conduzimos motivados por ele. A outra é a de
transcendência, de superação dos valores, a supravalorativa.
1.2.1.1 Atitude avalorativa
Podemos ver os objetos, insensíveis aos valores, inclusive na presença
daqueles propícios a uma atitude valorativa. Diante de uma tela ou uma
escultura sentimos reação estética. Esta reação é valorativa, expressa uma
estimativa segundo o valor do belo. Entretanto, um especialista em determinar
autenticidade de pinturas, diante de um quadro, apenas analisa a técnica do
pintor na aplicação da tinta, a composição química desta, a constituição física
da tela, etc. Mesmo diante de uma obra de arte que a todos sensibiliza, lhe
cumprirá sufocar a tendência para valorizála e ficar indiferente aos seus
méritos estéticos. Os próprios atos humanos são sujeitos à consideração
avalorativa. O crime, por exemplo, que produz ressentimento coletivo, pode
ser friamente analisado por sociólogos ou estatísticos, agindo indiferentes a
qualquer estimação. A posição avalorativa, indispensável no estudo da
natureza, leva à criação das ciências descritivas, ou na expressão de Claude
Bernard (18131878), ciências contemplativas.
1.2.1.2 Atitude valorativa
Podemos nos colocar, ao contrário, numa posição valorativa.
20. Nossa mente é povoada de valores, que não são arbitrariamente
subjetivos, porque, se o fossem, cada um teria os seus próprios e, entretanto,
há valores comuns a todos os homens. Não podemos definilos, porque a sua
essência nos escapa. Mas dãonos eles emocionalmente. No entanto, a nossa
vida é motivada por eles, sejam utilitários, morais, jurídicos, religiosos,
estéticos, etc. Têmolos, permanentemente, diante de nós, o que faz da nossa
conduta uma escolha constante de possibilidades.
Podemos nos desprender do mundo em sua pura manifestação
fenomênica, tentar ascender ao plano dos valores, saber o que são e
determinarlhes a hierarquia. É o que faz a filosofia dos valores. Assim como
as ciências naturais são frutos da posição avalorativa, a filosofia dos valores
resulta da posição valorativa, e se encaminha, segundo Carlos Astrada, para a
determinação de um possível sentido da vida em função do valor, da sua
vivência e da sua realização.
As atitudes expostas são contrastantes. Numa, eliminamos a
sensibilidade para qualquer valor, porque nos interessa apenas ser igual ao
espelho que reproduz a imagem. Nossa meta é ver e descrever, sem cogitação
de como poderia ou deveria ser. Noutra, nos desligamos da experiência
imediata, e tentamos alcançar um mundo ideal que a ela se sobrepõe.
Essas posições podem ser complementadas por mais duas: a
supravalorativa e a referencial.
1.2.1.3 Atitude supravalorativa
A supravalorativa transcende, ao mesmo tempo, natureza e valor, que se
mostram, às vezes, contraditórios. E um dos dramas humanos é exatamente o
contraste entre o que é e o que deve ser. Essa contradição não é apenas da
consciência individual, mas também da história dos povos, e nos inspira a
tentativa de superála, de transcendêla, até um plano em que a realidade seja
igual a valor e viceversa. O homem anseia por uma síntese na qual se libere
dessa contradição que marca toda sua vida. Se a alcança, confessa, como
Nicolas Malebranche (16381715): eu concebo que todos esses efeitos que se
contradizem, essas obras que se embatem e se destroem, essas desordens que
desfiguram o Universo, que tudo isso não assinala nenhuma contradição na
21. causa que o governo, nenhum defeito na inteligência, nenhuma impotência,
senão uma perfeita uniformidade.
Essa tentativa de alcançar um estado espiritual em que ser e dever ser
coincidam, expressase na posição supravalorativa. A religião é produto desse
esforço. Deus é, ao mesmo tempo, o que é e o que deve ser. Nele, existência e
valor confundemse. Porque Nele, conforme William James (18421910), a
quem Émile Boutroux (18451921) comparava a Blaise Pascal (16231662), o
crente continuase num. Eu mais vasto do qual se difundem experiências
liberatórias.
1.2.1.5 Atitude referencial
Finalmente, como podemos ver somente realidade, somente valor e não
ver realidade nem valor, também podemos adotar uma última posição, a
referencial, que ensaia estender uma ponte entre realidade e valor, como que
encaminhando a vida para a eternidade, nas palavras de Wilhelm Sauer (1879
1962). Nela, o que o homem cria não é valor em si, mas referência a valor. Ela
engendra a cultura.
1.2.1.5 Cultura
Cabe aqui dar um conceito de cultura, o que não é fácil, pois se trata de
vocábulo cuja significação é múltipla. Daremos uma idéia elementar que nos
basta à finalidade deste capítulo, partindo da distinção entre cultura e natureza.
A natureza nos é dada mas o homem, como ente biológico que não se basta,
que se move para além de si (Francisco Pontes de Miranda (18921979),
quebra as pedras para usálas lascadas, depois polidas, descobre o fogo, faz a
sua habitação, cultiva o gado e as plantas e acaba conquistando o espaço. Na
proporção em que progride, emancipase da natureza, da qual, segundo
Oswald Spengler (18801936), tornase cada vez mais inimigo. Ele implanta
no mundo algo ainda inexistente, e que passa a existir como criação sua, o que
Paulo Dourado de Gusmão chama o reino das interpretações, das destinações,
dos sentidos e dos significados. A isso chamamos, embora a idéia seja
imperfeita e suscetível de corrigenda, cultura, que, na frase de Max Scheler, é
antes de mais nada um processo pelo qual o homem se faz homem.
22. Ao enriquecer o mundo com os seus produtos, o homem cria em função
de fins, inspirado pela motivação de valores. Cria as obras de arte, inspirado
pelo belo; o direito, pela justiça, etc. Em si mesmo, o valor é inatingível; se
atingido, deixaria de sêlo e passaria a realidade. A posição do homem,
portanto, como ser que cria cultura, é a de referência e aproximação a valores.
1.3 DIREITO E JUSTIÇA
Distinguimos realidade de valor para observar que pertencem a
hemisférios incomunicáveis, a cada um dos quais corresponde uma atitude
humana. O direito não cabe ao plano da natureza. É obra de cultura e,
portanto, criação visando a valores.
1.3.1 Valores jurídicos
O valor é inerente a qualquer norma. Quando pretendemos de uma
pessoa que se conduza de certo modo, sabendo que pode proceder de outro,
fazemolo em função de um motivo, que é o valor da pretensão. Se elegemos
uma, dentre várias condutas possíveis, fazemolo por julgála meritória. A
regra jurídica, como qualquer outra, dirigese a fins e só tem sentido quando
estes são considerados. Sendo tais fins históricos, os valores que lhes
correspondem sofrem a seu turno pressões sociais, geradas pelo inconsciente e
vigoroso sentimento de unidade social a que se refere Alfred Adler (1870
1937).
Os fins almejados pelo direito são diversos: a ordem, a segurança, a
harmonia, a paz social, a justiça. A eles correspondem outros tantos valores
jurídicos. As normas jurídicas se pautam por eles, meios que são para realizá
los.
Esses valores apresentam, como os demais, uma hierarquia, embora,
não raro, sejamos obrigados a sacrificar um superior por outro inferior. O
valor jurídico mais alto, aquele que, por excelência, torna legítima a
proposição jurídica, é a justiça.
Embora sendo ela o mais alto, às vezes outros se lhe sobrepõem. Em
época de crise social, é comumente sobrepujada pela segurança ou pela
23. ordem. Assim ocorre em período de guerra, quando se mutilam as garantias
individuais, em benefício da segurança coletiva. Em estado de normalidade, o
direito é tanto mais perfeito quanto mais refletir as exigências humanas de
justiça.
Para Carlos Cossio (1903), a revelação dos valores jurídicos resulta da
análise do homem em suas três dimensões existenciais: o mundo objetivo, a
pessoa e a sociedade. À coexistência enquanto circunstância (mundo objetivo)
correspondem os valores jurídicos da ordem e da segurança. À coexistência
enquanto pessoa, o poder e a paz. Por último, à coexistência enquanto
sociedade, a cooperação e a solidariedade. Os valores jurídicos formam pares
e em cada um destes há um valor autonômico e um valor heteronômico, isto é,
de expansão da personalidade e de restrição à personalidade. São
autonômicos: a segurança, a paz e a solidariedade. São heteronômicos: a
ordem, o poder e a cooperação. Como os valores de autonomia são suportes
dos de heteronomia, situamse aqueles em plano superior a estes.
À justiça, que sempre consideramos o valor jurídico por excelência,
reservou Cossio sentido semelhante ao que tem na teoria platônica. Não lhe
pertence um conteúdo específico, sombra que é de todos os valores bilaterais
da conduta, aos quais dá equilíbrio e proporção, atuando como critério para a
sua realização simultânea e proporcional.
1.3.2 Teoria da Justiça
No campo da filosofia jurídica, a teoria da justiça é uma imposição
lógica. Referindoselhe a regra de direito, como seu valor peculiar, ela é
insuscetível de ser compreendida, interpretada e aplicada, senão em referência
à justiça.
1.3.2.1 Idéia da justiça
Se indagamos, porém, o que é justiça, logo veremos que o seu entendimento é
polêmico. A pergunta é uma só, mas as respostas são numerosas e
desencontradas, dando lugar a teorias filosóficas e sociais e a ideologias
políticas, talvez porque o tema, como pensava Pascal, seja sutil demais para
ser abordado por instrumentos humanos.
24. No entanto, observa Luís Recaséns Siches (1903), um levantamento
dessas teorias demonstra, por trás de sua aparente contradição, alguma
identidade. A similitude está em que a noção de justiça vem sempre ligada à
de igualdade. O símbolo desse entrelaçamento é também o da justiça: a
balança de pratos nivelados e fiel vertical.
Se recordarmos algumas definições doutrinárias, teremos confirmada a
observação.
1.3.2.1.1 Platão
Platão (428347 a.C.) meditou sobre a justiça como virtude individual e
como critério de organização social. O princípio comum a ambas, escreve
Paul Natorp (18541924), é o da organização, segundo o qual uma pluralidade
de forças, acompanhadas de seus efeitos, encadeiamse, promovendose
mutuamente (e promovendo, portanto, sua obra comum), sem estorvarse em
nenhum ponto.
Sob o primeiro aspecto, via nela uma espécie de virtude regente. A alma
humana abriga um semnúmero de tendências, de sentimentos, de afeições, de
inclinações, e é solicitada pelos elementos diversos de que se compõe. À
justiça caberia ordenar e unificar esse universo íntimo, dando harmonia às
suas partes. Tal como o maestro que tira dos instrumentos de uma orquestra
som harmoniosos, a justiça daria aos elementos da alma a sua exata medida e
os comporia numa tranqüila unidade. Não se identificaria ela, portanto, como
uma virtude ao lado de outras, mas coordenadora de todas.
Sobre a justiça social, entende Platão que definila somente se pode
quando se recorda a razão que leva o homem à vida social: a existência de
diversas necessidades e a descoberta da maneira pela qual podem ser
satisfeitas, mediante a divisão do trabalho.
Se uma pessoa atende, somente ela, a uma certa necessidade de todas,
das demais obtém a satisfação das suas próprias necessidades, para as quais
nada produz. Em conseqüência, uma sociedade é, por origem, uma reunião de
pessoas desiguais, o que assegura a solidariedade dos seus componentes e
resguarda a sua unidade. Proceder justamente é desenvolver sua função
própria, à qual devem corresponder as inatas aptidões humanas. A sociedade,
para ser justa, deve situar cada homem na sua função adequada, condição da
25. sua perfeita unidade. As funções sociais correspondem às faculdades da alma
individual. Por isso, reduzemse essencialmente a três: a produção, realizada
pelos trabalhadores, equivalente ao desejo elementar de alimentação, cuja
virtude, para quem a realiza, é a temperança; a defesa, desempenhada pelos
soldados, cuja virtude é a coragem; e o governo, que corresponde à
inteligência reflexiva, e exige de quem o exerce uma virtude própria, a
prudência.
É justa uma sociedade na qual cada indivíduo faz o que lhe é próprio.
1.3.1.2 Aristóteles
Aristóteles (384322 a.C.) foi o primeiro filósofo a desenvolver
exaustivamente o tema, sendo considerado o verdadeiro fundador da teoria da
justiça, de tal maneira que os estudos posteriores, inclusive os modernos, a ele
se reportam como sua primeira fonte.
Também Aristóteles considerou a justiça em seu duplo papel, como
virtude do indivíduo e critério de ordem social, sem lhe emprestar, porém, no
primeiro, a superior posição que lhe conferia Platão, para situála como
virtude a par de outras. Formulou, dirseia que com perfeita atualidade, a
observação de que a justiça não pode ser atuante sobre toda a alma porque
tutela apenas as relações dos indivíduos entre si.
Decalcado na realidade institucional do seu tempo, indicoulhe as
finalidades próprias:
a) distribuição de honrarias e riquezas pelos indivíduos;
b) garantias dos contratos; e
c) proteção contra o arbítrio e a violência.
Caberia a primeira tarefa à justiça distributiva e as duas últimas à justiça
comutativa. Embora sem outra afinidade entre si, em todas essas modalidades
de justiça assinalava Aristóteles um traço comum: a igualdade. Afirmarseia
esta, em relação à justiça distributiva, sob a forma de proporcionalidade, dado
que as benesses sociais deveriam ser distribuídas segundo os méritos de seus
destinatários. E o princípio da igualdade aritmética inspiraria as duas
26. subdivisões da justiça comutativa, cabendo aos magistrados, em relação a elas,
restabelecer sempre a igualdade em favor do lesado.
1.3.2.1.3 Ulpiano
Os latinos deixaram algumas, ainda que imprecisas, definições de
justiça. Nem se poderia diversamente admitir, dado que a grande realização da
civilização romana foi o direito que está para ela como a filosofia e as artes
estão para a civilização grega.
Uma das definições mais conhecidas é a de Domicio Ulpiano (170228
a. C.), consoante a qual a justiça consiste em dar a cada um o que lhe é devido.
1.3.2.1.4 Tomás de Aquino
Tomás de Aquino (12251274) estuda o direito como objeto particular
de uma virtude específica, a justiça, não podendo ambos ser compreendidos
senão como pertinentes à condição social do homem. Considera próprio da
justiça ordenar o homem em suas relações com os demais, posto que implica
certa igualdade e a define como tendo por conteúdo “dar a cada um o que é
seu”, isto é, o que lhe está subordinado ou está estabelecido para sua utilidade.
Não se satisfaz, conforme explica Etienne Gilson (1884), sem que se assegure
o respeito à igualdade entre pessoas diferentes, interessadas num mesmo ato.
Distingue a justiça de todas as demais virtudes porque, enquanto estas
se voltam diretamente para o agente do ato, exigindo a pureza de intenções,
aquela reside na adequação do ato praticado com um modelo extrinsecamente
dado de antemão.
Inspirado em Aristóteles, divide a justiça em: legal (colaboração para o
bem comum), comutativa (relações entre os indivíduos) e distributiva (partilha
de encargos e benefícios públicos entre os indivíduos).
1.3.2.1.5 Spencer
Herbert Spencer (18201903), observando que na idéia de justiça duas
outras se inserem, uma de afirmação e outra de restrição à liberdade
27. individual, a primeira positiva e a Segunda negativa, comenta que aquela
conduz à desigualdade em função dos resultados a que podem chegar os
indivíduos pela aplicação das suas diferentes possibilidades à realização dos
próprios fins, enquanto que a Segunda, limitativa dos inevitáveis conflitos a
que a prática da liberdade conduz, leva ao pensamento de que todas as esferas
de ações se limitam uma às outras, o que implica uma concepção de
igualdade.
1.3.2.1.6 Stammler
Segundo Rudolf Stammler (18561938), o conteúdo de uma norma jurídica é
justo quando ela, em sua peculiar posição, concorda com o ideal social. Por
difícil que seja definir este padrão, Stammler julgou encontrálo no modelo de
uma comunidade de homens de vontade livre, coexistindo, assim, em
condições de perfeita harmonia e espontaneidade.
1.3.2.2 Comentário crítico
Embora diversas, as teorias sobre a concepção de justiça apresentam um
traço comum. Em todas elas existe uma referência direta ou implícita à idéia
matemática da igualdade. Típica é a noção de Kantorowicz, quando ensina
que a essência da justiça está em tratar o que é igual como igual. Ou a de
Lester Frank Ward (18411913), quando afirma que a justiça consiste na
imposição artificial, pela sociedade, de uma igualdade em condições que são
naturalmente desiguais. Ainda a de Friedrich Nietzche (18441900),
invocando Tucídides (471395 a. C), quando afirmava que a justiça é sempre
uma compensação e uma troca entre poderes opostos mais ou menos iguais.
Também a sempre lembrada definição de Dante Alighieri (12651321), para
quem o Direito seria a proporção real e pessoal de homem para homem que,
conservada, conserva a sociedade e que, destruída, a destrói. O próprio Hans
Kelsen (18811973), em cuja doutrina o tema não tem acolhida, entende que
o princípio da justiça, referido a uma ordem social, não é senão o equivalente
dos princípios lógicos da identidade e da contradição, sensível, assim, à
evidência dessa constante de todas as definições. Seja ela equilíbrio,
proporcionalidade ou harmonia, mas qualquer dessas noções nos leva,
inevitavelmente, à de igualdade.
28. Agora perguntamos: essas teorias satisfazem as nossas necessidades
teóricas de formulação do princípio da justiça? Não. Ao invés de eliminar
problemas, adverte Siches, suscitam outros.
Se a justiça fosse a própria igualdade, numa relação de troca, perfeita
seria aquela em que duas pessoas reciprocassem objetos idênticos. Se tenho
um quilo de trigo a trocar, a única maneira de receber coisa exatamente igual é
receber outro quilo de trigo. Daí se vê que a compreensão da justiça como
fórmula igualitária de compensar o homem em suas relações recíprocas nada
significa, porque, sempre que mutuamos alguma coisa, é por algo distinto,
absurdo que é permutar coisas iguais.
Se eu quiser trocar o trigo por outra mercadoria, como não podemos
comparar coisas heterogêneas, fazse necessário estabelecer um terceiro valor,
que, no caso, é o preço. Permuto o quilo de trigo por uma certa quantidade de
moeda que me habilita a fazer uma aquisição conforme a minha conveniência.
Na comparação, e hipoteticamente, com o dinheiro da transação, fico em
condições de comprar dois quilos de milho. Não sendo possível realizar essas
trocas diretamente, tenho que fazer referência a um valor, que é o econômico.
Ainda assim surgem outros problemas. Por que, vendendo um quilo de
trigo, não posso, com o produto, comprar um de ouro? A resposta seria que
trigo e ouro não se eqüivalem, quando referidos ao terceiro elemento da
transação (o valor), que atua como determinante dos preços.
Mas isso importa reconhecer que o conceito de justiça, representando
igualdade, é formal, esquemático, não bastando dizer que os homens devem
ser dispostos igualitariamente numa sociedade ou que os seus interesses
devem ser compostos de acordo com um princípio de igualdade, para alcançar
a idéia que lhe corresponde.
Há um século atrás, nos termos daquela fórmula, poderíamos dizer que
a igualdade estaria em consentir aos homens massacraremse mutuamente a
fim de que os mais capacitados sobrevivessem em melhores condições. A livre
concorrência expressa um esquema de igualdade de condições para todos, no
qual JeanJacques Rousseau (17121778) vira a própria justiça: os homens são
iguais, as leis são iguais para todos, deixemolos disputar segundo suas
pretensões. No entanto, numa sociedade moderna, esse esquema produziria
flagrante injustiça.
29. Significativas dessa problemática da justiça são as hipóteses concebidas
por Edgar Bodenheimer (1907). Se todos os membros de uma coletividade,
observa, ou mesmo a sua maioria, estiverem reduzidos ao mesmo estado de
escravidão ou de opressão, não há razão para admitirse que a justiça tenha
sido alcançada graças a uma simples igualdade de tratamento. Se criminosos
que tenham cometido iguais delitos de pouca gravidade forem todos
condenados à pena de morte ou de prisão perpétua, o simples fato de
igualdade da sua punição não satisfaz à justiça.
A teoria da justiça, repetese, não esgota a investigação sobre os valores
da regra jurídica. É um degrau a partir do qual buscamos, não importa sob que
denominação, outra escala de valores, que dão substância ao conceito
meramente formal de justiça. Entendemos que esta, como exigência humana,
não é somente idéia, mas também ideal. A idéia é essa mesma que
assinalamos através da história da filosofia do direito. É a regra que nos
orienta em sociedade, visando a obter uma satisfação equilibrada dos
interesses humanos. É, entretanto, vazia de autêntica significação, nada mais
nada menos que uma equação algébrica (Leon Grinberg), porque, longe de
exaurir a problemática ética ligada a uma ordem social, apenas abre
oportunidade para estudála num plano superior, onde procuramos valores
capazes de proporcionar conteúdo e sentido àquele conceito.
Esses valores não pertencem ao plano da filosofia, mas ao da história, o
que afina com o ensinamento de Georges Gurvitch (1894), consoante o qual a
justiça e todos os valores jurídicos são os elementos mais variáveis entre todas
as manifestações do espírito, porque variam simultaneamente, em função:
a) das variações da experiência dos valores;
b) das variações na experiência das idéias lógicas e das representações
intelectuais;
c) das variações nas relações recíprocas entre a experiência volitiva
emocional e a experiência intelectual; e
d) das variações na relação entre a experiência dos dados espirituais e a
própria experiência.
30. Explicase, assim, que o conceito de justiça se tenha conservado estável
na filosofia, enquanto o ideal humano que lhe corresponde tanto se tenha
alterado.
1.3.3 Formas de justiça
A justiça apresentase debaixo de três formas e cada uma delas justifica
uma posição própria no seu estudo. Várias definições de justiça podem
divergir entre si, e, sem embargo disso, são aceitas, desde que se refiram à
justiça sob formas diferentes.
As três formas são: a subjetiva, a objetiva e a ideal. Na subjetiva, é uma
virtude. A expressão subjetiva, usada na sua significação verdadeira, quer
dizer relativa ao sujeito. Tratase, pois, de justiça como uma virtude do
sujeito. No caso, evidentemente, o homem, porque só há justiça nas relações
humanas. Quando dizemos de alguém que é justo, empregamos o vocábulo
justo no sentido subjetivo, expressando que a pessoa tem uma virtude, a
justiça. Na definição de Ulpiano, a justiça consiste na disposição de dar a cada
qual o que é seu. De modo idêntico na de Marco Túlio Cícero (10643 a.C.) –
“tribuere suum cuique”. Em ambas a justiça é vista no seu caráter subjetivo.
Mas a justiça é, por excelência, valor de uma ordem social. Significando
critério debaixo do qual uma sociedade está estruturada, a justiça, no seu
aspecto objetivo, exteriorizase em normas. Sob tal modalidade é que a sua
noção mais se aproxima da de direito. Direito é tentativa de afirmação objetiva
da justiça, definida em regras compulsórias de conduta. Quando Sócrates
(469399 a.C.), condenado à morte, recusou a fuga, considerando o respeito
que devia à justiça da sua sociedade, a esta se referia no seu sentido objetivo.
Quando cumprimos um dever em submissão à justiça da nossa sociedade, ou
acatamos uma norma em obediência à justiça do nosso grupo, à justiça
aludimos no mesmo sentido.
Finalmente, a justiça é valor. Sendo todo valor transcendente, ela
também o é. Sob tal feição, permitenos a crítica da ordem social, essa mesma
que se nos apresenta como justiça objetiva, e por isso nos obriga a praticar
certos atos e nos abster de outros. Isso nos permite sentila como valor
afirmado e como valor contestado. Podemos dizer, por exemplo, que uma
sociedade é injusta e que outra é justa, que uma imposição leal é justa e que
31. outra é injusta. A justiça, traduzindo valor, referida a um ordenamento social,
autorizanos a julgar da sua legitimidade ou ilegitimidade.
1.3.4 Modalidades da justiça
São duas as modalidades da justiça: geral e particular. A geral
converge para o interesse da comunidade. A particular é pertinente à
consideração dos interesses individuais.
A justiça geral pretende o bem comum. Para realizálo prescreve que o
indivíduo, como parte de uma sociedade, contribua com algo para a
sobrevivência e o desenvolvimento dela. Fixa os deveres de cada um com
relação à sociedade em que vive, e se realiza quando exige dos indivíduos de
maneira igual e eqüitativa.
A sociedade que exigisse de seus membros uma quantia fixa a título de
imposto seria injusta, porque tanto o rico como o pobre estariam contribuindo
com importância igual. E injusto seria também se o que exigisse não
destinasse ao bem comum, mas ao de uma minoria.
A justiça particular, embora sob um aspecto traduza o exercício de uma
função social, é sensível às motivações e às necessidades particulares.
Dividese em justiça comutativa e distributiva.
A comutativa rege as relações de troca. Dela a expressão mais fiel é
exatamente a igualdade. Se alugo uma casa, estou trocando o seu uso pelo
dinheiro do aluguel. Se vendo um objeto, trocoo pelo dinheiro do comprador.
Sempre que damos alguma coisa para receber outra, a situação é regida pela
justiça particular comutativa, cujo enunciado é: aquele que dá algo a outrem
deve receber, em compensação, valor apropriado ao que deu. Se há
correspondência entre os valores permutados, sejam mercadorias, serviços,
etc., a transação é justa.
A justiça particular distributiva, embora visando ao interesse do
indivíduo, corresponde a uma função social. Toda sociedade, pelo fato de
impor limitações aos indivíduos, tornase depositária de valores, riquezas,
utilidades e vantagens, que redistribui pelos seus membros. A justiça que deve
34. 2.1 FATO SOCIAL
Estudaremos o fato social em três partes. Na primeira determinaremos a
noção estrita da significação de social. Na Segunda, apresentaremos o seu
conceito. Na terceira, analisaremos a sua natureza, considerando a diversidade
doutrinária sobre a matéria.
2.1.1 Noção de social
Fato social é um fato humano, ao qual qualificamos de social, tema de
uma ciência própria, a sociologia. O vocábulo social é perfeitamente distinto
do vocábulo plural. É necessário que à pluralidade se acrescente algo mais
para que seja considerada manifestação social.
É de rejeitar, portanto, qualquer tendência espúria, já antes
eventualmente manifestada no decurso da história da sociologia, tendente a
ver o social como uma categoria do ser, presente em qualquer realidade,
desde a intraatômica até a dos sistemas estelares.
O fenômeno social é conduta. Conduzirse implica uma atitude. Ora,
somente os seres dotados de psiquismo têm comportamento. Onde não existe
psiquismo não há conduta. Logo, fato social é igual a fato social humano.
A sociologia é uma ciência do homem, investiga processos humanos de
convivência. As próprias supostas sociedades animais, algumas apresentando
formas definidas de coexistência, não podem ser incluídas no seu campo, nem
mesmo em áreas periféricas, porque os animais apenas coexistem, o que é um
fato biológico. Henri Bergson (18591941), a cuja obra Edourard le Royu
empresta importância igual à de Kant, escreve que, quando nós vemos as
abelhas de uma colméia formarem um sistema tão estreitamente organizado
que nenhum dos indivíduos pode viver isolado além de um certo tempo,
mesmo se lhe fornecermos alimentação e alojamento, temos de reconhecer
que uma colméia é, realmente, não metaforicamente, um organismo único do
qual cada abelha é uma célula unida a outras por laços invisíveis. O instinto
que anima a abelha confundese com a foça de que a célula é animada. Logo,
o estudo de tais sociedades incumbe à Biologia, que se ocupa dos fenômenos
da vida, em todas as suas modalidades e sob todos os seus aspectos.
35. A sociologia, diversamente, se dedica a uma ordem de fenômenos aos
quais só a convivência humana dá origem.
Num mundo sem humanidade não haveria sociologia, porque não
existiria ambiente social, em cujo interior ocorrem os acontecimentos que lhe
são próprios. A sociologia estuda as maneiras de comportamento do homem
num determinado meio e suas diferentes modalidades de adaptação.
2.1.2 Conceito de fato social
O homem habita em duas ambiências: uma natural e outra social.
Natureza e sociedade são climas em que vive. Característica da vida é
manifestarse como processo de adaptação. O homem se adapta ao meio
natural, através de mecanismos fisiológicos e recursos técnicos, e ao social,
por processos chamados sociais, que se desenvolvem à base de interação.
Vivendo em grupo, nós interatuamos, isto é, cada um de nós exerce
sobre os outros uma influência e, na mesma medida, a recebe dos outros. Esta
influência recíproca dos indivíduos que convivem é a interação. Esta significa,
antes de mais nada, qualquer alteração no comportamento de duas pessoas,
uma diante da outra. Por isso, dizse que a interação é o correspondente social
da ação recíproca da Física.
Fundamental nesse processo de interação é a linguagem, porque, como
proclama Émile Gouiran, a sociedade é um fato cujas causas, nem por serem
múltiplas, deixam de se reduzir a uma só: a necessidade para o homem de
existir pensando e a impossibilidade de pensar sem uma palavra que lhe
responda. A sociedade é, assim, essencialmente, a linguagem do homem, pois
onde o homem se expressa há sociedade e nem se expressa ele senão porque
há sociedade.
Para sua acomodação ao meio natural o indivíduo modificase para
obedecêlo, ou o modifica, valendose das técnicas. Igualmente, sua adaptação
ao meio social, ou a outro indivíduo tem duplo sentido: é corrente que vai,
corrente que vem, em alternativas de influência subordinante e subordinada.
A interação é o suporte fático de toda a realidade social. Sem ela, não
existiria fato social. Não se deduza daí que basta que haja interação para que
se produza um fato social. A própria irradiante interação existente nas
36. multidões não cria senão estados de espírito intensos, mas momentâneos,
conforme Gustave Le Bom (18411931). Para que a interação ultrapasse o
recinto da mera realidade psicológica interindividual, dando lugar a um
fenômeno sintético novo, o social, necessário é que, à falta de melhor
expressão, diríamos, atinja um certo nível de densidade. Assim, o fato social
apresenta características que bem o distinguem do psicológico:
a) generalidade (é comum aos indivíduos);
b) coerção (traduz uma pressão do grupo sobre o indivíduo);
c) repercussão (a qual se processa independentemente das intenções
individuais);
d) transcendência (no sentido de que se situa fora e acima da ação dos
indivíduos).
2.1.3 Grupos sociais
Os grupos sociais são sistemas mais ou menos permanentes de interação
cooperativa.
Numa família, pais, filhos, irmãos, parentes que vivem em comum, há
interação. Num grupo de trabalho, as pessoas organizadas para uma tarefa
interatuam. Uma comunidade universitária forma um sistema, mais ou menos
fechado, de interação, no qual encontramos sistemas menores, séries, turmas,
classes, pequenos grupos cujos componentes levam uma vida mais comum.
Teremos grupos menores dentro de outros maiores, que estarão dentro de um
ainda maior. Cada um deles forma como que uma constelação de influências,
porque é um sistema de interações.
O indivíduo não está vinculado a um só grupo. Tem a sua família, a sua
igreja, o seu partido, o seu clube. Ele ocupa, assim, ao mesmo tempo, distintas
posições em diferentes sistemas. Não é a presença física do indivíduo que dá
ao sistema a sua autonomia.
O grupo social, como sistema de interação, é uma entidade abstrata,
porque é intangível na sua essência. Numa escola, acabada a aula, cada
estudante volta à sua casa, e passa a estar isolado dos colegas. No entanto, o
37. grupo subsiste. Num quadro de futebol, finda a concentração ou o jogo,
acontece o mesmo. Cada membro regressa à sua casa, mas seu grupo subsiste.
O grupo existe desde que uma parcela de comportamento do indivíduo
seja ditada por ele. O estudante que, em casa, dedicase aos seus deveres
escolares, está procedendo de acordo com uma exigência de seu grupo. Se
deixa de ir a uma festa ou dela sai mais cedo, para não perder a aula do dia
seguinte, o mesmo acontece. Desde que várias pessoas, em caráter
permanente, dediquem parte de sua conduta a um grupo, este existe e subsiste,
mesmo quando seus integrantes não estão contactando.
É exatamente porque mister não se faz que a conduta individual seja
consagrada exclusivamente a um grupo, que o indivíduo pode participar de
vários e, assim, pertencer a diferentes sistemas de interação, uma vez que
colabore com todos.
2.1.4 Formas, processos e relações
Os grupos sociais ordenamse de formas diferentes. Diversos são os
seus procedimentos de manutenção e alteração. E mantém intercâmbio uns
com outros. Por isso, podem ser considerados quanto à sua organização, aos
seus processos de manutenção e de transformação e às suas relações com
outros grupos.
A organização dos grupos é variada. Um grupo de presidiários, sujeito a
uma rígida disciplina, não está organizado de maneira idêntica a um clube ou a
uma universidade. A família não está organizada, em toda parte, da mesma
maneira, e nem o esteve de modo igual em todos os tempos.
Relativamente aos processos de conservação e alteração, devemos
salientar que a vida social é essencialmente dinâmica e que os grupos
representam sistemas de forças em tensão. Em cada grupo há dois processos
fundamentais: um, de conservação, sem o qual ele pereceria; outro, de
transformação, sem o qual se anquilosaria. Esses processos, a seu turno, se
diferenciam em sua significação específica: religiosa, éticos, estéticos,
gnoseológicos, políticos e econômicos.
Finalmente, os grupos sociais entram em contato uns com os outros, o
que dá origem a fenômenos sociais de uma classe peculiar.
38. 2.1.5 Temas da sociologia
Como os grupos sociais podem ser apreciados sob esses três aspectos, a
sociologia, ciência que os estuda, tem esse tríplice objeto.
E. em relação a ele, segundo o ensinamento de Leopold von Wiese
(1876), procede sempre num ritmo pendular entre a realidade e a abstração: 1.
Abstrai o social interhumano do resto pertencente à vida humana; 2. Constata
os efeitos do social e do modo como se produzem; 3. Restitui o social ao
conjunto da vida humana para fazer compreensíveis suas relações com ela.
2.1.6 Características dos grupos
São características essenciais dos grupos sociais: cooperação e
participação harmônica.
A primeira característica é mais evidente. Vida social é vida
cooperativa, de associação, de conjugação de esforços. Onde o indivíduo não
colabora, não existe vida social, ipso facto, grupo social. A cooperação se
apresenta numa faixa extensa de gradação. Pode ser mínima ou máxima. Se
alguém dá a máxima cooperação a certo grupo social, afastase dos demais, e
pertence somente àquele. Diminuindo, entretanto, a cooperação do indivíduo,
aumenta a sua possibilidade de fazer parte de outros grupos, doando a cada um
deles parcela da sua dedicação.
Uma equipe de futebol, jogando num campo, exemplifica de forma
exata a cooperação como qualidade grupal. Todos cooperam, indivíduo para
indivíduo, em busca do mesmo fim. Inconscientemente, também, estão
cooperando num grupo mais amplo. Cada equipe visa a ultrapassar a
adversária, mas, se alguém tentar interromper a competição, as equipes
passam a cooperar para evitar a intromissão. É que elas formam um grupo
maior, tanto que, atingidas por uma afronta comum, reagem como conjunto,
deixam de ser duas equipes distintas, apenas uma só reagindo contra o intruso.
E, assim, por que elas acatam regras iguais de procedimento, formando outra
unidade maior, com posição própria diante de terceiros.
A segunda característica, mais nítida para definir o contorno de um
grupo social, é o senso de participação harmônica, isto é, o sentir a diferença
entre pertencer e não pertencer a um certo grupo. Só as pessoas pertencentes a
39. um grupo têm direitos e deveres, relativamente a ele. Esta consciência de
privilégios, regalias, vantagens, direitos e encargos separa os integrantes de
um grupo dos que a ele não pertencem.
Autores há que citam características mais numerosas: pluralidade de
indivíduos, objetivos comuns, interação mental, relativa durabilidade, certa
organização e sentimento de autonomia. Cremos, porém, todos esses atributos
contidos, embora alguns implicitamente, naqueles que citamos, segundo a
lição de H. M. Johnson.
2.1.7 Natureza do fato social
Hoje a Sociologia não se preocupa com a pergunta metafísica sobre o
que é sociedade. Nem outras ciências têm mais a mesma veleidade. A
Psicologia não indaga mais o que é a alma, nem a Física pergunta mais o que é
matéria. A Sociologia, como qualquer ciência, é observação de fenômenos
para a sua compreensão. O interesse do tema está apenas em que ele permite
uma sucinta visão da história da Sociologia.
Situemos o problema.
Observamos, entre os homens determinados fenômenos que chamamos
sociais. Só existem quando estão agrupados, não podendo ser explicados
apenas em função de realidades inerentes ao indivíduo. Daí a pergunta: qual é
a sua natureza?
Podemos determinar, a respeito, quatro posições principais: o fisicismo,
o biologismo, o psicologismo e o sociologismo.
O fisicismo é a explicação do fato social como variante do mecânico. O
biologismo é a sua explicação como modalidade do biológico. O psicologismo
é a sua explicação como maneira de ser do fenômeno psíquico. O
sociologismo é, finalmente, a tendência para a explicação do fato social por
ele mesmo, não como epifenômeno de outro que lhe seja subjacente.
Explicado o fato social como mecânico, não existirá, a rigor,
Sociologia, mas uma mecânica social. Se o explicamos como fato biológico, a
Sociologia será apenas o último e mais avançado capítulo da Biologia. Se
dizemos que o fato social é manifestação de fenômeno mental, também não
40. haverá uma Sociologia, mas uma Psicologia social. Será preciso afirmar que o
fato social não é modalidade de outro, que constitui uma realidade irredutível
a qualquer outra, para que possamos ter uma ciência peculiar de seu estudo, a
Sociologia.
A Sociologia é uma ciência recente, cujo batismo ocorreu no século
XIX, com o positivismo, filosofia de Auguste Comte (17981857), o primeiro
a reconhecerlhe autonomia, incluindoa na sua famosa classificação, na qual
distribuía as ciências em ordem decrescente de sua generalidade e crescente da
sua complexidade. Essa classificação partia da ciência mais ampla e mais
simples, a Matemática, até atingir, no seu termo, uma ciência nova, mais
complexa e mais restrita, a Sociologia.
Ingressando a Sociologia entre as ciências, surgiram debates sobre a
natureza do fato social, caracterizados pela pretensão de explicálo como
variante de outros, já estudados. Ocorreu com ela o que se passa com toda
ciência neófita: enfrentar a concorrência de ciências mais amadurecidas, mais
desenvolvidas, tradicionais, que pretendem chamar a si a explicação do novo
fato observado, negandolhe a autonomia, característica essencial para ser
objeto de uma ciência própria.
2.1.7.1 Fisicismo
Sob a rubrica de fisicistas devem ser citados aqueles que, participando
de um momento de extraordinário prestígio da Física, ciência que então
parecia a chave para o conhecimento completo da realidade, pretenderam
deslocar os seus métodos para o estudo das manifestações de vida social. Os
grupos sociais seriam considerados à semelhança de corpos, e os processos
sociais entendidos tal como se interpreta a atuação de forças mecânicas.
Wilhelm Ostwald (18531932) é o mais destacado representante do
movimento.
2.1.7.2 Biologismo
O biologismo, posição, entre outros, de Spencer, Pavel Federovich
Lilienfeld (18291903) e René Worms (18671926), correspondeu a um
período de euforia da Biologia.
41. Até certa época, o fato vital, objeto dessa ciência não havia sido
caracterizado na sua perfeita autonomia, diante dos fenômenos físicos e
químicos. Considerava René Descartes (15961650), um dos filósofos que
inauguraram a Idade Moderna da filosofia, os seres vivos em tudo iguais a
mecanismos, e suas funções resultantes exclusivamente da disposição de seus
órgãos, à semelhança do que ocorre nos movimentos de um relógio. Assim
pensando, observa Marx Frischeisen Kohler, aproximavase ele da idéia de
uma derivação histórica dos organismos, partindo da natureza inanimada.
Avançando paulatinamente, realizando uma revolução que E. Boinet
compara à de AntoineLaurent Lavoisier (17431794) no estudo dos corpos
inorgânicos, a biologia foi repudiando tais noções, até que MarieFrançois
Bichat (17711802) trouxe uma contribuição decisiva para a sua plena
autonomia, ao afirmar que o fato vital era inteiramente diverso dos fenômenos
físicos e químicos que se passam no corpo, tese que ainda repercute nas
doutrinas contemporâneas de Elsasser e Planyi. Não somente diverso, mais
exatamente oposto àqueles. De onde resultou a sua definição, segundo a qual
a vida é um conjunto de funções que resistem à morte. A vida seria um estado
de permanente luta, de que o corpo seria cenário, entre as propriedades físicas
e químicas da matéria, de um lado, e, de outro, suas propriedades vitais. As
doenças seriam momentos de crise nessa luta pela sobrevivência das
propriedades vitais, cuja derrota final estaria na morte.
Bichat precisou a noção de organismo, como um conjunto sui generis,
caracterizado pela recíproca dependência entre o todo e as partes. E foi
exatamente o conceito de organismo que pareceu, em certo momento, sedutor
demais, a ponto de justificar a sua ampliação ao campo de outras ciências,
entre estas a sociologia. A sociedade poderia, então, ser comparada a um
organismo vivo, precisamente porque, nela, tal como sucede neste, o todo
depende de cada uma das suas partes e estas daquele. Assim, os métodos da
biologia poderiam ser legitimamente aplicados ao estudo dos fatos e das
instituições sociais.
Os partidários da escola organicista, conforme observa Antonio
Dellepiane, bifurcamse: uns identificam a sociedade a um organismo vivo
(Lilienfeld, Jacob Novicow (18491912), Worms) e outros estabelecem uma
analogia mais formal do que substancial entre ambos (Albert E. Friedrich
Schafle (18311903), Spencer).
42. Spencer, ambicionando uma síntese global da realidade, via no
Universo uma estrutura em forma de pirâmide, construída por um incessante
processo de evolução, em cuja base estaria o mundo inanimado (inorgânico),
logo em cima o mundo animado (orgânico) e no topo o mundo social
(superorgânico). As sociedades seriam, então, verdadeiros superorganismos,
cuja estrutura se determinaria em função da estatura, da força, dos meios de
defesa, do gênero de alimentação, da distribuição dos alimentos e do modo de
propagação, relativamente a cada espécie. À semelhança dos organismos,
teriam órgãos, sistemas, funções, nasceriam, cresceriam, envelheceriam e
morreriam.
Na escola biologista situase o chamado darwinismo social, fundado na
tese de Charles Darwin (17311802), segundo a qual cada organismo mantém
seu lugar por uma luta periódica, o que lhe parecia indubitável em face da
circunstância de se multiplicarem todos os seres em progressão geométrica,
enquanto que, em média, permanece o total da subsistência; do que resultaria a
explicação da evolução social por esse processo competitivo espontâneo. O
erro maior da doutrina, consoante observa Marcel Prenant, foi exatamente o
de referir à sociedade humana a falsa lei de Thomas Robert Malthus (1766
1834) como se fosse uma lei universal da vida, quando nada mais traduzia do
que constatações feitas na sociedade burguesa da Inglaterra.
A tese organicista, que é a mais representativa da corrente biologista,
conduziu a comparações pitorescas, no esforço de seus teóricos de confirmar a
pretendida semelhança. As funções de governo corresponderiam às funções
nervosas, a produção seria o equivalente da nutrição, os transportes, da
circulação, etc., etc.
2.1.7.3 Psicologismo
Mais tarde, o psicologismo assumiu atitude de contestação às doutrinas
anteriores.
Foi seu fundador Gabriel Tarde (18431904) que, escreve Fernando de
Azevedo (18941974), conseguiu, numa luta de 20 anos contra todas as
formas de biologismo, desprender da Biologia a nova ciência, mas para
subordinála a outra: a Psicologia.
43. Ensinava ele que um fenômeno somente pode ser objeto de
conhecimento científico se ele se repete. Assim, por exemplo, acontece na
Física, com as vibrações que se sucedem, e na Biologia, com a
hereditariedade.
Os fatos sociais, no seu entender, podem ser reduzidos a um só, de
índole individual, a imitação. Por esta, um sentimento, uma idéia, um gesto,
transmitese de uma pessoa a outra. O ponto de partida da imitação é a
invenção, fato essencialmente individual, porque somente o indivíduo inventa.
Toda vida comum é invenção ou imitação e, unicamente, sob esses aspectos,
pode ser estudada. Procurar como se apresenta e se modifica a imitação, em
todas as circunstâncias, é o fim da Sociologia.
Considerado o fato social manifestação de um processo nitidamente
individual, não se lhe poderia predicar natureza peculiar diversa da natureza
do fenômeno mental. A Sociologia, então, seria uma Psicologia interindividual
ou intermental, da qual todos os elementos básicos seriam dados pela
Psicologia de cada um dos indivíduos, cuja colaboração produz a vida social.
2.1.7.4 Sociologismo
Émile Durkheim (18581917) foi o verdadeiro fundador da Sociologia
científica.
Conceituou os fatos sociais como maneiras de sentir, pensar e agir
exteriores e coercitivas. Há maneiras de pensar, sentir e agir que dependem do
indivíduo e são projeções da sua mente, cujo estudo incumbe à psicologia.
Mas outras há que se singularizam pela exterioridade e traduzem obediência a
um padrão extramental, em relação aos quais a conduta não pode ser
entendida em termos meramente psicológicos. Nesta situação, o
comportamento do indivíduo é condicionado por fatores que estão fora da sua
mente.
A exterioridade dos fatos sociais bem se evidencia na circunstância de
existirem independentemente de nós. Precedemnos e nos sobrevivem.
Exemplo: as religiões. Dentro de um credo, que nos sobrevive, nascemos e
morremos. As crenças não existem como frutos de elaboração da mente
individual, mas como realidades sociais que se imprimem no espírito de cada
um de nós. Também a linguagem, fato social por excelência, revela o