2. SOLOMBRA
aspectos técnicos
a epígrafe
Levantei os olhos para ver quem falava. mas
apenas ouvi as vozes combaterem. E vi que era
no Céu e na Terra. E diziam-me: Solombra.
solombra
sub illa umbra
sob a sombra sombra
o título e o livro
1) experiência literária marcada pelo humor noturno da melancolia [tristeza profunda];
2) repetição elegíaca [triste] da perda.
3) a sombra do objeto perdido [mundo, vida] cai sobre o eu; é a partir desse lugar que se fala [da perda, da dor].
3. SOLOMBRA
aspectos técnicos
Solombra tem 28 poemas que podem ser lidos autonomamente, pois cada um deles tem unidade que o
faz independente; quando lemos na sequência, contudo, observamos que cada um dialoga com os
antecedentes e os subsequentes, e estabelecem inúmeros nexos temáticos e possibilidades de leitura e
retomam temas e imagens desenvolvidos na poética de Cecília Meireles, poetisa filiada ao
neossimbolismo, ou Segunda Geração do Modernismo Brasileiro.
temas
articulações entre
distância ausência
claridade obscuridade
memória imaginação
fixidez transitoriedade
imagens recorrentes
água terra pedra ar vento sangue
4. SOLOMBRA
Cecília Meireles e a Historiografia Literária
Segunda Geração do Modernismo Brasileiro
1963 poema dividido em 28 partes, que fala da angústia e da agonia diante da perda do eu
aspectos historiográficos
Cecília começa sua atividade poética na década de 1930 e se liga ao Grupo Festa, que defendia
evolução ligada aos valores tradicionais
estrofes regulares, uso de métrica e de rima
defesa da universalidade da arte
predileção por temas abrangentes, metafísicos, tais como perda, morte e transcendência
poesia ligada à tradição
a segunda geração, apesar de inserida no Modernismo, promove a volta de valores da tradição lírica
isso permite à historiografia literária chamar Cecília de neossimbolista
5. SOLOMBRA
aspectos formais
neossimbolismo, forma
evolução ligada aos valores tradicionais [estrofação, métrica e rima]
O gosto da Beleza em meu lábio descansa:
breve pólen que um vento próximo procura,
bravo mar de vitória – ah, mas istmos de sal!
O gos to da Be le za em meu lá bio des can [sa]
bre ve pó len que um ven to pró xi mo pro cu [ra]
bra vo mar de vi tó ria ah mas ist mos de sal
cada um dos 28 poemas de Solombra estrutura-se em cinco estrofes
[quatro tercetos e um verso solto = 3-3-3-3-1]
os tercetos apresentam, predominantemente, versos de 12 sílabas métricas [alexandrinos]
o verso solto apresenta 09 sílabas métricas [eneassílabo]
os versos são lentos e graves, aptos para o locutor discorrer sobre a experiência da perda e
simultaneamente para depurar elementos recorrentes em imagens indeterminadas e musicais
6. SOLOMBRA
aspectos temáticos
neossimbolismo, temas
Quero uma solidão, quero um silêncio, aspectos formais
uma noite de abismo e a alma inconsúltil,
para esquecer que vivo – libertar-me estrutura: quatro tercetos e um verso isolado
das paredes, de tudo que aprisiona; ritmo: decassílabos [nos tercetos] e eneassílabo
atravessar demoras, vencer tempos
pululantes de enredos e tropeços, aspecto temático
quebrar limites, extinguir murmúrios, o eu-lírico revela seu desejo de libertação [morte]
deixar cair as frívolas colunas
de alegorias vagamente erguidas. tal anseio é afim ao projeto da poesia metafísica
Ser tua sombra, tua sombra, apenas, da segunda geração do modernismo [neossimbolismo]
e estar vendo e sonhando à tua sombra
a existência do amor ressuscitada. libertação – transcendência [aceitação da morte]
Falar contigo pelo deserto. o locutor dirige seu discurso a um eu ausente
Note-se, no poema, nota-se a vontade do sujeito poético de se desligar do mundo tangível [parede,
demora, tempos, limites, murmúrios, colunas] e de se ligar ao interlocutor [morte?], viver [n]a sua sombra e
partilhar com ele a existência num lugar onde nada existe – o deserto. Trata-se de uma poema de
cunho alegórico, que trata do desejo de transcendência, posto como aceitação da morte.
7. SOLOMBRA
aspectos temáticos
neossimbolismo, temas
Só tu sabes usar tão diáfano mistério: aspectos formais
trajo sem ruga, espelho dedicado ao sono,
estrela sobre a duna em hora ausente do Homem. : quatro tercetos e um verso isolado
Que desígnio possuis? de que modo se prende ritmo: alexandrino [nos tercetos] e eneassílabo
tua vida na terra, entre existências bruscas?
e que espécie de som teu destino responde? aspecto temático
Desdém de flor... – ó voz terrena, escuta as rosas! vaguidão [diáfano, sem agoras e sem ontens]
– ... teu lábio sobre a tarde é apenas a inquietude
de quem escuta, quem te espera, quem não te ouve. angústia existencial [quatro interrogações]
Teus olhos estarão sobre nós, infindáveis – segunda geração do modernismo
ó túneis do universo, ó caminhos serenos
que passaremos sem agoras e sem ontens? consciência de que a morte paira, suave,
Olhar eterno de sempre e nunca. sobre o destino do homem [companhia]
Através de imagens excessivamente líricas, poéticas, sutis, o sujeito poético sugere que a morte paira
sempre sobre nós. Sua presença [olhar eterno de sempre e nunca, sem agoras e sem ontens] é sutil e serena,
apesar de angustiar o locutor [conforme se verifica por intermédio das quatro interrogações
presentes no texto]. A imagem da morte emerge lírica, delicada, mas onipotente.
8. SOLOMBRA
aspectos linguísticos
neossimbolismo, linguagem
O gosto da Beleza em meu lábio descansa: aspectos formais
breve pólen que um vento próximo procura,
bravo mar de vitória – ah, mas istmos de sal! : quatro tercetos e um verso isolado
Eu – fantasma – que deixo os litorais humanos, ritmo: alexandrino [nos tercetos] e eneassílabo
sinto o mundo chorar como em língua estrangeira:
eu sei de outra esperança: eu conheço outra dor. aspecto temático
Apenas alta noite algum radioso espelho o eu já é outro [consciência da perda, morte]
em sua lâmina reflete o que estou sendo.
E em meu assombro nem conheço o próprio olhar. aspecto linguístico
Alta é a alucinação da provada Beleza sinestesia [gosto da beleza]
Pura e ardente, esta angústia. E perfeita, a agonia.
Eu, que a contemplo, vejo um fim que não tem fim. personificação dos sentimentos [terceira estrofe]
Dunas da noite que se amontoam metáfora [morte]
O eu-lírico se refere a um estado de perda do eu [Eu – fantasma – que deixo os litorais humanos], no qual já
não mais entende a língua dos homens, tampouco se reconhece seu olhar [estrofes 2 e 3].
Evidentemente se trata de uma representação poética da [angústia diante da] morte, referida, ainda,
poeticamente na agonia que não tem fim e nas dunas da noite que se amontoam.
9. SOLOMBRA
aspectos temáticos
tempo e formas precárias da temporalidade dissolvidas pelo mesmo tempo
Eu sou essa pessoa a quem o vento chama,
a que não se recusa a esse final convite,
em máquinas de adeus, sem tentação de volta.
Todo horizonte é um vasto sopro de incerteza.
Eu sou essa pessoa a quem o vento leva:
já de horizontes libertada, mas sozinha.
Se a Beleza sonhada é maior que a vivente,
dizei-me não quereis ou não sabeis ser sonho?
Eu sou essa pessoa a quem o vento rasga.
Pelos mundos do vento, em meus cílios guardadas
vão as medidas que separam os abraços.
Eu sou essa pessoa a quem o vento ensina:
“Agora és livre, se ainda recordas.”
O vento, a que se refere o locutor já na primeira estrofe, é o símbolo da passagem das coisas, da
transformação, e pode ser associado à morte. Ao aceitar o convite [primeira estrofe], o locutor acena
para a aceitação da morte. Na segunda estrofe, afirma-se que o vento liberta. Mas ele também rasga
[como se vê na terceira estrofe], dilacera, e ensina [quarta e quinta estrofes] que existe uma maneira
de se libertar – aceitar a condição mortal, a transcendência, a perda do eu.
10. SOLOMBRA
aspectos temáticos
o passado é o tempo da experiência da beleza e do amor idos, perdidos para sempre
o objeto e a experiência da perda são repetidos na enunciação q tenta fixar o ido na memória
nota-se, em alguns poemas, um tom elegíaco, uma representação, no poesia, do objeto perdido
Pelas ondas do mar, pelas ervas e pedras,
pelas salas sem luz, por varandas e escadas
nossos passos estão já desaparecidos.
Diálogos foram frágeis nuvens transitórias.
Multidões correm como rios entre areias
inexoráveis, esvaindo-se em distância.
Meus olhos vagos, que já viram tanta morte,
firmam-se aqui: voragens, quedas e mudanças
tornam-me em lágrima. Oh derrotas! oh naufrágios...
A solidão tem duras leis: conhece aquela
insuficiência de comandos e poderes.
Sabe da angústia de limites e fronteiras.
Entre mãos tristes, vê-se a harpa invisível.
Note-se que a repetição de imagens e temáticas, segundo o professor João Adolfo Hansen, indica
que o sujeito poético está irremediavelmente apaixonado por aquilo que perdeu.
11. SOLOMBRA
aspectos temáticos
o discurso se dirige a um tu, motivo de inspiração
[noite, morte, cinza, distância, ausência, memória indefinível e inconsolável, memória do q está morto]
Vens sobre noites sempre. E onde vives: Que flama
pousa enigmas de olhar como, entre céus antigos,
um outro Sol descendo horizontes marinhos?
Jamais se pode ver teu rosto, separado
de tudo: mundo estranho a estas festas humanas,
onde as palavras são conchas secas, bradando
a vida, a vida, a vida! e sendo apenas cinza.
E sendo apenas longe. E sendo apenas essa
memória indefinida e inconsolável. Pousa
teu nome aqui, na fina pedra do silêncio,
no ar que frequento, de caminhos extasiados,
na água que lava cada encontro para a ausência
com amorosa melancolia.
Note-se que a repetição de imagens e temáticas, segundo o professor João Adolfo Hansen, indica
que o sujeito poético está irremediavelmente apaixonado por aquilo que perdeu.
12. SOLOMBRA
aspectos temáticos
metáforas da ponte e da passagem
Nuvens dos olhos meus, de altas chuvas paradas
– por chãos de adeuses vão-se os dias em tumulto,
em noites ermas a saudade longe morre.
Sem testemunhas vão passando as horas belas.
Tudo que pôde ser vitória cai perdido,
sem mãos, sem posse, pela sombra, entre os planetas
Tudo é no espaço – desprendido de lugares.
Tudo é no tempo – separado de ponteiros.
E a boca é apenas instrumento de segredos.
Por que esperais, olhos severos, grandes nuvens?
Tudo se vai, tudo se perde – e vós, descendo,
num preso céu, fora da vida, as águas densas
de incalculáveis rostos amados.
Neste poema, constata-se um desligamento do eu em relação ao mundo [Tudo é no espaço – desprendido
de lugares/ Tudo é no tempo – separado de ponteiros]. Tudo se vai – eis uma afirmação que pode resumir essa
poética da finitude, que constata ser a fim inexorável, impossível de ser mudado – devendo, por isso
mesmo, ser aceito e vivido.
13. SOLOMBRA
aspectos temáticos
a consciência da finitude, a temática e a linguagem [metafórica e paradoxal] lembram o Barroco
Dizei-me vosso nome! Acendei vossa ausência!
Contai-me vosso tempo e o coração que tínheis!
De que matéria é feito o passado infrutífero?
Que lírico arquiteto arma longos compassos
para a curva celeste a que os homem se negam?
Dizei-me onde é que estais, em que frágil crepúsculo!
Minha pena é maior que o silêncio da vida.
Não sei se tudo entendo: e nada mais pergunto.
Assisto – amarga: recordando-me e esquecendo-me.
Quem foste vós? Quem sois? Quem vimos, nos lugares
de vossa antiga sombra? E por quem procuramos?
Que pretendem concluir impossíveis diálogos?
Longe passamos. Todos sozinhos.
A memória do vivido se insinua neste poema que fala da perda. O grande volume de interrogações
[sete ao todo] configura o desespero do sujeito poético ante o Imponderável, o fim, a morte e dá ao
poema um tom angustiado, melancólico, de resignação ante o vazio [de respostas e da morte].
14. SOLOMBRA
aspectos temáticos
na cinza e no ar cristaliza-se o adeus, a imagem da perda absoluta, da morte e do desaparecimento do eu
Esses adeuses que caíam pelos mares,
declamatórios, a pregar sua amargura,
emudeceram, já não há tempos nem ecos.
Perdeu-se a forma dos abraços. De ar é a lousa
dos cemitérios, um suspiro momentâneo.
De ar esses mortos – que eram de ar enquanto vivos.
De ar, este mundo, esta presença, este momento,
estes caminhos sem firmeza. Dos adeuses
que vamos sendo – ó ramos de ossos, flor de cinzas! –
é que morremos – e num lúcido segredo –
sabendo, ouvindo – atravessados de evidências –
que somos de ar, de adeuses de ar... E tão de adeuses
que já nem temos mais despedidas.
Neste último poema do último livro de Cecília Meireles, a morte se insinua tanto no nível formal
[palavras como adeuses, cemitérios, mortos, ossos, cinzas] quanto no semântico, como o esvaziamento, o fim
inexorável, o silêncio final. O tom é [recorrente na obra] é niilista, de aceitação da morte enquanto o
destino a que não se pode evitar. Ao final de tudo, restam ramos de ossos, flores de cinzas – ar apenas.