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PRÓLOGO.
1.
Pera instruçaõ de todalas gentes em os princípios
de hûa noua philosophia, esta obra decidimos compoer,
que sirva assi de fanal e lucerna dos passos daqueles
que perambulam sob os luzeiros do dia e da noite, a
qual a modo de Ouroboros figura o dragão morden-
do a própria cauda; ora, nós mesmos somos como
um dragão, tornado de seu renascimento alquímico,
e que ao despertar viu estarem os sistemas filosófi-
cos erigidos sobre lama, detritos e toda espécie de
terreno instável; a erosão fatalmente derrubará es-
ses pomposos edifícios metafísicos na primeira en-
chente, deixando sem suas casas os homens que as
edificaram.
2.
Nós mesmos permanecemos deitados no leito
mais enfermiço por dez fastidiosos anos, de onde
só nos levantávamos para suscitar estrépito no foro
impetrando aos magistrados que tenham o corpo
dos acusados - os romanos souberam conferir for-
malidades sacramentais até mesmo quando cami-
nham na praça pública, e disto não conseguiram
libertar-se nunca mais -; então nos contentava o
alimento que nos serviam as nossas mascotes, sa-
tisfeitos de ver nosso orgulho pairar no céu com a
4
nossa sagacidade enrolada em seu gasnete, embora
claudicássemos como Cláudio e tivéssemos um grão
de bico no nariz como o de Cícero.
3.
Além da águia (o orgulho) e da serpente (a sa-
gacidade), um terceiro animal crescia em nossa ca-
verna, oculto de dia e mais secreto à noite, como a
teia de Penélope; não era indesejável, mas
insuspeitado. Que portentosa besta se nos deparou
um dia, pois até mesmo a águia e a serpente tive-
ram medo dela, fugindo esbaforidas. Este filhote de
dragão era o nosso mais profundo pensamento; voa-
va com suas asas quirodáctilas mais alto do que a
águia, embora seu corpo de aspecto réptil soubesse
rastejar tão bem quanto a serpente, sem ser frio como
ela; e de fato, nem o orgulho mais orgulhoso, nem a
sagacidade mais sagaz podem muito com ele.
4.
Doravante, nosso alimento passou a ser os ovos
do dragão, que crescia e aumentava, expelia fogo,
fumaça e fuligem. O produto deste regime tão in-
tensivo se deixa entrever nas colunas de fumo que
sobem do sacrifício desta primícia do nosso reba-
nho. Um episódio deve ser ainda narrado ao leitor
que suscite objeções: quando terminávamos a pri-
meira versão deste livro, um sonho tivemos, em que
sob um letreiro com o título dado à obra, estava
uma face de demônio; mas não era um demônio de
feições hediondas quais nos descrevem as velhas
beatas ao fazerem suas estórias (embora ostentasse
5
a fronte cornífera, como qualquer demônio); o de-
mônio que vimos tinha o rosto loução e empoado,
com as maçãs vermelhas (decerto as que ofertou ao
beijo de nossa mãe Eva) e um rictus desdenhoso nos
lábios. Outro antes de nós chamou a um de seus
bons livros demônio que ri; será este Ouroboros um
“demônio que desdenha”? Decerto que seu despre-
zo cortês se deve a ter ainda muita virtude romana, e
a exemplo de Trimalquião, não saber dançar, apesar
de que este Prólogo composto em lugar do primígeno
ensaie timidamente uma coreografia.
5.
Não pretendemos nem mesmo abjurar, rom-
pendo todos os liames com certas crenças que nos
deram os ares da cultura (ora, que temos nós que
firmar apostasias? Para declarar em nosso esforço
de oposição que a antiga fé ainda nos acompanha?),
e temos prazer em lembrar o gosto insípido das igua-
rias que nos davam, dizendo tratar-se de panis
angelicus, semelhante aos manjares que nos deleita-
vam há muito tempo, mas que provados de novo na
época presente já não trazem o mesmo sabor; decer-
to que nosso concílio é agora entre os goliardos, e
muito nos agrada esta vida nômade das estradas,
levando a música, a tragédia e a filosofia de cidade
em cidade.
6.
Um senão contudo; não traz a nossa avena um
repertório amplo para uma tão grande empreitada -
é o problema de todos os jovens que inauguram uma
6
obra esperançosa, mas ainda longe de seu total de-
senvolvimento - porém repletos de contentamento
saibamos a quem render o preito por mais esta de
nossas mudanças de estado; e porque no gosto do
filosofar, onde se alcança o senhorio não só dos par-
ticulares negócios, mas também o da própria pes-
soa, foi que descobrimos estes fragmentos, é naque-
le mesmo regalo de ter-se a sapiência, que outros
tantos se poderão achar. Se nas peças do ourives,
comum é ver-se cada novo possuidor acrescentando
gemas e engastes aos antigos, de igual feição é que
nos tratados dos pensadores se aponham corolários
de que primeiro se não cogitaram, porém ocorrem
aos que lhes vêm de estudar o que deixaram aque-
les, assi leixamos esta aos que nela tiverem agrado
e, mais do que simples ledores e repetidores, quei-
ram aumentá-la e comentá-la.
Flumínia,
Primavera do Ano 123 da Transvaloração1
.
__________
1. Iniciado em 30 de setembro de 2010, pelo falso calendário.
7
LIVRO PRIMEIRO.
Da Natureza e Tendências Humanas.
8
9
1.
Do interesse como princípio de todas as tendências
humanas. -
I. O interesse no ser humano é de potencialidade
de suprir as suas indigências, físicas ou morais.
II. As indigências do ser humano correspondem
em igual medida à potência para superá-las.
III. Se o homem não tivesse insuficiências, ou
não pudesse superá-las, ou evitar reincidir-lhas, não
teria interesse em nada. Seria um deus ou matéria inerte.
IV. Não há desejo, vontade, emoção, paixão ou
liberdade em que o interesse não esteja no princípio
e não se coloque a sua satisfação como fim.
V. O interesse é o fim último visado pelas ações
humanas; entretanto, o interesse não possui outra
finalidade fora de si mesmo.
VI. Pode-se indagar para quê diante de uma ou
outra ação tomada isoladamente, na medida em que
concorra ou não para o interesse; mas não se per-
gunta para quê em face do próprio interesse.
VII. Do interesse nascem o desejo e a vontade.
VIII. O desejo é um interesse passivo, que só
existe in subjectum e não se exterioriza em atos; ele
pode ser dirigido a um objeto determinado ou
indeterminado.
IX. A vontade é o interesse ativo, que o sujeito
torna manifesto com suas ações e seu objeto é sem-
pre determinado.
10
X. A existência do interesse em alguma coisa
pressupõe a sua indigência no momento presente
ou a necessidade de sua manutenção, pois não pode
haver interesse em conseguir o que já se tem ou em
manter o que não se pode perder.
XI. Se não possui ou precisa manter a posse
de alguma coisa, isto significa que o sujeito se en-
contra em um estado de perfeição menor, e aspira
alcançar um estado de perfeição maior, na direção
do qual se movimenta a sua vontade.
XII. Toda vontade nasce como reação após o
reconhecimento de que se está em um grau de infe-
rioridade, que é incômodo e contrário ao interesse,
e por satisfazê-lo, esforça-se para atingir um grau
de superioridade.
ESCÓLIO.
Isto se verifica até mesmo em reflexos de nos-
sos corpos, por exemplo, quando permanecemos
imóveis por muito tempo, ainda que instalados con-
fortavelmente; a inação termina por provocar dor, e
obriga a um movimento direcionado a outra posi-
ção.
XIII. Ninguém possui nada em grau absoluto,
nem pode ter certeza absoluta de que irá manter o
pouco que tem; por isso o interesse não conhece re-
pouso.
XIV. O que atinge o objeto do seu interesse
logo torna a divisá-lo mais além em grau maior do
que o agora possuído, o que o leva a recomeçar a sua
procura.
XV. O interesse é sempre irresistível, mesmo nos
11
casos em que parece quedar sacrificado em proveito
do interesse alheio ou coletivo, como quando se en-
cara a todos os prejuízos sem temer a nenhum mal,
nem mesmo ao da morte prematura, para desagra-
var a pátria no campo de batalha, ou socorrer a um
sócio querido, ou até a um desconhecido.
ESCÓLIO.
Em tais situações, é ainda o interesse que fala,
só que para atender a uma escala de valores de
conotação mais sutil, como a Honra, o sentimento
do dever, e o Amor - estes afetos, porém, só adqui-
rem valia quando se se considera como sendo para o
bem do interesse o ser honrado pelo seu heroísmo,
ou louvado pelo cumprimento do dever, ou ainda
quando se ama a vida de outrem a ponto de crer que
ela valha o risco do sacrifício da própria existência. -
XVI. O interesse não se confunde com o egoís-
mo, e o egoísmo não é a mesma coisa que inveja ou
cobiça.
XVII. O egoísmo é dirigido a gozar do objeto
do interesse, adotando-se uma valoração em que o
próprio gozo adquire prevalência sobre o de outras
pessoas, às quais é indiferente.
XVIII. A cobiça e a inveja são formas destem-
peradas do egoísmo, pois aspira a primeira obter
para si o que pertence a outrem, e a segunda visa
destruir aquilo que os outros conquistaram.
2.
Do prazer e da dor. - O prazer e a dor são os
nomes pelos quais se chamam os elementos mais
12
simples do dinamismo sensível (Régis Jolivet, Curso
de Filosofia, n.º 124), em regra percebidos pelos ór-
gãos dos sentidos em decorrência de um estímulo
interpretado como satisfação ou frustração de um
interesse. O que faz o prazer ser prazer é o reconhe-
cimento de que o interesse vem de ser satisfeito, e
do mesmo modo, a dor é dor quando se conhece que
o interesse foi deprimido. Estes átomos de sensações
opostos na aparência, no entanto, deixam de apre-
sentar uma autêntica contradição, para confundi-
rem-se como sensação única, quando em periódicas
ilações entre estímulos que ao mesmo tempo ser-
vem e rebelam-se contra o interesse, o ente obtém
dor no prazer, e prazer na dor, provadas na mesma
confluência em que se tocam a vida e a morte, criar
e destruir, opostos, não contrários, por vezes com-
plementares. Os pólos Norte e Sul fazem parte da
mesma esfera, que nem por isso queda aniquilada
no haver oposição entre seus extremos.
3.
Do interesse no prazer e na dor. - O interesse da
dor é de compelir o animal sensível (racional ou não)
ao movimento, quer afastando-o daquilo que lhe
possa fazer mal (retirar a mão do fogo, puxar fora os
aguilhões da carne), quer aproximando-o do que es-
pera seja-lhe benéfico (saltar n’água, subir em uma
árvore) - a dor tem a sua utilidade, em maior medi-
da do que o prazer - enquanto o prazer atua mais
como promessa e dissimulação do que como recom-
pensa verdadeira e efetiva. Questionar a dor, ou pior,
ignorá-la, é deixar-se à mercê dos agentes do pró-
13
prio exício, tornar-se inativo, lerdo, entorpecido,
paralítico; logo, onde há dor, há uma voz chamando
a sair da inação. Resistir à dor, como o fizeram os
estóicos e os mártires, é um expediente sem sentido
ou propósito, pois, como a dor é um estímulo tão
enérgico, é impossível ignorá-la sem que se recorra
a uma profunda meditação em um objeto fixo, des-
prendendo as percepções da consciência de todo seu
exterior, como faz o soldado, que não se aperceben-
do dos golpes sofridos, no ardor da batalha, tam-
bém fica insensível a tudo quanto não se refira à
peleja, ou o monge asceta que caminha sobre tape-
tes de brasas, e tortura o corpo com infindas morti-
ficações; não raro, tais homens ficam inúteis para
quaisquer atividades que não pertençam ao seu pe-
queno mundo de contemplação. O prazer, de ma-
neira diversa à da dor, conduz o vivente, atraindo-o
para o objeto de seu desejo. Arriscando uma compa-
ração, o prazer é semelhante a um cavalo que pu-
xasse o carro, levando-o aonde precisa ir, e a dor
seria outro, que empurrasse pela retaguarda, afas-
tando o carro de afundar no atoleiro; e como se gas-
ta menos esforço, com maior eficiência, empurran-
do que puxando, o Homem costuma ser guiado mais
pela dor que pelo prazer, desde a tenra infância, até
a maturidade viril, quando as vicissitudes postas
diante do caminho levam a um destino mais longín-
quo ao qual não se chegaria, se fosse a estrada co-
berta de flores. As caravanas estacam nos oásis, mas
é o tórrido simum soprando do norte para o sul do
Sahara o que as faz andar depressa. A própria cons-
tituição física do ser humano parece colaborar para
14
esse estado de coisas, fazendo seu corpo mais sensí-
vel à dor que ao prazer; e se isto acontece porque o
Homem é cercado por mais perigos e ameaças que
delícias e belezas, não deverá ser imputado como
glória à “Providência” ou à “Natureza”, como se
apressaria em afirmar o ingênuo, nem como pesar
ao ser humano, que no sentir do superficial veria aí
refletido o tamanho de suas misérias, mas antes,
como nós o fazemos, para que se saiba quão grandes
as suas possibilidades e quão distante pode seguir
no seu caminho quando fustigado por esse látego.
4.
Da medida do prazer e da dor. - Momentos exis-
tem em que a dor parece vir acompanhada de um
bem, como em uma cirurgia em que malgrado o so-
frimento do paciente no instante do ato operatório,
em breve há-de recuperar e salvar a sua vida pelo
mesmo procedimento cirúrgico. Não é, na verdade,
uma dor benéfica que se encontra na mesa do cirur-
gião; se for o paciente entorpecido com ópio ou
vitríolo, ele não sentirá nenhuma dor, e será igual-
mente curado; disto se infere que o benefício da ci-
rurgia, ou qualquer ato equivalente é diverso da sen-
sação dolorosa, em sua essência, embora se faça
acompanhar por ela usualmente. O que acontece, na
realidade, é que em tais casos, a dor existe como um
mal particular, de ação restrita à zona em que se pra-
tica a operação; no local dolorido, passa-se um mal
verdadeiro, mas, para o resto do corpo, todavia, exis-
te um bem, de maneira geral, que é o restabelecimento
da saúde. Esse bem é maior que o sofrimento, e por
15
isso, deve prevalecer sobre a doença e os gritos do
paciente. Pode ainda acontecer que um gozo se faça
acompanhar de um grande mal; em ambas as situa-
ções, a sensação prazerosa ou dolorosa é sempre iso-
lada em relação ao que sucede ao restante do orga-
nismo; ela é um bem quando produz prazer, e um
mal, se causa dor, independentemente do mal ou do
bem que, maiores e gerais, dela possam advir ou
secundar. Sendo o prazer o estado oposto à dor, en-
tende-se que ele deve ser buscado com a mesma in-
tensidade com que fugimos dela; o verdadeiro con-
trário, porém, tanto de um quanto de outro estado,
é o alívio, ou nada de sensação. Embora reconheça-
mos que passar da dor para o alívio da dor, é um
prazer, como ensinava Epicuro2
, e que do prazer,
passar ao alívio do prazer, é uma privação, o deleite,
mesmo sendo efeito de um bem, atordoa a mente de
igual maneira e intensidade que o sofrimento; en-
tregar-se a uma fruição de gozos sem fim e sem des-
canso também arrebataria a consciência da percep-
ção normal do exterior, embotando as faculdades
mentais; portanto, assim como o alívio serve como
remédio para a dor, é necessário que existam ocasi-
ões em que seja utilizado como limite ao prazer, sem-
pre que a mente perigar de ser dominada pelos delí-
rios das volúpias. Não desejamos firmar a felicidade
__________
2. A imediata desaparição de uma grande dor é o que pruduz
insuportavel alegria; isto é a essência do bem, se o entender-
mos direito, e depois nos mantermos firmes e não giramos em
vão falando do bem. Epicuro, Ética, Fragmento n0 5
16
humana no alívio da dor, como quis Epicuro, mas
antes, seguindo um modelo para a moderação, con-
siderado o melhor pelo Estagirita, e pelos seus dis-
cípulos que formaram, por assim dizer, a nossa es-
cola-mãe, decidimos por um meio-termo entre o
epicurismo e o estoicismo, situando o ser humano
no centro de um campo de batalha onde se desenro-
lam duas grandes lutas: a luta contra a dor, e a luta
pela obtenção do prazer. Estas lutas conduzem a
uma satisfação acessível, bem entendido, aos seres
humanos dentro de suas limitações. A satisfação so-
nhada pela Academia de Platão como ideal, que so-
mente pode assistir a quem, porventura, existisse
sem cuidados, e não precisasse fugir do sofrimento,
não apenas é inalcançável aos humanos, como tam-
bém é imponderável e incompreensível ao saber do
mais atilado filósofo, porquanto inexistindo quem a
tivesse gozado, impossível é compreender uma ex-
periência dessas, que não passa pelos sentidos. A
satisfação que procura ter o homem mortal, portan-
to, ansiando pela aniquilação do sofrimento - por
ver nisso em si só um prazer, e no alívio dos praze-
res uma dor -, e na fruição das mais diversas volúpias
da mente e dos sentidos onde julga residir a sua
felicidade, é, contudo, mera realização do dinamis-
mo sensível. A atividade humana é determinada pelo
que se deseja e pelo que se repulsa, mas isto apenas
significa qual a direção tomada pelos afetos perante
os diversos estímulos que o ser toma conhecimento
no decorrer de sua existência. A felicidade constitui
um fim diverso do gozo da experiência sensível, que
é somente um caminho para o conhecimento do
17
mundo; a este respeito, porém, cremos ter dito o
necessário, deixando para tratar da felicidade mais
adiante.
5.
Das espécies de prazeres. - Para cada interesse
satisfeito corresponde um prazer, e para cada inte-
resse insatisfeito, uma dor; portanto, é aceitável que
se entendam o prazer e a dor como atributos do in-
teresse, como as cores o são dos objetos visíveis, os
quais não são enxergados em si mesmos, porém no
espectro emanado por seus reflexos e, da mesma for-
ma, o interesse se não percebe por si só, mas nas
sensações prazerosas ou dolorosas que o acompa-
nham. Isto posto, supomos que, como devemos pro-
curar o prazer e fugir de todo sofrimento, somente é
apropriado o desejo que aponte na direção de um
interesse satisfeito. Assim julgamos, a princípio,
conforme nosso bom-senso; contudo, nem sempre é
possível (e muito menos seguro) comportar-se dessa
maneira. Antes que os homens conheçam o prazer e
a dor, eles tiveram que existir; logo, a felicidade e a
desgraça são indiferentes para o surgimento da vida,
a qual depende apenas da potencialidade de satisfa-
zer ao interesse. Existem dores que são vinculadas
ao interesse; de igual modo, prazeres há, cuja fruição
acarreta prejuízos à saúde e terminam por ser dano-
sos ao interesse em maior grau; portanto, acredita-
se que se deveria fugir destes prazeres danosos como
se deve procurar as dores benignas. Parece ser as-
sim, pois da mesma forma que não se pode evitar
uma dor benigna por muito tempo (ainda que a não
18
suporte no começo, aceita-la-á mais cedo ou mais
tarde, quando os repetidos adiamentos ameaçarem
a vida), também não há como se gozar de um prazer
por toda a existência (quando seus excessos estive-
rem por comprometer irremediavelmente a saúde, é
inevitável fugir dele). Semelhante lógica não é apli-
cável, no entanto, quando o sofrimento benigno há
de ser maior que o benefício, e destarte, não será
possível obrigar-se a quem quer que seja a subme-
ter-se à dor, como não se vitupera a quem ceda a um
prazer danoso maior que o agravo. Um prazer não é
ilegítimo, ou seja, impróprio para a mente humana,
quando se acompanha ou precede de alguma dor,
mas sim, se para obtê-lo, aumenta as nossas indi-
gências, debilitando-nos. Ser companheiro de dores
não amaldiçoa um prazer, pois o prudente, malgrado
os percalços, suporta a tudo para gozar no fim do
sucesso de seus planos, observando como Sócrates
ao ser liberto das correntes, que por vezes, quando
se puxa um prazer, vem junto uma dor, e ao puxar
uma dor, vem um prazer. Desta espécie particular
de prazeres vinculados à dor são as modernas delíci-
as artificiais que fatalmente arruínam a saúde e a
economia, mas que são ainda assim procuradas pe-
los que as gozam acreditando poder suportar tais
dores. A procura destes últimos prazeres de que fa-
lamos contraria à natureza humana, que protesta
silenciosamente na decadência corporal dos seus adic-
tos: a cada vez que se se desfruta destes prazeres,
mais é fortalecida a disposição de os buscar, ao mes-
mo tempo em que a potêncialidade para suprir as
indigências é diminuída. Ora, é legítima a procura
19
de gozos que acarretem algum dano, desde que este
não seja maior do que o benefício de desfrutá-lo,
contudo, um prazer danoso somente é admissível
quando não leva ao sacrifício do interesse em maior
grau. A tendência que acompanha esses prazeres ar-
tificiais é de sempre querer gozá-los em mor quanti-
dade, aumentando, assim, as indigências do Homem.
O prazer ideal é aquele de que se não cansa, porque
corresponde ao contínuo superar das indigências, e
nunca o que propende ao padecimento de necessi-
dades cada vez mais intensas, e em que a própria
sensação se transforma num instrumento para ex-
pandir essas vicissitudes. Uma atividade sempre
entremeada de dor é contrária à satisfação do inte-
resse, que se compõe da busca do prazer e da luta
contra a dor; os prazeres podem conter alguma dor,
desde que esta seja logo superada; a permanência da
sensação dolorosa durante as volúpias forma uma
satisfação, digamos, manca, pois nela falta a meta-
de de combate ao sofrimento.
6.
Do lutar e do fugir. - Em face de qualquer peri-
go, duas reações apenas são viáveis: lutar ou fugir.
Prefere-se a luta quando o perigo é igual às forças
próprias, e a fuga, quando ele as sobrepuja de modo
que o enfrentamento culminaria com a destruição
do mais fraco. Os irracionais, sem enfrentar as
flutuações da alma, são, no entanto, assistidos por
um instinto em seus combates corporais, que os
permite avaliar exatamente as forças do opositor,
jamais os levando a cometer o ato covarde de fugir
20
do inimigo mais fraco, ou incitando à temeridade
de afrontar contrários mais poderosos. Os seres hu-
manos, por seu turno, prescindem de combates pelo
alimento ou posse das fêmeas; suas lutas são de ou-
tra natureza; a dor, a decepção, as injustiças, as do-
enças, os desastres e a morte são seus inimigos, como
o leão é o da gazela, e o confrontamento se dá não
nas selvas ou savanas, mas numa arena situada no
âmago da mente de cada um de nós. Nessa arena,
prevalece o ensejo de lutar na coragem perante o
inevitável, e no desejo ardente de reconstruir e reco-
meçar do ponto em que tudo se perdeu, e a fuga,
nos atos covardes de negação. Por negação entende-
remos a conduta bizarra dos que, vergados pelo so-
frimento, como resposta à dor, em lugar de mitigá-
lo com os devidos remédios, conforme a natureza do
infortúnio, procuram negar-lhe a verdadeira dimen-
são e realidade, acalentando resignação falsa e louca
na crença supersticiosa de que os males serão remo-
vidos de per si, ou pela ação de algum poder sobre-
natural e imponderável. É uma forma de reagir à
dor, enfim, mas não é válida porque se consiste no
emprego de meios não-naturais ou sobrenaturais
para combater o sofrimento causado por meios na-
turais; alimenta-se de esperanças vãs, as quais, após
dissipadas, maior frustração e desalento trazem ao
estulto que se inebria nas seduções ilusórias de ig-
norar os males. Outro escape supersticioso é o que
empreende pela bondade; o pensamento comum é o
de que o bondoso não merece sofrer infortúnios, e
por isso tem direito a ser protegido; os homens vir-
tuosos trazem a sua bondade como quem porta
21
amuletos, esperando que detenha eficácia para atra-
ir a salvação. A idéia supersticiosa, ao encerrar a
pretensão de controle sobre o Destino e sobre uma
realidade fora do alcance do poder humano, rói a
consciência como um verme, indagando pelo que se
possa fazer para afastar os perigos, e sua resposta é
de que cultivar a virtude é a forma de obter a alme-
jada proteção dos homens e dos deuses.
7.
Das paixões. - As paixões formam a bússola dos
apetites e tendências do ser humano. Se for do pra-
zer e da dor que ele tira seus primeiros juízos racio-
nais, é quando o conhecimento dessas sensações se
especializa que o seu pensamento se desenvolve, tan-
to quanto se possa afirmar com segurança que a in-
teligência é na mesma proporção do desejo de co-
nhecimento. É verdade que o prazer e a dor pertur-
bam igualmente a consciência, de modo que vemos
no alívio o contrário de um e outro; entretanto, o
alívio também é um estado de apatia, no qual é im-
possível criar idéias originais ou formular decisões
em um estado de alívio absoluto. A criatividade e o
gênio se desdobram apenas onde existe um gozo ou
um sofrimento a dar-lhes corpo e sentido.
8.
Da formação da personalidade. - Fisiologicamen-
te são formados os caracteres das diversas seções dos
organismos vivos; nada há, portanto, que se oponha
a supor que a personalidade seja formada de igual
modo que os olhos e cabelos num indivíduo, em
22
acórdão às regras de um jogo de infinitas combina-
ções de características diferentes, arbitrado pelo aca-
so. Deveras, a observação tem mostrado que,
freqüentemente, os filhos não herdam a personalida-
de de seus pais como a cor da pele ou o formato do
crânio; os atributos físicos repetem-se nas gerações
mais flagrantemente que os do caráter, donde se infe-
re que as normas para sua formação devem ser muito
mais sutis e flexíveis que as do corpo. Muito maior é
o número dos filhos degenerados que o dos bastardos
e, sem que se cogite de falar em degeneração, bastam
como exemplo as dissonâncias flagrantes no caráter
dos diversos membros de uma família, que, sem se-
rem avessos uns aos outros, são diferentes em gostos
e vocações como se fossem estranhos entre si. Não se
acuse o meio, a sociedade, de formar a personalidade
dos homens; erro grosseiro é dizer que “o Homem é
produto do meio”, pois, aí se toma o efeito pela cau-
sa; a sociedade é que é um produto dos homens, que
são as suas porções elementares; afinal, é concebível
que exista um homem sem uma sociedade à sua vol-
ta, porém, uma sociedade sem homens é igual à idéia
de uma construção que não use tijolos, ou de um
cardume que não tenha peixes; ademais, no seio de
qualquer sociedade existem os desajustados, que não
teriam de onde tirar o seu desajuste se toda a perso-
nalidade humana fosse criada pela influência dos
outros homens. Em suma: num todo social não po-
deria haver heterogeneidade de suas partes. Não
estamos, naturalmente, afirmando que “toda” a per-
sonalidade humana é ou não produto do meio; esta é
uma generalização que não reproduz com fidelidade
23
a teoria que se pretende refutar; cada sociedade é
distinguida por tipos bem característicos, quais os
da “pontualidade britânica”, ou da “bazófia dos por-
tugueses”, mas, como dissemos, são apenas tipos; o
argumento mais forte, a nosso ver, é a facilidade com
que se pode imitar os hábitos de culturas diferentes
da própria, desde que firmemente desejado; os nasci-
dos nas Américas que vão viver na Europa terminam
por repudiar todas as qualidades que os distinguem
por sua terra de origem, para passar por reinóis, e se
retornam ao torrão natal, sequer mais os reconhecem
os seus como compatriotas. Essa capacidade, mais
comum nas crianças dos imigrantes (que não preci-
sam desaprender uma cultura para assimilar outra),
mostra o quanto o meio e a educação podem ser ven-
cidos por uma vontade férrea, e determinada para
um objetivo certo. O Homem é um produto dele
mesmo, engendrado por si a cada dia vivido, comple-
tando sua obra apenas quando enfim morre. Nem ao
menos seria preciso aventar na influência da socieda-
de, porque a influência de um lar tem muito mais
força sobre os homens, desde a infância, do que qual-
quer meio exterior onde vivessem depois de adultos,
o que, linhas acima, demonstramos não acontecer. A
formação da personalidade, e o modo como ela pode
mudar, depende de uma predisposição do indivíduo,
que determina o método pelo qual se guiarão suas
tendências, conforme ele goste ou desgoste de cada
coisa que se lhe passe pelo juízo. Seguindo os senti-
mentos, os desejos pessoais, a preferência pelo que se
considera prazer, é que se constroem a todas as pecu-
liaridades do caráter humano, de modo que é impos-
24
sível ter não somente “livre-arbítrio”, como também,
personalidade, sem paixões. Sempre é pelas paixões
que se dão os transes do caráter, que pode mudar,
mas não as paixões, pois é para continuar a regalá-
las que ele se altera. Entendemos que o objeto das
paixões pode mudar constantemente, porém, qual-
quer que seja o seu novo alvo, elas são sentidas da
mesma maneira e intensidade. A mudança do cará-
ter é possível tão-somente quando se se apercebe de
que uma determinada tendência impedia de se al-
cançar o objeto do interesse. Quando um homem sente
que as suas convicções, ações, estilo de vida, o afasta-
vam do seu desejo eleito como fim maior, ele termina
por sofrer uma inversão de valores, queimando o que
adorava e adorando o que queimava. Caso se aperce-
ba de que o próprio objeto de interesse era vazio de
sentido, o escopo que era visto como “fim maior” é
abandonado ou perdido de vista, e daí se pode resva-
lar para as seguintes posições: primo, perde-se qual-
quer noção de valores, não se tendo nada para adorar
ou queimar; ou secundo, encontra-se uma outra esca-
la de valores, com novos objetos de interesses, quan-
do então se passa a adorar o que não se adorava e a
queimar o que não se queimava. É a este último esta-
do ao qual pretendemos atingir enquanto aprende-
mos os fundamentos de nossa nova Filosofia.
9.
Da natureza única do Homem. - Alguns, vendo a
natureza corpórea dos homens, patente à observação
geral, confundem-na, tentando reputar-lhe coexistên-
cia com uma segunda natureza, espiritual, deduzida
25
da primeira, julgando assim que seria viável que o
ser humano pudesse existir sendo formado por maté-
ria e espírito, ou seja, duas substâncias contrárias!
Pois se a alma é imaterial, é o contrário do corpo, que
é material e, portanto, semelhante natureza não dei-
xaria de sofrer a pronta dissolução ao tentar unir-se
dessa maneira. Um segundo grupo divisa na nature-
za humana somente o lado animal ou material e, jul-
gando-a idêntica à dos brutos, proclama que ao Ho-
mem basta uma vida centrada na satisfação de suas
necessidades fisiológicas básicas para ser feliz. Para
estes, serve a censura de Heráclito, de que se a felici-
dade estivesse puramente nos gozos materiais, os bois seri-
am felizes quando encontrassem água fresca e pasto
verdejante, pois se os brutos conseguem ver-se con-
tentados com essas coisas, não o poderá o Homem,
que sendo mais completo, necessita de prazeres mais
elevados. Outros há que, errando no extremo oposto,
observam no Homem só a natureza espiritual, con-
cluindo que ele não tem necessidade do que é materi-
al, devendo ocupar-se tão-somente com as coisas de
ordem espiritual. Sócrates dizia que todos nós deve-
mos ter sérias preocupações com a eternidade, por-
que estamos fadados a nela passar todo o nosso futu-
ro; todavia, os que negam à carne o direito de saciar-
se das necessidades que ela reclama, sofrem
terribilmente por não receberem os prazeres de que
ela sente falta. No Homem não existe nem uma só
natureza animal, nem uma só espiritual, tampouco
uma natureza mista, que reunisse a improvável
harmonização de dois contrários, pois nenhum ser
pode abrigar duas substâncias, ou duas tendências
26
contrárias no seu íntimo; os atributos que formam o
Homem não se mostram tão simples como os dos
irracionais, nem tão complexos, quais os dos anjos,
mas, sem serem híbridos, estão como um meio termo
entre eles, de uma ordem intelectual que padece to-
das as vicissitudes da matéria, e que por ser capaz de
inteligir as abstrações, tem na contemplação do bom
e do belo e no pensamento criativo uma fonte inesgo-
tável de prazer, junto com aqueles de ordem menos
elevada que se desfrutam somente com os sentidos
físicos. Embora de ordem diferente, aqueles primei-
ros prazeres são da mesma substância dos segundos,
mais grosseiros, e empolgam o dinamismo com a mes-
ma intensidade.
10.
Das aptidões e habilidades. - Nenhum ato hu-
mano construtivo pode ser considerado impróprio,
quer a produção do poeta, quer a do oleiro. Todas as
habilidades humanas são planejadas pelo cérebro, e
executadas pelas mãos igualmente; portanto, a me-
dida do seu valor se dará pelo grau de complexidade
que exijam para seu completo desempenho, inclusi-
ve nas pequenas atividades, como a de cozinhar os
ingredientes que servem para repasto, em que o
Homem demonstra o seu gênio, tão bem como quan-
do escreve uma epopéia em vinte e quatro cantos. A
natureza humana é uniforme, o que quer dizer que
ela, de maneira alguma, permitiria que uma de suas
criaturas fosse ingenitamente desproporcionada em
seus atributos com relação às suas necessidades, ou
com a disposição íntima de seus órgãos; as gerações
em desrespeito às suas Leis são acidentais, como em
27
um monstro ou qualquer outro aleijão. Veja-se a ra-
zão admiravelmente proporcional entre a inteligên-
cia dos seres vivos e a constituição de seus mem-
bros: jamais se viu animal que tivesse o intelecto
em disparidade com as aptidões de seus órgãos, er-
gas pelos casos anômalos de retardamento mental
ou de sublime genialidade, de sorte que cuidamos
ser uma regra aplicável a toda a História Natural a
de que a especialização dos membros dos animais
reflete a sua inteligência, embora uma não cause ou
determine a outra. Um cavalo, por exemplo, tem
inteligência para receber o jugo, puxar as cangas
sob o estímulo do chicote ou das esporas, contudo, o
seu reduzido cérebro não abriga a capacidade para
segurar as rédeas que o conduzem, por isso deu-lhe
a Natureza cascos sem dedos. Mesmo as habilida-
des do macaco, o qual, com inteligência superior à
de muitos cavalos, consegue segurar objetos com
força (inclusive os arreios de uma parelha) e fazer
uso de instrumentos grosseiros, não lhe bastam para
torná-lo semelhante ao Homem, por isso que a Na-
tureza não lhe dotou com o polegar em oposição aos
demais dedos, que ao Homem permite tanto bran-
dir pesada lança quanto agarrar mansamente uma
agulha, passando um tênue fio de seda pelo seu fun-
do, ou simplesmente juntar-se ao outro polegar, para
unir as duas mãos, que parecem, abrindo-se os de-
dos, com uma coroa de louros digna de seu porta-
dor. É a capacidade de poder realizar delicados tra-
balhos manuais que afirma o elevado alcance do gê-
nio humano, que jamais deveria pejar-se de seme-
lhantes labores, como se envergonhou em ver
28
Sardanapalo fiando com suas mulheres o oficial que
o trespassou; tais atitudes aparentemente simples,
quais alinhavar pontos sucessivos a um corte de fa-
zenda, mas que nenhum outro animal pode imitar,
são as que elevam aos píncaros da glória a espantosa
prodigiosidade do ser humano.
11.
Da igualdade. - Quando se começa a falar em
“igualdade”, raramente o discurso consegue deixar
de ser encadeado até que a própria palavra
“igualdade” perca todo o sentido. A “igualdade de
direito” dos homens é seguida pela das mulheres,
visando, no entanto, chegar às nações grandes e
pequenas. - onde a “igualdade” prega que o desigual
se iguale, logo o superior se nivela ao inferior, o que
é de se lamentar. Detendo-nos apenas sobre a
pretensa igualdade entre os homens, vemos que ela
só é possível quando estes atingem um peculiar
estágio da décadence, em que não mais distinguem
aquilo que os faz ser homens do que identifica a sua
própria negação e declínio; o animal saudável não
concebe que outrem possa lhe ser “igual”, mesmo
quando se mira na superfície de um rio; o cão ladra
diante de sua imagem no espelho, supondo ser outro
que se aproxima dizendo que é tão bom quanto ele,
o que fere mais os brios do que encontrar outro cão
rondando o seu território. Narciso descobre alguém
que é seu “igual”, mas esse “alguém” é ele mesmo,
por quem se apaixona; se Narciso soubesse que ama
a si próprio, desprezaria a imagem refletida na água
com um desprezo superior, mas Narciso é um
29
décadent, e prefere cultuar o seu “igual” até que se
afogue nos seus braços. Nas Matemáticas, dois
números nunca têm um mesmo sucessivo - o
pensamento igualitário quer que todos os números
sejam sucessivos de zero -, por isso que cada número
é igual apenas a ele mesmo: “Eu sou meu próprio
igual”, eis a fórmula para se alcançar a “igualdade
de direito” consigo.
12.
Das culturas. - Da mesma forma como vimos
no aforismo em relação às aptidões humanas ao tra-
balho manual, também o aparecimento das cultu-
ras é propriedade característica dos seres que já pos-
suem a habilidade para o emprego de instrumentos,
agora aperfeiçoada até o ponto de sobrepor-se aos
instintos animais, primeiro, apenas resistindo-lhes,
e por fim, opondo-se a eles. As culturas são o exercí-
cio da faculdade criadora do Homem, adestrada nas
suas mais variadas formas. As múltiplas culturas
espalhadas sobre o mundo em todas as épocas pro-
vam eloqüentemente a originalidade do Homem:
comparado a um rouxinol, por exemplo, que é ani-
mal dividido em inúmeras famílias espalhadas pelo
globo terrestre e com grande diferença genética de
indivíduo para indivíduo e de grupo para grupo, faz
sempre o seu ninho conforme idênticas regras em
qualquer parte do mundo e através dos tempos sem
criar nenhuma adaptação nova, o ser humano, que
é um animal de espécie única, com uma diferença
genética mínima, mesmo entre os membros de suas
30
diversas raças e etnias, houvera de ser o vivente
menos criativo das espécies conhecidas. Sendo tão
semelhantes os indivíduos de sua espécie ao redor
do orbe, era de esperar-se que o Homem somente
conhecesse uma única forma de construir casas, pre-
parar utensílios, e conviver com os seus iguais; ao
contrário da filomela, porém, sua razão superior o
leva a desenvolver um costume diferente para cada
parte do globo em que habite. É a capacidade de
manipular ferramentas, a cada vez aperfeiçoando as
técnicas do seu uso, que permitiu o surto das dife-
rentes culturas pelo orbe, até chegarem a tornarem-
se civilizações. O rompimento com a cultura em que
se foi educado desguarnece os homens diante de seus
próprios instintos, já não mais contidos pelas suas
antigas tradições, tornando-o presa fácil de sua
animalidade sem que haja a contraparte da modera-
ção do intelecto. Essa perda é menos sentida quan-
do se se assimila uma outra cultura, hegemônica,
no lugar da cultura regional abandonada, embora
culmine com a decadência de toda a civilização, ni-
velada em uma expressão cultural única.
13.
Das três atividades. - Se o Homem se dedicasse
exclusivamente a satisfazer suas necessidades, não
diferiria muito de um autômato, e sua espécie seria
igual à da formiga, cuja atividade é integralmente
consumida no lavor da manutenção da colônia, e
cujo trabalho tem por fim manter o funcionamento
de um sistema que por sua vez se presta apenas a
gerar mais indivíduos - não é, pois, sem motivo,
31
que não têm preguiça de pisar nas formigas todos
quantos vão ter com elas. - O Homem pratica três
atividades (que mais o ocupam quanto menos preci-
sa despender seu tempo pela própria sobrevivência),
quais sejam o jogo, a arte e a religião, no que se dife-
rencia dos animais que não vêem outro objetivo afo-
ra a perpetuidade da espécie. Todas três se situam
no domínio das ilusões, produzindo no mundo sen-
sível as aparências das emoções oriundas do seu in-
telecto, na medida em que o jogador, o artista e o
crente buscam trazer para fora as construções de
seu mundo interior e torná-las acessíveis a todos.
São estes, enfim, os três grandes fingidores: o atle-
ta, o poeta e o asceta. O jogo é a atividade mais
antiga a desenvolver-se, e que lança um pouco de si
sobre cada uma das outras duas. Animais superio-
res já sabem brincar, como os lobinhos que simulam
combater enquanto esperam que suas mães lhes tra-
gam o alimento que caçaram. Na arte e na religião
subsiste algo de lúdico, ao menos por parte do artis-
ta e do sacerdote: o azafamar-se entre pincéis, cin-
zéis e pergaminhos na elaboração de uma obra de
arte já diverte e enternece por si, gerando um pra-
zer, como também sói ao padre entretido na celebra-
ção do culto religioso. Porventura não existirá um
jogo em toda aquela preparação de vestes talares,
consagração dos altares e ascensão das oferendas,
que obedecem a uma disciplina litúrgica rígida, como
nas regras a serem seguidas em um esporte? O dese-
jo do Homem de praticar atividades que se gratifi-
cam por si explica-se no serem elas a via aberta para
a vida entre os muros da sobrevivência - o Homem
32
deixa de apenas sobreviver para então começar a vi-
ver. - As emoções ligadas à contemplação estética e
religiosa dizem respeito mais ao observador e ao
devoto, que assistem ao desenrolar-se da atividade
lúdica no atelier ou no púlpito: o observador goza
em plena liberdade quando contempla, enquanto o
sacerdote e o artista coadjuvam seu prazer - estes,
por sua vez, figuram ante si mesmos e perante os
outros os tipos mais superiores do santo e do gênio,
com o que sentem-se absolutamente necessários ao
observador como libertadores. - Enquanto o artista
tressua martelando sobre a rocha, não vê nenhum
objeto ao qual possa ligar alguma emoção; mas de-
pois que sua obra está concluída, pode também go-
zar a sua beleza, e até mesmo suplicar-lhe que fale
com ele: parla! E o padre também sente junto com
os fiéis a comoção do sagrado, quando eleva as espé-
cies e as contempla imerso em meditações sobre a
grandiosidade do mistério que crê estar confiado às
suas mãos.
14.
Das sociedades. - Diversas têm sido as especula-
ções sobre o início das sociedades humanas; durante o
Século das Luzes campeou a doutrina contratualista,
pela qual os homens vivem em sociedade obrigados
uns aos outros por um contrato. Se assim fosse, então
os animais irracionais também firmariam contratos,
quando formassem matilhas por temor de ser devora-
dos, ou contratariam visando à proteção dos seus inte-
resses quando as fêmeas entrassem no período do cio,
ou estivessem a buscar alimentos para as crias. Quan-
33
to a constituir família, não se viu nisso até hoje um
problema, e ninguém chegou ao ponto de supor que
haveria um contrato nas relações entre os cônjuges
(mesmo quando se enlaçam com todas as formalida-
des do matrimônio), ou dos pais com seus filhos, não
obstante a rígida autoridade hierárquica dos ascen-
dentes ou mais velhos que se impõe aos descendentes
ou mais jovens; aí os filósofos são unânimes em dizer
que a Família (ou o Casamento) é uma instituição ante-
rior à própria sociedade. Compreendemos bem: a difi-
culdade começa quando se sai do círculo familiar para
a comunidade maior formada por vizinhos, concidadãos
e compatriotas; se é a todos evidente que os laços de
afeição explicam a subsistência das famílias, os mes-
mos já não se prestam a manter coesas as cidades, até
mesmo porque dificilmente se poderia considerar que
todo homem se apaixonasse pelo seu vizinho como
por sua noiva, e que de tal amor decorresse um conví-
vio harmonioso entre eles. Ora, se as famílias se
aglutinam por sentimentos, e as sociedades por instin-
tos, as primeiras são mantidas por um grau de força
mais intenso do que o das segundas, mas que é tam-
bém o mais recente. Os homens já viviam em agrupa-
mentos estáveis antes de conhecerem o casamento ou
a monogamia, dado seus impulsos gregários serem
inconscientes - é tão natural ao Homem construir ci-
dades na rocha como o é aos pássaros fixar seus ninhos
nos galhos das árvores -, e só depois que aprenderam a
criar o gado foi que descobriram que os filhos nascem
da união dos machos com as fêmeas; assim, a socieda-
de é que precede à família, sendo esta o produto final
de um longo refinamento dos instintos, de uma cuida-
34
dosa seleção dos sentimenos que culmina em saber se-
parar os indivíduos por critério de consangüinidade
(aos quais se premia com o direito ao amor) dos “ou-
tros”, não afins, e não “merecedores” de ser amados.
Nas sociedades humanas existem duas maneiras pelas
quais se manifestam os impulsos gregários: a dos que
os aprimoram, construindo uma hierarquia onde os
que se encontram no alto vivem como os Aesires no
Walhalla, e a dos que os degeneram, semelhantes aos
Vanires, submetendo-se aos primeiros e também uns
aos outros entre si, de início por força, depois acredi-
tando haver nisso um “direito” ou “necessidade”. A
doutrina contratualista reflete a posição destes últi-
mos, pretendentes a reduzir a sociedade a um “contra-
to social” onde se presumiria o desejo deliberado de
renunciar à vida livre em contrapartida de obter a pro-
teção do grupo, e nisso reside a sua falha - ao conside-
rar a sociedade como um acordo entre os fracos contra
os fortes, nivela todo o gênero humano à mesma con-
dição de inferioridade, sem obtemperar que nos ho-
mens os mais aproximados do estado original de
barbárie a associação se dava livremente e com um
prazer somente compreendido pelos que experimenta-
ram o quão aprazível é a ligação entre os que comun-
gam do mesmo gosto e espírito. - Os fracos que se
coligam para enfrentar aos fortes seguem a miragem
de que associar-se conduz ao aumento da própria po-
tência, quando individualmente continuam tão débeis
quanto antes de ofuscar-lhes a vista a ilusão do calei-
doscópio que os faz ver a si próprios multiplicados; a
mera concorrência de forças para um dado sentido é
acidental ou ocasional, e isso os fracos percebem amar-
35
gamente quando irrompe a discórdia nos seus agrupa-
mentos, e eles passam a digladiar entre si pelo poder.
Faltou a Thomas Hobbes a perspicácia, faculdade da
qual se mostrou tão rico ao filosofar sobre o seu Deus
que é mimésis do soberano, quando ao enunciar a má-
xima homo homini lupus, reputou que o homem seria
predador dos indivíduos da própria espécie; o homem,
assim como o lobo, não preda o animal da própria
espécie, pois na verdade, o homem é o único animal
cujos indivíduos podem pertencer a espécies diferen-
tes, e sabe agir em conseqüência disso: quando um
homem violenta a outrem, o faz porque não o enxerga
como seu “semelhante”, e sob este ponto de vista, ou o
entende como pertencente a uma espécie inferior, dan-
do-lhe caça, ou o reconhece como de espécie superior, e
o parasita. As sociedades conhecem dois tipos de no-
breza, com os seus respectivos contrários, conforme as
gerações se sucedem: os nobres da primeira geração
são os legisladores e fundadores de cidades, como
Licurgo em Esparta, Teseu em Atenas, Quirino em
Roma e os respectivos descendentes diretos destes pais
primitivos criadores de instituições: assim eram nobres
os espartiatas, os eupátridas e os patrícios. No anverso
destes tipos nobres, polarizavam-se os seus contrári-
os, quais sejam, as mulheres, os escravos, os metecos,
hilotas e bárbaros, aos quais se negava o direito de ci-
dadania. Os nobres da segunda geração se tratam dos
guerreiros detentores de títulos militares, cujos no-
mes deram origem à nobiliarquia hereditária européia
ainda vigente. Assim, por exemplo, os duques e mar-
queses, que significam respectivamente “condutores”
de legiões e defensores das fronteiras do Império Ro-
36
mano, para os quais agora ser nobre passa a represen-
tar o papel de mantenedor das instituições criadas pela
primeira geração; os nobres da segunda geração têm o
conceito de sua “nobreza” vinculado ao de “homem
livre”, e encontram sua oposição nos povos derrota-
dos, na choldra envilecida e ociosa das cidades. Uma
terceira geração, híbrida dos tipos nobres e dos seus
contrários, que vem a ser a burguesia, já não cria nem
preserva, mas apenas desfruta langorosamente do seu
patrimônio. O quanto o burguês é mais próximo da
nobreza dos espartiatas e dos eupátridas ou da vileza
dos hilotas e metecos vai dizer o número de costados de
cada um dos tipos que sua árvore genealógica moral apre-
sente. O indivíduo que tem pendores nobres e ignóbeis
convivendo dentro de si termina por não saber
diferençá-los e deseja que todos recebam igualdade e
foro de cidadania, assim como em Roma os libertos e
seus filhos se revoltaram inúmeras vezes reivindican-
do a cada vez maior participação no governo da Repú-
blica, até conseguirem dois tribunos da plebe, sem di-
reito a voto nos comícios, mas investidos de soberano
poder de veto. Os tribunos da plebe que o burguês car-
rega consigo sempre vetam as resoluções nobres que
porventura se levantem em seu espírito.
15.
Do Progresso. - Ante o pensamento comum de
crer na existência de momentos históricos mais avan-
çados do que outros, como se houvesse um encadea-
mento ligando sucessivamente as eras ao longo do
Tempo, respondemos que não existe “progresso” ou
“atraso” na história humana, e o que se verifica no
37
decurso dos séculos é ocorrer de um estágio social apre-
sentar mor complexidade em face de outro porventura
a ele emparelhado como um contraste. Ambos, contu-
do, já existiam em Potência no começo dos tempos,
porque o “complexo” e o “simples” são diferentes ma-
nifestações do mesmo movimento, sem que exista hi-
erarquia entre os estágios sociais. De igual feição, não
existem homens “primitivos” e homens “evoluídos”,
mas apenas homens, que participam da mesma nature-
za em todas as épocas e lugares. É uma alegoria muito
errada a que fazem aqueles que, diante da noção de
“antigo” e “moderno” nascida da comparação entre
ferramentas ou máquinas com maior ou menor tempo
de uso, julgam que critério idêntico se aplica às idéias
ou às sociedades humanas. Uma idéia não é sujeita ao
desgaste qual um parafuso, nem uma cultura fica ob-
soleta como as engrenagens de uma segadeira. Quan-
do se verificam descobertas na ciência ou na técnica
que resultam em um transe de um estado menos per-
feito para outro mais perfeito, não há “progresso”, mas
o movimento em Ato daquilo que era em Potência. A
época atual, tida por “tempos modernos” já existia em
Potência desde o início do Universo junto com os “tem-
pos passados” e os tempos que ainda hão de vir; mas
os homens vulgares julgam a sua “modernidade” con-
tentando-se por se darem a muitos o que seria um
luxo inacessível no “passado”, e hoje é um conforto
acessível à maioria - o seu “progresso” é aprovado ape-
nas quando lhes satisfaz os desejos do ventre e as or-
dens do baixo ventre.
38
39
LIVRO SEGUNDO.
Da Ética.
40
41
16.
Da moral como limite à Vontade. - Diante do
filósofo se apresenta um problema verdadeiramente
tormentoso: que tratamento a moral deve receber
no seu sistema, e sobre quais bases estabelecê-la. Os
primeiros quiseram fundear a moral no alicerce re-
ligioso, fazendo-a procedente do senso de um deus;
ao mesmo tempo, procuraram combater a noção de
que a moral se impõe tão-somente pela força, pois
queriam dar-lhe uma origem transcendente, asse-
gurando que os potentados não a conseguiriam aba-
lar com seus decretos - não se apercebiam de que se
a moral parte de lei divina, há o emprego da força
pela divindade; logo, a moral é imposta pela força,
só que de tal magnitude que os homens não lhe po-
dem resistir, pois estariam lutando contra um deus.
- Outros, não querendo render-se à evidência de que
a moral nasce da força, cresce alimentada pelos usos
e costumes e se torna vetusta pelas tradições, pre-
tenderam estabelecê-la na razão, com o que fracas-
saram da mesma forma que os primeiros: a simples
luz da razão não se impõe contra a fúria incontida
dos sentidos, e não existe argumento racional que
impeça um homem furioso ou apaixonado de perse-
guir os seus intentos; ademais, a razão admite a
contrariedade pela argumentação, e sempre existe a
possibilidade de se lhe opor uma outra razão que
negue o que havia sido estabelecido como “moral”;
logo, a moral usa um cinto com muitas perfurações
42
por onde tenha passagem a fivela da consciência.
Por fim, a tentativa de conciliar a força com a razão
produziu a moral do dever, chamada de “imperativo
categórico”, que também soçobrou nos mesmos es-
colhos que colheram as suas irmãs orgulhosas. O
“dever” é uma volição que só aparece ao fim de toda
uma cadeia de raciocínios, e não é em absoluto li-
vre, pois o Homem somente se submete ao império
do dever para não comprometer a sua Honra, esta
sendo o conceito que se deseje ter perante os seus
iguais, ou o respeito para consigo mesmo; a moral
ordenada pelo dever não obrigaria onde não existis-
se desonra em deixar de corresponder às expectati-
vas, como quando se rompe um pacto com um infe-
rior, ou quando não há nenhuma aliança que obri-
gue alguém a fazer uma determinada ação. Além
disso, as diversas morais contêm em si mesmas a
previsão de que não é censurável um ato quando
suas regras gerais não devem incidir: por exemplo, é
contrário às leis morais que se mate um inocente,
mas não é imoral matar em legítima defesa, pois
neste ponto o comando que diz não matarás cede em
relação à morte dada ao injusto agressor de direito
próprio ou alheio; logo, está inserida nas próprias
leis morais a hipótese de haver circunstâncias em
que elas não se aplicam, ou sejam aplicadas cum grano
salis, isto é, de uma maneira flexível - elas mesmas
trazem contradições, e nem sempre se pode ter um
raciocínio tão sutil que as distinga em um relance. -
O que temos, enfim, a dizer sobre a moral - seja de
que espécie for - é que nenhum dos sistemas já
construído é perfeito porque toda moral pressupõe
43
um conflito com a Vontade - a fórmula de toda mo-
ral se consiste precisamente no ato de se declarar
“não quero querer isso” - e a Vontade sempre acaba
por romper as cadeias postas por quem procure to-
lher-lhe o vôo; esta é a única lei universal que reco-
nhecemos. A moral é um censor que se posta igual
Catão diante das possibilidades de escolha apresen-
tadas ao longo da vida, e dita quais delas são inacei-
táveis dentro da cidade; quanto mais rígida é a mo-
ral, maior é o número de escolhas condenadas, o
qual sempre tende a aumentar, pois depois que uma
possibilidade é suprimida, logo uma outra a seguir
também pode quedar interdita, até chegar-se ao pon-
to de só existir uma única escolha moralmente líci-
ta, o que equivale a não ter escolha nenhuma e a
atrofiar a própria faculdade de escolher - nesse mo-
mento em que se diz “estou aqui e não farei outra
coisa”, realmente não se pode fazer mais nada -. Os
homens que mais docilmente se submetem às
injunções da moral são também aqueles que mais
carecem do império de uma autoridade superior que
lhes diga o que fazer, embora essa autoridade esteja
dentro deles mesmos. O regime ditatorial é essenci-
almente moralizante, assim como possui a moral
toda a essência de uma ditadura; foi dessarte que os
moralistas floresceram em todas as épocas em que
um condottiere se arvorou na tarefa de conduzir os
povos: na Florença dos Médicis - sucedidos por
Savonarola - na Espanha de Felipe II, na França de
Luís XIV; entretanto, não é a tirania o que favorece
a moral, nada disso, é o contrário: antes de um povo
aceitar o domínio de um tirano visível, que governa
44
a política, foi preciso que tivesse primeiro cada ho-
mem outorgado poderes ditatoriais ao seu tirano
particular, invisível, ao qual pede sono tranqüilo e
proteção - e do qual o tirano visível é apenas um
reflexo aumentado.
17.
De como falham os sistemas morais. - O mora-
lista tem nas suas mãos um trabalho demasiado
ingrato para apresentar: o que se espera dele é que
escreva um método seguro de como controlar a con-
duta dos homens, que será tão mais perfeito quan-
to menos exceções contiver. A preocupação em cri-
ar uma “moral elevada”, a rigor, transfere ao mo-
ralista uma responsabilidade ainda maior da que a
que carregam os magistrados: enquanto estes atu-
am somente punindo os delitos, o moralista deve
(ou deveria) prevenir a ocorrência não só de infra-
ções às leis penais, como também evitar cada míni-
ma crueldade da vida cotidiana. Caso alguém en-
comendasse a um moralista criar um sistema viá-
vel, mandar-lhe-ia que inserisse dispositivos efica-
zes para impedir toda a espécie de violências, rapi-
nas e dissimulações, de modo que se chegue a uma
conclusão semelhante à do desfecho do romance
“Teresa Filósofa”; o projeto de moral que se pre-
tende como realizado é aquele que ensine os ho-
mens a não matar, a não roubar, e a não violar. A
moral se entende completa quando garante à soci-
edade de que nenhum de seus membros tirará a
vida de outrem, ameaçará seu patrimônio ou rap-
tará suas mulheres. O filósofo moralista é aquele
45
que tem a seu encargo proteger os homens daquilo
que são os seus maiores medos. Nada é mais temí-
vel do que o homem que se intitula de “imoral”;
dele se receia que possa atentar contra qualquer
dos valores estabelecidos como pilares da socieda-
de. Existe nesse medo muito de precaução de caça
quando escuta a trompa do caçador. A falha nos
sistemas de moral, como dito acima, está no seu
conflito com a Vontade; o Homem não é uma má-
quina de carne, passível de receber uma educação
moral como se fosse uma programação definitiva.
Enquanto ele conservar a sua Vontade, sempre ha-
verá como sacudir de cima o jugo, por isso que
qualquer controle que se tente impor sobre as ações
humanas, inclusive o que parte da própria “cons-
ciência” está fadado ao insucesso: quem deseje
matar um inimigo, roubar o seu ouro ou violar sua
esposa poderá fazê-lo, desde que se assegure de que
ficará impune - a maior sanção moral não é o “peso
na consciência”, mas o receio de ser descoberto -
enquanto aqueles que se dominam por escrúpulos
encontram-se habituados a raciocinar moralmen-
te, como um vício, esquecidos de que a moral a eles
ensinada lhes não retirou os braços, pernas e inte-
lecto para agir a seu bel-prazer. Mesmo quando não
deseja, o Homem conserva os meios para fazer aqui-
lo de que é capaz; assim, a moral lograria eficácia
apenas no caso de retirar do Homem não somente
a Vontade, mas também os meios para a consecu-
ção do ato reputado como “imoral”. Somente com
a auto-emasculação conseguiu Orígenes triunfar dos
seus apetites carnais, o que demonstra ter sido ne-
46
cessário que se partisse o instrumento para não se
puder mais executar a melodia.
18.
Dos limites naturais à Vontade. - Assentamos
que toda moral é um limite à Vontade; argumenta-
se que a Vontade de cada um é limitada pela frontei-
ra onde começa a Vontade dos demais (indevidamente
confundida com a liberdade). Há os que vêem nisso
um “pacto” ou “contrato” entre os homens, o que
analisamos um pouco acima. Não questionamos que
haja limites naturais à Vontade, que constituiriam
uma “moral natural” ou da espécie. Se todo ho-
mem tem Potência, e por isso, deseja que ela au-
mente, homem nenhum teria mais direito a expan-
dir sua Vontade do que outro. Se, ao contrário, le-
gitimássemos a aniquilação do homem pelo homem,
causar a miséria alheia para conseguir prosperida-
de justificaria que alguém mais forte e ladino, por
sua vez, massacre o primeiro malvado, tomando-
lhe o produto de suas rapinas, e deixando-o pior
até do que suas vítimas, numa sucessão de iniqüi-
dades sem fim. Podemos contra-argumentar, po-
rém, que existem homens tão vis que jamais apren-
deram a dominar, nos quais a Vontade teria limites
mais estreitos e mais reduzidos do que nos demais
homens e que se poderiam transpor sem com isso
cometer uma injustiça - e talvez ainda lhes redun-
de um benefício. - O que se deve observar é que se
a limitação natural à Vontade impõe o neminem læde
nas relações do indivíduo entre os seus semelhan-
tes, onde não há ninguém a ser lesado estadeia-se o
47
vexilo do laisser faire, mau grado aos sistemas de
“moral elevada” que restringem a Vontade por cen-
tenas de maneiras, inclinados diante de milhares
de tradições e obedecendo a milhões de costumes.
A moral “natural”, delimitada pelo respeito devi-
do à Vontade dos demais não impinge nenhuma
dessas construções elaboradas. Em que pode
lesionar a alguém a recusa do emprego de um pro-
nome de tratamento, geradora de tantos melindres
e ressentimentos? Ou do “dever de hospitalidade”,
tão caro aos povos antigos e aos que ainda hoje
habitam os desertos? Tais códigos não se relacio-
nam ao respeito às liberdades dos particulares, e
têm sua origem remota em outros medos, mais pri-
mitivos, qual o de terminar como repasto em uma
ceia de Licaon, ou no mínimo, pernoitar sem um
teto ou abrigo. A Vontade individual, portanto, é
limitada não somente pelo ponto onde começa a
Vontade de terceiros como deveria sê-lo, e nec plus
ultra, mas agora (plus ultra!), pela prevenção do
que essa Vontade possa dar causa, se não estiver
rigidamente controlada e disciplinada, por uma
tirania ainda maior do que a dos hábitos. E é essa
tirania primeira - a da moral - que pela aceitação
da servilitude, deságua em todas as outras espécies
de ditadura.
19.
Do amor de si mesmo. - O móvel primeiro do
Homem é o interesse; do interesse, conseqüência da
manifestação do dinamismo sensível diante do pra-
zer ou da dor, nasce o amor. O amor, que é interesse
48
em movimento, se divide entre amor aos demais
(ou ao próximo) e amor a si mesmo (ou egoísmo),
mas é o amor a si mesmo o maior. O amor ao pró-
ximo é interessado na medida em que colabore para
o amor a si mesmo, ou pelo menos não o contraste
- é preciso querer bem a si, antes de pensar no pró-
ximo, pois o nosso próximo ainda está mais distan-
te de nós do que o “si mesmo.” - O motivo de colo-
car-se o amor ao próximo solapando o amor a si
mesmo tem como razão de fundo o temor da maio-
ria de que se alguém amar mais a si próprio do que
aos demais, a sociedade possa correr um perigo, e
este temor gera nos medrosos uma prevenção con-
tra tudo o que seja egoísmo, pareça egoísmo, lem-
bre o egoísmo. Isso é tudo muito contraditório!
Elogia-se o desprendimento de si, mas se pergun-
tado por qual motivo sacrificar o próprio bem em
proveito da sociedade, responde-se de modo nada
categórico que o bem da sociedade retorna em pro-
veito do indivíduo. Então o bem particular termi-
na por ser o interesse do bem comum. Cada um
cuida do bem da sociedade por se ver parte inte-
grante desse mesmo todo, de cuja preservação de-
pende a felicidade individual. Há muito de prazer
egoístico dissimulado sob as virtudes altruístas.
Para que aceite sacrificar o amor a si mesmo, o
homem altruísta é convencido a isso por outros
homens ainda mais altruístas do que ele, o primei-
ro com receio de sofrer uma punição imposta pelos
segundos, e estes temerosos de que não o fazendo,
estariam à mercê de um homem para o qual os in-
teresses da maioria deixaram de ser prioritários.
49
Pune-se o egoísmo e recompensa-se o altruísmo,
até que se chegue a crer que decorre de uma ordem
natural o medo de não transigir com a maioria e
ser punido por causa disso. O homem altruísta, o
que não apenas tudo dá pelos outros, mas também
leva ao paroxismo a simpatia até deixar de sentir e
viver por si mesmo, para só viver e sentir em si
depois de ter a percepção captada por intermédio
de outrem, espreita de cima dos ombros tentando
ler na fisionomia dos circunstantes um esgar de
concordância a cada vez que ensaia uma afirma-
ção, silencia o seu amor a si mesmo quando os es-
quivos olhares que encontra enregelam a palavra
prestes a despir-se, e para não colidir com os ou-
tros, aos quais adora, opta por um auto-sacrifício
onde os seus desejos, idéias e vontade são imola-
dos. Ora, ele sacrifica o que tem de mais precioso
dentro de si para que não lhe sacrifiquem uma po-
sição na sociedade de que aspira fazer parte. Ao
comparar o apreço dado à própria vontade com o
que se dispensa às pequenas vontades da maioria,
o homem altruísta toma como se estas valessem
mais do que a primeira. Um modo de vida como o
que a Humanidade adotou, que exige o sacrifício
individual para resguardar a segurança de um todo
massivo, amorfo, indeterminado, doente, reincide
na troca do real pela idéia, em que o estar no agra-
do da opinião da maioria é deslocado para a função
de paraíso. Os homens transigem, contemporizam,
cedem por medo de afirmar a própria vontade e
serem castigados. Em contraparte, escolhem o al-
truísmo porque são recompensados a fazê-lo. Uma
50
escolha que não se gratifica por si, mas precisa de
castigo ou recompensa jamais pode ser livre. O ho-
mem que deixa de ser egoísta é um medroso, e o
que se torna altruísta é um corrupto; um e outro
não são dignos de um pensamento nosso.
20.
Do desejo e da vontade. - O Homem dá corpo
ao seu desejo quando realiza a sua Vontade. Esta se
distingue em duas espécies: a Vontade livre propri-
amente dita, que é o Desejo consciente (para o qual
a Razão colabora), e a segunda constitui uma von-
tade interior, anímica ou instintiva, que se faz pre-
sente nos atos mecânicos de cada um de nós. Ao
contrário das decisões formalmente raciocinadas,
atitudes como as de segurar uma taça, ou cami-
nhar de um lado para o outro, são tomadas incons-
cientemente, sem que a razão interfira, ditando qual
seria a melhor maneira para desempenhar tais ope-
rações; nenhum cérebro sadio perderia tempo raci-
ocinando sobre de que lado deverá cortar um pão,
ou quebrar um ovo, ou ainda se é preferível calçar
primeiro os sapatos pelo pé direito ou esquerdo. Se
semelhantes ações precisam ser desejadas consci-
entemente, a maneira de fazê-las é determinada
unicamente pelo acaso ou por caprichos irracionais,
como se a mente jogasse a sorte com os membros.
A capacidade de realizá-las, contudo, parte das lem-
branças da experiência sensível, vivida pelo ser ra-
cional, e aplicada em cada caso novo conforme se
pareçam com situações anteriormente praticadas.
A vontade livre, diferentemente, parte de uma es-
51
colha tirada do próprio intelecto do ser humano. A
escolha, entretanto, não pode ser feita sem consul-
tar às paixões, as quais, em sendo baseadas nas re-
ações de prazer experimentadas, definem para cada
indivíduo, o que lhe apraz ou repulsa, e sendo bem,
o que se deve desejar - ou repelir - como próprio
das suas tendências íntimas e pessoais. É assim,
em respeito ao que se considera prazer ou dor, que
se faz a diferença do que é bem ou mal para si
mesmo; e desse mal ou bem particulares ou subje-
tivos é que as paixões recebem sua forma e corpo,
saindo para consolidarem o ato de querer, o qual é
manifestação ativa de outro, mais simples, e passi-
va, o gostar, porque o que se gosta nem sempre se
realiza em ato, enquanto o desejo materializado no
imperativo de querer o pode, ou, pelo menos, tenta.
É pela vontade livre que se justificam e definem
ações quais escolher um livro pelo assunto, confor-
me o gosto, aceitar em casamento uma noiva, pro-
curar qualquer fonte de prazer ou diversão; tais
atitudes, enfim, não podem ser deliberadas sem o
juízo sobre se determinada coisa é boa ou má, o
que não se faz sem o uso da razão, que não pode
sofrer nenhuma interferência de força exterior, para
ser livre, mas sim, das pulsões que houver no seu
íntimo. As cogitações que porventura se levantem
no interior da mente e a agitem como uma força
interior não tolhem a sua vontade, antes são o mo-
vimento da própria vontade em torno de si mesma,
pois quando algém constrange a si próprio, o faz
por uma força que subjaz em si, por isso que os
conflitos que se tenha consigo mesmo fazem parte
52
de uma só Vontade, ainda que orientados por dese-
jos contraditórios. A razão, todavia, não é mais do
que método; se alguma coisa é boa ou má, útil ou
inútil, são as emoções e paixões que a qualificam;
paixões e emoções, contudo, se movem apenas em
função do prazer e da dor, pois desejar ou detestar
implica nessas sensações, demonstrando, então, que
as emoções e paixões, como desdobramento da sen-
sibilidade, são os guias de todos os julgamentos e
de toda vontade livre. Tudo aquilo sobre que se
não tem suficiente conhecimento para dizer se é
bom ou mau pertence ao imponderável; tentar deci-
dir sobre o imponderável sem meios de desvendá-lo
é o que se chama impasse; vê-mo-lo quando se se
procura escolher entre dois caminhos bifurcados,
ou situações dentre as quais nenhuma parece me-
lhor. Sem o conhecimento necessário, o impasse
não se resolve e, para tentar uma decisão, forçoso é
recorrer ao instinto, ao acaso, ao sorteio, ou a ou-
tro critério preconcebido.
21.
Das inclinações. - Movem-se as emoções aonde
lhes dirijam o prazer ou a dor; das emoções formam-
se os desejos, dos desejos, os afetos, e dos afetos che-
ga-se às inclinações. Sendo, portanto, as inclinações
da personalidade produto final dos desejos, e a ra-
zão da emoção (pois a primeira não mais é do que o
método para bem alcançar os objetivos da segunda),
ela é determinada na direção conforme sejam os de-
sejos para com aquilo que é positivo ou negativo. É
preciso, no entanto, acompanhar com um olhar
53
circunspecto a ordem em que se sucedem essas ope-
rações, desde o seu nascimento nos recônditos da
mente, até que se esgotem materializadas em atos;
o desejo ou a intenção nada mais representam do
que o último elo de uma cadeia que tem sua origem
no interesse. Age-se na direção do desejo, mas quem
julgasse a conduta de alguém somente pelas suas
intenções deixaria de observar se o ato praticado para
satisfazer o desejo era necessário, ou seja, se para
atender aos interesses empregava de meios proporci-
onais a este objetivo. Portanto, antes do desejo exis-
te a necessidade, e esta só se justifica na medida em
que concorre para o interesse. É preciso ainda en-
tender que, quando Maquiavel afirma no Capítulo
XVIII de “O Príncipe” que nas ações dos homens o
que importa é o sucesso das mesmas, negando as-
sim qualquer juízo de valor sobre as intenções pelas
quais se chegou até o sucesso, e Frederico II insiste
no dever também a intenção ser nobre, e não apenas
o seu resultado, em verdade, tanto o resultado quanto
a intenção retiram o seu fundamento e sua finalida-
de do interesse, o qual, a seu turno, participa da
natureza humana afora bem e mal.
22.
Do bom e do mau. - O ser humano chama bom
ao resultado do seu próprio ato criador, e mau ao do
de outrem, que é desprezado. Moisés predica o seu
Deus a constatar suas obras como boas a cada um
dos dias da Criação. Talvez Lúcifer e os seus anjos
tenham caído e se tornado em demônios no momen-
to em que atribuíram à margem do que Deus esta-
54
belecera o que lhes parecia bom ou mau. O que dis-
se Moisés do seu Deus se aplica a todos os fundado-
res e legisladores dos povos. O que nós pensamos
dos demônios se aplica a todos os que, iguais à ser-
pente, induzem a que se pense o bem e o mal de
forma rasteira. A prima serpente, em uma única
frase, induziu - esta grande tentadora - a uma tríplice
queda, e não se admire que o “pecado original” seja
triplo: Eritis Sicut Deus, scientes bonum et malum.
Ao querer ser igual a Deus, deprecia-se a condição
humana; ao aspirar à ciência, começa uma busca de-
senfreada pela verdade; e ao estabelecer o bem e o
mal, valora-se uma oposição que culmina com a re-
núncia à própria potência de vida. Destas três cul-
pas em um só pecado original a filosofia ainda hoje
não conheceu redenção, nem tampouco, “redentor”. -
23.
Da busca da felicidade. - Assim como os sofis-
tas procuraram ensinar a sabedoria e a virtude (sen-
do vencidos nisso por Sócrates), os filósofos, come-
çando por Platão, ao quererem ensinar o caminho
para a felicidade em seguida de o terem aplainado
na via do sábio e do virtuoso, incorreram na mesma
falha daqueles erísticos mercenários, posto que se a
virtude e a sabedoria não podem ser ensinadas, tam-
bém a felicidade (caso somente o sábio e virtuoso
pudesse ser feliz) não se adquire pela aprendizagem
ou pelo cultivo do hábito. Aristóteles em sua Ética a
Nicômaco (Livro VI, nº. 8), depois de dizer que a
felicidade pertence ao homem virtuoso, se contra-
diz, afirmando que “a verdade é que nenhum prazer
55
prejudica a virtude, quando deriva da atividade e do
hábito virtuoso, antes pelo contrário, o prazer nos impe-
le cada vez mais à virtude”, quer fazendo a virtude
causa da felicidade e a felicidade a causa da virtude,
e que um prazer nascido da virtude possa impelir à
virtude; ora, tudo isto é falso. Ao pretender que a
felicidade pertença apenas ao sábio e virtuoso, buscá-
la é inútil, tanto para este, visto que a possuiria
naturalmente como decorrência de sua virtude e sa-
bedoria, não precisando ser ensinado, quanto para
o que não a possui, porque jamais conseguirá apren-
der a sabedoria e a virtude para ser feliz. A realida-
de, dura como o ferro (e que receio temos nós em
ferir?), é que a felicidade é atributo que o homem
tem, ou não tem; se tem, não há como lhe ser tira-
do, e se não tem, não há como ser adquirido.
24.
Da moderação do desejo. - A moderação do dese-
jo também não proporciona a felicidade, porque
mesmo o desconhecimento do tamanho das própri-
as vicissitudes não implica na supressão destas mes-
mas indigências. Tomando o exemplo do campônio
que com alegrias simples se contente, vemos que ele
não sente a falta da leitura de Homero e Virgílio
como o sábio, por isso é corrente dizer-se que o
Homem se torna mais desditoso à medida que fica
mais preparado; entretanto, embora o camponês não
sinta a verdadeira dimensão de suas insuficiências,
o quanto ele é necessitado se reflete na vida rústica
que leva, daí tais serem as indigências do Homem,
que ainda que as desconheça, precisa ser delas saci-
56
ado, d’outro modo, sua própria condição retratará
suas vicissitudes. O sábio pode padecer quando não
tem ao seu alcance os prazeres elevados que formam
a sua felicidade, mas, nenhum estado supera a ven-
tura sentida ao tê-los satisfeitos; assim é infeliz o
campônio em conseqüência de sua falta de ilustra-
ção, de que é necessitado, tanto quanto o sábio de
descobrir o que realmente precisa para ser mais per-
feito, semelhante ao doente que sofre sem saber qual
é a cura de seu mal. Igualmente entre os homens
cultos e civilizados existe a necessidade de coisas de
que jamais ouviram falar, pois nem sequer foram
inventadas. A ignorância sobre comodidades e pro-
gressos não torna menor a sua falta, e portanto, até
que sejam descobertos, a satisfação do interesse per-
manece deficitária.
25.
Da felicidade como potência de vida. - Afinal, o
que é a felicidade? E onde a encontraremos? A se-
gunda pergunta é mais fácil de responder do que a
primeira: é a felicidade quem nos encontra, quando
ela quer. Já o rosto desta dama misteriosa é conheci-
do apenas daqueles que sabem enxergá-lo sob o pe-
sado véu das idéias preconcebidas. A felicidade não é
mais do que um eterno superar de indigências. O inte-
resse clama por suprir aquilo em que é insuficiente,
e para isso detém potência; quando a potência se
movimenta em ato, o interesse é saciado. Um inte-
resse que se sacia torna-se por definição o seu não-
ser, o desinteressante; caso todos os interesses do ho-
mem fossem aplacados, o mau humor que disso re-
57
sultaria, chamado pelos ingleses de spleen, pelo seu
conteúdo, e os franceses, apegando-se à forma, de-
nominam blasé, seria capaz de fazer do mais plácido
espelho d’água um tremedal infecto. Enquanto há
indigências por superar, o homem é feliz, desde que
nada lhe interrompa ou atrase a marcha; é preciso
não perder de vista a linha do horizonte à frente do
caminho - a perspectiva do caminho a percorrer es-
timula a que se mantenha constante o passo - nem
se deter por muito tempo à beira da estrada - a ina-
ção produz o depauperamento da potência - ora ven-
cendo montanhas, cruzando vales, ou descendo de-
pressões e atravessando planícies. A felicidade nos
sorri a cada uma dessas insuficiências supridas, mas
ela nos fecharia o cenho se se atingisse o puro Ato.
A chegada ao estado de puro Ato, à beatitude, re-
presentaria o término de toda potência, com o de-
sinteresse por tudo o que se conseguiu ao longo da
vida. Ser feliz não é alcançar uma meta - atingir o
alvo é apenas chegar ao fim de um percurso, morrer,
deixar de existir - e aos que ainda assim quiserem
encontrar a felicidade ou qualquer outra perfeição
em grau absoluto, respondemos que vimos um co-
risco a passar pela terra dizendo: “Não existe a pu-
reza; em nenhum lugar nada existe em seu estado
puro!”.
26.
Do sentido da vida. - O Homem não precisa
lobrigar, quer no mundo, quer fora dele, qualquer
coisa que dê sentido para sua vida, nem existe ne-
cessidade de dar um sentido ou razão para o fato de
58
estar vivo. Sendo impossível controlar o passado,
não se consegue interferir nos acontecimentos que
deram origem à humanidade em geral e a cada indi-
víduo em particular, e assim, ninguém está em con-
dições de poder justificar a própria existência, por-
que isto só se faz com aquilo que se teve como deci-
dir; a nossa existência começou sem que pudésse-
mos participar dos eventos que a determinaram, por
isso não temos necessidade de encontrar nada que
venha a explicar a razão de vivermos. A vida na Ter-
ra apareceu espontaneamente, resultado das leis fí-
sicas que controlam o Universo; como não podemos
alterar esse estado de coisas no momento atual, é
indiferente a maneira pela qual passou a estar no
mundo. Nossa vida não é menos preciosa porque
não tem sentido: ela é ainda tudo o que nós temos,
e é somente nela que temos condições de sentir, pen-
sar e desfrutar de todas as coisas que fazem maravi-
lhoso o momento presente. A existência dos homens
começou no princípio do Universo, em potência no
caos donde tudo foi tirado, e ao nascer um novo
homem, este apenas se tornou em ato. A resposta
aos que procurarem qualquer explicação para o por-
quê de estarmos aqui é que nossas vidas repousam
no vazio sem ponto de apoio, como a Terra no Espa-
ço.
27.
Do valor da mortalidade. - O pensamento de
querer atribuir um valor à existência só pode partir
dos que têm o espírito de mercador, e a tudo dese-
jam dar um preço, para a troca de uma coisa por
outra. Pode-se trocar horas de lazer e descanso por
59
horas de estudo ou trabalho, quando se tem em mente
um exame a se prestar ou uma obra a concluir; mas
trocar a própria vida atual por uma promessa de
“vida eterna” a ser entregue no “mundo das idéias”
é o mesmo que adquirir uma gleba na crosta solar.
Ainda que tal mundo existisse, e a vida corporal
valesse menos do que a “vida eterna”, a troca seria
desproporcional. Um comércio pressupõe a troca de
espécies do mesmo valor. Isto não ocorre em um
câmbio onde o homem troca uma vida corporal (que
não lhe valeria de nada) por uma “vida eterna” (que
lhe valeria muito mais), decerto usando pesos adul-
terados. Um raciocínio destes, que não se estranha-
ria caso partisse das crianças que aceitam o maravi-
lhoso como realidade, torna-se indigno de homens
adultos, os quais, no entanto, acreditam que pos-
sam comprar e vender no limiar entre a vida e a
morte, cambiando uma existência pela outra, como
se permutassem mercadorias.
28.
Do valor da imortalidade. - Os Filósofos coloca-
ram as provas morais e psicológicas como argumen-
tos em favor da imortalidade da alma, e as justifi-
cam dizendo que frustrada a tendência à eternida-
de, a alma humana estaria “fadada ao desespero”
(Régis Jolivet, Curso de Filosofia, n.º 169); aqui so-
beja a malícia, pois o “desespero” não é conseqüên-
cia natural da certeza no aniquilamento, sendo in-
cutido junto com as provas psicológicas e morais.
Elas mesmas carregam dentro de si o desespero de
que se apresentam como remédio. Ao pretender-se
60
investir a alma de um “direito” à imortalidade, fun-
dado na “bondade de Deus”, tem-se que Deus preci-
saria possuir a mesma “bondade” que os homens
esperam encontrar uns nos outros, só que tal “bon-
dade” advém do medo que os homens têm da potên-
cia dos seus iguais; ora, Deus, sendo onipotente, a
nada ou ninguém teme, e não precisa, por isso, ter
“bondade” como os deuses de Epicuro. Ao mesmo
tempo, os fatos desmentem o poder encontrar algu-
ma “bondade” ou “ruindade” em um Universo em
contínua mutação, por isso que se desloca, com a
monotonia de uma cantiga de velhas, a “bondade”
que não existe no Universo conhecido para o “mun-
do das idéias”, onde se invoca a necessidade de que
a “justiça” premie os “bons” e puna os “maus”. Esse
“paraíso metafísico” serve há milênios como espada
de Alexandre sobre as voltas de todos os nós górdios
do pensamento ocidental, o que terminou por cegar
a sua lâmina. Evidentemente que não é a “justiça”
que reclama que cada um seja tratado “segundo as
suas obras”, mas são os próprios homens que dispu-
seram a ordem do mundo corporal neste sentido, e
esperam que o “mundo das idéias” recalque a
palinódia por força de simetria. A prova moral é
espelho de um desejo insatisfeito, não do “mundo
das idéias”, mas deste mundo, digno de quem não
teve aceita uma pretensão em juízo e à míngua de
outro suporte para dar corpo à inconformidade, que-
bra panelas defronte o pretório e guarda as tampas.
Os tratados filosóficos estão cheios de tampas guar-
dadas de litigantes insatisfeitos; é chegado, no en-
tanto, o momento de se deitar fora as tampas e pôr
61
a filosofia em melhores vasilhames. A prova psico-
lógica, calcada nas tendências essenciais das nossas
faculdades espera que se tenha como ponto de parti-
da que a satisfação das aspirações à perfeita felici-
dade dependa da sobrevivência ilimitada; uma vez
que não se conceda, nem por um milímetro, que a
felicidade só seja possível se for ilimitada a sobrevi-
vência da individuação, o argumento se dissipa, des-
feito na plenitude de sua ventosidade. O desejo de
gozar “objetos que ultrapassam o tempo” apenas
reforça a ânsia da vida por ela mesma, o que não
tem nada a ver com a “imortalidade”, mas com o
amor a um retorno que existe sem considerar o tem-
po. O argumento peca por princípio, uma vez que
parte da suposição de que se conheça de antemão
quais seriam as nossas tendências essenciais; se, ao
revés, assentarmos como sendo tendência essencial
o regresso ao Uno Originário, a prova psicológica
deixa de apontar para a imortalidade da alma e pas-
sa a indicar o aniquilamento como conseqüência não
só natural, como desejável para a continuidade da
existência além dos indivíduos.
29.
Do valor da vida corporal em face dela mesma. -
Entendemos que a vida corporal prescinde de senti-
do, contudo, ela não tem menos valor para nós por
isso. Compreendida como tudo o que nós temos, a
vida humana - finita, carnal e efêmera -, é igual à
eternidade, que para nós deixa de importar se dura
milhares de anos ou poucas décadas; o momento
presente passa a não ter fim, e perder a vida corpo-
62
ral é tão grave quanto perder a mesma eternidade,
pela qual sempre se envidaram tantos esforços dos
que nela depositam suas esperanças e, pela conser-
vação desta vida efêmera, aceitam-se outros tantos
mais trabalhos quanto pelo ganho da vida eterna se
sacrifica o que há no mundo. A idéia de que possa
haver uma outra vida, mais perfeita do que a corpo-
ral, é mesmo perigosa ao bem desta última e aos
seus interesses; para o crente na “vida eterna”, a
existência humana passa a representar mera chance
de atingir aquela mediante sua imolação e renún-
cia: a vida corporal é reduzida a ser apenas um teste
para os que esperam a eternidade, e a sua importân-
cia é regulada pelo quando se possa dedicar dela ao
objetivo de ganhar a “vida eterna”; ora, isto é falso.
Deve-se antes ter apego à vida corporal como se ape-
gam os crentes à “vida eterna”, e reputar a tudo o
que piore a existência como tão prejudicial quanto o
que se evita o que é julgado como contrário à “salva-
ção”. Outra erronia é querer atribuir um “valor” à
vida, como se ela tivesse que ficar sujeita à esfera de
valores que existe para ela mesma, e enquadrar-se
em uma das categorias de utilidade ou bondade às
quais pertencem os objetos que se desfrutam para
bem viver. O consolo dos fracos é procurar um sen-
tido para a vida fora dela mesma, visto que lhes
repugna aceitar que a vida possa estar solta no va-
zio sem ponto de apoio. Há não muito tempo, este
sentido era lobrigado em Deus. Quando a religião
foi posta em xeque, o telos se deslocou para outros
valores elevados, como a política, a economia e a
ciência. Tratar a vida como se fosse um dos seus
63
bens é um entimema tão mais evidente quanto os
esforços do pensamento ocidental em o disfarçar. O
“valor” é o estabelecimento de uma comparação sub-
jetiva, com vistas a criar uma equivalência
permutável na esfera objetiva. Como isto não está
bem claro, exemplificamos dizendo que todo valor
só existe quando é dado em face de alguma coisa;
assim, um copo d’água vale muito no deserto, e pouco
em cima de uma geleira, e por isso que as esferas de
valores são construídas pelos homens quando se se
compara dentre vários bens ou atributos, e um de-
les é considerado maior. Assim, a vida só poderia
ser valorada se estivesse em comparação com algu-
ma outra coisa, que se lhe assemelhe e possa ser
trocada uma pela outra como coisa fungível. Ape-
nas os instrumentos ou bens materiais se sujeitam
a valorações, e dentro destas valorações recebem jus-
tificativa para existir, regulada pela sua utilidade
para o bem da vida humana; esta, entretanto, é o
objetivo, para o qual concorrem os bens que lhes são
servidores; assim, a vida corporal adquire uma im-
portância muito maior quando se entende que ela
não é somente um meio; antes disso, é para ela que
existem os instrumentos (e como instrumentos, que-
remos abarcar tudo o que há no mundo e se possa
desfrutar como bem ou utilidade), para os quais a
vida em si é o fim, embora ela mesma não tenha
finalidade, nem em si mesma, nem fora de si mes-
ma. O fim que se busque dar por fora de uma vida
que em sua essência carece de sentido, jamais pode-
ria alcançá-lo, deixando o assento etéreo em que re-
pousa para se concretizar no mundo real. Uma vez
64
que se admite como ponto de partida que “a vida
precisa de sentido” já se está a confessar que ela não
o possui intrinsecamente, qual em relação aos seus
demais atributos, como verbi gratia, a imanência e a
autarquia, e a declará-la como incompleta e defici-
ente por nascença e natureza. Qualquer “sentido”
que se lhe dê, seguindo o argumento, apenas confir-
mará que sem a companhia deste seu “protetor”,
ela queda perdida e abandonada como sói às troianas
desamparadas pela morte de Heitor.
30.
Do valor da vida corporal em face da vida espiri-
tual. - Desde Platão que a vida corporal é confronta-
da com o seu duplo imaginário, o “mundo das idéi-
as” ou “vida espiritual”, e em face dela é que foi
possível estabelecer uma comparação valorativa, cujo
resultado foi a depreciação da vida corporal em face
da vida espiritual. Uma vez que se ponha de lado o
“mundo das idéias”, a vida corporal volta a existir
sendo só ela mesma como entidade singular e única,
já não podendo mais estar sujeita a valorações ou a
outras categorias que dependam de juízos compara-
tivos. Por isso consideramos como o último niilismo
a ser desmontado aquele que é o mais sutil: a con-
cepção de que “a vida vale por ela mesma”. Para
valer alguma coisa, ela teria que ser comparada a
alguma coisa existente fora dela; se é comparada a
ela mesma, tudo se reduz à proposição A = A. En-
tão, não se diga que “a vida vale por ela mesma”,
pois isto não se passa de um arranjo de palavras, ou
pior: a confusão com a definição do jogo ou da arte,
65
enquanto atividades que se gratificam de per si. A
arte ainda possui a complacência do belo, que a di-
ferencia do jogo, embora pertença ao mesmo genos
ou família. Uma vez que o jogo se define como o que
se gratifica por si mesmo, a vida não pode ser redu-
zida à definição de jogo. Duas coisas diferentes não
podem ter a mesma definição. O jogo é que é subor-
dinado aos atos da vida corporal, porque ele lhes
pertence, ou seja, faz parte da vida sem ser a pró-
pria vida. Posto que tudo o que possui valor o tem
na medida em que seja bom ou útil à conservação da
existência ou importe à sua preservação, a vida não
tem valor, nem em si mesma, nem em face de outra
forma de ser; a vida existe além de qualquer valor, e
todos os valores são determinados tendo-a em vista,
e nada tem valor fora dela. A atribuição de valor só
tem pertinência quando se trata de seres contingen-
tes, e a vida é a única coisa necessária. E o que é
necessário não tem valor, sendo absolutamente ines-
timável.
66
67
LIVRO TERCEIRO.
Da Estética.
68
69
31.
Da Estética como portadora do belo e do feio. - A Esté-
tica tem por objeto não apenas o belo, mas também o feio,
e o fazer estético muitas vezes confunde estes elementos
na produção de um belo horrível que é tão mais sublime
quanto mais se aproxima da concepção de que a vida pos-
sui todos os elementos de uma grande tragédia, da qual as
obras dos tragediógrafos são mimésis reduzidas. Não foi
outraacompreensãodeCésarAugusto,quandoaomorrer
exclamou acta est fabula, como se esperasse o cair de um
pano e o som dos aplausos, e se algum sacrifício tivesse
determinadoporfazer,sê-lo-iaaofilhodeSêmele,enãoao
filhodeApolo.AtéhojesetemprocuradoentenderaEsté-
tica como sendo um meio para produzir a beleza, talvez
porque as inteligências mais superficiais desejem contem-
plar apenas o que lhes agrada ver, desconsiderando a
integralidade dos aspectos belos e feios da natureza huma-
na, o que situa a definição tomista de que o belo seria id
quod visum placet na proposta de uma concepção mera-
mente voluptuária tanto da arte quanto da própria exis-
tência: o belo já não é aquilo que eu sou, mas aquilo que eu
desejoser...
32.
Dasartesdaimitação.-Sãochamadasartesdeimita-
çãoaquelasemqueseprocurareproduzirumdosaspectos
do pensamento ou da existência; afigura-se impossível
imitá-los sem que algum ideal contamine o fazer artístico,
70
seja de ordem prática (a tentativa de seguir a verossimi-
lhança por si só já compromete a naturalidade na encena-
ção) ou moral - é difícil, para o autor, não criar as persona-
gens à sua própria imagem e semelhança, como se não
pudesse escolher não ser deus - da mesma forma que é
impossível ao sujeito conhecer dos fenômenos sem refletir
neles algumas de suas próprias luzes. Quando Aristóteles
enunciou que o teatro, por exemplo, é arte de imitação, ao
lado de outras formas poéticas, não soube, porém, levar
seu argumento às últimas conseqüências, e concluir que,
uma vez que a vida é absurda, o teatro deveria também sê-
lo,comoimitaçãodoabsurdodaexistência;masAristóteles
era já um decadente, filho de um degenerado e neto de um
monstro, e não conseguindo enxergar além do seu ideal de
um mundo “melhorado” e “livre” da sua porção de dor e
sofrimento,pensouqueatragédiadeveriainduziràcatharsis
através do belo poéticodomesmomodoquesupunhapoder
a prática da virtude depurar a vida criando a “felicidade”
como um belo moral - o que despertaria o riso em Aquiles
e Ulisses -; tamanho erro do Filósofo do Liceu não foi
detectado pelos seus contemporâneos porque então sob os
tacões de um seu discípulo a própria Grécia deixava de ser
grega para se tornar “helenista” e o teatro trágico já não
possuía autores capazes de refutar Aristóteles pela produ-
ção de obras que desmentissem a sua Arte Poética. A deca-
dência triunfou e o teatro deixou de imitar a vida para que
imitasse apenas o ideal.
33.
Distinção da arte do jogo. - A arte é aparentada com o
jogo, dele se distinguindo pelo seu objeto, que no jogo é o
desenrolar de uma série de movimentos que no conjunto
71
agradam devido à expectativa criada de um desfecho em
que a sensação do aumento da potência do Homem seja
alimentada - “eu venço porque sou mais rápido, mais alto e
mais forte, isto é, sou mais poderoso”, diz o atleta para si ao
final da carreira, ou como pensa de maneira supersticiosa
o jogador de dados: “eu venço porque tive mais sorte do
que o meu oponente, isto é, sou mais feliz” - e na arte os
movimentos têm por objeto a projeção para fora de si do
que existe dentro de si. O escultor talha a pedra e diz “isto
é belo porque saiu de mim” - e a mulher ao se ver no
espelho dizendo “eu sou bela”? Quem apenas observa sem
nada criar ou acrescer, é igual à mulher.
34.
Da espontaneidade da arte. - A arte é tão mais
presente quanto mais é sentida a potência de vida: à
medida em que esta é mais forte, maior é o impulso
à imitação. As sociedades mais primitivas cultiva-
ram o fenômeno artístico com ainda maior intensi-
dade do que entre as modernas - não somente con-
fundindo-se com os seus cultos religiosos e
exteriorizando-se na produção de ídolos e outros ob-
jetos rituais, mas em um fazer perspassando a todas
as suas atividades - e não é de se estranhar ver nos
povos bárbaros a arte mais espontânea do que entre
nós, civilizados que de há muito perderam o pulso
da vitalidade. Nestas sociedades dotadas da inge-
nuidade de crianças guerreiras, é comum que as ar-
tes menores (decoração e artesanato) convivam ao
lado do que se costuma designar como artes maiores
ou Belas-Artes. Assim, a construção de templos e o
talhe de esculturas de deuses e heróis não parecem
72
gozar de maior importância do que a fundição artís-
tica de torques, punhais e espadas, e à moldagem de
vasos e utensílios domésticos. Perante o filólogo,
essas peças guardam todas elas um valor inestimá-
vel, independente de terem sido destinadas à glori-
ficação dos feitos heróicos de homens célebres ou ao
serviço das casas rústicas dos plebeus. Ninguém di-
ria ser menos importante para a História da Grécia
um vaso cozido na olaria de Dúris do que as colunas
do Partenon esculpidas por Fídias. Nas sociedades
primitivas ou antigas, subsiste a presença do labor
artístico nas menores coisas cotidianas. Mesmo os
utensílios domésticos mais ordinários recebem fi-
nos detalhes e urdiduras delicadas, que os fazem ser
únicos, e valiosos até os dias atuais, quando já per-
deram a sua função primitiva (guardar água ou vi-
nho, cortar carne) e são apreciados nos museus com
o mesmo sentimento com que se observa às obras-
primas da pintura renascentista e da escultura clás-
sica. Que finalidade teriam as pinturas das crateras
dos helênicos, se os vasos se destinavam apenas a
misturar a água ao vinho? No entanto, para os gre-
gos, o objeto que não tivesse um entalhe rebuscado,
ou uma caprichada decoração era visto como incom-
pleto, e até indigno de ser usado para os fins práti-
cos que levavam à sua moldagem. E essa esponta-
neidade da arte, presente nas culturas dos celtas e
germânicos, e nas civilizações dos gregos, romanos,
persas e babilônios, foi desaparecendo no Ocidente
ao longo da História, ao dar lugar a uma mentalida-
de, que reputamos equivocada, de supor uma hie-
rarquia entre a arte dos monumentos de pedra e cal
73
e a arte dos utensílios domésticos e a das peças de
uso comum. Os homens antigos desejavam sempre
viver cercados de coisas belas, de fundirem-se à be-
leza e impregnarem-se do belo em todos os momen-
tos da vida cotidiana, que lhes fazia recordar a sua
própria beleza natural, imitada nas suas obras. A
produção artística era, para eles, um prolongamen-
to mais refinado da beleza de suas próprias existên-
cias.
35.
Da arte e da técnica. - Arte significa “perfei-
ção” (em grego aretê), e a perfeição entende com o
projeto de criar uma obra acabada, para a qual nada
se pode acrescentar e nada mais pode ser mudado, e
cujo conhecimento é único e invariável em todos os
tempos. A idéia de criação de um objeto que saiu
incompleto das mãos de seu artífice e por isso que
precise ser completado conforme as luzes de cada
observador, evoca o conceito de uma técnica (em
grego teknê), porque são as técnicas que precisam de
aperfeiçoamento à medida que muda quem delas se
serve. Os gregos chamavam tecnê àquilo que costu-
mamos designar por “arte”, enquanto o aretê desig-
nava a realização, no plano intelectual, de quem
dominava todos os segredos das artes (tecnê), deten-
do a plenitude da educação grega.
36.
Distinção entre as Belas Artes e a dita “Arte Mo-
derna”. - As Belas-Artes (pintura, escultura, arqui-
tetura, música, dança e poesia) representam a ten-
74
tativa de concretização do ideal de se criar um todo
perfeito e acabado, em que o observador não sinta o
desejo de acrescentar-lhes nada. A sensação trans-
mitida pelas Belas-Artes é de um deleite e
embevecimento, seguidos pela vontade de compar-
tilhar do espetáculo com outras pessoas - o que se
quer compartilhar, todavia, não é a obra em si, mas
a sua interpretação, de que o observador se orgulha
de havê-la concebido como o artista em seu traba-
lho. - Às Belas-Artes - ou antes, ao seu programa -
damos o nome de ars-aretê pois tratam de obras que
querem atingir a perfeição. Em oposição às Belas-
Artes, há a dita “Arte-Moderna”, que assenta entre
as suas premissas básicas o suprimir as regras esté-
ticas; por isso, a esta daremos o nome de ars-tecnê
de vez que o caráter inacabado destas obras aproxi-
ma-a de uma técnica em contínua mutação.
37.
Crítica das Belas-Artes. - A essência das Belas-
Artes é a da ars-aretê, a perfeição da obra criada.
Diz-se que a ars-aretê é perfeita porque nada de novo
lhe pode ser acrescentado pelos seus observadores.
Uma vez que tenha Apeles retocado as sandálias, o
sapateiro não encontra mais o que corrigir no retra-
to, ou seja, ninguém tem condições de refazer o sor-
riso da “Gioconda”, mudar as feições do “Davi” ou
o toucado da “Vênus dos Médicis”. A ars-aretê não
muda nunca, embora variem os seus observadores,
e a beleza que ela transmite, mimésis da humanida-
de, é sentida por todos objetivamente, como se fi-
zesse parte do mundo real - com a perenidade e fixi-
O Interesse como Princípio das Tendências Humanas
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  • 2. 2
  • 3. 3 PRÓLOGO. 1. Pera instruçaõ de todalas gentes em os princípios de hûa noua philosophia, esta obra decidimos compoer, que sirva assi de fanal e lucerna dos passos daqueles que perambulam sob os luzeiros do dia e da noite, a qual a modo de Ouroboros figura o dragão morden- do a própria cauda; ora, nós mesmos somos como um dragão, tornado de seu renascimento alquímico, e que ao despertar viu estarem os sistemas filosófi- cos erigidos sobre lama, detritos e toda espécie de terreno instável; a erosão fatalmente derrubará es- ses pomposos edifícios metafísicos na primeira en- chente, deixando sem suas casas os homens que as edificaram. 2. Nós mesmos permanecemos deitados no leito mais enfermiço por dez fastidiosos anos, de onde só nos levantávamos para suscitar estrépito no foro impetrando aos magistrados que tenham o corpo dos acusados - os romanos souberam conferir for- malidades sacramentais até mesmo quando cami- nham na praça pública, e disto não conseguiram libertar-se nunca mais -; então nos contentava o alimento que nos serviam as nossas mascotes, sa- tisfeitos de ver nosso orgulho pairar no céu com a
  • 4. 4 nossa sagacidade enrolada em seu gasnete, embora claudicássemos como Cláudio e tivéssemos um grão de bico no nariz como o de Cícero. 3. Além da águia (o orgulho) e da serpente (a sa- gacidade), um terceiro animal crescia em nossa ca- verna, oculto de dia e mais secreto à noite, como a teia de Penélope; não era indesejável, mas insuspeitado. Que portentosa besta se nos deparou um dia, pois até mesmo a águia e a serpente tive- ram medo dela, fugindo esbaforidas. Este filhote de dragão era o nosso mais profundo pensamento; voa- va com suas asas quirodáctilas mais alto do que a águia, embora seu corpo de aspecto réptil soubesse rastejar tão bem quanto a serpente, sem ser frio como ela; e de fato, nem o orgulho mais orgulhoso, nem a sagacidade mais sagaz podem muito com ele. 4. Doravante, nosso alimento passou a ser os ovos do dragão, que crescia e aumentava, expelia fogo, fumaça e fuligem. O produto deste regime tão in- tensivo se deixa entrever nas colunas de fumo que sobem do sacrifício desta primícia do nosso reba- nho. Um episódio deve ser ainda narrado ao leitor que suscite objeções: quando terminávamos a pri- meira versão deste livro, um sonho tivemos, em que sob um letreiro com o título dado à obra, estava uma face de demônio; mas não era um demônio de feições hediondas quais nos descrevem as velhas beatas ao fazerem suas estórias (embora ostentasse
  • 5. 5 a fronte cornífera, como qualquer demônio); o de- mônio que vimos tinha o rosto loução e empoado, com as maçãs vermelhas (decerto as que ofertou ao beijo de nossa mãe Eva) e um rictus desdenhoso nos lábios. Outro antes de nós chamou a um de seus bons livros demônio que ri; será este Ouroboros um “demônio que desdenha”? Decerto que seu despre- zo cortês se deve a ter ainda muita virtude romana, e a exemplo de Trimalquião, não saber dançar, apesar de que este Prólogo composto em lugar do primígeno ensaie timidamente uma coreografia. 5. Não pretendemos nem mesmo abjurar, rom- pendo todos os liames com certas crenças que nos deram os ares da cultura (ora, que temos nós que firmar apostasias? Para declarar em nosso esforço de oposição que a antiga fé ainda nos acompanha?), e temos prazer em lembrar o gosto insípido das igua- rias que nos davam, dizendo tratar-se de panis angelicus, semelhante aos manjares que nos deleita- vam há muito tempo, mas que provados de novo na época presente já não trazem o mesmo sabor; decer- to que nosso concílio é agora entre os goliardos, e muito nos agrada esta vida nômade das estradas, levando a música, a tragédia e a filosofia de cidade em cidade. 6. Um senão contudo; não traz a nossa avena um repertório amplo para uma tão grande empreitada - é o problema de todos os jovens que inauguram uma
  • 6. 6 obra esperançosa, mas ainda longe de seu total de- senvolvimento - porém repletos de contentamento saibamos a quem render o preito por mais esta de nossas mudanças de estado; e porque no gosto do filosofar, onde se alcança o senhorio não só dos par- ticulares negócios, mas também o da própria pes- soa, foi que descobrimos estes fragmentos, é naque- le mesmo regalo de ter-se a sapiência, que outros tantos se poderão achar. Se nas peças do ourives, comum é ver-se cada novo possuidor acrescentando gemas e engastes aos antigos, de igual feição é que nos tratados dos pensadores se aponham corolários de que primeiro se não cogitaram, porém ocorrem aos que lhes vêm de estudar o que deixaram aque- les, assi leixamos esta aos que nela tiverem agrado e, mais do que simples ledores e repetidores, quei- ram aumentá-la e comentá-la. Flumínia, Primavera do Ano 123 da Transvaloração1 . __________ 1. Iniciado em 30 de setembro de 2010, pelo falso calendário.
  • 7. 7 LIVRO PRIMEIRO. Da Natureza e Tendências Humanas.
  • 8. 8
  • 9. 9 1. Do interesse como princípio de todas as tendências humanas. - I. O interesse no ser humano é de potencialidade de suprir as suas indigências, físicas ou morais. II. As indigências do ser humano correspondem em igual medida à potência para superá-las. III. Se o homem não tivesse insuficiências, ou não pudesse superá-las, ou evitar reincidir-lhas, não teria interesse em nada. Seria um deus ou matéria inerte. IV. Não há desejo, vontade, emoção, paixão ou liberdade em que o interesse não esteja no princípio e não se coloque a sua satisfação como fim. V. O interesse é o fim último visado pelas ações humanas; entretanto, o interesse não possui outra finalidade fora de si mesmo. VI. Pode-se indagar para quê diante de uma ou outra ação tomada isoladamente, na medida em que concorra ou não para o interesse; mas não se per- gunta para quê em face do próprio interesse. VII. Do interesse nascem o desejo e a vontade. VIII. O desejo é um interesse passivo, que só existe in subjectum e não se exterioriza em atos; ele pode ser dirigido a um objeto determinado ou indeterminado. IX. A vontade é o interesse ativo, que o sujeito torna manifesto com suas ações e seu objeto é sem- pre determinado.
  • 10. 10 X. A existência do interesse em alguma coisa pressupõe a sua indigência no momento presente ou a necessidade de sua manutenção, pois não pode haver interesse em conseguir o que já se tem ou em manter o que não se pode perder. XI. Se não possui ou precisa manter a posse de alguma coisa, isto significa que o sujeito se en- contra em um estado de perfeição menor, e aspira alcançar um estado de perfeição maior, na direção do qual se movimenta a sua vontade. XII. Toda vontade nasce como reação após o reconhecimento de que se está em um grau de infe- rioridade, que é incômodo e contrário ao interesse, e por satisfazê-lo, esforça-se para atingir um grau de superioridade. ESCÓLIO. Isto se verifica até mesmo em reflexos de nos- sos corpos, por exemplo, quando permanecemos imóveis por muito tempo, ainda que instalados con- fortavelmente; a inação termina por provocar dor, e obriga a um movimento direcionado a outra posi- ção. XIII. Ninguém possui nada em grau absoluto, nem pode ter certeza absoluta de que irá manter o pouco que tem; por isso o interesse não conhece re- pouso. XIV. O que atinge o objeto do seu interesse logo torna a divisá-lo mais além em grau maior do que o agora possuído, o que o leva a recomeçar a sua procura. XV. O interesse é sempre irresistível, mesmo nos
  • 11. 11 casos em que parece quedar sacrificado em proveito do interesse alheio ou coletivo, como quando se en- cara a todos os prejuízos sem temer a nenhum mal, nem mesmo ao da morte prematura, para desagra- var a pátria no campo de batalha, ou socorrer a um sócio querido, ou até a um desconhecido. ESCÓLIO. Em tais situações, é ainda o interesse que fala, só que para atender a uma escala de valores de conotação mais sutil, como a Honra, o sentimento do dever, e o Amor - estes afetos, porém, só adqui- rem valia quando se se considera como sendo para o bem do interesse o ser honrado pelo seu heroísmo, ou louvado pelo cumprimento do dever, ou ainda quando se ama a vida de outrem a ponto de crer que ela valha o risco do sacrifício da própria existência. - XVI. O interesse não se confunde com o egoís- mo, e o egoísmo não é a mesma coisa que inveja ou cobiça. XVII. O egoísmo é dirigido a gozar do objeto do interesse, adotando-se uma valoração em que o próprio gozo adquire prevalência sobre o de outras pessoas, às quais é indiferente. XVIII. A cobiça e a inveja são formas destem- peradas do egoísmo, pois aspira a primeira obter para si o que pertence a outrem, e a segunda visa destruir aquilo que os outros conquistaram. 2. Do prazer e da dor. - O prazer e a dor são os nomes pelos quais se chamam os elementos mais
  • 12. 12 simples do dinamismo sensível (Régis Jolivet, Curso de Filosofia, n.º 124), em regra percebidos pelos ór- gãos dos sentidos em decorrência de um estímulo interpretado como satisfação ou frustração de um interesse. O que faz o prazer ser prazer é o reconhe- cimento de que o interesse vem de ser satisfeito, e do mesmo modo, a dor é dor quando se conhece que o interesse foi deprimido. Estes átomos de sensações opostos na aparência, no entanto, deixam de apre- sentar uma autêntica contradição, para confundi- rem-se como sensação única, quando em periódicas ilações entre estímulos que ao mesmo tempo ser- vem e rebelam-se contra o interesse, o ente obtém dor no prazer, e prazer na dor, provadas na mesma confluência em que se tocam a vida e a morte, criar e destruir, opostos, não contrários, por vezes com- plementares. Os pólos Norte e Sul fazem parte da mesma esfera, que nem por isso queda aniquilada no haver oposição entre seus extremos. 3. Do interesse no prazer e na dor. - O interesse da dor é de compelir o animal sensível (racional ou não) ao movimento, quer afastando-o daquilo que lhe possa fazer mal (retirar a mão do fogo, puxar fora os aguilhões da carne), quer aproximando-o do que es- pera seja-lhe benéfico (saltar n’água, subir em uma árvore) - a dor tem a sua utilidade, em maior medi- da do que o prazer - enquanto o prazer atua mais como promessa e dissimulação do que como recom- pensa verdadeira e efetiva. Questionar a dor, ou pior, ignorá-la, é deixar-se à mercê dos agentes do pró-
  • 13. 13 prio exício, tornar-se inativo, lerdo, entorpecido, paralítico; logo, onde há dor, há uma voz chamando a sair da inação. Resistir à dor, como o fizeram os estóicos e os mártires, é um expediente sem sentido ou propósito, pois, como a dor é um estímulo tão enérgico, é impossível ignorá-la sem que se recorra a uma profunda meditação em um objeto fixo, des- prendendo as percepções da consciência de todo seu exterior, como faz o soldado, que não se aperceben- do dos golpes sofridos, no ardor da batalha, tam- bém fica insensível a tudo quanto não se refira à peleja, ou o monge asceta que caminha sobre tape- tes de brasas, e tortura o corpo com infindas morti- ficações; não raro, tais homens ficam inúteis para quaisquer atividades que não pertençam ao seu pe- queno mundo de contemplação. O prazer, de ma- neira diversa à da dor, conduz o vivente, atraindo-o para o objeto de seu desejo. Arriscando uma compa- ração, o prazer é semelhante a um cavalo que pu- xasse o carro, levando-o aonde precisa ir, e a dor seria outro, que empurrasse pela retaguarda, afas- tando o carro de afundar no atoleiro; e como se gas- ta menos esforço, com maior eficiência, empurran- do que puxando, o Homem costuma ser guiado mais pela dor que pelo prazer, desde a tenra infância, até a maturidade viril, quando as vicissitudes postas diante do caminho levam a um destino mais longín- quo ao qual não se chegaria, se fosse a estrada co- berta de flores. As caravanas estacam nos oásis, mas é o tórrido simum soprando do norte para o sul do Sahara o que as faz andar depressa. A própria cons- tituição física do ser humano parece colaborar para
  • 14. 14 esse estado de coisas, fazendo seu corpo mais sensí- vel à dor que ao prazer; e se isto acontece porque o Homem é cercado por mais perigos e ameaças que delícias e belezas, não deverá ser imputado como glória à “Providência” ou à “Natureza”, como se apressaria em afirmar o ingênuo, nem como pesar ao ser humano, que no sentir do superficial veria aí refletido o tamanho de suas misérias, mas antes, como nós o fazemos, para que se saiba quão grandes as suas possibilidades e quão distante pode seguir no seu caminho quando fustigado por esse látego. 4. Da medida do prazer e da dor. - Momentos exis- tem em que a dor parece vir acompanhada de um bem, como em uma cirurgia em que malgrado o so- frimento do paciente no instante do ato operatório, em breve há-de recuperar e salvar a sua vida pelo mesmo procedimento cirúrgico. Não é, na verdade, uma dor benéfica que se encontra na mesa do cirur- gião; se for o paciente entorpecido com ópio ou vitríolo, ele não sentirá nenhuma dor, e será igual- mente curado; disto se infere que o benefício da ci- rurgia, ou qualquer ato equivalente é diverso da sen- sação dolorosa, em sua essência, embora se faça acompanhar por ela usualmente. O que acontece, na realidade, é que em tais casos, a dor existe como um mal particular, de ação restrita à zona em que se pra- tica a operação; no local dolorido, passa-se um mal verdadeiro, mas, para o resto do corpo, todavia, exis- te um bem, de maneira geral, que é o restabelecimento da saúde. Esse bem é maior que o sofrimento, e por
  • 15. 15 isso, deve prevalecer sobre a doença e os gritos do paciente. Pode ainda acontecer que um gozo se faça acompanhar de um grande mal; em ambas as situa- ções, a sensação prazerosa ou dolorosa é sempre iso- lada em relação ao que sucede ao restante do orga- nismo; ela é um bem quando produz prazer, e um mal, se causa dor, independentemente do mal ou do bem que, maiores e gerais, dela possam advir ou secundar. Sendo o prazer o estado oposto à dor, en- tende-se que ele deve ser buscado com a mesma in- tensidade com que fugimos dela; o verdadeiro con- trário, porém, tanto de um quanto de outro estado, é o alívio, ou nada de sensação. Embora reconheça- mos que passar da dor para o alívio da dor, é um prazer, como ensinava Epicuro2 , e que do prazer, passar ao alívio do prazer, é uma privação, o deleite, mesmo sendo efeito de um bem, atordoa a mente de igual maneira e intensidade que o sofrimento; en- tregar-se a uma fruição de gozos sem fim e sem des- canso também arrebataria a consciência da percep- ção normal do exterior, embotando as faculdades mentais; portanto, assim como o alívio serve como remédio para a dor, é necessário que existam ocasi- ões em que seja utilizado como limite ao prazer, sem- pre que a mente perigar de ser dominada pelos delí- rios das volúpias. Não desejamos firmar a felicidade __________ 2. A imediata desaparição de uma grande dor é o que pruduz insuportavel alegria; isto é a essência do bem, se o entender- mos direito, e depois nos mantermos firmes e não giramos em vão falando do bem. Epicuro, Ética, Fragmento n0 5
  • 16. 16 humana no alívio da dor, como quis Epicuro, mas antes, seguindo um modelo para a moderação, con- siderado o melhor pelo Estagirita, e pelos seus dis- cípulos que formaram, por assim dizer, a nossa es- cola-mãe, decidimos por um meio-termo entre o epicurismo e o estoicismo, situando o ser humano no centro de um campo de batalha onde se desenro- lam duas grandes lutas: a luta contra a dor, e a luta pela obtenção do prazer. Estas lutas conduzem a uma satisfação acessível, bem entendido, aos seres humanos dentro de suas limitações. A satisfação so- nhada pela Academia de Platão como ideal, que so- mente pode assistir a quem, porventura, existisse sem cuidados, e não precisasse fugir do sofrimento, não apenas é inalcançável aos humanos, como tam- bém é imponderável e incompreensível ao saber do mais atilado filósofo, porquanto inexistindo quem a tivesse gozado, impossível é compreender uma ex- periência dessas, que não passa pelos sentidos. A satisfação que procura ter o homem mortal, portan- to, ansiando pela aniquilação do sofrimento - por ver nisso em si só um prazer, e no alívio dos praze- res uma dor -, e na fruição das mais diversas volúpias da mente e dos sentidos onde julga residir a sua felicidade, é, contudo, mera realização do dinamis- mo sensível. A atividade humana é determinada pelo que se deseja e pelo que se repulsa, mas isto apenas significa qual a direção tomada pelos afetos perante os diversos estímulos que o ser toma conhecimento no decorrer de sua existência. A felicidade constitui um fim diverso do gozo da experiência sensível, que é somente um caminho para o conhecimento do
  • 17. 17 mundo; a este respeito, porém, cremos ter dito o necessário, deixando para tratar da felicidade mais adiante. 5. Das espécies de prazeres. - Para cada interesse satisfeito corresponde um prazer, e para cada inte- resse insatisfeito, uma dor; portanto, é aceitável que se entendam o prazer e a dor como atributos do in- teresse, como as cores o são dos objetos visíveis, os quais não são enxergados em si mesmos, porém no espectro emanado por seus reflexos e, da mesma for- ma, o interesse se não percebe por si só, mas nas sensações prazerosas ou dolorosas que o acompa- nham. Isto posto, supomos que, como devemos pro- curar o prazer e fugir de todo sofrimento, somente é apropriado o desejo que aponte na direção de um interesse satisfeito. Assim julgamos, a princípio, conforme nosso bom-senso; contudo, nem sempre é possível (e muito menos seguro) comportar-se dessa maneira. Antes que os homens conheçam o prazer e a dor, eles tiveram que existir; logo, a felicidade e a desgraça são indiferentes para o surgimento da vida, a qual depende apenas da potencialidade de satisfa- zer ao interesse. Existem dores que são vinculadas ao interesse; de igual modo, prazeres há, cuja fruição acarreta prejuízos à saúde e terminam por ser dano- sos ao interesse em maior grau; portanto, acredita- se que se deveria fugir destes prazeres danosos como se deve procurar as dores benignas. Parece ser as- sim, pois da mesma forma que não se pode evitar uma dor benigna por muito tempo (ainda que a não
  • 18. 18 suporte no começo, aceita-la-á mais cedo ou mais tarde, quando os repetidos adiamentos ameaçarem a vida), também não há como se gozar de um prazer por toda a existência (quando seus excessos estive- rem por comprometer irremediavelmente a saúde, é inevitável fugir dele). Semelhante lógica não é apli- cável, no entanto, quando o sofrimento benigno há de ser maior que o benefício, e destarte, não será possível obrigar-se a quem quer que seja a subme- ter-se à dor, como não se vitupera a quem ceda a um prazer danoso maior que o agravo. Um prazer não é ilegítimo, ou seja, impróprio para a mente humana, quando se acompanha ou precede de alguma dor, mas sim, se para obtê-lo, aumenta as nossas indi- gências, debilitando-nos. Ser companheiro de dores não amaldiçoa um prazer, pois o prudente, malgrado os percalços, suporta a tudo para gozar no fim do sucesso de seus planos, observando como Sócrates ao ser liberto das correntes, que por vezes, quando se puxa um prazer, vem junto uma dor, e ao puxar uma dor, vem um prazer. Desta espécie particular de prazeres vinculados à dor são as modernas delíci- as artificiais que fatalmente arruínam a saúde e a economia, mas que são ainda assim procuradas pe- los que as gozam acreditando poder suportar tais dores. A procura destes últimos prazeres de que fa- lamos contraria à natureza humana, que protesta silenciosamente na decadência corporal dos seus adic- tos: a cada vez que se se desfruta destes prazeres, mais é fortalecida a disposição de os buscar, ao mes- mo tempo em que a potêncialidade para suprir as indigências é diminuída. Ora, é legítima a procura
  • 19. 19 de gozos que acarretem algum dano, desde que este não seja maior do que o benefício de desfrutá-lo, contudo, um prazer danoso somente é admissível quando não leva ao sacrifício do interesse em maior grau. A tendência que acompanha esses prazeres ar- tificiais é de sempre querer gozá-los em mor quanti- dade, aumentando, assim, as indigências do Homem. O prazer ideal é aquele de que se não cansa, porque corresponde ao contínuo superar das indigências, e nunca o que propende ao padecimento de necessi- dades cada vez mais intensas, e em que a própria sensação se transforma num instrumento para ex- pandir essas vicissitudes. Uma atividade sempre entremeada de dor é contrária à satisfação do inte- resse, que se compõe da busca do prazer e da luta contra a dor; os prazeres podem conter alguma dor, desde que esta seja logo superada; a permanência da sensação dolorosa durante as volúpias forma uma satisfação, digamos, manca, pois nela falta a meta- de de combate ao sofrimento. 6. Do lutar e do fugir. - Em face de qualquer peri- go, duas reações apenas são viáveis: lutar ou fugir. Prefere-se a luta quando o perigo é igual às forças próprias, e a fuga, quando ele as sobrepuja de modo que o enfrentamento culminaria com a destruição do mais fraco. Os irracionais, sem enfrentar as flutuações da alma, são, no entanto, assistidos por um instinto em seus combates corporais, que os permite avaliar exatamente as forças do opositor, jamais os levando a cometer o ato covarde de fugir
  • 20. 20 do inimigo mais fraco, ou incitando à temeridade de afrontar contrários mais poderosos. Os seres hu- manos, por seu turno, prescindem de combates pelo alimento ou posse das fêmeas; suas lutas são de ou- tra natureza; a dor, a decepção, as injustiças, as do- enças, os desastres e a morte são seus inimigos, como o leão é o da gazela, e o confrontamento se dá não nas selvas ou savanas, mas numa arena situada no âmago da mente de cada um de nós. Nessa arena, prevalece o ensejo de lutar na coragem perante o inevitável, e no desejo ardente de reconstruir e reco- meçar do ponto em que tudo se perdeu, e a fuga, nos atos covardes de negação. Por negação entende- remos a conduta bizarra dos que, vergados pelo so- frimento, como resposta à dor, em lugar de mitigá- lo com os devidos remédios, conforme a natureza do infortúnio, procuram negar-lhe a verdadeira dimen- são e realidade, acalentando resignação falsa e louca na crença supersticiosa de que os males serão remo- vidos de per si, ou pela ação de algum poder sobre- natural e imponderável. É uma forma de reagir à dor, enfim, mas não é válida porque se consiste no emprego de meios não-naturais ou sobrenaturais para combater o sofrimento causado por meios na- turais; alimenta-se de esperanças vãs, as quais, após dissipadas, maior frustração e desalento trazem ao estulto que se inebria nas seduções ilusórias de ig- norar os males. Outro escape supersticioso é o que empreende pela bondade; o pensamento comum é o de que o bondoso não merece sofrer infortúnios, e por isso tem direito a ser protegido; os homens vir- tuosos trazem a sua bondade como quem porta
  • 21. 21 amuletos, esperando que detenha eficácia para atra- ir a salvação. A idéia supersticiosa, ao encerrar a pretensão de controle sobre o Destino e sobre uma realidade fora do alcance do poder humano, rói a consciência como um verme, indagando pelo que se possa fazer para afastar os perigos, e sua resposta é de que cultivar a virtude é a forma de obter a alme- jada proteção dos homens e dos deuses. 7. Das paixões. - As paixões formam a bússola dos apetites e tendências do ser humano. Se for do pra- zer e da dor que ele tira seus primeiros juízos racio- nais, é quando o conhecimento dessas sensações se especializa que o seu pensamento se desenvolve, tan- to quanto se possa afirmar com segurança que a in- teligência é na mesma proporção do desejo de co- nhecimento. É verdade que o prazer e a dor pertur- bam igualmente a consciência, de modo que vemos no alívio o contrário de um e outro; entretanto, o alívio também é um estado de apatia, no qual é im- possível criar idéias originais ou formular decisões em um estado de alívio absoluto. A criatividade e o gênio se desdobram apenas onde existe um gozo ou um sofrimento a dar-lhes corpo e sentido. 8. Da formação da personalidade. - Fisiologicamen- te são formados os caracteres das diversas seções dos organismos vivos; nada há, portanto, que se oponha a supor que a personalidade seja formada de igual modo que os olhos e cabelos num indivíduo, em
  • 22. 22 acórdão às regras de um jogo de infinitas combina- ções de características diferentes, arbitrado pelo aca- so. Deveras, a observação tem mostrado que, freqüentemente, os filhos não herdam a personalida- de de seus pais como a cor da pele ou o formato do crânio; os atributos físicos repetem-se nas gerações mais flagrantemente que os do caráter, donde se infe- re que as normas para sua formação devem ser muito mais sutis e flexíveis que as do corpo. Muito maior é o número dos filhos degenerados que o dos bastardos e, sem que se cogite de falar em degeneração, bastam como exemplo as dissonâncias flagrantes no caráter dos diversos membros de uma família, que, sem se- rem avessos uns aos outros, são diferentes em gostos e vocações como se fossem estranhos entre si. Não se acuse o meio, a sociedade, de formar a personalidade dos homens; erro grosseiro é dizer que “o Homem é produto do meio”, pois, aí se toma o efeito pela cau- sa; a sociedade é que é um produto dos homens, que são as suas porções elementares; afinal, é concebível que exista um homem sem uma sociedade à sua vol- ta, porém, uma sociedade sem homens é igual à idéia de uma construção que não use tijolos, ou de um cardume que não tenha peixes; ademais, no seio de qualquer sociedade existem os desajustados, que não teriam de onde tirar o seu desajuste se toda a perso- nalidade humana fosse criada pela influência dos outros homens. Em suma: num todo social não po- deria haver heterogeneidade de suas partes. Não estamos, naturalmente, afirmando que “toda” a per- sonalidade humana é ou não produto do meio; esta é uma generalização que não reproduz com fidelidade
  • 23. 23 a teoria que se pretende refutar; cada sociedade é distinguida por tipos bem característicos, quais os da “pontualidade britânica”, ou da “bazófia dos por- tugueses”, mas, como dissemos, são apenas tipos; o argumento mais forte, a nosso ver, é a facilidade com que se pode imitar os hábitos de culturas diferentes da própria, desde que firmemente desejado; os nasci- dos nas Américas que vão viver na Europa terminam por repudiar todas as qualidades que os distinguem por sua terra de origem, para passar por reinóis, e se retornam ao torrão natal, sequer mais os reconhecem os seus como compatriotas. Essa capacidade, mais comum nas crianças dos imigrantes (que não preci- sam desaprender uma cultura para assimilar outra), mostra o quanto o meio e a educação podem ser ven- cidos por uma vontade férrea, e determinada para um objetivo certo. O Homem é um produto dele mesmo, engendrado por si a cada dia vivido, comple- tando sua obra apenas quando enfim morre. Nem ao menos seria preciso aventar na influência da socieda- de, porque a influência de um lar tem muito mais força sobre os homens, desde a infância, do que qual- quer meio exterior onde vivessem depois de adultos, o que, linhas acima, demonstramos não acontecer. A formação da personalidade, e o modo como ela pode mudar, depende de uma predisposição do indivíduo, que determina o método pelo qual se guiarão suas tendências, conforme ele goste ou desgoste de cada coisa que se lhe passe pelo juízo. Seguindo os senti- mentos, os desejos pessoais, a preferência pelo que se considera prazer, é que se constroem a todas as pecu- liaridades do caráter humano, de modo que é impos-
  • 24. 24 sível ter não somente “livre-arbítrio”, como também, personalidade, sem paixões. Sempre é pelas paixões que se dão os transes do caráter, que pode mudar, mas não as paixões, pois é para continuar a regalá- las que ele se altera. Entendemos que o objeto das paixões pode mudar constantemente, porém, qual- quer que seja o seu novo alvo, elas são sentidas da mesma maneira e intensidade. A mudança do cará- ter é possível tão-somente quando se se apercebe de que uma determinada tendência impedia de se al- cançar o objeto do interesse. Quando um homem sente que as suas convicções, ações, estilo de vida, o afasta- vam do seu desejo eleito como fim maior, ele termina por sofrer uma inversão de valores, queimando o que adorava e adorando o que queimava. Caso se aperce- ba de que o próprio objeto de interesse era vazio de sentido, o escopo que era visto como “fim maior” é abandonado ou perdido de vista, e daí se pode resva- lar para as seguintes posições: primo, perde-se qual- quer noção de valores, não se tendo nada para adorar ou queimar; ou secundo, encontra-se uma outra esca- la de valores, com novos objetos de interesses, quan- do então se passa a adorar o que não se adorava e a queimar o que não se queimava. É a este último esta- do ao qual pretendemos atingir enquanto aprende- mos os fundamentos de nossa nova Filosofia. 9. Da natureza única do Homem. - Alguns, vendo a natureza corpórea dos homens, patente à observação geral, confundem-na, tentando reputar-lhe coexistên- cia com uma segunda natureza, espiritual, deduzida
  • 25. 25 da primeira, julgando assim que seria viável que o ser humano pudesse existir sendo formado por maté- ria e espírito, ou seja, duas substâncias contrárias! Pois se a alma é imaterial, é o contrário do corpo, que é material e, portanto, semelhante natureza não dei- xaria de sofrer a pronta dissolução ao tentar unir-se dessa maneira. Um segundo grupo divisa na nature- za humana somente o lado animal ou material e, jul- gando-a idêntica à dos brutos, proclama que ao Ho- mem basta uma vida centrada na satisfação de suas necessidades fisiológicas básicas para ser feliz. Para estes, serve a censura de Heráclito, de que se a felici- dade estivesse puramente nos gozos materiais, os bois seri- am felizes quando encontrassem água fresca e pasto verdejante, pois se os brutos conseguem ver-se con- tentados com essas coisas, não o poderá o Homem, que sendo mais completo, necessita de prazeres mais elevados. Outros há que, errando no extremo oposto, observam no Homem só a natureza espiritual, con- cluindo que ele não tem necessidade do que é materi- al, devendo ocupar-se tão-somente com as coisas de ordem espiritual. Sócrates dizia que todos nós deve- mos ter sérias preocupações com a eternidade, por- que estamos fadados a nela passar todo o nosso futu- ro; todavia, os que negam à carne o direito de saciar- se das necessidades que ela reclama, sofrem terribilmente por não receberem os prazeres de que ela sente falta. No Homem não existe nem uma só natureza animal, nem uma só espiritual, tampouco uma natureza mista, que reunisse a improvável harmonização de dois contrários, pois nenhum ser pode abrigar duas substâncias, ou duas tendências
  • 26. 26 contrárias no seu íntimo; os atributos que formam o Homem não se mostram tão simples como os dos irracionais, nem tão complexos, quais os dos anjos, mas, sem serem híbridos, estão como um meio termo entre eles, de uma ordem intelectual que padece to- das as vicissitudes da matéria, e que por ser capaz de inteligir as abstrações, tem na contemplação do bom e do belo e no pensamento criativo uma fonte inesgo- tável de prazer, junto com aqueles de ordem menos elevada que se desfrutam somente com os sentidos físicos. Embora de ordem diferente, aqueles primei- ros prazeres são da mesma substância dos segundos, mais grosseiros, e empolgam o dinamismo com a mes- ma intensidade. 10. Das aptidões e habilidades. - Nenhum ato hu- mano construtivo pode ser considerado impróprio, quer a produção do poeta, quer a do oleiro. Todas as habilidades humanas são planejadas pelo cérebro, e executadas pelas mãos igualmente; portanto, a me- dida do seu valor se dará pelo grau de complexidade que exijam para seu completo desempenho, inclusi- ve nas pequenas atividades, como a de cozinhar os ingredientes que servem para repasto, em que o Homem demonstra o seu gênio, tão bem como quan- do escreve uma epopéia em vinte e quatro cantos. A natureza humana é uniforme, o que quer dizer que ela, de maneira alguma, permitiria que uma de suas criaturas fosse ingenitamente desproporcionada em seus atributos com relação às suas necessidades, ou com a disposição íntima de seus órgãos; as gerações em desrespeito às suas Leis são acidentais, como em
  • 27. 27 um monstro ou qualquer outro aleijão. Veja-se a ra- zão admiravelmente proporcional entre a inteligên- cia dos seres vivos e a constituição de seus mem- bros: jamais se viu animal que tivesse o intelecto em disparidade com as aptidões de seus órgãos, er- gas pelos casos anômalos de retardamento mental ou de sublime genialidade, de sorte que cuidamos ser uma regra aplicável a toda a História Natural a de que a especialização dos membros dos animais reflete a sua inteligência, embora uma não cause ou determine a outra. Um cavalo, por exemplo, tem inteligência para receber o jugo, puxar as cangas sob o estímulo do chicote ou das esporas, contudo, o seu reduzido cérebro não abriga a capacidade para segurar as rédeas que o conduzem, por isso deu-lhe a Natureza cascos sem dedos. Mesmo as habilida- des do macaco, o qual, com inteligência superior à de muitos cavalos, consegue segurar objetos com força (inclusive os arreios de uma parelha) e fazer uso de instrumentos grosseiros, não lhe bastam para torná-lo semelhante ao Homem, por isso que a Na- tureza não lhe dotou com o polegar em oposição aos demais dedos, que ao Homem permite tanto bran- dir pesada lança quanto agarrar mansamente uma agulha, passando um tênue fio de seda pelo seu fun- do, ou simplesmente juntar-se ao outro polegar, para unir as duas mãos, que parecem, abrindo-se os de- dos, com uma coroa de louros digna de seu porta- dor. É a capacidade de poder realizar delicados tra- balhos manuais que afirma o elevado alcance do gê- nio humano, que jamais deveria pejar-se de seme- lhantes labores, como se envergonhou em ver
  • 28. 28 Sardanapalo fiando com suas mulheres o oficial que o trespassou; tais atitudes aparentemente simples, quais alinhavar pontos sucessivos a um corte de fa- zenda, mas que nenhum outro animal pode imitar, são as que elevam aos píncaros da glória a espantosa prodigiosidade do ser humano. 11. Da igualdade. - Quando se começa a falar em “igualdade”, raramente o discurso consegue deixar de ser encadeado até que a própria palavra “igualdade” perca todo o sentido. A “igualdade de direito” dos homens é seguida pela das mulheres, visando, no entanto, chegar às nações grandes e pequenas. - onde a “igualdade” prega que o desigual se iguale, logo o superior se nivela ao inferior, o que é de se lamentar. Detendo-nos apenas sobre a pretensa igualdade entre os homens, vemos que ela só é possível quando estes atingem um peculiar estágio da décadence, em que não mais distinguem aquilo que os faz ser homens do que identifica a sua própria negação e declínio; o animal saudável não concebe que outrem possa lhe ser “igual”, mesmo quando se mira na superfície de um rio; o cão ladra diante de sua imagem no espelho, supondo ser outro que se aproxima dizendo que é tão bom quanto ele, o que fere mais os brios do que encontrar outro cão rondando o seu território. Narciso descobre alguém que é seu “igual”, mas esse “alguém” é ele mesmo, por quem se apaixona; se Narciso soubesse que ama a si próprio, desprezaria a imagem refletida na água com um desprezo superior, mas Narciso é um
  • 29. 29 décadent, e prefere cultuar o seu “igual” até que se afogue nos seus braços. Nas Matemáticas, dois números nunca têm um mesmo sucessivo - o pensamento igualitário quer que todos os números sejam sucessivos de zero -, por isso que cada número é igual apenas a ele mesmo: “Eu sou meu próprio igual”, eis a fórmula para se alcançar a “igualdade de direito” consigo. 12. Das culturas. - Da mesma forma como vimos no aforismo em relação às aptidões humanas ao tra- balho manual, também o aparecimento das cultu- ras é propriedade característica dos seres que já pos- suem a habilidade para o emprego de instrumentos, agora aperfeiçoada até o ponto de sobrepor-se aos instintos animais, primeiro, apenas resistindo-lhes, e por fim, opondo-se a eles. As culturas são o exercí- cio da faculdade criadora do Homem, adestrada nas suas mais variadas formas. As múltiplas culturas espalhadas sobre o mundo em todas as épocas pro- vam eloqüentemente a originalidade do Homem: comparado a um rouxinol, por exemplo, que é ani- mal dividido em inúmeras famílias espalhadas pelo globo terrestre e com grande diferença genética de indivíduo para indivíduo e de grupo para grupo, faz sempre o seu ninho conforme idênticas regras em qualquer parte do mundo e através dos tempos sem criar nenhuma adaptação nova, o ser humano, que é um animal de espécie única, com uma diferença genética mínima, mesmo entre os membros de suas
  • 30. 30 diversas raças e etnias, houvera de ser o vivente menos criativo das espécies conhecidas. Sendo tão semelhantes os indivíduos de sua espécie ao redor do orbe, era de esperar-se que o Homem somente conhecesse uma única forma de construir casas, pre- parar utensílios, e conviver com os seus iguais; ao contrário da filomela, porém, sua razão superior o leva a desenvolver um costume diferente para cada parte do globo em que habite. É a capacidade de manipular ferramentas, a cada vez aperfeiçoando as técnicas do seu uso, que permitiu o surto das dife- rentes culturas pelo orbe, até chegarem a tornarem- se civilizações. O rompimento com a cultura em que se foi educado desguarnece os homens diante de seus próprios instintos, já não mais contidos pelas suas antigas tradições, tornando-o presa fácil de sua animalidade sem que haja a contraparte da modera- ção do intelecto. Essa perda é menos sentida quan- do se se assimila uma outra cultura, hegemônica, no lugar da cultura regional abandonada, embora culmine com a decadência de toda a civilização, ni- velada em uma expressão cultural única. 13. Das três atividades. - Se o Homem se dedicasse exclusivamente a satisfazer suas necessidades, não diferiria muito de um autômato, e sua espécie seria igual à da formiga, cuja atividade é integralmente consumida no lavor da manutenção da colônia, e cujo trabalho tem por fim manter o funcionamento de um sistema que por sua vez se presta apenas a gerar mais indivíduos - não é, pois, sem motivo,
  • 31. 31 que não têm preguiça de pisar nas formigas todos quantos vão ter com elas. - O Homem pratica três atividades (que mais o ocupam quanto menos preci- sa despender seu tempo pela própria sobrevivência), quais sejam o jogo, a arte e a religião, no que se dife- rencia dos animais que não vêem outro objetivo afo- ra a perpetuidade da espécie. Todas três se situam no domínio das ilusões, produzindo no mundo sen- sível as aparências das emoções oriundas do seu in- telecto, na medida em que o jogador, o artista e o crente buscam trazer para fora as construções de seu mundo interior e torná-las acessíveis a todos. São estes, enfim, os três grandes fingidores: o atle- ta, o poeta e o asceta. O jogo é a atividade mais antiga a desenvolver-se, e que lança um pouco de si sobre cada uma das outras duas. Animais superio- res já sabem brincar, como os lobinhos que simulam combater enquanto esperam que suas mães lhes tra- gam o alimento que caçaram. Na arte e na religião subsiste algo de lúdico, ao menos por parte do artis- ta e do sacerdote: o azafamar-se entre pincéis, cin- zéis e pergaminhos na elaboração de uma obra de arte já diverte e enternece por si, gerando um pra- zer, como também sói ao padre entretido na celebra- ção do culto religioso. Porventura não existirá um jogo em toda aquela preparação de vestes talares, consagração dos altares e ascensão das oferendas, que obedecem a uma disciplina litúrgica rígida, como nas regras a serem seguidas em um esporte? O dese- jo do Homem de praticar atividades que se gratifi- cam por si explica-se no serem elas a via aberta para a vida entre os muros da sobrevivência - o Homem
  • 32. 32 deixa de apenas sobreviver para então começar a vi- ver. - As emoções ligadas à contemplação estética e religiosa dizem respeito mais ao observador e ao devoto, que assistem ao desenrolar-se da atividade lúdica no atelier ou no púlpito: o observador goza em plena liberdade quando contempla, enquanto o sacerdote e o artista coadjuvam seu prazer - estes, por sua vez, figuram ante si mesmos e perante os outros os tipos mais superiores do santo e do gênio, com o que sentem-se absolutamente necessários ao observador como libertadores. - Enquanto o artista tressua martelando sobre a rocha, não vê nenhum objeto ao qual possa ligar alguma emoção; mas de- pois que sua obra está concluída, pode também go- zar a sua beleza, e até mesmo suplicar-lhe que fale com ele: parla! E o padre também sente junto com os fiéis a comoção do sagrado, quando eleva as espé- cies e as contempla imerso em meditações sobre a grandiosidade do mistério que crê estar confiado às suas mãos. 14. Das sociedades. - Diversas têm sido as especula- ções sobre o início das sociedades humanas; durante o Século das Luzes campeou a doutrina contratualista, pela qual os homens vivem em sociedade obrigados uns aos outros por um contrato. Se assim fosse, então os animais irracionais também firmariam contratos, quando formassem matilhas por temor de ser devora- dos, ou contratariam visando à proteção dos seus inte- resses quando as fêmeas entrassem no período do cio, ou estivessem a buscar alimentos para as crias. Quan-
  • 33. 33 to a constituir família, não se viu nisso até hoje um problema, e ninguém chegou ao ponto de supor que haveria um contrato nas relações entre os cônjuges (mesmo quando se enlaçam com todas as formalida- des do matrimônio), ou dos pais com seus filhos, não obstante a rígida autoridade hierárquica dos ascen- dentes ou mais velhos que se impõe aos descendentes ou mais jovens; aí os filósofos são unânimes em dizer que a Família (ou o Casamento) é uma instituição ante- rior à própria sociedade. Compreendemos bem: a difi- culdade começa quando se sai do círculo familiar para a comunidade maior formada por vizinhos, concidadãos e compatriotas; se é a todos evidente que os laços de afeição explicam a subsistência das famílias, os mes- mos já não se prestam a manter coesas as cidades, até mesmo porque dificilmente se poderia considerar que todo homem se apaixonasse pelo seu vizinho como por sua noiva, e que de tal amor decorresse um conví- vio harmonioso entre eles. Ora, se as famílias se aglutinam por sentimentos, e as sociedades por instin- tos, as primeiras são mantidas por um grau de força mais intenso do que o das segundas, mas que é tam- bém o mais recente. Os homens já viviam em agrupa- mentos estáveis antes de conhecerem o casamento ou a monogamia, dado seus impulsos gregários serem inconscientes - é tão natural ao Homem construir ci- dades na rocha como o é aos pássaros fixar seus ninhos nos galhos das árvores -, e só depois que aprenderam a criar o gado foi que descobriram que os filhos nascem da união dos machos com as fêmeas; assim, a socieda- de é que precede à família, sendo esta o produto final de um longo refinamento dos instintos, de uma cuida-
  • 34. 34 dosa seleção dos sentimenos que culmina em saber se- parar os indivíduos por critério de consangüinidade (aos quais se premia com o direito ao amor) dos “ou- tros”, não afins, e não “merecedores” de ser amados. Nas sociedades humanas existem duas maneiras pelas quais se manifestam os impulsos gregários: a dos que os aprimoram, construindo uma hierarquia onde os que se encontram no alto vivem como os Aesires no Walhalla, e a dos que os degeneram, semelhantes aos Vanires, submetendo-se aos primeiros e também uns aos outros entre si, de início por força, depois acredi- tando haver nisso um “direito” ou “necessidade”. A doutrina contratualista reflete a posição destes últi- mos, pretendentes a reduzir a sociedade a um “contra- to social” onde se presumiria o desejo deliberado de renunciar à vida livre em contrapartida de obter a pro- teção do grupo, e nisso reside a sua falha - ao conside- rar a sociedade como um acordo entre os fracos contra os fortes, nivela todo o gênero humano à mesma con- dição de inferioridade, sem obtemperar que nos ho- mens os mais aproximados do estado original de barbárie a associação se dava livremente e com um prazer somente compreendido pelos que experimenta- ram o quão aprazível é a ligação entre os que comun- gam do mesmo gosto e espírito. - Os fracos que se coligam para enfrentar aos fortes seguem a miragem de que associar-se conduz ao aumento da própria po- tência, quando individualmente continuam tão débeis quanto antes de ofuscar-lhes a vista a ilusão do calei- doscópio que os faz ver a si próprios multiplicados; a mera concorrência de forças para um dado sentido é acidental ou ocasional, e isso os fracos percebem amar-
  • 35. 35 gamente quando irrompe a discórdia nos seus agrupa- mentos, e eles passam a digladiar entre si pelo poder. Faltou a Thomas Hobbes a perspicácia, faculdade da qual se mostrou tão rico ao filosofar sobre o seu Deus que é mimésis do soberano, quando ao enunciar a má- xima homo homini lupus, reputou que o homem seria predador dos indivíduos da própria espécie; o homem, assim como o lobo, não preda o animal da própria espécie, pois na verdade, o homem é o único animal cujos indivíduos podem pertencer a espécies diferen- tes, e sabe agir em conseqüência disso: quando um homem violenta a outrem, o faz porque não o enxerga como seu “semelhante”, e sob este ponto de vista, ou o entende como pertencente a uma espécie inferior, dan- do-lhe caça, ou o reconhece como de espécie superior, e o parasita. As sociedades conhecem dois tipos de no- breza, com os seus respectivos contrários, conforme as gerações se sucedem: os nobres da primeira geração são os legisladores e fundadores de cidades, como Licurgo em Esparta, Teseu em Atenas, Quirino em Roma e os respectivos descendentes diretos destes pais primitivos criadores de instituições: assim eram nobres os espartiatas, os eupátridas e os patrícios. No anverso destes tipos nobres, polarizavam-se os seus contrári- os, quais sejam, as mulheres, os escravos, os metecos, hilotas e bárbaros, aos quais se negava o direito de ci- dadania. Os nobres da segunda geração se tratam dos guerreiros detentores de títulos militares, cujos no- mes deram origem à nobiliarquia hereditária européia ainda vigente. Assim, por exemplo, os duques e mar- queses, que significam respectivamente “condutores” de legiões e defensores das fronteiras do Império Ro-
  • 36. 36 mano, para os quais agora ser nobre passa a represen- tar o papel de mantenedor das instituições criadas pela primeira geração; os nobres da segunda geração têm o conceito de sua “nobreza” vinculado ao de “homem livre”, e encontram sua oposição nos povos derrota- dos, na choldra envilecida e ociosa das cidades. Uma terceira geração, híbrida dos tipos nobres e dos seus contrários, que vem a ser a burguesia, já não cria nem preserva, mas apenas desfruta langorosamente do seu patrimônio. O quanto o burguês é mais próximo da nobreza dos espartiatas e dos eupátridas ou da vileza dos hilotas e metecos vai dizer o número de costados de cada um dos tipos que sua árvore genealógica moral apre- sente. O indivíduo que tem pendores nobres e ignóbeis convivendo dentro de si termina por não saber diferençá-los e deseja que todos recebam igualdade e foro de cidadania, assim como em Roma os libertos e seus filhos se revoltaram inúmeras vezes reivindican- do a cada vez maior participação no governo da Repú- blica, até conseguirem dois tribunos da plebe, sem di- reito a voto nos comícios, mas investidos de soberano poder de veto. Os tribunos da plebe que o burguês car- rega consigo sempre vetam as resoluções nobres que porventura se levantem em seu espírito. 15. Do Progresso. - Ante o pensamento comum de crer na existência de momentos históricos mais avan- çados do que outros, como se houvesse um encadea- mento ligando sucessivamente as eras ao longo do Tempo, respondemos que não existe “progresso” ou “atraso” na história humana, e o que se verifica no
  • 37. 37 decurso dos séculos é ocorrer de um estágio social apre- sentar mor complexidade em face de outro porventura a ele emparelhado como um contraste. Ambos, contu- do, já existiam em Potência no começo dos tempos, porque o “complexo” e o “simples” são diferentes ma- nifestações do mesmo movimento, sem que exista hi- erarquia entre os estágios sociais. De igual feição, não existem homens “primitivos” e homens “evoluídos”, mas apenas homens, que participam da mesma nature- za em todas as épocas e lugares. É uma alegoria muito errada a que fazem aqueles que, diante da noção de “antigo” e “moderno” nascida da comparação entre ferramentas ou máquinas com maior ou menor tempo de uso, julgam que critério idêntico se aplica às idéias ou às sociedades humanas. Uma idéia não é sujeita ao desgaste qual um parafuso, nem uma cultura fica ob- soleta como as engrenagens de uma segadeira. Quan- do se verificam descobertas na ciência ou na técnica que resultam em um transe de um estado menos per- feito para outro mais perfeito, não há “progresso”, mas o movimento em Ato daquilo que era em Potência. A época atual, tida por “tempos modernos” já existia em Potência desde o início do Universo junto com os “tem- pos passados” e os tempos que ainda hão de vir; mas os homens vulgares julgam a sua “modernidade” con- tentando-se por se darem a muitos o que seria um luxo inacessível no “passado”, e hoje é um conforto acessível à maioria - o seu “progresso” é aprovado ape- nas quando lhes satisfaz os desejos do ventre e as or- dens do baixo ventre.
  • 38. 38
  • 40. 40
  • 41. 41 16. Da moral como limite à Vontade. - Diante do filósofo se apresenta um problema verdadeiramente tormentoso: que tratamento a moral deve receber no seu sistema, e sobre quais bases estabelecê-la. Os primeiros quiseram fundear a moral no alicerce re- ligioso, fazendo-a procedente do senso de um deus; ao mesmo tempo, procuraram combater a noção de que a moral se impõe tão-somente pela força, pois queriam dar-lhe uma origem transcendente, asse- gurando que os potentados não a conseguiriam aba- lar com seus decretos - não se apercebiam de que se a moral parte de lei divina, há o emprego da força pela divindade; logo, a moral é imposta pela força, só que de tal magnitude que os homens não lhe po- dem resistir, pois estariam lutando contra um deus. - Outros, não querendo render-se à evidência de que a moral nasce da força, cresce alimentada pelos usos e costumes e se torna vetusta pelas tradições, pre- tenderam estabelecê-la na razão, com o que fracas- saram da mesma forma que os primeiros: a simples luz da razão não se impõe contra a fúria incontida dos sentidos, e não existe argumento racional que impeça um homem furioso ou apaixonado de perse- guir os seus intentos; ademais, a razão admite a contrariedade pela argumentação, e sempre existe a possibilidade de se lhe opor uma outra razão que negue o que havia sido estabelecido como “moral”; logo, a moral usa um cinto com muitas perfurações
  • 42. 42 por onde tenha passagem a fivela da consciência. Por fim, a tentativa de conciliar a força com a razão produziu a moral do dever, chamada de “imperativo categórico”, que também soçobrou nos mesmos es- colhos que colheram as suas irmãs orgulhosas. O “dever” é uma volição que só aparece ao fim de toda uma cadeia de raciocínios, e não é em absoluto li- vre, pois o Homem somente se submete ao império do dever para não comprometer a sua Honra, esta sendo o conceito que se deseje ter perante os seus iguais, ou o respeito para consigo mesmo; a moral ordenada pelo dever não obrigaria onde não existis- se desonra em deixar de corresponder às expectati- vas, como quando se rompe um pacto com um infe- rior, ou quando não há nenhuma aliança que obri- gue alguém a fazer uma determinada ação. Além disso, as diversas morais contêm em si mesmas a previsão de que não é censurável um ato quando suas regras gerais não devem incidir: por exemplo, é contrário às leis morais que se mate um inocente, mas não é imoral matar em legítima defesa, pois neste ponto o comando que diz não matarás cede em relação à morte dada ao injusto agressor de direito próprio ou alheio; logo, está inserida nas próprias leis morais a hipótese de haver circunstâncias em que elas não se aplicam, ou sejam aplicadas cum grano salis, isto é, de uma maneira flexível - elas mesmas trazem contradições, e nem sempre se pode ter um raciocínio tão sutil que as distinga em um relance. - O que temos, enfim, a dizer sobre a moral - seja de que espécie for - é que nenhum dos sistemas já construído é perfeito porque toda moral pressupõe
  • 43. 43 um conflito com a Vontade - a fórmula de toda mo- ral se consiste precisamente no ato de se declarar “não quero querer isso” - e a Vontade sempre acaba por romper as cadeias postas por quem procure to- lher-lhe o vôo; esta é a única lei universal que reco- nhecemos. A moral é um censor que se posta igual Catão diante das possibilidades de escolha apresen- tadas ao longo da vida, e dita quais delas são inacei- táveis dentro da cidade; quanto mais rígida é a mo- ral, maior é o número de escolhas condenadas, o qual sempre tende a aumentar, pois depois que uma possibilidade é suprimida, logo uma outra a seguir também pode quedar interdita, até chegar-se ao pon- to de só existir uma única escolha moralmente líci- ta, o que equivale a não ter escolha nenhuma e a atrofiar a própria faculdade de escolher - nesse mo- mento em que se diz “estou aqui e não farei outra coisa”, realmente não se pode fazer mais nada -. Os homens que mais docilmente se submetem às injunções da moral são também aqueles que mais carecem do império de uma autoridade superior que lhes diga o que fazer, embora essa autoridade esteja dentro deles mesmos. O regime ditatorial é essenci- almente moralizante, assim como possui a moral toda a essência de uma ditadura; foi dessarte que os moralistas floresceram em todas as épocas em que um condottiere se arvorou na tarefa de conduzir os povos: na Florença dos Médicis - sucedidos por Savonarola - na Espanha de Felipe II, na França de Luís XIV; entretanto, não é a tirania o que favorece a moral, nada disso, é o contrário: antes de um povo aceitar o domínio de um tirano visível, que governa
  • 44. 44 a política, foi preciso que tivesse primeiro cada ho- mem outorgado poderes ditatoriais ao seu tirano particular, invisível, ao qual pede sono tranqüilo e proteção - e do qual o tirano visível é apenas um reflexo aumentado. 17. De como falham os sistemas morais. - O mora- lista tem nas suas mãos um trabalho demasiado ingrato para apresentar: o que se espera dele é que escreva um método seguro de como controlar a con- duta dos homens, que será tão mais perfeito quan- to menos exceções contiver. A preocupação em cri- ar uma “moral elevada”, a rigor, transfere ao mo- ralista uma responsabilidade ainda maior da que a que carregam os magistrados: enquanto estes atu- am somente punindo os delitos, o moralista deve (ou deveria) prevenir a ocorrência não só de infra- ções às leis penais, como também evitar cada míni- ma crueldade da vida cotidiana. Caso alguém en- comendasse a um moralista criar um sistema viá- vel, mandar-lhe-ia que inserisse dispositivos efica- zes para impedir toda a espécie de violências, rapi- nas e dissimulações, de modo que se chegue a uma conclusão semelhante à do desfecho do romance “Teresa Filósofa”; o projeto de moral que se pre- tende como realizado é aquele que ensine os ho- mens a não matar, a não roubar, e a não violar. A moral se entende completa quando garante à soci- edade de que nenhum de seus membros tirará a vida de outrem, ameaçará seu patrimônio ou rap- tará suas mulheres. O filósofo moralista é aquele
  • 45. 45 que tem a seu encargo proteger os homens daquilo que são os seus maiores medos. Nada é mais temí- vel do que o homem que se intitula de “imoral”; dele se receia que possa atentar contra qualquer dos valores estabelecidos como pilares da socieda- de. Existe nesse medo muito de precaução de caça quando escuta a trompa do caçador. A falha nos sistemas de moral, como dito acima, está no seu conflito com a Vontade; o Homem não é uma má- quina de carne, passível de receber uma educação moral como se fosse uma programação definitiva. Enquanto ele conservar a sua Vontade, sempre ha- verá como sacudir de cima o jugo, por isso que qualquer controle que se tente impor sobre as ações humanas, inclusive o que parte da própria “cons- ciência” está fadado ao insucesso: quem deseje matar um inimigo, roubar o seu ouro ou violar sua esposa poderá fazê-lo, desde que se assegure de que ficará impune - a maior sanção moral não é o “peso na consciência”, mas o receio de ser descoberto - enquanto aqueles que se dominam por escrúpulos encontram-se habituados a raciocinar moralmen- te, como um vício, esquecidos de que a moral a eles ensinada lhes não retirou os braços, pernas e inte- lecto para agir a seu bel-prazer. Mesmo quando não deseja, o Homem conserva os meios para fazer aqui- lo de que é capaz; assim, a moral lograria eficácia apenas no caso de retirar do Homem não somente a Vontade, mas também os meios para a consecu- ção do ato reputado como “imoral”. Somente com a auto-emasculação conseguiu Orígenes triunfar dos seus apetites carnais, o que demonstra ter sido ne-
  • 46. 46 cessário que se partisse o instrumento para não se puder mais executar a melodia. 18. Dos limites naturais à Vontade. - Assentamos que toda moral é um limite à Vontade; argumenta- se que a Vontade de cada um é limitada pela frontei- ra onde começa a Vontade dos demais (indevidamente confundida com a liberdade). Há os que vêem nisso um “pacto” ou “contrato” entre os homens, o que analisamos um pouco acima. Não questionamos que haja limites naturais à Vontade, que constituiriam uma “moral natural” ou da espécie. Se todo ho- mem tem Potência, e por isso, deseja que ela au- mente, homem nenhum teria mais direito a expan- dir sua Vontade do que outro. Se, ao contrário, le- gitimássemos a aniquilação do homem pelo homem, causar a miséria alheia para conseguir prosperida- de justificaria que alguém mais forte e ladino, por sua vez, massacre o primeiro malvado, tomando- lhe o produto de suas rapinas, e deixando-o pior até do que suas vítimas, numa sucessão de iniqüi- dades sem fim. Podemos contra-argumentar, po- rém, que existem homens tão vis que jamais apren- deram a dominar, nos quais a Vontade teria limites mais estreitos e mais reduzidos do que nos demais homens e que se poderiam transpor sem com isso cometer uma injustiça - e talvez ainda lhes redun- de um benefício. - O que se deve observar é que se a limitação natural à Vontade impõe o neminem læde nas relações do indivíduo entre os seus semelhan- tes, onde não há ninguém a ser lesado estadeia-se o
  • 47. 47 vexilo do laisser faire, mau grado aos sistemas de “moral elevada” que restringem a Vontade por cen- tenas de maneiras, inclinados diante de milhares de tradições e obedecendo a milhões de costumes. A moral “natural”, delimitada pelo respeito devi- do à Vontade dos demais não impinge nenhuma dessas construções elaboradas. Em que pode lesionar a alguém a recusa do emprego de um pro- nome de tratamento, geradora de tantos melindres e ressentimentos? Ou do “dever de hospitalidade”, tão caro aos povos antigos e aos que ainda hoje habitam os desertos? Tais códigos não se relacio- nam ao respeito às liberdades dos particulares, e têm sua origem remota em outros medos, mais pri- mitivos, qual o de terminar como repasto em uma ceia de Licaon, ou no mínimo, pernoitar sem um teto ou abrigo. A Vontade individual, portanto, é limitada não somente pelo ponto onde começa a Vontade de terceiros como deveria sê-lo, e nec plus ultra, mas agora (plus ultra!), pela prevenção do que essa Vontade possa dar causa, se não estiver rigidamente controlada e disciplinada, por uma tirania ainda maior do que a dos hábitos. E é essa tirania primeira - a da moral - que pela aceitação da servilitude, deságua em todas as outras espécies de ditadura. 19. Do amor de si mesmo. - O móvel primeiro do Homem é o interesse; do interesse, conseqüência da manifestação do dinamismo sensível diante do pra- zer ou da dor, nasce o amor. O amor, que é interesse
  • 48. 48 em movimento, se divide entre amor aos demais (ou ao próximo) e amor a si mesmo (ou egoísmo), mas é o amor a si mesmo o maior. O amor ao pró- ximo é interessado na medida em que colabore para o amor a si mesmo, ou pelo menos não o contraste - é preciso querer bem a si, antes de pensar no pró- ximo, pois o nosso próximo ainda está mais distan- te de nós do que o “si mesmo.” - O motivo de colo- car-se o amor ao próximo solapando o amor a si mesmo tem como razão de fundo o temor da maio- ria de que se alguém amar mais a si próprio do que aos demais, a sociedade possa correr um perigo, e este temor gera nos medrosos uma prevenção con- tra tudo o que seja egoísmo, pareça egoísmo, lem- bre o egoísmo. Isso é tudo muito contraditório! Elogia-se o desprendimento de si, mas se pergun- tado por qual motivo sacrificar o próprio bem em proveito da sociedade, responde-se de modo nada categórico que o bem da sociedade retorna em pro- veito do indivíduo. Então o bem particular termi- na por ser o interesse do bem comum. Cada um cuida do bem da sociedade por se ver parte inte- grante desse mesmo todo, de cuja preservação de- pende a felicidade individual. Há muito de prazer egoístico dissimulado sob as virtudes altruístas. Para que aceite sacrificar o amor a si mesmo, o homem altruísta é convencido a isso por outros homens ainda mais altruístas do que ele, o primei- ro com receio de sofrer uma punição imposta pelos segundos, e estes temerosos de que não o fazendo, estariam à mercê de um homem para o qual os in- teresses da maioria deixaram de ser prioritários.
  • 49. 49 Pune-se o egoísmo e recompensa-se o altruísmo, até que se chegue a crer que decorre de uma ordem natural o medo de não transigir com a maioria e ser punido por causa disso. O homem altruísta, o que não apenas tudo dá pelos outros, mas também leva ao paroxismo a simpatia até deixar de sentir e viver por si mesmo, para só viver e sentir em si depois de ter a percepção captada por intermédio de outrem, espreita de cima dos ombros tentando ler na fisionomia dos circunstantes um esgar de concordância a cada vez que ensaia uma afirma- ção, silencia o seu amor a si mesmo quando os es- quivos olhares que encontra enregelam a palavra prestes a despir-se, e para não colidir com os ou- tros, aos quais adora, opta por um auto-sacrifício onde os seus desejos, idéias e vontade são imola- dos. Ora, ele sacrifica o que tem de mais precioso dentro de si para que não lhe sacrifiquem uma po- sição na sociedade de que aspira fazer parte. Ao comparar o apreço dado à própria vontade com o que se dispensa às pequenas vontades da maioria, o homem altruísta toma como se estas valessem mais do que a primeira. Um modo de vida como o que a Humanidade adotou, que exige o sacrifício individual para resguardar a segurança de um todo massivo, amorfo, indeterminado, doente, reincide na troca do real pela idéia, em que o estar no agra- do da opinião da maioria é deslocado para a função de paraíso. Os homens transigem, contemporizam, cedem por medo de afirmar a própria vontade e serem castigados. Em contraparte, escolhem o al- truísmo porque são recompensados a fazê-lo. Uma
  • 50. 50 escolha que não se gratifica por si, mas precisa de castigo ou recompensa jamais pode ser livre. O ho- mem que deixa de ser egoísta é um medroso, e o que se torna altruísta é um corrupto; um e outro não são dignos de um pensamento nosso. 20. Do desejo e da vontade. - O Homem dá corpo ao seu desejo quando realiza a sua Vontade. Esta se distingue em duas espécies: a Vontade livre propri- amente dita, que é o Desejo consciente (para o qual a Razão colabora), e a segunda constitui uma von- tade interior, anímica ou instintiva, que se faz pre- sente nos atos mecânicos de cada um de nós. Ao contrário das decisões formalmente raciocinadas, atitudes como as de segurar uma taça, ou cami- nhar de um lado para o outro, são tomadas incons- cientemente, sem que a razão interfira, ditando qual seria a melhor maneira para desempenhar tais ope- rações; nenhum cérebro sadio perderia tempo raci- ocinando sobre de que lado deverá cortar um pão, ou quebrar um ovo, ou ainda se é preferível calçar primeiro os sapatos pelo pé direito ou esquerdo. Se semelhantes ações precisam ser desejadas consci- entemente, a maneira de fazê-las é determinada unicamente pelo acaso ou por caprichos irracionais, como se a mente jogasse a sorte com os membros. A capacidade de realizá-las, contudo, parte das lem- branças da experiência sensível, vivida pelo ser ra- cional, e aplicada em cada caso novo conforme se pareçam com situações anteriormente praticadas. A vontade livre, diferentemente, parte de uma es-
  • 51. 51 colha tirada do próprio intelecto do ser humano. A escolha, entretanto, não pode ser feita sem consul- tar às paixões, as quais, em sendo baseadas nas re- ações de prazer experimentadas, definem para cada indivíduo, o que lhe apraz ou repulsa, e sendo bem, o que se deve desejar - ou repelir - como próprio das suas tendências íntimas e pessoais. É assim, em respeito ao que se considera prazer ou dor, que se faz a diferença do que é bem ou mal para si mesmo; e desse mal ou bem particulares ou subje- tivos é que as paixões recebem sua forma e corpo, saindo para consolidarem o ato de querer, o qual é manifestação ativa de outro, mais simples, e passi- va, o gostar, porque o que se gosta nem sempre se realiza em ato, enquanto o desejo materializado no imperativo de querer o pode, ou, pelo menos, tenta. É pela vontade livre que se justificam e definem ações quais escolher um livro pelo assunto, confor- me o gosto, aceitar em casamento uma noiva, pro- curar qualquer fonte de prazer ou diversão; tais atitudes, enfim, não podem ser deliberadas sem o juízo sobre se determinada coisa é boa ou má, o que não se faz sem o uso da razão, que não pode sofrer nenhuma interferência de força exterior, para ser livre, mas sim, das pulsões que houver no seu íntimo. As cogitações que porventura se levantem no interior da mente e a agitem como uma força interior não tolhem a sua vontade, antes são o mo- vimento da própria vontade em torno de si mesma, pois quando algém constrange a si próprio, o faz por uma força que subjaz em si, por isso que os conflitos que se tenha consigo mesmo fazem parte
  • 52. 52 de uma só Vontade, ainda que orientados por dese- jos contraditórios. A razão, todavia, não é mais do que método; se alguma coisa é boa ou má, útil ou inútil, são as emoções e paixões que a qualificam; paixões e emoções, contudo, se movem apenas em função do prazer e da dor, pois desejar ou detestar implica nessas sensações, demonstrando, então, que as emoções e paixões, como desdobramento da sen- sibilidade, são os guias de todos os julgamentos e de toda vontade livre. Tudo aquilo sobre que se não tem suficiente conhecimento para dizer se é bom ou mau pertence ao imponderável; tentar deci- dir sobre o imponderável sem meios de desvendá-lo é o que se chama impasse; vê-mo-lo quando se se procura escolher entre dois caminhos bifurcados, ou situações dentre as quais nenhuma parece me- lhor. Sem o conhecimento necessário, o impasse não se resolve e, para tentar uma decisão, forçoso é recorrer ao instinto, ao acaso, ao sorteio, ou a ou- tro critério preconcebido. 21. Das inclinações. - Movem-se as emoções aonde lhes dirijam o prazer ou a dor; das emoções formam- se os desejos, dos desejos, os afetos, e dos afetos che- ga-se às inclinações. Sendo, portanto, as inclinações da personalidade produto final dos desejos, e a ra- zão da emoção (pois a primeira não mais é do que o método para bem alcançar os objetivos da segunda), ela é determinada na direção conforme sejam os de- sejos para com aquilo que é positivo ou negativo. É preciso, no entanto, acompanhar com um olhar
  • 53. 53 circunspecto a ordem em que se sucedem essas ope- rações, desde o seu nascimento nos recônditos da mente, até que se esgotem materializadas em atos; o desejo ou a intenção nada mais representam do que o último elo de uma cadeia que tem sua origem no interesse. Age-se na direção do desejo, mas quem julgasse a conduta de alguém somente pelas suas intenções deixaria de observar se o ato praticado para satisfazer o desejo era necessário, ou seja, se para atender aos interesses empregava de meios proporci- onais a este objetivo. Portanto, antes do desejo exis- te a necessidade, e esta só se justifica na medida em que concorre para o interesse. É preciso ainda en- tender que, quando Maquiavel afirma no Capítulo XVIII de “O Príncipe” que nas ações dos homens o que importa é o sucesso das mesmas, negando as- sim qualquer juízo de valor sobre as intenções pelas quais se chegou até o sucesso, e Frederico II insiste no dever também a intenção ser nobre, e não apenas o seu resultado, em verdade, tanto o resultado quanto a intenção retiram o seu fundamento e sua finalida- de do interesse, o qual, a seu turno, participa da natureza humana afora bem e mal. 22. Do bom e do mau. - O ser humano chama bom ao resultado do seu próprio ato criador, e mau ao do de outrem, que é desprezado. Moisés predica o seu Deus a constatar suas obras como boas a cada um dos dias da Criação. Talvez Lúcifer e os seus anjos tenham caído e se tornado em demônios no momen- to em que atribuíram à margem do que Deus esta-
  • 54. 54 belecera o que lhes parecia bom ou mau. O que dis- se Moisés do seu Deus se aplica a todos os fundado- res e legisladores dos povos. O que nós pensamos dos demônios se aplica a todos os que, iguais à ser- pente, induzem a que se pense o bem e o mal de forma rasteira. A prima serpente, em uma única frase, induziu - esta grande tentadora - a uma tríplice queda, e não se admire que o “pecado original” seja triplo: Eritis Sicut Deus, scientes bonum et malum. Ao querer ser igual a Deus, deprecia-se a condição humana; ao aspirar à ciência, começa uma busca de- senfreada pela verdade; e ao estabelecer o bem e o mal, valora-se uma oposição que culmina com a re- núncia à própria potência de vida. Destas três cul- pas em um só pecado original a filosofia ainda hoje não conheceu redenção, nem tampouco, “redentor”. - 23. Da busca da felicidade. - Assim como os sofis- tas procuraram ensinar a sabedoria e a virtude (sen- do vencidos nisso por Sócrates), os filósofos, come- çando por Platão, ao quererem ensinar o caminho para a felicidade em seguida de o terem aplainado na via do sábio e do virtuoso, incorreram na mesma falha daqueles erísticos mercenários, posto que se a virtude e a sabedoria não podem ser ensinadas, tam- bém a felicidade (caso somente o sábio e virtuoso pudesse ser feliz) não se adquire pela aprendizagem ou pelo cultivo do hábito. Aristóteles em sua Ética a Nicômaco (Livro VI, nº. 8), depois de dizer que a felicidade pertence ao homem virtuoso, se contra- diz, afirmando que “a verdade é que nenhum prazer
  • 55. 55 prejudica a virtude, quando deriva da atividade e do hábito virtuoso, antes pelo contrário, o prazer nos impe- le cada vez mais à virtude”, quer fazendo a virtude causa da felicidade e a felicidade a causa da virtude, e que um prazer nascido da virtude possa impelir à virtude; ora, tudo isto é falso. Ao pretender que a felicidade pertença apenas ao sábio e virtuoso, buscá- la é inútil, tanto para este, visto que a possuiria naturalmente como decorrência de sua virtude e sa- bedoria, não precisando ser ensinado, quanto para o que não a possui, porque jamais conseguirá apren- der a sabedoria e a virtude para ser feliz. A realida- de, dura como o ferro (e que receio temos nós em ferir?), é que a felicidade é atributo que o homem tem, ou não tem; se tem, não há como lhe ser tira- do, e se não tem, não há como ser adquirido. 24. Da moderação do desejo. - A moderação do dese- jo também não proporciona a felicidade, porque mesmo o desconhecimento do tamanho das própri- as vicissitudes não implica na supressão destas mes- mas indigências. Tomando o exemplo do campônio que com alegrias simples se contente, vemos que ele não sente a falta da leitura de Homero e Virgílio como o sábio, por isso é corrente dizer-se que o Homem se torna mais desditoso à medida que fica mais preparado; entretanto, embora o camponês não sinta a verdadeira dimensão de suas insuficiências, o quanto ele é necessitado se reflete na vida rústica que leva, daí tais serem as indigências do Homem, que ainda que as desconheça, precisa ser delas saci-
  • 56. 56 ado, d’outro modo, sua própria condição retratará suas vicissitudes. O sábio pode padecer quando não tem ao seu alcance os prazeres elevados que formam a sua felicidade, mas, nenhum estado supera a ven- tura sentida ao tê-los satisfeitos; assim é infeliz o campônio em conseqüência de sua falta de ilustra- ção, de que é necessitado, tanto quanto o sábio de descobrir o que realmente precisa para ser mais per- feito, semelhante ao doente que sofre sem saber qual é a cura de seu mal. Igualmente entre os homens cultos e civilizados existe a necessidade de coisas de que jamais ouviram falar, pois nem sequer foram inventadas. A ignorância sobre comodidades e pro- gressos não torna menor a sua falta, e portanto, até que sejam descobertos, a satisfação do interesse per- manece deficitária. 25. Da felicidade como potência de vida. - Afinal, o que é a felicidade? E onde a encontraremos? A se- gunda pergunta é mais fácil de responder do que a primeira: é a felicidade quem nos encontra, quando ela quer. Já o rosto desta dama misteriosa é conheci- do apenas daqueles que sabem enxergá-lo sob o pe- sado véu das idéias preconcebidas. A felicidade não é mais do que um eterno superar de indigências. O inte- resse clama por suprir aquilo em que é insuficiente, e para isso detém potência; quando a potência se movimenta em ato, o interesse é saciado. Um inte- resse que se sacia torna-se por definição o seu não- ser, o desinteressante; caso todos os interesses do ho- mem fossem aplacados, o mau humor que disso re-
  • 57. 57 sultaria, chamado pelos ingleses de spleen, pelo seu conteúdo, e os franceses, apegando-se à forma, de- nominam blasé, seria capaz de fazer do mais plácido espelho d’água um tremedal infecto. Enquanto há indigências por superar, o homem é feliz, desde que nada lhe interrompa ou atrase a marcha; é preciso não perder de vista a linha do horizonte à frente do caminho - a perspectiva do caminho a percorrer es- timula a que se mantenha constante o passo - nem se deter por muito tempo à beira da estrada - a ina- ção produz o depauperamento da potência - ora ven- cendo montanhas, cruzando vales, ou descendo de- pressões e atravessando planícies. A felicidade nos sorri a cada uma dessas insuficiências supridas, mas ela nos fecharia o cenho se se atingisse o puro Ato. A chegada ao estado de puro Ato, à beatitude, re- presentaria o término de toda potência, com o de- sinteresse por tudo o que se conseguiu ao longo da vida. Ser feliz não é alcançar uma meta - atingir o alvo é apenas chegar ao fim de um percurso, morrer, deixar de existir - e aos que ainda assim quiserem encontrar a felicidade ou qualquer outra perfeição em grau absoluto, respondemos que vimos um co- risco a passar pela terra dizendo: “Não existe a pu- reza; em nenhum lugar nada existe em seu estado puro!”. 26. Do sentido da vida. - O Homem não precisa lobrigar, quer no mundo, quer fora dele, qualquer coisa que dê sentido para sua vida, nem existe ne- cessidade de dar um sentido ou razão para o fato de
  • 58. 58 estar vivo. Sendo impossível controlar o passado, não se consegue interferir nos acontecimentos que deram origem à humanidade em geral e a cada indi- víduo em particular, e assim, ninguém está em con- dições de poder justificar a própria existência, por- que isto só se faz com aquilo que se teve como deci- dir; a nossa existência começou sem que pudésse- mos participar dos eventos que a determinaram, por isso não temos necessidade de encontrar nada que venha a explicar a razão de vivermos. A vida na Ter- ra apareceu espontaneamente, resultado das leis fí- sicas que controlam o Universo; como não podemos alterar esse estado de coisas no momento atual, é indiferente a maneira pela qual passou a estar no mundo. Nossa vida não é menos preciosa porque não tem sentido: ela é ainda tudo o que nós temos, e é somente nela que temos condições de sentir, pen- sar e desfrutar de todas as coisas que fazem maravi- lhoso o momento presente. A existência dos homens começou no princípio do Universo, em potência no caos donde tudo foi tirado, e ao nascer um novo homem, este apenas se tornou em ato. A resposta aos que procurarem qualquer explicação para o por- quê de estarmos aqui é que nossas vidas repousam no vazio sem ponto de apoio, como a Terra no Espa- ço. 27. Do valor da mortalidade. - O pensamento de querer atribuir um valor à existência só pode partir dos que têm o espírito de mercador, e a tudo dese- jam dar um preço, para a troca de uma coisa por outra. Pode-se trocar horas de lazer e descanso por
  • 59. 59 horas de estudo ou trabalho, quando se tem em mente um exame a se prestar ou uma obra a concluir; mas trocar a própria vida atual por uma promessa de “vida eterna” a ser entregue no “mundo das idéias” é o mesmo que adquirir uma gleba na crosta solar. Ainda que tal mundo existisse, e a vida corporal valesse menos do que a “vida eterna”, a troca seria desproporcional. Um comércio pressupõe a troca de espécies do mesmo valor. Isto não ocorre em um câmbio onde o homem troca uma vida corporal (que não lhe valeria de nada) por uma “vida eterna” (que lhe valeria muito mais), decerto usando pesos adul- terados. Um raciocínio destes, que não se estranha- ria caso partisse das crianças que aceitam o maravi- lhoso como realidade, torna-se indigno de homens adultos, os quais, no entanto, acreditam que pos- sam comprar e vender no limiar entre a vida e a morte, cambiando uma existência pela outra, como se permutassem mercadorias. 28. Do valor da imortalidade. - Os Filósofos coloca- ram as provas morais e psicológicas como argumen- tos em favor da imortalidade da alma, e as justifi- cam dizendo que frustrada a tendência à eternida- de, a alma humana estaria “fadada ao desespero” (Régis Jolivet, Curso de Filosofia, n.º 169); aqui so- beja a malícia, pois o “desespero” não é conseqüên- cia natural da certeza no aniquilamento, sendo in- cutido junto com as provas psicológicas e morais. Elas mesmas carregam dentro de si o desespero de que se apresentam como remédio. Ao pretender-se
  • 60. 60 investir a alma de um “direito” à imortalidade, fun- dado na “bondade de Deus”, tem-se que Deus preci- saria possuir a mesma “bondade” que os homens esperam encontrar uns nos outros, só que tal “bon- dade” advém do medo que os homens têm da potên- cia dos seus iguais; ora, Deus, sendo onipotente, a nada ou ninguém teme, e não precisa, por isso, ter “bondade” como os deuses de Epicuro. Ao mesmo tempo, os fatos desmentem o poder encontrar algu- ma “bondade” ou “ruindade” em um Universo em contínua mutação, por isso que se desloca, com a monotonia de uma cantiga de velhas, a “bondade” que não existe no Universo conhecido para o “mun- do das idéias”, onde se invoca a necessidade de que a “justiça” premie os “bons” e puna os “maus”. Esse “paraíso metafísico” serve há milênios como espada de Alexandre sobre as voltas de todos os nós górdios do pensamento ocidental, o que terminou por cegar a sua lâmina. Evidentemente que não é a “justiça” que reclama que cada um seja tratado “segundo as suas obras”, mas são os próprios homens que dispu- seram a ordem do mundo corporal neste sentido, e esperam que o “mundo das idéias” recalque a palinódia por força de simetria. A prova moral é espelho de um desejo insatisfeito, não do “mundo das idéias”, mas deste mundo, digno de quem não teve aceita uma pretensão em juízo e à míngua de outro suporte para dar corpo à inconformidade, que- bra panelas defronte o pretório e guarda as tampas. Os tratados filosóficos estão cheios de tampas guar- dadas de litigantes insatisfeitos; é chegado, no en- tanto, o momento de se deitar fora as tampas e pôr
  • 61. 61 a filosofia em melhores vasilhames. A prova psico- lógica, calcada nas tendências essenciais das nossas faculdades espera que se tenha como ponto de parti- da que a satisfação das aspirações à perfeita felici- dade dependa da sobrevivência ilimitada; uma vez que não se conceda, nem por um milímetro, que a felicidade só seja possível se for ilimitada a sobrevi- vência da individuação, o argumento se dissipa, des- feito na plenitude de sua ventosidade. O desejo de gozar “objetos que ultrapassam o tempo” apenas reforça a ânsia da vida por ela mesma, o que não tem nada a ver com a “imortalidade”, mas com o amor a um retorno que existe sem considerar o tem- po. O argumento peca por princípio, uma vez que parte da suposição de que se conheça de antemão quais seriam as nossas tendências essenciais; se, ao revés, assentarmos como sendo tendência essencial o regresso ao Uno Originário, a prova psicológica deixa de apontar para a imortalidade da alma e pas- sa a indicar o aniquilamento como conseqüência não só natural, como desejável para a continuidade da existência além dos indivíduos. 29. Do valor da vida corporal em face dela mesma. - Entendemos que a vida corporal prescinde de senti- do, contudo, ela não tem menos valor para nós por isso. Compreendida como tudo o que nós temos, a vida humana - finita, carnal e efêmera -, é igual à eternidade, que para nós deixa de importar se dura milhares de anos ou poucas décadas; o momento presente passa a não ter fim, e perder a vida corpo-
  • 62. 62 ral é tão grave quanto perder a mesma eternidade, pela qual sempre se envidaram tantos esforços dos que nela depositam suas esperanças e, pela conser- vação desta vida efêmera, aceitam-se outros tantos mais trabalhos quanto pelo ganho da vida eterna se sacrifica o que há no mundo. A idéia de que possa haver uma outra vida, mais perfeita do que a corpo- ral, é mesmo perigosa ao bem desta última e aos seus interesses; para o crente na “vida eterna”, a existência humana passa a representar mera chance de atingir aquela mediante sua imolação e renún- cia: a vida corporal é reduzida a ser apenas um teste para os que esperam a eternidade, e a sua importân- cia é regulada pelo quando se possa dedicar dela ao objetivo de ganhar a “vida eterna”; ora, isto é falso. Deve-se antes ter apego à vida corporal como se ape- gam os crentes à “vida eterna”, e reputar a tudo o que piore a existência como tão prejudicial quanto o que se evita o que é julgado como contrário à “salva- ção”. Outra erronia é querer atribuir um “valor” à vida, como se ela tivesse que ficar sujeita à esfera de valores que existe para ela mesma, e enquadrar-se em uma das categorias de utilidade ou bondade às quais pertencem os objetos que se desfrutam para bem viver. O consolo dos fracos é procurar um sen- tido para a vida fora dela mesma, visto que lhes repugna aceitar que a vida possa estar solta no va- zio sem ponto de apoio. Há não muito tempo, este sentido era lobrigado em Deus. Quando a religião foi posta em xeque, o telos se deslocou para outros valores elevados, como a política, a economia e a ciência. Tratar a vida como se fosse um dos seus
  • 63. 63 bens é um entimema tão mais evidente quanto os esforços do pensamento ocidental em o disfarçar. O “valor” é o estabelecimento de uma comparação sub- jetiva, com vistas a criar uma equivalência permutável na esfera objetiva. Como isto não está bem claro, exemplificamos dizendo que todo valor só existe quando é dado em face de alguma coisa; assim, um copo d’água vale muito no deserto, e pouco em cima de uma geleira, e por isso que as esferas de valores são construídas pelos homens quando se se compara dentre vários bens ou atributos, e um de- les é considerado maior. Assim, a vida só poderia ser valorada se estivesse em comparação com algu- ma outra coisa, que se lhe assemelhe e possa ser trocada uma pela outra como coisa fungível. Ape- nas os instrumentos ou bens materiais se sujeitam a valorações, e dentro destas valorações recebem jus- tificativa para existir, regulada pela sua utilidade para o bem da vida humana; esta, entretanto, é o objetivo, para o qual concorrem os bens que lhes são servidores; assim, a vida corporal adquire uma im- portância muito maior quando se entende que ela não é somente um meio; antes disso, é para ela que existem os instrumentos (e como instrumentos, que- remos abarcar tudo o que há no mundo e se possa desfrutar como bem ou utilidade), para os quais a vida em si é o fim, embora ela mesma não tenha finalidade, nem em si mesma, nem fora de si mes- ma. O fim que se busque dar por fora de uma vida que em sua essência carece de sentido, jamais pode- ria alcançá-lo, deixando o assento etéreo em que re- pousa para se concretizar no mundo real. Uma vez
  • 64. 64 que se admite como ponto de partida que “a vida precisa de sentido” já se está a confessar que ela não o possui intrinsecamente, qual em relação aos seus demais atributos, como verbi gratia, a imanência e a autarquia, e a declará-la como incompleta e defici- ente por nascença e natureza. Qualquer “sentido” que se lhe dê, seguindo o argumento, apenas confir- mará que sem a companhia deste seu “protetor”, ela queda perdida e abandonada como sói às troianas desamparadas pela morte de Heitor. 30. Do valor da vida corporal em face da vida espiri- tual. - Desde Platão que a vida corporal é confronta- da com o seu duplo imaginário, o “mundo das idéi- as” ou “vida espiritual”, e em face dela é que foi possível estabelecer uma comparação valorativa, cujo resultado foi a depreciação da vida corporal em face da vida espiritual. Uma vez que se ponha de lado o “mundo das idéias”, a vida corporal volta a existir sendo só ela mesma como entidade singular e única, já não podendo mais estar sujeita a valorações ou a outras categorias que dependam de juízos compara- tivos. Por isso consideramos como o último niilismo a ser desmontado aquele que é o mais sutil: a con- cepção de que “a vida vale por ela mesma”. Para valer alguma coisa, ela teria que ser comparada a alguma coisa existente fora dela; se é comparada a ela mesma, tudo se reduz à proposição A = A. En- tão, não se diga que “a vida vale por ela mesma”, pois isto não se passa de um arranjo de palavras, ou pior: a confusão com a definição do jogo ou da arte,
  • 65. 65 enquanto atividades que se gratificam de per si. A arte ainda possui a complacência do belo, que a di- ferencia do jogo, embora pertença ao mesmo genos ou família. Uma vez que o jogo se define como o que se gratifica por si mesmo, a vida não pode ser redu- zida à definição de jogo. Duas coisas diferentes não podem ter a mesma definição. O jogo é que é subor- dinado aos atos da vida corporal, porque ele lhes pertence, ou seja, faz parte da vida sem ser a pró- pria vida. Posto que tudo o que possui valor o tem na medida em que seja bom ou útil à conservação da existência ou importe à sua preservação, a vida não tem valor, nem em si mesma, nem em face de outra forma de ser; a vida existe além de qualquer valor, e todos os valores são determinados tendo-a em vista, e nada tem valor fora dela. A atribuição de valor só tem pertinência quando se trata de seres contingen- tes, e a vida é a única coisa necessária. E o que é necessário não tem valor, sendo absolutamente ines- timável.
  • 66. 66
  • 68. 68
  • 69. 69 31. Da Estética como portadora do belo e do feio. - A Esté- tica tem por objeto não apenas o belo, mas também o feio, e o fazer estético muitas vezes confunde estes elementos na produção de um belo horrível que é tão mais sublime quanto mais se aproxima da concepção de que a vida pos- sui todos os elementos de uma grande tragédia, da qual as obras dos tragediógrafos são mimésis reduzidas. Não foi outraacompreensãodeCésarAugusto,quandoaomorrer exclamou acta est fabula, como se esperasse o cair de um pano e o som dos aplausos, e se algum sacrifício tivesse determinadoporfazer,sê-lo-iaaofilhodeSêmele,enãoao filhodeApolo.AtéhojesetemprocuradoentenderaEsté- tica como sendo um meio para produzir a beleza, talvez porque as inteligências mais superficiais desejem contem- plar apenas o que lhes agrada ver, desconsiderando a integralidade dos aspectos belos e feios da natureza huma- na, o que situa a definição tomista de que o belo seria id quod visum placet na proposta de uma concepção mera- mente voluptuária tanto da arte quanto da própria exis- tência: o belo já não é aquilo que eu sou, mas aquilo que eu desejoser... 32. Dasartesdaimitação.-Sãochamadasartesdeimita- çãoaquelasemqueseprocurareproduzirumdosaspectos do pensamento ou da existência; afigura-se impossível imitá-los sem que algum ideal contamine o fazer artístico,
  • 70. 70 seja de ordem prática (a tentativa de seguir a verossimi- lhança por si só já compromete a naturalidade na encena- ção) ou moral - é difícil, para o autor, não criar as persona- gens à sua própria imagem e semelhança, como se não pudesse escolher não ser deus - da mesma forma que é impossível ao sujeito conhecer dos fenômenos sem refletir neles algumas de suas próprias luzes. Quando Aristóteles enunciou que o teatro, por exemplo, é arte de imitação, ao lado de outras formas poéticas, não soube, porém, levar seu argumento às últimas conseqüências, e concluir que, uma vez que a vida é absurda, o teatro deveria também sê- lo,comoimitaçãodoabsurdodaexistência;masAristóteles era já um decadente, filho de um degenerado e neto de um monstro, e não conseguindo enxergar além do seu ideal de um mundo “melhorado” e “livre” da sua porção de dor e sofrimento,pensouqueatragédiadeveriainduziràcatharsis através do belo poéticodomesmomodoquesupunhapoder a prática da virtude depurar a vida criando a “felicidade” como um belo moral - o que despertaria o riso em Aquiles e Ulisses -; tamanho erro do Filósofo do Liceu não foi detectado pelos seus contemporâneos porque então sob os tacões de um seu discípulo a própria Grécia deixava de ser grega para se tornar “helenista” e o teatro trágico já não possuía autores capazes de refutar Aristóteles pela produ- ção de obras que desmentissem a sua Arte Poética. A deca- dência triunfou e o teatro deixou de imitar a vida para que imitasse apenas o ideal. 33. Distinção da arte do jogo. - A arte é aparentada com o jogo, dele se distinguindo pelo seu objeto, que no jogo é o desenrolar de uma série de movimentos que no conjunto
  • 71. 71 agradam devido à expectativa criada de um desfecho em que a sensação do aumento da potência do Homem seja alimentada - “eu venço porque sou mais rápido, mais alto e mais forte, isto é, sou mais poderoso”, diz o atleta para si ao final da carreira, ou como pensa de maneira supersticiosa o jogador de dados: “eu venço porque tive mais sorte do que o meu oponente, isto é, sou mais feliz” - e na arte os movimentos têm por objeto a projeção para fora de si do que existe dentro de si. O escultor talha a pedra e diz “isto é belo porque saiu de mim” - e a mulher ao se ver no espelho dizendo “eu sou bela”? Quem apenas observa sem nada criar ou acrescer, é igual à mulher. 34. Da espontaneidade da arte. - A arte é tão mais presente quanto mais é sentida a potência de vida: à medida em que esta é mais forte, maior é o impulso à imitação. As sociedades mais primitivas cultiva- ram o fenômeno artístico com ainda maior intensi- dade do que entre as modernas - não somente con- fundindo-se com os seus cultos religiosos e exteriorizando-se na produção de ídolos e outros ob- jetos rituais, mas em um fazer perspassando a todas as suas atividades - e não é de se estranhar ver nos povos bárbaros a arte mais espontânea do que entre nós, civilizados que de há muito perderam o pulso da vitalidade. Nestas sociedades dotadas da inge- nuidade de crianças guerreiras, é comum que as ar- tes menores (decoração e artesanato) convivam ao lado do que se costuma designar como artes maiores ou Belas-Artes. Assim, a construção de templos e o talhe de esculturas de deuses e heróis não parecem
  • 72. 72 gozar de maior importância do que a fundição artís- tica de torques, punhais e espadas, e à moldagem de vasos e utensílios domésticos. Perante o filólogo, essas peças guardam todas elas um valor inestimá- vel, independente de terem sido destinadas à glori- ficação dos feitos heróicos de homens célebres ou ao serviço das casas rústicas dos plebeus. Ninguém di- ria ser menos importante para a História da Grécia um vaso cozido na olaria de Dúris do que as colunas do Partenon esculpidas por Fídias. Nas sociedades primitivas ou antigas, subsiste a presença do labor artístico nas menores coisas cotidianas. Mesmo os utensílios domésticos mais ordinários recebem fi- nos detalhes e urdiduras delicadas, que os fazem ser únicos, e valiosos até os dias atuais, quando já per- deram a sua função primitiva (guardar água ou vi- nho, cortar carne) e são apreciados nos museus com o mesmo sentimento com que se observa às obras- primas da pintura renascentista e da escultura clás- sica. Que finalidade teriam as pinturas das crateras dos helênicos, se os vasos se destinavam apenas a misturar a água ao vinho? No entanto, para os gre- gos, o objeto que não tivesse um entalhe rebuscado, ou uma caprichada decoração era visto como incom- pleto, e até indigno de ser usado para os fins práti- cos que levavam à sua moldagem. E essa esponta- neidade da arte, presente nas culturas dos celtas e germânicos, e nas civilizações dos gregos, romanos, persas e babilônios, foi desaparecendo no Ocidente ao longo da História, ao dar lugar a uma mentalida- de, que reputamos equivocada, de supor uma hie- rarquia entre a arte dos monumentos de pedra e cal
  • 73. 73 e a arte dos utensílios domésticos e a das peças de uso comum. Os homens antigos desejavam sempre viver cercados de coisas belas, de fundirem-se à be- leza e impregnarem-se do belo em todos os momen- tos da vida cotidiana, que lhes fazia recordar a sua própria beleza natural, imitada nas suas obras. A produção artística era, para eles, um prolongamen- to mais refinado da beleza de suas próprias existên- cias. 35. Da arte e da técnica. - Arte significa “perfei- ção” (em grego aretê), e a perfeição entende com o projeto de criar uma obra acabada, para a qual nada se pode acrescentar e nada mais pode ser mudado, e cujo conhecimento é único e invariável em todos os tempos. A idéia de criação de um objeto que saiu incompleto das mãos de seu artífice e por isso que precise ser completado conforme as luzes de cada observador, evoca o conceito de uma técnica (em grego teknê), porque são as técnicas que precisam de aperfeiçoamento à medida que muda quem delas se serve. Os gregos chamavam tecnê àquilo que costu- mamos designar por “arte”, enquanto o aretê desig- nava a realização, no plano intelectual, de quem dominava todos os segredos das artes (tecnê), deten- do a plenitude da educação grega. 36. Distinção entre as Belas Artes e a dita “Arte Mo- derna”. - As Belas-Artes (pintura, escultura, arqui- tetura, música, dança e poesia) representam a ten-
  • 74. 74 tativa de concretização do ideal de se criar um todo perfeito e acabado, em que o observador não sinta o desejo de acrescentar-lhes nada. A sensação trans- mitida pelas Belas-Artes é de um deleite e embevecimento, seguidos pela vontade de compar- tilhar do espetáculo com outras pessoas - o que se quer compartilhar, todavia, não é a obra em si, mas a sua interpretação, de que o observador se orgulha de havê-la concebido como o artista em seu traba- lho. - Às Belas-Artes - ou antes, ao seu programa - damos o nome de ars-aretê pois tratam de obras que querem atingir a perfeição. Em oposição às Belas- Artes, há a dita “Arte-Moderna”, que assenta entre as suas premissas básicas o suprimir as regras esté- ticas; por isso, a esta daremos o nome de ars-tecnê de vez que o caráter inacabado destas obras aproxi- ma-a de uma técnica em contínua mutação. 37. Crítica das Belas-Artes. - A essência das Belas- Artes é a da ars-aretê, a perfeição da obra criada. Diz-se que a ars-aretê é perfeita porque nada de novo lhe pode ser acrescentado pelos seus observadores. Uma vez que tenha Apeles retocado as sandálias, o sapateiro não encontra mais o que corrigir no retra- to, ou seja, ninguém tem condições de refazer o sor- riso da “Gioconda”, mudar as feições do “Davi” ou o toucado da “Vênus dos Médicis”. A ars-aretê não muda nunca, embora variem os seus observadores, e a beleza que ela transmite, mimésis da humanida- de, é sentida por todos objetivamente, como se fi- zesse parte do mundo real - com a perenidade e fixi-