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Esta é uma história sobre mais que um encontro, mas encontros. É uma história sobre
perdas e sobre como o tempo é capaz de, se não curar, ao menos suavizar algumas
feridas. É uma história sobre pontes, sobre livros e sobre música; uma história sobre
uma garota numa jornada.

E é uma história de amor também. Afinal, não o são todas as histórias?




                                    Prelúdio
É uma verdade universalmente conhecida que um professor parte do pressuposto geral
de que seus alunos não têm outra coisa a fazer da vida além de estudar sua matéria. Eles
marcam trabalhos por cima de trabalhos, esquecendo-se até mesmo do detalhe de que
existem outros colegas professores, outras aulas, outros assuntos que compartilham o
interesse de seus pupilos.

Felizmente – ao menos, do ponto de vista de Sofia – as provas do primeiro trimestre já
eram passado agora, e ela só precisaria voltar a se preocupar com teoria, livros e
pesquisas noite adentro pelo final do período.

Claro que, no momento em que ela se reconfortara ao pensamento de paz e
tranqüilidade por pelo menos dois meses, o universo começara a conspirar contra os
alunos de Apreciação Musical e contra a própria Sofia em particular.

Tudo começou numa quarta-feira cinzenta, típica do início do período das chuvas.
Faltavam pouco mais de dez minutos para o término da manhã de aulas; alguns colegas
já começavam a guardar o material enquanto ela rabiscava, sem prestar atenção, uma
folha de papel.

Foi então que o professor soltou a bomba.

- É praxe, e parece também ser de preferência dos alunos, que as provas de final de
período sejam substituídas por trabalhos e seminários. Como eu não gostaria de
desapontar vocês... – nesse ponto, o professor deu um meio sorriso – Nosso projeto será
bem simples: vocês devem escolher uma história e fazer uma trilha sonora para ela. Ao
menos uma das canções deve ser uma composição original de vocês; de resto, podem
escolher livremente, do erudito ao pop rock, desde que expliquem o porquê de cada
música selecionada se adequar ao texto com que escolham trabalhar. Quero um trabalho
escrito, um CD com as músicas escolhidas interpretadas por vocês, juntamente com
cópias das versões originais. E, antes que eu me esqueça, não vale escolher uma trilha
pronta: quem chegar aqui com Tchaikovsky para falar de Romeu e Julieta 1ficará com
zero, ok?

Mais tarde, Sofia se lembraria apenas de ter piscado os olhos, confusa, enquanto a
classe se dissolvia num torvelinho de cores e cacofonia, diante do anúncio do professor
e do final da aula. Ela só conseguiu encontrar sentido no que escutara quando já estava a
meio caminho do ponto de ônibus e, tão logo compreendeu o que teria de fazer, fez uma
careta.

- Ei! O que foi que eu fiz para ser recebida com uma cara tão feia?

Voltando-se para a voz que acabara de interromper-lhe os pensamentos, Sofia suspirou.

- Eu não estou fazendo cara feia para você, Bia. A culpa é do professor Eugênio, que
passou um projeto de pesadelo para o final do período.


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   A Abertura-Fantasia Romeu e Julieta, de Piotr Ilitch Tchaikovsky, contém uma das melodias mais
famosas do mundo. O tema romântico do meio desta obra foi utilizado milhares de vezes em comerciais e
filmes.


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Beatriz sorriu, passando um braço sobre os ombros de Sofia. Eram amigas desde os
tempos do colégio, tendo mantido a amizade mesmo depois de seus caminhos terem
tomado rumos diferentes – embora não tão diferentes, uma vez que, embora suas
vocações não batessem, ainda estudavam no mesmo campus.

- Eu também tenho um projeto monstro para preparar até o final do período, e não faço
a menor idéia de qual tema escolher. – a outra moça suspirou – O que você tem de
fazer?

Inconscientemente, Sofia fez uma nova careta.

- Compor uma trilha sonora para uma história.

Bia ficou em silêncio por alguns instantes, um ligeiro sorriso aparecendo em seus
lábios.

- Gostei desse projeto. Foi uma idéia legal a do seu professor. Quer trocar comigo? Eu
escolho um livro, escolho as músicas temas dos personagens e você faz uma pesquisa
para mim sobre alguma coisa que tenha a ver com a Revolução Francesa. O que acha?

- Eu não me lembro de você ser capaz de compor música, Bia. – Sofia respondeu, dessa
vez sorrindo ligeiramente – Temo que terá de ficar com a Revolução Francesa.

- Não necessariamente a Revolução Francesa. Eu posso falar até da China se eu quiser,
desde que o acontecimento que eu escolha tenha ocorrido por essa época. – Beatriz
suspirou – Bem... o que você vai escolher? Já tem alguma idéia?

A essa altura, elas já tinham chegado ao ponto de ônibus, lotado, como sempre, por
aquele horário. Sofia se acomodou à sombra de uma árvore próxima, enquanto
vasculhava o início da rua, tentando descobrir algum ônibus a caminho.

- Eu não sei sequer por onde começar. – ela confessou – Detesto literatura.

A última parte foi quase sussurrada, num tom de voz magoado. Beatriz não respondeu,
apenas encarando a outra com uma expressão ligeiramente tristonha. Ela conhecia o
suficiente a amiga para saber o que estava por trás de tal declaração.

- Você podia pedir ajuda ao seu pai. – Beatriz observou – Ele guardou as coisas da sua
mãe, talvez ele possa... – ela respirou fundo – Talvez você possa encontrar nesse
material algo para te ajudar com o trabalho. E talvez você possa escolher alguma coisa
da mesma época histórica do meu seminário. Podemos trabalhar juntas.

Sofia voltou-se brevemente para a amiga, assentindo devagar com a cabeça.

- Eu ia gostar disso.


                              Primeiro Movimento2
2
  As partes de uma composição musical podem ser denominadas movimentos. Normalmente as suítes,
sonatas, sinfonias, concertos e outras do gênero é que possuem suas partes divididas em "movimentos".

                                                                                                   3
Orgulho & Preconceito
No silêncio do casarão, o riscar do lápis nas folhas de papel assumia uma dimensão
enervante. Apesar disso, nota por nota, ela continuava a copiar a partitura, tentando
manter seus olhos fixos na página inacabada.

Estava sendo particularmente difícil se concentrar naquele dia.

Sofia largou o lápis, cerrando as pálpebras por alguns instantes, para então levantar a
cabeça, focando sua atenção numa porta fechada, do outro lado do corredor que levava
ao salão.

Do outro lado daquela porta estava um lugar que, um dia, fora seu refúgio, seu segundo
lugar favorito em toda a casa – o primeiro, claro, era junto ao piano de meia cauda,
herança da avó, justamente onde se encontrava naquele instante.

O tinido de chaves na fechadura fê-la desviar a atenção para a porta, onde encontrou a
figura do pai, envergando o uniforme completo de oficial. O Capitão deu um meio
sorriso, enquanto tirava o quepe.

- Boa tarde, Sofia.

- Oi, pai. – ela balançou a cabeça à guisa de cumprimento.

Ele sorriu, dando um passo adiante para revelar outra pessoa atrás de si.

- Olha quem eu encontrei no caminho.

Bia sorriu, acenando com a mão.

- Vim para tratarmos do nosso grande projeto. – a mais nova sorriu – Não temos tempo
a perder.

A morena arqueou uma sobrancelha, cruzando os braços.

- Bia, você tem noção de que temos três meses para fazer isso?

- Nunca deixe para amanhã aquilo que pode fazer hoje, é o que minha mãe sempre diz.
– Beatriz retorquiu de imediato, já se aproximando da mesa, largando a mochila junto às
coisas da amiga – André tinha ficado de me trazer, mas acabou decidindo me trocar por
coisas mais interessantes; se não, eu teria chegado mais cedo.

Sofia observou o pai deixar a sala, sumindo por um dos muitos corredores, antes de se
voltar novamente para a outra moça. Beatriz sorria de orelha a orelha, já puxando uma
cadeira para si, largando-se de qualquer jeito sobre o estofado.

- Você um dia vai quebrar uma cadeira continuando a se sentar desse jeito. – Sofia
observou.

- Está me chamando de gorda? – Bia riu, balançando a cabeça - Sabe, eu adoro sua casa.

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- Beatriz, eu não conheço ninguém que consiga desviar de assunto de forma tão abrupta
e rápida quanto você. – Sofia riu também, deixando que o bom humor da outra a
contagiasse – E não sei o que há demais na minha casa.

- É porque você não mora em apartamento. Se você morasse num apartamento, logo iria
compreender porque eu gosto tanto da sua casa. Para começar, você tem um jardim e
não tem vizinhos em cima e embaixo de você. O que mais se pode querer da vida?

- Você é quem diz. – ela deu de ombros, voltando a atenção brevemente para seu
caderno de música, antes de voltar-se para Beatriz – O que o André tinha de mais
importante para fazer que não pode te deixar aqui?

Desta feita, Beatriz fez uma careta.

- Ele está apaixonado.

- Apaixonado? O André? – Sofia riu – Sério? E por que isso te deixa de mau humor?

- Bem, a começar, a garota tem namorado e, mesmo assim, fica dando bola para o meu
irmão. Eu só a vi uma vez, mas... não sei, Sofia, ela não me cheira bem.

- Talvez o perfume tenha passado do prazo de validade. – Sofia respondeu, sorrindo de
leve.

Refestelando-se contra o assento, Beatriz cruzou as mãos sobre a barriga, suspirando.

- Você bem que podia me ajudar com isso.

- É? E como você pretende que eu te ajude? – a morena cruzou os braços.

- Não sei... Você podia se apaixonar pelo meu irmão. E seduzi-lo para tirá-lo das garras
da harpia por quem ele está babando. – inclinando-se para frente, a caçula apoiou os
braços sobre a mesa, deitando o queixo contra as mãos – O que me diz?

- Que você andou bebendo, claro. – Sofia respondeu sem titubear – Primeiro, porque
nunca nem pensei no André assim; segundo, porque eu sou praticamente uma peça da
decoração quando ele eventualmente passa por mim, e terceiro... sério, Bia, eu tenho
cara de vilão de romance de banca, girando os bigodes enquanto planeja roubar a
virtude da mocinha? “Seduzir” o André?

- Ninguém pode dizer que eu não tentei. – Beatriz retrucou, resignada, endireitando-se –
Bem, vamos ao que interessa. Como vamos fazer nossos trabalhos?

- Para começar, eu tenho de escolher um livro e, considerando o seu trabalho, se formos
mesmo fazer isso juntas, terá de ser um romance histórico. Você, que faz voluntariado
na biblioteca, não deveria saber de alguma coisa que possamos usar?

- Eu não consigo me lembrar de nada agora. – Beatriz desculpou-se – Fora que os livros
com que eu trabalho na biblioteca são livros infantis. O que você acha de...

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- De que época estamos falando, exatamente? – uma voz masculina as interrompeu.

As duas se viraram para encontrar o Capitão parado atrás da filha, encarando-as com um
olhar curioso.

- O senhor estava ouvindo a conversa, pai? – Sofia arqueou uma sobrancelha.

- Não é como se vocês estivessem cochichando. Eu tenho plena certeza que poderia
escutá-las do jardim, se quisesse. – ele sorriu – Agora... devo entender que vocês estão
precisando de um romance histórico para fazer um trabalho para a faculdade?

Bia confirmou.

- Eu preciso fazer um projeto relacionado à transição da Idade Moderna para a Idade
Contemporânea, contemplando o mundo à época da Revolução Francesa. E Sofia
precisa criar uma trilha sonora para uma história. Pensamos que se ela escolhesse um
livro que se passasse nessa mesma era, poderíamos estudar e escrever juntas.

Ele anuiu, encarando-as em silêncio por alguns instantes, como se tentasse decidir
alguma coisa.

- Eu talvez possa ajudar vocês com isso.

- Pode? – Sofia perguntou – Se você sugerir algum livro sobre batalhas navais e
corsários, estou fora. Não faço a menor idéia do que eu poderia compor que casasse
com cenas de guerra.

- Eu estava pensando em outra coisa... – ele confessou, respirando fundo – Sua mãe
estava trabalhando num projeto antes do... antes do acidente.

Sofia sentou-se muito ereta na cadeira, piscando os olhos repetidas vezes, sua respiração
alterando-se levemente. Os olhos do pai estavam fixos sobre seu rosto e ela podia sentir
a atenção de Beatriz sobre si também.

Talvez fosse ridículo que, mesmo após mais de sete anos desde que a mãe falecera, ela
ainda reagisse com tamanha ansiedade e nervosismo à menção dela. Sofia não achava
que conseguisse mudar isso.

Respirando fundo de modo a se controlar, ela conseguiu responder ao pai.

- No que ela estava trabalhando?

Ele ainda a encarou por alguns instantes antes de caminhar na direção da porta fechada
que ela estivera tentando não olhar mais cedo: a porta da biblioteca.

- Sua mãe estava preparando uma tese sobre uma das autoras favoritas dela. Andava
para cima e para baixo com os livros da mulher, fazendo anotações, rindo sozinha e
fazendo caretas. – ele respondeu, enquanto sumia na biblioteca, não demorando a voltar


                                                                                       6
com um pequeno volume – Eu não sei quantas edições e traduções tem desse volume
por aqui; mas essa cópia era a que ela mais gostava, e está cheia de notas.

As duas garotas se inclinaram sobre a mesa quando ele depositou o livro entre elas. Era
óbvio que ele fora lido muitas vezes – as páginas estavam amareladas e um pouco
gastas nos cantos.

Sofia podia se lembrar de ver a mãe folheando-o – folheando aquele preciso volume –
deixando-o sobre sua mesa de cabeceira quando ia cobri-la, à noite. Ela mal ouviu
quando Beatriz começou a bater palmas e falar à velocidade de uma milha por minuto,
sua atenção presa no título que se lia na capa.

                                  Orgulho e Preconceito
                                      Jane Austen

- Eu já assisti ao filme, mas nunca pude ler o livro. – Sofia finalmente escutou a amiga,
que agora já começava a abrir o próprio caderno e começar a fazer anotações – É
absolutamente perfeito; Austen viveu à época da Regência na Inglaterra, justamente o
período máximo da Revolução, seguido pelas Guerras Napoleônicas. É isso, meu
trabalho será sobre a Era Regencial! Preciso pesquisar sobre a economia, política,
cultura e...

Sofia balançou ligeiramente a cabeça, voltando a ignorar as exclamações da amiga,
puxando o livro para si. Com cuidado, começou a passar as páginas, encontrando de
pronto a caligrafia fina e pequena da mãe.

Um pequeno sorriso lhe escapou ao mesmo tempo de uma lágrima. Rapidamente,
contudo, ela enxugou o rosto, erguendo os olhos para encontrar o pai ainda encarando-a,
como se esperasse alguma coisa.

Ela abriu um pouco mais o sorriso.

- Obrigada, Capitão.

Ele também sorriu, aquiescendo.

- Não há de quê. Bem, vou deixá-las trabalhar, senhoritas. – ele fez uma ligeira mesura
– Qualquer coisa que precisarem, me avisem.

As duas assentiram e Sofia finalmente concentrou-se em Beatriz.

- Então... como vamos fazer isso? – ela perguntou.

- Façamos o seguinte... o tio disse que tem várias cópias do livro aqui; então, vou pegar
uma emprestada. Como é um volume pequeno, acho que damos conta de terminar daqui
para amanhã. Aí, nos encontramos de tarde para discutir o que achamos e assistir ao
filme. O que acha?




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- Você que decide. – Sofia assentiu, voltando a abrir o livro na primeira página – “É
verdade universalmente reconhecida que um homem solteiro em posse de boa fortuna
deve estar necessitado de esposa.” Hum...

- Bem, vou indo, então, deixá-la com sua leitura. Posso pegar uma cópia do livro para
mim ali na biblioteca?

Sofia apenas acenou com a cabeça, aos poucos mergulhando nas palavras de Elizabeth
Bennet.

                                        ***

“- E esta é toda resposta que terei a honra de receber! Devo, talvez, esperar ser
informado da razão pela qual, com tão pouca consideração dada à cortesia, sou assim
rejeitado. Mas isso é de somenos importância.

- Devo do mesmo modo questionar – retrucou ela – por que, com tão evidente desejo de
me ofender e insultar, o senhor resolveu me dizer que gostou de mim contra a sua
vontade, contra o seu bom-senso e até contra o seu caráter? Não seria esta uma
desculpa para a descortesia, caso eu fosse descortês? Mas tenho outras provocações. O
senhor sabe que tenho. Não tivessem meus sentimentos se decidido contra o senhor...
tivessem sido indiferentes, ou mesmo tivessem alguma vez sido favoráveis, o senhor
acredita que alguma consideração me tentaria a aceitar o homem que foi a causa da
ruína, talvez para sempre, da felicidade da mais amada das irmãs?”

Já escurecera há muito quando Sofia se deu conta de que estava quase na metade do
livro. Passara as últimas três horas sentada, completamente absorta, sem se levantar
sequer para ir ao banheiro ou beber água.

Um senso de nostalgia perpassou sua memória – quando pequena, a mãe sempre lia para
ela; aos poucos, quando ela foi crescendo, as duas começaram a se revezar para ler em
voz alta, comentando as passagens que mais gostavam.

Fazia sete anos, quase oito, que a mãe morrera. Sete, quase oito anos em que não lia
algum livro que não fosse apenas por obrigação de escola ou faculdade – e mesmo
assim, de extrema má vontade.

Sofia não pode deixar de pensar que, se a mãe ainda fosse viva, elas já teriam lido
Orgulho e Preconceito. Ela contava 14 anos quando ocorreu o acidente – estavam, à
época, começando nos clássicos. O último livro que tinham lido juntas tinha sido uma
adaptação de Dom Quixote.

Levantando-se da cadeira, ela começou a arrumar seu material. Ia tomar um banho antes
de jantar e depois, continuaria com Lizzy e Mr. Darcy.

                                        ***

“- A senhorita é demasiado generosa para brincar comigo. Se seus sentimentos ainda
forem os mesmos que me revelou em abril, diga-me agora mesmo. Os meus afetos e


                                                                                    8
desejos não mudaram, mas uma palavra sua me silenciará para sempre a este
respeito.”

Os créditos finais já rolavam na tela quando Beatriz voltou-se para Sofia, sorrindo.

- O que achou?

- Tem algumas partes que são bem diferentes do livro. – a jovem retrucou, estendendo-
se no sofá e quase virando a vasilha de pipoca apoiada sobre a barriga – Mas eu gostei.

Beatriz tinha praticamente amanhecido em sua porta, com uma sacola em cada ombro –
uma cheia de guloseimas e outra com cadernos, livros e DVD’s. O pai de Sofia atendera
a jovem, permitindo que ela entrasse e seguisse direto para acordar a filha.

Tendo dormido tarde na noite anterior por conta do livro, Sofia perdera a hora e, por
conseqüência, foi praticamente arrastada da cama para a sala, onde recebeu pipoca e
guaraná – que consistira, aliás, em seu café da manhã – enquanto Beatriz colocava o
filme no aparelho.

- Descobri que tem uma série também. – Bia observou – Aparentemente, ela é mais fiel
ao livro. Estou mexendo meus pauzinhos para consegui-la emprestada, e, então,
podemos assisti-la também. O que acha?

Sofia bocejou por um momento antes de aprumar-se no sofá, semicerrando os olhos.

- Pode ser. De uma forma ou de outra, eu já tenho algumas idéias do que fazer para meu
trabalho. E o filme me inspirou qual seria a música tema de Lizzy e Darcy.

- Sério? – Beatriz riu – Então agora você vai me agradecer por ter te tirado da cama para
assisti-lo?

A morena abriu um único olho, encarando a amiga com uma expressão zombeteira.

- Não, eu ainda não perdoei sua indiscrição. Sério, Bia, sete horas da manhã num sábado
é uma hora muito cruel para se levantar. Eu podia ter deixado para assistir ao filme mais
tarde. Não é como se fosse mudar alguma coisa nele se você tivesse esperado pelo
menos mais umas duas horas.

Beatriz revirou os olhos, virando-se de volta para sua cama improvisada no tapete,
quase completamente coberto de almofadões. Sofia riu, balançando a cabeça.

- Não fique de birra, Bia... Você só precisa diminuir sua dose diária de açúcar e cafeína
e, tenho certeza, será um ser humano normal como todos os outros.

- Engraçado, André disse a mesma coisa para mim hoje de manhã. – Bia respondeu –
Vocês combinam.
Foi a vez de Sofia revirar os olhos.

- Sem comentários, Beatriz.


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Mais uma vez, Beatriz voltou-se para ela, apoiando o rosto contra a beira do sofá.

- Ok, nada de gracinhas, prometo que me comporto. Agora... Conte-me sobre as idéias
que teve. Eu estou curiosa sobre seus pensamentos acerca da história.

- Bem... Considerando que os acontecimentos são narrados do ponto de vista de
Elizabeth, acho que terei de dar uma ênfase em cantoras... Imagino Lizzy como um
contralto, porque ela não tem aquele ar etéreo da Jane; ela é a base de tudo, não o
adorno. Gosto de como ela evoluiu ao longo da história. Ela é forte, é inteligente, mas
não é isenta de falhas.

- Uma personagem totalmente crível, que muito bem poderia ser “a garota da casa ao
lado”. - Bia concordou. – Entendo o que você diz, exceto pela parte do contralto, claro.
O que isso tem a ver com o assunto é uma incógnita para mim; mas, não estudo música,
então, era de se esperar.

- Sua ignorância musical é uma afronta à minha sensibilidade, Beatriz. – Sofia
respondeu, com um sorriso – Você, obviamente, não é uma jovem prendada.

- Não que eu esteja preocupada com isso... – Beatriz assentiu – Continue. Você disse
que tinha uma idéia para a música tema do casal, seja lá o que isso queira significar.

Sofia soltou um suspiro de falsa resignação antes de satisfazer o pedido da outra.

- Talvez seja uma impressão solitária minha... Mas, tenho para mim que Lizzy e Darcy
passam boa parte da história dançando ao redor um do outro, tentando negar seus
próprios sentimentos, ou enrolando-se com conclusões erradas. Eles dançam uma
quadrilha, um minueto, vão e voltam entre outros casais. Há um momento no filme,
porém, que, embora não exista no livro, mostra uma outra dança, um outro ritmo.

- Sofia, não estou entendendo lhufas do que você está dizendo. – Beatriz confessou.

- Você nem sempre precisa entender de música, Bia. – Sofia retrucou – Ok, deixa eu ver
se me explico melhor... Você prestou atenção que, quando Lizzy e Jane deixam
Netherfield, Darcy ajuda Lizzy a subir na carruagem? Aquele é o primeiro momento em
que os dois têm um contato pele na pele.

- Hum... Continue...

- Agora, você deve saber que, àquela época, era difícil um casal ter espaço para
conversar a sós. O único momento que eles tinham para se conhecer, para cortejar,
flertar, ou seja lá como chamavam à época, era no salão de dança. E, das danças de
salão, a melhor para que o casal pudesse conversar é, sem dúvida, a valsa.
- Isso deveria fazer algum sentido? – Beatriz perguntou, arqueando uma sobrancelha.

- Faz todo o sentido do mundo. – Sofia respondeu de pronto – Veja, Bia... O que separa
Darcy e Lizzy por boa parte da história é a falta de comunicação entre eles. Há muitas
pessoas interpondo-se entre os dois; Wickham, Mr. Collins, Lady Catherine, os Bennet;
tudo como numa quadrilha. Eles só podem trocar algumas palavras de cada vez, rápido
demais para fazerem um juízo completo do caráter do outro. Apesar disso, por alguns

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momentos a sós, em Rosings e Pemberley, quando eles realmente podem conversar um
com o outro, quando têm o contato de uma valsa, eles se acertam... ou, ao menos, se
encaminham para um acerto.

- E você pensou nisso tudo porque eles ficam de mãos dadas por meio segundo sem
luvas entre eles? – Bia encarou-a quase com descrença – E eu achando que você não
tinha imaginação...

Sofia cruzou os braços.

- Não enche.

Beatriz começou a rir.

- Tudo bem, tudo bem, acho que consegui enxergar seu ponto. Lizzy e Darcy dançam
uma valsa. – ela se aquietou aos poucos, relaxando de volta em suas almofadas, ainda
encostada ao sofá – Bem... isso foi bom, não é?

- O que foi bom? A valsa? Ou você rindo de mim?

Devagar, Beatriz balançou a cabeça.

- Isso. Ler um romance. Reencontrar um antigo hobby. Comer chocolate no meio da
manhã. Fazer as pazes com sua mãe.

Por um instante, o olhar de Sofia perdeu-se, pensativo, entre lembranças.

- Sim... isso foi bom.

- Eu fico feliz, mesmo porque, tive uma brilhante idéia. – Beatriz se levantou,
espanando uma poeira imaginária da roupa – Temos seis livros para três meses e uma
época histórica para apreender. Então, daqui a quinze dias, vamos nos reunir para
discutir sobre outro livro de Austen.

- Sua brilhante idéia é um clube do livro?

- Você tem alguma coisa contra?

Sofia ponderou sobre o assunto por exato meio segundo, antes de se lembrar do
sentimento de nostálgico contentamento que lhe preenchera ao fechar a última página de
Orgulho e Preconceito na noite anterior.

Um encontro com Austen... um reencontro com sua mãe.

- Qual vai ser o próximo livro? – ela perguntou, sorrindo.
                           Segundo Movimento
                          Razão & Sensibilidade
- “Não, não – exclamou Marianne -, uma desgraça como a minha não tem orgulho.
Não me importa quem saiba que estou arrasada. O triunfo de me ver assim pode ser
                                                                                   11
distribuído a todo o mundo. Elinor, Elinor, os que sofrem pouco podem ser tão
orgulhosos e independentes quanto quiserem, podem resistir ao insulto ou devolver a
humilhação... mas eu não posso. Tenho de sentir... tenho de estar arrasada... e sejam
eles bem-vindos para apreciar a consciência disso.” – Sofia fechou o livro, marcando
com o dedo a página em que estava, antes de se voltar para a amiga – Marianne é a
maior drama queen que eu já vi na vida.

Beatriz levantou os olhos de sua própria cópia de Razão e Sensibilidade, observando a
morena com um meio sorriso.

- Sério, Sofia, se você continuar assim, vou pensar que você tem alguma coisa pessoal
contra a pobre Marianne.

- Não, nada pessoal. – ela balançou a cabeça – Apenas acho que ela exagera muito nessa
coisa de demonstrar seus sentimentos. – Sofia riu – Ela só não é pior que Catherine e
sua fixação por romances góticos.

Elas vinham se encontrando há dois meses naquele “clube de leitura” – já tinham
passado por Orgulho e Preconceito, A Abadia de Northanger e Emma, sem se
preocupar em lê-los em qualquer particular ordem.

Emma, particularmente, se tornara um dos favoritos da dupla, especialmente porque no
dia em que tinham se reunido para discuti-lo, o encontro fora na casa de Beatriz e a
caçula não perdera uma única oportunidade de citar o irmão e de como ficaria feliz se
Sofia se apaixonasse por André.

Sofia sorriu para si mesma, relembrando a conversa que se tinha seguido quando ela
finalmente perdeu a paciência...

“A morena arqueou uma sobrancelha.

- Sério, Bia? Você vai começar com isso de novo?

- Mas, Sofia...

- Olha, no dia em que você arranjar um noivo para você, eu deixo você se preocupar
com minha vida amorosa. Até lá...

- Se for assim, daqui a cinqüenta anos vamos ser duas velhas tias solteironas, criando
27 gatos e discutindo sobre quem vai limpar a caixa de areia.

A morena sentiu o riso escapar-lhe sem jeito, em meio a golfadas de ar, até que
estivesse gargalhando gostosamente.

- Você é alérgica, Bia, não poderíamos criar tantos gatos. – Sofia observou, após
conseguir se controlar o suficiente para responder – De qualquer jeito, o que você tem
contra casamentos?

- Você não sabe por que casamentos se realizam em altares? – Bia perguntou, um tanto
maliciosa.

                                                                                   12
Sofia piscou os olhos.

- Não... Por quê?

- Porque são nos altares que ocorrem os sacrifícios, Sofia.

- Eu não te entendo, Bia... – a outra balançou a cabeça – Se você tem uma opinião tão
cínica acerca de relacionamentos, porque insiste que eu arranje um jeito de gostar do
seu irmão?

Dando de ombros, Beatriz abaixou a cabeça, perdendo-se por alguns minutos na cópia
de Emma, ainda aberta sobre a mesa.

“- Não tenho nenhuma das habituais propensões das mulheres para casar. Se eu me
apaixonasse por alguém, seria diferente; mas nunca me apaixonei; não é do meu feitio,
nem da minha índole; creio que nunca me apaixonarei. E, sem amor, penso que seria
tola se quisesse trocar a situação que tenho.”

- Ok, Emma, vamos continuar logo com isso. E nem mais um pio sobre seu irmão.”

Naquela manhã, tinham começado Razão e Sensibilidade, revezando-se para ler em voz
alta, o tempo todo trocando comentários entre si.

- Eu acho que você está enxergando só os defeitos de Marianne porque há a figura de
Elinor para comparar a ela. – Bia observou, enquanto abria um pacote de salgadinhos –
Se não houvesse Elinor, talvez o comportamento de Marianne não fosse tão ofensivo
para você.

- Se não houvesse Elinor, Marianne provavelmente teria se matado no processo de
esquecer Willoughby. – Sofia retrucou, avançando várias páginas, como se procurasse
por algo – Na verdade, ela quase morreu, não foi?

- Bem, ela ficou doente... mas ainda não chegamos nessa parte do livro, pode ser que
seja diferente do filme. – Beatriz deu de ombros, voltando a atenção para o volume em
seu colo – Sabe, Elinor e Marianne me faz lembrar de nós duas. – ela confessou, com
um meio sorriso.

- É... e ninguém precisa questionar quem é quem na dupla, né? – Sofia deu um sorriso
de lado.

Bia cruzou os braços.

- Eu me ressinto que você não tenha alcançado meu ponto, Sofia, especialmente depois
de eu me esforçar tanto para entender suas viagens musicais. – Beatriz balançou a
cabeça, embora seu tom traísse que estava se divertindo com a discussão – Eu não acho
que Tia Jane tenha pensado completamente numa dicotomia quando batizou essa
história de Razão e Sensibilidade. Aliás, leve em consideração que o título original fala
de senso e sensibilidade e que o conceito de sensível não é necessariamente ser um


                                                                                      13
ultra-romântico, mas sim, alguém com facilidade de observar as impressões ao seu
redor.

- Tia Jane? – Sofia começou a rir – Sério, Bia? Você adotou a mulher agora?

- Ora, e por que não? A gente tem passado tanto tempo com os narizes enfiados nesses
livros que já podemos nos considerar íntimas.

Sofia suspirou, meneando a cabeça. Beatriz apenas sorriu. Ela sempre se preocupara
com a amiga – Sofia era, de uma forma geral, muito fechada, ensimesmada. Ela sabia
que era uma das poucas amigas da musicista, uma das poucas pessoas com quem Sofia
relaxava – embora, mesmo com ela, Sofia não se abrisse totalmente.

Desde que tinham começado aquelas reuniões quinzenais, contudo, a amiga estava...
senão mais sociável, ao menos mais leve, mais em paz. Beatriz sempre pensara em
Sofia como uma daquelas “artistas angustiadas”, como os poetas góticos e os músicos
deprimidos. Aparentemente, ler Austen e se reconectar com a mãe através daqueles
romances estava fazendo muito bem à jovem.

- Eu acho que vejo onde você está querendo chegar, Bia – a voz de Sofia fê-la despertar
de seus devaneios e ela se concentrou em ouvir -, mas você tem de convir que, no caso,
continuamos com uma dicotomia: Elinor é a pessoa sensível, capaz de compreender as
emoções das pessoas que a rodeiam, enquanto Marianne é sensível de uma perspectiva
egoísta, além do bom senso. – Sofia respirou fundo, tentando juntar seus argumentos –
Eu acho que equilíbrio...

- ESSA É A PALAVRA CHAVE! – Bia exclamou, batendo palmas e praticamente
pulando em pé – Veja, Sofia, não estamos falando aqui de qual irmã é melhor que a
outra. Ambas estão em falta: Marianne por sentir demais e Elinor por se reprimir
demais. Elinor passa mais da metade do livro sofrendo em silêncio sem necessidade;
poderia ter desabafado com a mãe ou com as irmãs.

- Só que Elinor sabia que, se desabafasse com elas, acabaria fazendo com que sofressem
ainda mais. – Sofia defendeu – Ela prefere cuidar da mãe e das irmãs, fazendo-se de
forte, engolindo seus sapos sem depositar o fardo que é dela nas costas de ninguém.

E ali estava cristalizado o ponto que Beatriz realmente queria discutir com Sofia desde
que tinham assistido ao filme e começado a ler o livro, mas ainda não tivera abertura
para fazer.

- Mas aí é que está... Elinor não precisava fazer isso. – Beatriz inclinou-se para frente,
observando firmemente a morena – Ela não precisava sofrer em silêncio. Talvez um dos
motivos pelos quais Marianne seja tão exacerbada em seus gostos, desgostos, paixões e
aversões seja justamente uma reação a isso. E você precisa lembrar que vemos Elinor
também crescer e amadurecer; e, com isso, alcançar seu “felizes para sempre” quando
ela se permite desabafar.

Por alguns instantes Sofia permaneceu em silêncio, encarando Beatriz, que respirava
entrecortadamente como quem acabara de correr uma maratona. Finalmente, Sofia deu
um meio sorriso, levantando-se para parar defronte à amiga.

                                                                                       14
- Acho que entendi seu ponto, Bia.

- Entendeu mesmo? – Beatriz retrucou, com uma voz quase tímida em comparação à
paixão com que se defendera apenas instantes antes.

Sofia assentiu.

- Quando eu precisar, sei que posso conversar com você.

A caçula respirou fundo, sorrindo.

- Ótimo. Vamos voltar ao livro, então.




                           Terceiro Movimento
                               Persuasão
Sentada no balanço da varanda, ela admirava a garoa fina que caía intermitente desde o
início daquela manhã, os olhos perdidos no meio do jardim. Tão imersa estava nos

                                                                                   15
próprios pensamentos que não o percebeu observando-a até que o balanço se mexesse
devagar sob o peso dele.

Voltando-se, Sofia deu um meio sorriso.

- Oi, pai. O senhor chegou cedo hoje.

- Eu não sei se cedo é a palavra mais acertada, depois de um plantão de mais de vinte e
quatro horas. – ele observou, desviando o olhar para o livro que ela tinha no colo –
Ainda em Austen? Pensei que você já tinha entregado seu projeto da faculdade. Você
não está de férias?

- É o último livro. – Sofia respondeu, dando de ombros – E, se cheguei até aqui, nada
mais justo que ir até o final, não?

Ele aquiesceu, tomando o volume com cuidado, observando a capa por alguns instantes
antes que um sorriso divertido cruzasse seu rosto.

- Sabe, eu sempre achei que sua mãe decidiu se casar comigo por causa desse livro.

A morena riu, balançando a cabeça.

- Eu desconfiei de algo do tipo, Capitão Frederico.

O homem suspirou, o sorriso tornando-se agora nostálgico.

- Persuasão era o livro favorito da sua mãe. Eu era Primeiro-tenente quando estávamos
namorando e, quando a pedi em casamento, ela aceitou, mas disse que a cerimônia seria
só depois que eu fosse promovido a Capitão, porque ela queria ser casada com um
Capitão Frederick.

Sofia o encarou, surpresa.

- O senhor está falando sério?

- Nunca tive certeza se ela estava falando a sério, porque, na época, faltava pouco para a
minha promoção. – foi a vez de ele dar de ombros – Mas eu não passaria por cima da
possibilidade.

Sofia piscou os olhos.

- Minha mãe era louca e só agora eu descubro isso?

- Sua mãe não era louca, Sofia. – ele riu – Apenas uma grande romântica. Aliás, você
também foi batizada por esse livro.
- Sofia Croft? – ela perguntou – A irmã do Capitão Wentworth? – ela coçou a ponta do
nariz, pensativa – E eu jurava que era por causa d’O Mundo de Sofia...

- A princípio, sua mãe queria chamá-la Anne. – o capitão continuou – Mas decidiu que
isso seria muito estranho, já que Anne e Frederick eram um casal, e eu sou seu pai.

                                                                                       16
Como não há nenhuma menção aos filhos dos Wentworth, ela achou que a irmã era a
escolha mais acertada.

- Em outras palavras, se mamãe tivesse conhecido um Mr. Darcy ela teria largado o
senhor, já que se chama Elisa? – Sofia perguntou, arqueando uma sobrancelha.

- Quem sabe? Sorte a minha que não temos nenhum Mr. Darcy andando por aqui, não
é?

Ela concordou com a cabeça, inclinando-se até encostar-se no ombro do pai,
observando-o enquanto ele folheava devagar algumas páginas do livro.

- Isso é... bom. – Sofia observou baixinho – Nós nunca conversamos sobre a mamãe
assim.

Recostando-se melhor contra o balanço, ele passou um braço livre pelas costas da filha,
aconchegando-a melhor a si.

- Eu nunca tive muita certeza sobre como me aproximar do assunto com você. – ele
confessou – Você já era uma criança tímida antes do acidente, Sofia, e, depois da morte
da sua mãe... nem eu sabia exatamente o que fazer e você simplesmente se fechou em si
mesma, evitando todas as coisas que formavam sua relação com sua mãe. De início,
tentei conversar com você sobre o assunto, mas você sempre fugia ou irrompia em
lágrimas e se recusava a falar... então eu achei que, com o tempo, você iria superar e
que, se precisasse, viria conversar comigo. – ele soltou outro suspiro – Talvez eu
devesse ter insistido um pouco mais.

- Não, pai. – ela meneou a cabeça, virando-se até poder encará-lo – O senhor tinha
razão. Eu precisei de tempo para poder fazer as pazes com a idéia de que ela não ia
voltar... eu tentava ignorar aquele vazio no peito... e, depois, acho que simplesmente me
acostumei a não pensar nisso. E, no processo, acabei esquecendo também das coisas
boas... das memórias que me faziam sorrir. – desta feita, foi Sofia quem deu um longo
suspiro – Quando comecei a ler esses livros e a pensar que a mamãe também os tinha
lido, foi como... como estender uma ponte para essas memórias.

- Estender uma ponte para as memórias. – ele repetiu, anuindo – É uma expressão
interessante. Eu gosto dela. Bastante poética.

Sofia riu baixinho, voltando a recostar-se nele.

- “Ali trocaram eles de novo aquelas juras e promessas que outrora pareceram
assegurar-lhes tudo, mas que tinham sido seguidas de tantos, tantos anos de separação
e indiferença. Ali regressaram eles ao passado, mas intensamente felizes, talvez, na sua
nova união, do que quando esta fora projetada pela primeira vez; mais meigos, mais
experimentados, mais seguros do conhecimento do caráter, da sinceridade e do afeto
um do outro; mais capazes de agir, com mais motivos para agir.” – ele leu em voz alta,
passando a página para continuar – “E ali, enquanto subiam lentamente a colina,
alheios aos grupos que os rodeavam, não vendo nem os políticos que por ali
vagueavam, nem as governantas azafamadas, nem as meninas que namoravam, nem
amas nem crianças, puderam entregar-se às recordações e principalmente às

                                                                                      17
explicações do que precedera imediatamente o momento presente, as quais tinham um
interesse tão intenso e tão infindável.”

- Acho que Persuasão também é meu livro favorito de Austen. – Sofia observou,
quando o pai terminou o parágrafo.

- É mesmo? – ele perguntou, abaixando o livro – E por que seria isso?

- Porque esse é um livro sobre reencontros... e sobre uma segunda chance. – ela sorriu –
E também, claro, porque meu pai é o Capitão Frederico.

Ele soltou uma gargalhada em resposta.

- Acho que é o meu livro favorito, também. – ele respondeu – Sua mãe praticamente me
obrigou a lê-lo, embora, para ser sincero, eu já o planejasse fazê-lo sem a pressão dela.
Você já terminou?

Sofia assentiu, ao mesmo tempo em que se levantava do balanço, espreguiçando-se.

- Tenho que mandar um e-mail para a Bia dizendo o que achei do livro. Ela está
viajando nessas férias, mas me fez prometer que escreveria quando terminasse. E estou
com o filme de Persuasão aí. Quer assistir comigo mais tarde?

- Claro. Eu providencio a pipoca. – ele respondeu, entregando o volume para ela.

Com isso, ela se voltou para dentro da casa, dirigindo-se até a biblioteca para guardar o
livro. Naqueles últimos meses, ela voltara a freqüentar aquele cômodo específico,
reencontrando ali o mesmo refúgio com que se acostumara quando era criança.

Com cuidado, ela empurrou o volume de volta para seu lugar na estante, o olhar fixo no
porta-retratos sobre a mesa ao lado, onde a figura da mãe sorria, piscando um olho para
ela.

Dando um último sorriso na direção da fotografia, ela desviou novamente a atenção
para a estante. A coleção completa dos romances de Tia Jane e encararam de volta.

- Obrigada, Miss Austen. – ela murmurou, para então voltar-se para a saída, apagando a
luz e fechando a porta.




                                                                                      18

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Um encontro com austen

  • 1. Esta é uma história sobre mais que um encontro, mas encontros. É uma história sobre perdas e sobre como o tempo é capaz de, se não curar, ao menos suavizar algumas feridas. É uma história sobre pontes, sobre livros e sobre música; uma história sobre uma garota numa jornada. E é uma história de amor também. Afinal, não o são todas as histórias? Prelúdio
  • 2. É uma verdade universalmente conhecida que um professor parte do pressuposto geral de que seus alunos não têm outra coisa a fazer da vida além de estudar sua matéria. Eles marcam trabalhos por cima de trabalhos, esquecendo-se até mesmo do detalhe de que existem outros colegas professores, outras aulas, outros assuntos que compartilham o interesse de seus pupilos. Felizmente – ao menos, do ponto de vista de Sofia – as provas do primeiro trimestre já eram passado agora, e ela só precisaria voltar a se preocupar com teoria, livros e pesquisas noite adentro pelo final do período. Claro que, no momento em que ela se reconfortara ao pensamento de paz e tranqüilidade por pelo menos dois meses, o universo começara a conspirar contra os alunos de Apreciação Musical e contra a própria Sofia em particular. Tudo começou numa quarta-feira cinzenta, típica do início do período das chuvas. Faltavam pouco mais de dez minutos para o término da manhã de aulas; alguns colegas já começavam a guardar o material enquanto ela rabiscava, sem prestar atenção, uma folha de papel. Foi então que o professor soltou a bomba. - É praxe, e parece também ser de preferência dos alunos, que as provas de final de período sejam substituídas por trabalhos e seminários. Como eu não gostaria de desapontar vocês... – nesse ponto, o professor deu um meio sorriso – Nosso projeto será bem simples: vocês devem escolher uma história e fazer uma trilha sonora para ela. Ao menos uma das canções deve ser uma composição original de vocês; de resto, podem escolher livremente, do erudito ao pop rock, desde que expliquem o porquê de cada música selecionada se adequar ao texto com que escolham trabalhar. Quero um trabalho escrito, um CD com as músicas escolhidas interpretadas por vocês, juntamente com cópias das versões originais. E, antes que eu me esqueça, não vale escolher uma trilha pronta: quem chegar aqui com Tchaikovsky para falar de Romeu e Julieta 1ficará com zero, ok? Mais tarde, Sofia se lembraria apenas de ter piscado os olhos, confusa, enquanto a classe se dissolvia num torvelinho de cores e cacofonia, diante do anúncio do professor e do final da aula. Ela só conseguiu encontrar sentido no que escutara quando já estava a meio caminho do ponto de ônibus e, tão logo compreendeu o que teria de fazer, fez uma careta. - Ei! O que foi que eu fiz para ser recebida com uma cara tão feia? Voltando-se para a voz que acabara de interromper-lhe os pensamentos, Sofia suspirou. - Eu não estou fazendo cara feia para você, Bia. A culpa é do professor Eugênio, que passou um projeto de pesadelo para o final do período. 1 A Abertura-Fantasia Romeu e Julieta, de Piotr Ilitch Tchaikovsky, contém uma das melodias mais famosas do mundo. O tema romântico do meio desta obra foi utilizado milhares de vezes em comerciais e filmes. 2
  • 3. Beatriz sorriu, passando um braço sobre os ombros de Sofia. Eram amigas desde os tempos do colégio, tendo mantido a amizade mesmo depois de seus caminhos terem tomado rumos diferentes – embora não tão diferentes, uma vez que, embora suas vocações não batessem, ainda estudavam no mesmo campus. - Eu também tenho um projeto monstro para preparar até o final do período, e não faço a menor idéia de qual tema escolher. – a outra moça suspirou – O que você tem de fazer? Inconscientemente, Sofia fez uma nova careta. - Compor uma trilha sonora para uma história. Bia ficou em silêncio por alguns instantes, um ligeiro sorriso aparecendo em seus lábios. - Gostei desse projeto. Foi uma idéia legal a do seu professor. Quer trocar comigo? Eu escolho um livro, escolho as músicas temas dos personagens e você faz uma pesquisa para mim sobre alguma coisa que tenha a ver com a Revolução Francesa. O que acha? - Eu não me lembro de você ser capaz de compor música, Bia. – Sofia respondeu, dessa vez sorrindo ligeiramente – Temo que terá de ficar com a Revolução Francesa. - Não necessariamente a Revolução Francesa. Eu posso falar até da China se eu quiser, desde que o acontecimento que eu escolha tenha ocorrido por essa época. – Beatriz suspirou – Bem... o que você vai escolher? Já tem alguma idéia? A essa altura, elas já tinham chegado ao ponto de ônibus, lotado, como sempre, por aquele horário. Sofia se acomodou à sombra de uma árvore próxima, enquanto vasculhava o início da rua, tentando descobrir algum ônibus a caminho. - Eu não sei sequer por onde começar. – ela confessou – Detesto literatura. A última parte foi quase sussurrada, num tom de voz magoado. Beatriz não respondeu, apenas encarando a outra com uma expressão ligeiramente tristonha. Ela conhecia o suficiente a amiga para saber o que estava por trás de tal declaração. - Você podia pedir ajuda ao seu pai. – Beatriz observou – Ele guardou as coisas da sua mãe, talvez ele possa... – ela respirou fundo – Talvez você possa encontrar nesse material algo para te ajudar com o trabalho. E talvez você possa escolher alguma coisa da mesma época histórica do meu seminário. Podemos trabalhar juntas. Sofia voltou-se brevemente para a amiga, assentindo devagar com a cabeça. - Eu ia gostar disso. Primeiro Movimento2 2 As partes de uma composição musical podem ser denominadas movimentos. Normalmente as suítes, sonatas, sinfonias, concertos e outras do gênero é que possuem suas partes divididas em "movimentos". 3
  • 4. Orgulho & Preconceito No silêncio do casarão, o riscar do lápis nas folhas de papel assumia uma dimensão enervante. Apesar disso, nota por nota, ela continuava a copiar a partitura, tentando manter seus olhos fixos na página inacabada. Estava sendo particularmente difícil se concentrar naquele dia. Sofia largou o lápis, cerrando as pálpebras por alguns instantes, para então levantar a cabeça, focando sua atenção numa porta fechada, do outro lado do corredor que levava ao salão. Do outro lado daquela porta estava um lugar que, um dia, fora seu refúgio, seu segundo lugar favorito em toda a casa – o primeiro, claro, era junto ao piano de meia cauda, herança da avó, justamente onde se encontrava naquele instante. O tinido de chaves na fechadura fê-la desviar a atenção para a porta, onde encontrou a figura do pai, envergando o uniforme completo de oficial. O Capitão deu um meio sorriso, enquanto tirava o quepe. - Boa tarde, Sofia. - Oi, pai. – ela balançou a cabeça à guisa de cumprimento. Ele sorriu, dando um passo adiante para revelar outra pessoa atrás de si. - Olha quem eu encontrei no caminho. Bia sorriu, acenando com a mão. - Vim para tratarmos do nosso grande projeto. – a mais nova sorriu – Não temos tempo a perder. A morena arqueou uma sobrancelha, cruzando os braços. - Bia, você tem noção de que temos três meses para fazer isso? - Nunca deixe para amanhã aquilo que pode fazer hoje, é o que minha mãe sempre diz. – Beatriz retorquiu de imediato, já se aproximando da mesa, largando a mochila junto às coisas da amiga – André tinha ficado de me trazer, mas acabou decidindo me trocar por coisas mais interessantes; se não, eu teria chegado mais cedo. Sofia observou o pai deixar a sala, sumindo por um dos muitos corredores, antes de se voltar novamente para a outra moça. Beatriz sorria de orelha a orelha, já puxando uma cadeira para si, largando-se de qualquer jeito sobre o estofado. - Você um dia vai quebrar uma cadeira continuando a se sentar desse jeito. – Sofia observou. - Está me chamando de gorda? – Bia riu, balançando a cabeça - Sabe, eu adoro sua casa. 4
  • 5. - Beatriz, eu não conheço ninguém que consiga desviar de assunto de forma tão abrupta e rápida quanto você. – Sofia riu também, deixando que o bom humor da outra a contagiasse – E não sei o que há demais na minha casa. - É porque você não mora em apartamento. Se você morasse num apartamento, logo iria compreender porque eu gosto tanto da sua casa. Para começar, você tem um jardim e não tem vizinhos em cima e embaixo de você. O que mais se pode querer da vida? - Você é quem diz. – ela deu de ombros, voltando a atenção brevemente para seu caderno de música, antes de voltar-se para Beatriz – O que o André tinha de mais importante para fazer que não pode te deixar aqui? Desta feita, Beatriz fez uma careta. - Ele está apaixonado. - Apaixonado? O André? – Sofia riu – Sério? E por que isso te deixa de mau humor? - Bem, a começar, a garota tem namorado e, mesmo assim, fica dando bola para o meu irmão. Eu só a vi uma vez, mas... não sei, Sofia, ela não me cheira bem. - Talvez o perfume tenha passado do prazo de validade. – Sofia respondeu, sorrindo de leve. Refestelando-se contra o assento, Beatriz cruzou as mãos sobre a barriga, suspirando. - Você bem que podia me ajudar com isso. - É? E como você pretende que eu te ajude? – a morena cruzou os braços. - Não sei... Você podia se apaixonar pelo meu irmão. E seduzi-lo para tirá-lo das garras da harpia por quem ele está babando. – inclinando-se para frente, a caçula apoiou os braços sobre a mesa, deitando o queixo contra as mãos – O que me diz? - Que você andou bebendo, claro. – Sofia respondeu sem titubear – Primeiro, porque nunca nem pensei no André assim; segundo, porque eu sou praticamente uma peça da decoração quando ele eventualmente passa por mim, e terceiro... sério, Bia, eu tenho cara de vilão de romance de banca, girando os bigodes enquanto planeja roubar a virtude da mocinha? “Seduzir” o André? - Ninguém pode dizer que eu não tentei. – Beatriz retrucou, resignada, endireitando-se – Bem, vamos ao que interessa. Como vamos fazer nossos trabalhos? - Para começar, eu tenho de escolher um livro e, considerando o seu trabalho, se formos mesmo fazer isso juntas, terá de ser um romance histórico. Você, que faz voluntariado na biblioteca, não deveria saber de alguma coisa que possamos usar? - Eu não consigo me lembrar de nada agora. – Beatriz desculpou-se – Fora que os livros com que eu trabalho na biblioteca são livros infantis. O que você acha de... 5
  • 6. - De que época estamos falando, exatamente? – uma voz masculina as interrompeu. As duas se viraram para encontrar o Capitão parado atrás da filha, encarando-as com um olhar curioso. - O senhor estava ouvindo a conversa, pai? – Sofia arqueou uma sobrancelha. - Não é como se vocês estivessem cochichando. Eu tenho plena certeza que poderia escutá-las do jardim, se quisesse. – ele sorriu – Agora... devo entender que vocês estão precisando de um romance histórico para fazer um trabalho para a faculdade? Bia confirmou. - Eu preciso fazer um projeto relacionado à transição da Idade Moderna para a Idade Contemporânea, contemplando o mundo à época da Revolução Francesa. E Sofia precisa criar uma trilha sonora para uma história. Pensamos que se ela escolhesse um livro que se passasse nessa mesma era, poderíamos estudar e escrever juntas. Ele anuiu, encarando-as em silêncio por alguns instantes, como se tentasse decidir alguma coisa. - Eu talvez possa ajudar vocês com isso. - Pode? – Sofia perguntou – Se você sugerir algum livro sobre batalhas navais e corsários, estou fora. Não faço a menor idéia do que eu poderia compor que casasse com cenas de guerra. - Eu estava pensando em outra coisa... – ele confessou, respirando fundo – Sua mãe estava trabalhando num projeto antes do... antes do acidente. Sofia sentou-se muito ereta na cadeira, piscando os olhos repetidas vezes, sua respiração alterando-se levemente. Os olhos do pai estavam fixos sobre seu rosto e ela podia sentir a atenção de Beatriz sobre si também. Talvez fosse ridículo que, mesmo após mais de sete anos desde que a mãe falecera, ela ainda reagisse com tamanha ansiedade e nervosismo à menção dela. Sofia não achava que conseguisse mudar isso. Respirando fundo de modo a se controlar, ela conseguiu responder ao pai. - No que ela estava trabalhando? Ele ainda a encarou por alguns instantes antes de caminhar na direção da porta fechada que ela estivera tentando não olhar mais cedo: a porta da biblioteca. - Sua mãe estava preparando uma tese sobre uma das autoras favoritas dela. Andava para cima e para baixo com os livros da mulher, fazendo anotações, rindo sozinha e fazendo caretas. – ele respondeu, enquanto sumia na biblioteca, não demorando a voltar 6
  • 7. com um pequeno volume – Eu não sei quantas edições e traduções tem desse volume por aqui; mas essa cópia era a que ela mais gostava, e está cheia de notas. As duas garotas se inclinaram sobre a mesa quando ele depositou o livro entre elas. Era óbvio que ele fora lido muitas vezes – as páginas estavam amareladas e um pouco gastas nos cantos. Sofia podia se lembrar de ver a mãe folheando-o – folheando aquele preciso volume – deixando-o sobre sua mesa de cabeceira quando ia cobri-la, à noite. Ela mal ouviu quando Beatriz começou a bater palmas e falar à velocidade de uma milha por minuto, sua atenção presa no título que se lia na capa. Orgulho e Preconceito Jane Austen - Eu já assisti ao filme, mas nunca pude ler o livro. – Sofia finalmente escutou a amiga, que agora já começava a abrir o próprio caderno e começar a fazer anotações – É absolutamente perfeito; Austen viveu à época da Regência na Inglaterra, justamente o período máximo da Revolução, seguido pelas Guerras Napoleônicas. É isso, meu trabalho será sobre a Era Regencial! Preciso pesquisar sobre a economia, política, cultura e... Sofia balançou ligeiramente a cabeça, voltando a ignorar as exclamações da amiga, puxando o livro para si. Com cuidado, começou a passar as páginas, encontrando de pronto a caligrafia fina e pequena da mãe. Um pequeno sorriso lhe escapou ao mesmo tempo de uma lágrima. Rapidamente, contudo, ela enxugou o rosto, erguendo os olhos para encontrar o pai ainda encarando-a, como se esperasse alguma coisa. Ela abriu um pouco mais o sorriso. - Obrigada, Capitão. Ele também sorriu, aquiescendo. - Não há de quê. Bem, vou deixá-las trabalhar, senhoritas. – ele fez uma ligeira mesura – Qualquer coisa que precisarem, me avisem. As duas assentiram e Sofia finalmente concentrou-se em Beatriz. - Então... como vamos fazer isso? – ela perguntou. - Façamos o seguinte... o tio disse que tem várias cópias do livro aqui; então, vou pegar uma emprestada. Como é um volume pequeno, acho que damos conta de terminar daqui para amanhã. Aí, nos encontramos de tarde para discutir o que achamos e assistir ao filme. O que acha? 7
  • 8. - Você que decide. – Sofia assentiu, voltando a abrir o livro na primeira página – “É verdade universalmente reconhecida que um homem solteiro em posse de boa fortuna deve estar necessitado de esposa.” Hum... - Bem, vou indo, então, deixá-la com sua leitura. Posso pegar uma cópia do livro para mim ali na biblioteca? Sofia apenas acenou com a cabeça, aos poucos mergulhando nas palavras de Elizabeth Bennet. *** “- E esta é toda resposta que terei a honra de receber! Devo, talvez, esperar ser informado da razão pela qual, com tão pouca consideração dada à cortesia, sou assim rejeitado. Mas isso é de somenos importância. - Devo do mesmo modo questionar – retrucou ela – por que, com tão evidente desejo de me ofender e insultar, o senhor resolveu me dizer que gostou de mim contra a sua vontade, contra o seu bom-senso e até contra o seu caráter? Não seria esta uma desculpa para a descortesia, caso eu fosse descortês? Mas tenho outras provocações. O senhor sabe que tenho. Não tivessem meus sentimentos se decidido contra o senhor... tivessem sido indiferentes, ou mesmo tivessem alguma vez sido favoráveis, o senhor acredita que alguma consideração me tentaria a aceitar o homem que foi a causa da ruína, talvez para sempre, da felicidade da mais amada das irmãs?” Já escurecera há muito quando Sofia se deu conta de que estava quase na metade do livro. Passara as últimas três horas sentada, completamente absorta, sem se levantar sequer para ir ao banheiro ou beber água. Um senso de nostalgia perpassou sua memória – quando pequena, a mãe sempre lia para ela; aos poucos, quando ela foi crescendo, as duas começaram a se revezar para ler em voz alta, comentando as passagens que mais gostavam. Fazia sete anos, quase oito, que a mãe morrera. Sete, quase oito anos em que não lia algum livro que não fosse apenas por obrigação de escola ou faculdade – e mesmo assim, de extrema má vontade. Sofia não pode deixar de pensar que, se a mãe ainda fosse viva, elas já teriam lido Orgulho e Preconceito. Ela contava 14 anos quando ocorreu o acidente – estavam, à época, começando nos clássicos. O último livro que tinham lido juntas tinha sido uma adaptação de Dom Quixote. Levantando-se da cadeira, ela começou a arrumar seu material. Ia tomar um banho antes de jantar e depois, continuaria com Lizzy e Mr. Darcy. *** “- A senhorita é demasiado generosa para brincar comigo. Se seus sentimentos ainda forem os mesmos que me revelou em abril, diga-me agora mesmo. Os meus afetos e 8
  • 9. desejos não mudaram, mas uma palavra sua me silenciará para sempre a este respeito.” Os créditos finais já rolavam na tela quando Beatriz voltou-se para Sofia, sorrindo. - O que achou? - Tem algumas partes que são bem diferentes do livro. – a jovem retrucou, estendendo- se no sofá e quase virando a vasilha de pipoca apoiada sobre a barriga – Mas eu gostei. Beatriz tinha praticamente amanhecido em sua porta, com uma sacola em cada ombro – uma cheia de guloseimas e outra com cadernos, livros e DVD’s. O pai de Sofia atendera a jovem, permitindo que ela entrasse e seguisse direto para acordar a filha. Tendo dormido tarde na noite anterior por conta do livro, Sofia perdera a hora e, por conseqüência, foi praticamente arrastada da cama para a sala, onde recebeu pipoca e guaraná – que consistira, aliás, em seu café da manhã – enquanto Beatriz colocava o filme no aparelho. - Descobri que tem uma série também. – Bia observou – Aparentemente, ela é mais fiel ao livro. Estou mexendo meus pauzinhos para consegui-la emprestada, e, então, podemos assisti-la também. O que acha? Sofia bocejou por um momento antes de aprumar-se no sofá, semicerrando os olhos. - Pode ser. De uma forma ou de outra, eu já tenho algumas idéias do que fazer para meu trabalho. E o filme me inspirou qual seria a música tema de Lizzy e Darcy. - Sério? – Beatriz riu – Então agora você vai me agradecer por ter te tirado da cama para assisti-lo? A morena abriu um único olho, encarando a amiga com uma expressão zombeteira. - Não, eu ainda não perdoei sua indiscrição. Sério, Bia, sete horas da manhã num sábado é uma hora muito cruel para se levantar. Eu podia ter deixado para assistir ao filme mais tarde. Não é como se fosse mudar alguma coisa nele se você tivesse esperado pelo menos mais umas duas horas. Beatriz revirou os olhos, virando-se de volta para sua cama improvisada no tapete, quase completamente coberto de almofadões. Sofia riu, balançando a cabeça. - Não fique de birra, Bia... Você só precisa diminuir sua dose diária de açúcar e cafeína e, tenho certeza, será um ser humano normal como todos os outros. - Engraçado, André disse a mesma coisa para mim hoje de manhã. – Bia respondeu – Vocês combinam. Foi a vez de Sofia revirar os olhos. - Sem comentários, Beatriz. 9
  • 10. Mais uma vez, Beatriz voltou-se para ela, apoiando o rosto contra a beira do sofá. - Ok, nada de gracinhas, prometo que me comporto. Agora... Conte-me sobre as idéias que teve. Eu estou curiosa sobre seus pensamentos acerca da história. - Bem... Considerando que os acontecimentos são narrados do ponto de vista de Elizabeth, acho que terei de dar uma ênfase em cantoras... Imagino Lizzy como um contralto, porque ela não tem aquele ar etéreo da Jane; ela é a base de tudo, não o adorno. Gosto de como ela evoluiu ao longo da história. Ela é forte, é inteligente, mas não é isenta de falhas. - Uma personagem totalmente crível, que muito bem poderia ser “a garota da casa ao lado”. - Bia concordou. – Entendo o que você diz, exceto pela parte do contralto, claro. O que isso tem a ver com o assunto é uma incógnita para mim; mas, não estudo música, então, era de se esperar. - Sua ignorância musical é uma afronta à minha sensibilidade, Beatriz. – Sofia respondeu, com um sorriso – Você, obviamente, não é uma jovem prendada. - Não que eu esteja preocupada com isso... – Beatriz assentiu – Continue. Você disse que tinha uma idéia para a música tema do casal, seja lá o que isso queira significar. Sofia soltou um suspiro de falsa resignação antes de satisfazer o pedido da outra. - Talvez seja uma impressão solitária minha... Mas, tenho para mim que Lizzy e Darcy passam boa parte da história dançando ao redor um do outro, tentando negar seus próprios sentimentos, ou enrolando-se com conclusões erradas. Eles dançam uma quadrilha, um minueto, vão e voltam entre outros casais. Há um momento no filme, porém, que, embora não exista no livro, mostra uma outra dança, um outro ritmo. - Sofia, não estou entendendo lhufas do que você está dizendo. – Beatriz confessou. - Você nem sempre precisa entender de música, Bia. – Sofia retrucou – Ok, deixa eu ver se me explico melhor... Você prestou atenção que, quando Lizzy e Jane deixam Netherfield, Darcy ajuda Lizzy a subir na carruagem? Aquele é o primeiro momento em que os dois têm um contato pele na pele. - Hum... Continue... - Agora, você deve saber que, àquela época, era difícil um casal ter espaço para conversar a sós. O único momento que eles tinham para se conhecer, para cortejar, flertar, ou seja lá como chamavam à época, era no salão de dança. E, das danças de salão, a melhor para que o casal pudesse conversar é, sem dúvida, a valsa. - Isso deveria fazer algum sentido? – Beatriz perguntou, arqueando uma sobrancelha. - Faz todo o sentido do mundo. – Sofia respondeu de pronto – Veja, Bia... O que separa Darcy e Lizzy por boa parte da história é a falta de comunicação entre eles. Há muitas pessoas interpondo-se entre os dois; Wickham, Mr. Collins, Lady Catherine, os Bennet; tudo como numa quadrilha. Eles só podem trocar algumas palavras de cada vez, rápido demais para fazerem um juízo completo do caráter do outro. Apesar disso, por alguns 10
  • 11. momentos a sós, em Rosings e Pemberley, quando eles realmente podem conversar um com o outro, quando têm o contato de uma valsa, eles se acertam... ou, ao menos, se encaminham para um acerto. - E você pensou nisso tudo porque eles ficam de mãos dadas por meio segundo sem luvas entre eles? – Bia encarou-a quase com descrença – E eu achando que você não tinha imaginação... Sofia cruzou os braços. - Não enche. Beatriz começou a rir. - Tudo bem, tudo bem, acho que consegui enxergar seu ponto. Lizzy e Darcy dançam uma valsa. – ela se aquietou aos poucos, relaxando de volta em suas almofadas, ainda encostada ao sofá – Bem... isso foi bom, não é? - O que foi bom? A valsa? Ou você rindo de mim? Devagar, Beatriz balançou a cabeça. - Isso. Ler um romance. Reencontrar um antigo hobby. Comer chocolate no meio da manhã. Fazer as pazes com sua mãe. Por um instante, o olhar de Sofia perdeu-se, pensativo, entre lembranças. - Sim... isso foi bom. - Eu fico feliz, mesmo porque, tive uma brilhante idéia. – Beatriz se levantou, espanando uma poeira imaginária da roupa – Temos seis livros para três meses e uma época histórica para apreender. Então, daqui a quinze dias, vamos nos reunir para discutir sobre outro livro de Austen. - Sua brilhante idéia é um clube do livro? - Você tem alguma coisa contra? Sofia ponderou sobre o assunto por exato meio segundo, antes de se lembrar do sentimento de nostálgico contentamento que lhe preenchera ao fechar a última página de Orgulho e Preconceito na noite anterior. Um encontro com Austen... um reencontro com sua mãe. - Qual vai ser o próximo livro? – ela perguntou, sorrindo. Segundo Movimento Razão & Sensibilidade - “Não, não – exclamou Marianne -, uma desgraça como a minha não tem orgulho. Não me importa quem saiba que estou arrasada. O triunfo de me ver assim pode ser 11
  • 12. distribuído a todo o mundo. Elinor, Elinor, os que sofrem pouco podem ser tão orgulhosos e independentes quanto quiserem, podem resistir ao insulto ou devolver a humilhação... mas eu não posso. Tenho de sentir... tenho de estar arrasada... e sejam eles bem-vindos para apreciar a consciência disso.” – Sofia fechou o livro, marcando com o dedo a página em que estava, antes de se voltar para a amiga – Marianne é a maior drama queen que eu já vi na vida. Beatriz levantou os olhos de sua própria cópia de Razão e Sensibilidade, observando a morena com um meio sorriso. - Sério, Sofia, se você continuar assim, vou pensar que você tem alguma coisa pessoal contra a pobre Marianne. - Não, nada pessoal. – ela balançou a cabeça – Apenas acho que ela exagera muito nessa coisa de demonstrar seus sentimentos. – Sofia riu – Ela só não é pior que Catherine e sua fixação por romances góticos. Elas vinham se encontrando há dois meses naquele “clube de leitura” – já tinham passado por Orgulho e Preconceito, A Abadia de Northanger e Emma, sem se preocupar em lê-los em qualquer particular ordem. Emma, particularmente, se tornara um dos favoritos da dupla, especialmente porque no dia em que tinham se reunido para discuti-lo, o encontro fora na casa de Beatriz e a caçula não perdera uma única oportunidade de citar o irmão e de como ficaria feliz se Sofia se apaixonasse por André. Sofia sorriu para si mesma, relembrando a conversa que se tinha seguido quando ela finalmente perdeu a paciência... “A morena arqueou uma sobrancelha. - Sério, Bia? Você vai começar com isso de novo? - Mas, Sofia... - Olha, no dia em que você arranjar um noivo para você, eu deixo você se preocupar com minha vida amorosa. Até lá... - Se for assim, daqui a cinqüenta anos vamos ser duas velhas tias solteironas, criando 27 gatos e discutindo sobre quem vai limpar a caixa de areia. A morena sentiu o riso escapar-lhe sem jeito, em meio a golfadas de ar, até que estivesse gargalhando gostosamente. - Você é alérgica, Bia, não poderíamos criar tantos gatos. – Sofia observou, após conseguir se controlar o suficiente para responder – De qualquer jeito, o que você tem contra casamentos? - Você não sabe por que casamentos se realizam em altares? – Bia perguntou, um tanto maliciosa. 12
  • 13. Sofia piscou os olhos. - Não... Por quê? - Porque são nos altares que ocorrem os sacrifícios, Sofia. - Eu não te entendo, Bia... – a outra balançou a cabeça – Se você tem uma opinião tão cínica acerca de relacionamentos, porque insiste que eu arranje um jeito de gostar do seu irmão? Dando de ombros, Beatriz abaixou a cabeça, perdendo-se por alguns minutos na cópia de Emma, ainda aberta sobre a mesa. “- Não tenho nenhuma das habituais propensões das mulheres para casar. Se eu me apaixonasse por alguém, seria diferente; mas nunca me apaixonei; não é do meu feitio, nem da minha índole; creio que nunca me apaixonarei. E, sem amor, penso que seria tola se quisesse trocar a situação que tenho.” - Ok, Emma, vamos continuar logo com isso. E nem mais um pio sobre seu irmão.” Naquela manhã, tinham começado Razão e Sensibilidade, revezando-se para ler em voz alta, o tempo todo trocando comentários entre si. - Eu acho que você está enxergando só os defeitos de Marianne porque há a figura de Elinor para comparar a ela. – Bia observou, enquanto abria um pacote de salgadinhos – Se não houvesse Elinor, talvez o comportamento de Marianne não fosse tão ofensivo para você. - Se não houvesse Elinor, Marianne provavelmente teria se matado no processo de esquecer Willoughby. – Sofia retrucou, avançando várias páginas, como se procurasse por algo – Na verdade, ela quase morreu, não foi? - Bem, ela ficou doente... mas ainda não chegamos nessa parte do livro, pode ser que seja diferente do filme. – Beatriz deu de ombros, voltando a atenção para o volume em seu colo – Sabe, Elinor e Marianne me faz lembrar de nós duas. – ela confessou, com um meio sorriso. - É... e ninguém precisa questionar quem é quem na dupla, né? – Sofia deu um sorriso de lado. Bia cruzou os braços. - Eu me ressinto que você não tenha alcançado meu ponto, Sofia, especialmente depois de eu me esforçar tanto para entender suas viagens musicais. – Beatriz balançou a cabeça, embora seu tom traísse que estava se divertindo com a discussão – Eu não acho que Tia Jane tenha pensado completamente numa dicotomia quando batizou essa história de Razão e Sensibilidade. Aliás, leve em consideração que o título original fala de senso e sensibilidade e que o conceito de sensível não é necessariamente ser um 13
  • 14. ultra-romântico, mas sim, alguém com facilidade de observar as impressões ao seu redor. - Tia Jane? – Sofia começou a rir – Sério, Bia? Você adotou a mulher agora? - Ora, e por que não? A gente tem passado tanto tempo com os narizes enfiados nesses livros que já podemos nos considerar íntimas. Sofia suspirou, meneando a cabeça. Beatriz apenas sorriu. Ela sempre se preocupara com a amiga – Sofia era, de uma forma geral, muito fechada, ensimesmada. Ela sabia que era uma das poucas amigas da musicista, uma das poucas pessoas com quem Sofia relaxava – embora, mesmo com ela, Sofia não se abrisse totalmente. Desde que tinham começado aquelas reuniões quinzenais, contudo, a amiga estava... senão mais sociável, ao menos mais leve, mais em paz. Beatriz sempre pensara em Sofia como uma daquelas “artistas angustiadas”, como os poetas góticos e os músicos deprimidos. Aparentemente, ler Austen e se reconectar com a mãe através daqueles romances estava fazendo muito bem à jovem. - Eu acho que vejo onde você está querendo chegar, Bia – a voz de Sofia fê-la despertar de seus devaneios e ela se concentrou em ouvir -, mas você tem de convir que, no caso, continuamos com uma dicotomia: Elinor é a pessoa sensível, capaz de compreender as emoções das pessoas que a rodeiam, enquanto Marianne é sensível de uma perspectiva egoísta, além do bom senso. – Sofia respirou fundo, tentando juntar seus argumentos – Eu acho que equilíbrio... - ESSA É A PALAVRA CHAVE! – Bia exclamou, batendo palmas e praticamente pulando em pé – Veja, Sofia, não estamos falando aqui de qual irmã é melhor que a outra. Ambas estão em falta: Marianne por sentir demais e Elinor por se reprimir demais. Elinor passa mais da metade do livro sofrendo em silêncio sem necessidade; poderia ter desabafado com a mãe ou com as irmãs. - Só que Elinor sabia que, se desabafasse com elas, acabaria fazendo com que sofressem ainda mais. – Sofia defendeu – Ela prefere cuidar da mãe e das irmãs, fazendo-se de forte, engolindo seus sapos sem depositar o fardo que é dela nas costas de ninguém. E ali estava cristalizado o ponto que Beatriz realmente queria discutir com Sofia desde que tinham assistido ao filme e começado a ler o livro, mas ainda não tivera abertura para fazer. - Mas aí é que está... Elinor não precisava fazer isso. – Beatriz inclinou-se para frente, observando firmemente a morena – Ela não precisava sofrer em silêncio. Talvez um dos motivos pelos quais Marianne seja tão exacerbada em seus gostos, desgostos, paixões e aversões seja justamente uma reação a isso. E você precisa lembrar que vemos Elinor também crescer e amadurecer; e, com isso, alcançar seu “felizes para sempre” quando ela se permite desabafar. Por alguns instantes Sofia permaneceu em silêncio, encarando Beatriz, que respirava entrecortadamente como quem acabara de correr uma maratona. Finalmente, Sofia deu um meio sorriso, levantando-se para parar defronte à amiga. 14
  • 15. - Acho que entendi seu ponto, Bia. - Entendeu mesmo? – Beatriz retrucou, com uma voz quase tímida em comparação à paixão com que se defendera apenas instantes antes. Sofia assentiu. - Quando eu precisar, sei que posso conversar com você. A caçula respirou fundo, sorrindo. - Ótimo. Vamos voltar ao livro, então. Terceiro Movimento Persuasão Sentada no balanço da varanda, ela admirava a garoa fina que caía intermitente desde o início daquela manhã, os olhos perdidos no meio do jardim. Tão imersa estava nos 15
  • 16. próprios pensamentos que não o percebeu observando-a até que o balanço se mexesse devagar sob o peso dele. Voltando-se, Sofia deu um meio sorriso. - Oi, pai. O senhor chegou cedo hoje. - Eu não sei se cedo é a palavra mais acertada, depois de um plantão de mais de vinte e quatro horas. – ele observou, desviando o olhar para o livro que ela tinha no colo – Ainda em Austen? Pensei que você já tinha entregado seu projeto da faculdade. Você não está de férias? - É o último livro. – Sofia respondeu, dando de ombros – E, se cheguei até aqui, nada mais justo que ir até o final, não? Ele aquiesceu, tomando o volume com cuidado, observando a capa por alguns instantes antes que um sorriso divertido cruzasse seu rosto. - Sabe, eu sempre achei que sua mãe decidiu se casar comigo por causa desse livro. A morena riu, balançando a cabeça. - Eu desconfiei de algo do tipo, Capitão Frederico. O homem suspirou, o sorriso tornando-se agora nostálgico. - Persuasão era o livro favorito da sua mãe. Eu era Primeiro-tenente quando estávamos namorando e, quando a pedi em casamento, ela aceitou, mas disse que a cerimônia seria só depois que eu fosse promovido a Capitão, porque ela queria ser casada com um Capitão Frederick. Sofia o encarou, surpresa. - O senhor está falando sério? - Nunca tive certeza se ela estava falando a sério, porque, na época, faltava pouco para a minha promoção. – foi a vez de ele dar de ombros – Mas eu não passaria por cima da possibilidade. Sofia piscou os olhos. - Minha mãe era louca e só agora eu descubro isso? - Sua mãe não era louca, Sofia. – ele riu – Apenas uma grande romântica. Aliás, você também foi batizada por esse livro. - Sofia Croft? – ela perguntou – A irmã do Capitão Wentworth? – ela coçou a ponta do nariz, pensativa – E eu jurava que era por causa d’O Mundo de Sofia... - A princípio, sua mãe queria chamá-la Anne. – o capitão continuou – Mas decidiu que isso seria muito estranho, já que Anne e Frederick eram um casal, e eu sou seu pai. 16
  • 17. Como não há nenhuma menção aos filhos dos Wentworth, ela achou que a irmã era a escolha mais acertada. - Em outras palavras, se mamãe tivesse conhecido um Mr. Darcy ela teria largado o senhor, já que se chama Elisa? – Sofia perguntou, arqueando uma sobrancelha. - Quem sabe? Sorte a minha que não temos nenhum Mr. Darcy andando por aqui, não é? Ela concordou com a cabeça, inclinando-se até encostar-se no ombro do pai, observando-o enquanto ele folheava devagar algumas páginas do livro. - Isso é... bom. – Sofia observou baixinho – Nós nunca conversamos sobre a mamãe assim. Recostando-se melhor contra o balanço, ele passou um braço livre pelas costas da filha, aconchegando-a melhor a si. - Eu nunca tive muita certeza sobre como me aproximar do assunto com você. – ele confessou – Você já era uma criança tímida antes do acidente, Sofia, e, depois da morte da sua mãe... nem eu sabia exatamente o que fazer e você simplesmente se fechou em si mesma, evitando todas as coisas que formavam sua relação com sua mãe. De início, tentei conversar com você sobre o assunto, mas você sempre fugia ou irrompia em lágrimas e se recusava a falar... então eu achei que, com o tempo, você iria superar e que, se precisasse, viria conversar comigo. – ele soltou outro suspiro – Talvez eu devesse ter insistido um pouco mais. - Não, pai. – ela meneou a cabeça, virando-se até poder encará-lo – O senhor tinha razão. Eu precisei de tempo para poder fazer as pazes com a idéia de que ela não ia voltar... eu tentava ignorar aquele vazio no peito... e, depois, acho que simplesmente me acostumei a não pensar nisso. E, no processo, acabei esquecendo também das coisas boas... das memórias que me faziam sorrir. – desta feita, foi Sofia quem deu um longo suspiro – Quando comecei a ler esses livros e a pensar que a mamãe também os tinha lido, foi como... como estender uma ponte para essas memórias. - Estender uma ponte para as memórias. – ele repetiu, anuindo – É uma expressão interessante. Eu gosto dela. Bastante poética. Sofia riu baixinho, voltando a recostar-se nele. - “Ali trocaram eles de novo aquelas juras e promessas que outrora pareceram assegurar-lhes tudo, mas que tinham sido seguidas de tantos, tantos anos de separação e indiferença. Ali regressaram eles ao passado, mas intensamente felizes, talvez, na sua nova união, do que quando esta fora projetada pela primeira vez; mais meigos, mais experimentados, mais seguros do conhecimento do caráter, da sinceridade e do afeto um do outro; mais capazes de agir, com mais motivos para agir.” – ele leu em voz alta, passando a página para continuar – “E ali, enquanto subiam lentamente a colina, alheios aos grupos que os rodeavam, não vendo nem os políticos que por ali vagueavam, nem as governantas azafamadas, nem as meninas que namoravam, nem amas nem crianças, puderam entregar-se às recordações e principalmente às 17
  • 18. explicações do que precedera imediatamente o momento presente, as quais tinham um interesse tão intenso e tão infindável.” - Acho que Persuasão também é meu livro favorito de Austen. – Sofia observou, quando o pai terminou o parágrafo. - É mesmo? – ele perguntou, abaixando o livro – E por que seria isso? - Porque esse é um livro sobre reencontros... e sobre uma segunda chance. – ela sorriu – E também, claro, porque meu pai é o Capitão Frederico. Ele soltou uma gargalhada em resposta. - Acho que é o meu livro favorito, também. – ele respondeu – Sua mãe praticamente me obrigou a lê-lo, embora, para ser sincero, eu já o planejasse fazê-lo sem a pressão dela. Você já terminou? Sofia assentiu, ao mesmo tempo em que se levantava do balanço, espreguiçando-se. - Tenho que mandar um e-mail para a Bia dizendo o que achei do livro. Ela está viajando nessas férias, mas me fez prometer que escreveria quando terminasse. E estou com o filme de Persuasão aí. Quer assistir comigo mais tarde? - Claro. Eu providencio a pipoca. – ele respondeu, entregando o volume para ela. Com isso, ela se voltou para dentro da casa, dirigindo-se até a biblioteca para guardar o livro. Naqueles últimos meses, ela voltara a freqüentar aquele cômodo específico, reencontrando ali o mesmo refúgio com que se acostumara quando era criança. Com cuidado, ela empurrou o volume de volta para seu lugar na estante, o olhar fixo no porta-retratos sobre a mesa ao lado, onde a figura da mãe sorria, piscando um olho para ela. Dando um último sorriso na direção da fotografia, ela desviou novamente a atenção para a estante. A coleção completa dos romances de Tia Jane e encararam de volta. - Obrigada, Miss Austen. – ela murmurou, para então voltar-se para a saída, apagando a luz e fechando a porta. 18