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- 147-Cronicidade e cuidados de saúde: o que a antropologia da saúde tem a nos ensinar?
Texto Contexto Enferm 2004 Jan-Mar; 13(1):147-55.
CRONICIDADE E CUIDADOS DE SAÚDE: O QUE A ANTROPOLOGIA DA SAÚ-
DE TEM A NOS ENSINAR?
CCRONICITY AND HEALTH CARE: WHAT CAN MEDICAL ANTROPOLOGY TEACH US?
CRONICIDAD Y CUIDADOS DE LA SALUD: ¿QUÉ TIENE LA ANTROPOLOGÍA DE LA SALUD PARA
ENSEÑARNOS?
Geison Vasconcelos Lira1
; Marilyn K. Nations2
; Ana Maria Fontenelle Catrib3
1
Mestre em Educação em Saúde. Professor da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Ceará.
2
PhD em Antropologia Médica. Professora Titular do Programa de Mestrado Acadêmico em Educação em Saúde da Universidades de
Fortaleza. Professora Adjunta do Department of Social Medicine da Harvard Medical School.
3
Doutora em Educação. Professora Titular do Programa de Mestrado Acadêmico em Educação em Saúde da Universidade de Fortaleza.
RESUMO: A ascensão das doenças crônicas no perfil de mortalidade da população brasileira trouxe
implicações não apenas na agenda nacional de saúde pública, como também na organização social das
práticas de saúde. Neste artigo refletimos sobre questões ontológica, epistemológica e metodológica na
conformação de novos saberes em saúde para o enfrentamento do impacto das doenças crônicas na
realidade da vida cotidiana das pessoas. Inicialmente, discutimos a natureza ontológica da doença na
perspectiva antropológica, onde a preocupação terminológica é explicitada, e da sociologia do conheci-
mento, enfocando a doença como experiência humana. A seguir, exploramos aspectos epistemológicos
da relação fundacional sujeito-objeto no que concerne à apreensão da natureza da doença por pacientes
e cuidadores, destacando o conceito de Modelos Explicativos e seu papel na compreensão da relação
profissional de saúde-paciente. E, finalmente, na dimensão metodológica, sugerimos a eliciação da
narrativa como método para aprofundar a questão da cronicidade e do cuidado.
PALAVRAS-CHAVE:
Antropologia.
Epidemiologia.
Conhecimento.
KEY WORDS:
Anthropology.
Epidemiology.
Knowledge.
ABSTRACT: The ascendancy of chronic diseases in the mortality profile of the Brazilian population
has implications both for the national public health policies and the social organization of health
practices. This article is a critical reflection on the ontological, epistemological and methodological
issues related to chronic illness, fostering the construction of new health knowledge vital for coping
with the impact of the disease on daily life world. Initially, we discuss the ontological nature of illness
from an anthropological perspective, focusing on the illness as human experience and explicating issues
of meaning and terminology. Following, we address epistemological aspects of the subject-object
interaction involving patients´ and caretakers´ understandings of the nature of illness. The authors
highlight the concept of Explanatory Models and their role in the health professional-patient relationship.
Finally, referring to methodology, we suggest the elicitation of illness narratives as a method to explore
deeply chronicity and care taking issues.
PALABRAS CLAVE:
Antropología.
Epidemiología.
Conocimiento.
RESUMEN: La ascensión de las enfermedades crónicas en el perfil de mortalidad de la población
brasileña trajo implicaciones no sólo en la agenda nacional de la salud pública, también en la organización
social de las prácticas de salud. En este artículo reflexionamos sobre cuestiones ontológicas,
epistemológicas y metodológicas en la conformación de nuevos saberes en la salud para el enfrentamiento
del impacto de las enfermedades crónicas en la realidad de la vida cotidiana. Inicialmente, discutimos la
naturaleza ontológica de la enfermedad desde la antropología, donde la terminología es explicada, y de
la sociología del conocimiento, enfocando la enfermedad como experiencia humana. Seguidamente,
exploramos la epistemología de la relación fundacional sujeto-objeto sobre la aprehensión de la enfermedad
por pacientes y cuidadores, destacando el concepto de Modelos Explicativos y su papel en la comprensión
de la relación Profesional de la Salud-Paciente. Finalmente, en la metodología, sugerimos la narrativa
como método para profundizar la cuestión de la cronicidad y del cuidado.
Endereço:
Geison Vasconcelos Lira
Av. dos Expedicionários, n. 5.405, bloco 03, Apto. 102, Montese,
60410-311, Montese, Fortaleza,CE
E-mail: geisonlira@bol.com.br
Artigo original: Reflexão
Recebido em: 15 de setembro de 2003
Aprovação final: 20 de fevereiro de 2004
Texto Contexto Enferm 2004 Jan-mar; 13(1):147-55.
- 148 - Lira GV; Nations MK; Catrib AMF
INTRODUÇÃO
A ascensão irresistível das doenças crônicas no
perfil de mortalidade dos coletivos humanos no Bra-
sil constitui-se num fenômeno que tem chamado a aten-
ção dos pesquisadores no campo da epidemiologia.
Nesse sentido, “as modificações da estrutura etária da
população brasileira, resultado do aumento da espe-
rança de vida e do declínio sistemático da fecundidade,
alteraram de modo substancial o contingente de indi-
víduos expostos a diferentes enfermidades: ao mes-
mo tempo em que se reduziu o peso relativo dos gru-
pos populacionais expostos a gastroenterites, saram-
po e outras doenças incidentes sobretudo na infância,
observou-se o aumento da importância dos grupos
expostos a doenças crônico-degenerativas” 1:352
. Essas
transformações operadas no perfil de morbimortali-
dade da população acarretam alterações consideráveis
no conteúdo da agenda nacional da saúde pública e
recomendam formas de abordagem distintas das que
têm freqüentado as políticas assistenciais do setor. De
particular relevância, há que se considerar uma altera-
ção na organização social das práticas de saúde, que se
deslocaria do intervencionismo para o controle e o
monitoramento, ou de um modo-de-ser-trabalho, que
se dá na forma de inter-ação e de intervenção, para
um modo-de-ser-cuidado, onde a relação não é sujei-
to-objeto, mas sujeito-sujeito, “onde experimentamos
os seres como sujeitos, como valores, como símbolos
que remetem a uma realidade fontal” 2:95
. Como efei-
to desse deslocamento, profissões vocacionadas para
o cuidado, como a enfermagem, adquiriram maior
autonomia e reconhecimento social 3
.Entretanto,acom-
panhando a legitimação social de sua prática, deve
haver sólida reflexão e elaboração teóricas, com o fito
de construir saberes capazes de organizar práticas
ampliadas de cuidado às doenças crônicas, as quais
serão estruturantes das práticas inerentes ao processo
saúde-doença-atenção a serem desenvolvidas no cam-
po da saúde, incluídas aí também as práticas médicas.
De fato, a investigação que se volta ao saber enquanto
tecnologia, ou seja, ao saber compreendido como “a
interação entre os resultados do processo de conheci-
mento (as ciências) e as determinações de todas as
outras ordens advindas à prática de sua articulação
social” 4:35
, a ser desenvolvida no âmbito da pesquisa
em enfermagem muito tem a contribuir para a
reorientação da organização social das práticas de saú-
de, principalmente no que tange ao devir de uma abor-
dagem interdisciplinar na construção do conhecimen-
to e de uma prática multiprofissional, superando os
imensos desafios concernentes, no plano político-ide-
ológico, à crise estrutural da saúde pública e, no plano
epistemológico, à fragmentação da atenção à saúde,
de corte cartesiano, possibilitando uma compreensão
integral do ser humano e do processo saúde-doença-
atenção.
Por outro lado, é possível reconhecer o impacto
das doenças crônicas na realidade da vida cotidiana
das pessoas. Os trabalhos de filiação etnometodológica
abordam a doença como uma ruptura de um fluxo
do cotidiano, uma ameaça súbita a um mundo toma-
do como suposto. “Neste sentido, trata-se de um even-
to a exigir, das pessoas envolvidas, que dêem início a
ações que permitam reconduzir a vida cotidiana den-
tro de pressupostos aceitos. Na sua dimensão social, a
doença é ‘problema’ e seu estudo implica a compre-
ensão dos projetos e práticas formulados para resol-
ver os impasses decorrentes e, assim, normalizar a si-
tuação” 5:206
.
De uma perspectiva similar, a corrente norte-
americana da antropologia médica tem sustentado que
os problemas trazidos pela doença crônica são, prin-
cipalmente, as dificuldades que os sintomas e a inca-
pacidade criam em nossas vidas, principalmente quan-
do “nós podemos ficar desmoralizados e perder a
nossa esperança de obtermos melhora, ou podemos
estar deprimidos pelo medo da morte ou da invalidez.
Nós nos afligimos com a saúde perdida, com a ima-
gem corporal alterada, e com uma perigosa queda da
auto-estima” 6:4
. O espectro de efeitos das doenças
crônicas, o mais das vezes, varia enormemente: “Al-
gumas levam a uma tal perda devastadora de função
que o paciente acha-se quase completamente incapaci-
tado. Algumas, enquanto menos incapacitantes, podem
ainda eventualmente levar à exaustão dos recursos da
família e requerer institucionalização. E outras final-
mente acabam por ceifar a vida do paciente” 6:7
. Nes-
se sentido, se adotarmos como foco de análise das
doenças crônicas a forma como a doença aflige o
doente, tomando por categoria fundante a experiên-
cia de sofrimento que ela traz à vida do enfermo, po-
deremos lançar mão de uma abordagem compreen-
siva-interpretativa 7-8
do processo saúde-doença-cui-
dado, orientada pelas contribuições da antropologia
médica 6,9
, em cujo contexto abordaremos a forma
como se constitui a experiência da doença crônica na
realidade da vida cotidiana do enfermo: a cronicidade.
Esses recursos teórico-metodológicos são, em conse-
qüência, cruciais para a reflexão sobre a realidade do
fenômeno do adoecimento humano e a estruturação
de um saber enquanto tecnologia 4
, capaz de dar con-
- 149-Cronicidade e cuidados de saúde: o que a antropologia da saúde tem a nos ensinar?
Texto Contexto Enferm 2004 Jan-Mar; 13(1):147-55.
ta dos desafios trazidos pela cronicidade, principal-
mente no que tange à eficácia da comunicação entre o
profissional de saúde e o paciente, a família e as redes
sociais de apoio, crucial para a organização de estraté-
gias para o cuidado clínico e de enfermagem.
Neste artigo, à maneira de pesquisadores que
colocam as questões ontológica, epistemológica e
metodológica na categorização de paradigmas de in-
vestigação 10
, discutimos, num primeiro momento, a
natureza ontológica da doença na perspectiva antro-
pológica. A seguir, exploramos aspectos epistemológi-
cos inerentes à relação fundacional sujeito-objeto no
que concerne à apreensão da natureza da doença por
parte dos profissionais de saúde, recorrendo aos
referenciais teóricos da sociologia do conhecimento e
da corrente norte-americana da antropologia médica.
E finalmente, na dimensão metodológica, sugerimos
a eliciação da narrativa como método para aprofundar
a questão da cronicidade e do cuidado.
A DOENÇA NA PERSPECTIVA ANTRO-
POLÓGICA
A antropologia tem abordado o fenômeno da
doença em duas perspectivas: como ele é experimen-
tado pelos doentes e como é a experiência dos profis-
sionais de saúde, particularmente o médico, no exercí-
cio de sua prática. Esses pólos têm sido descritos na
seguinte tipologia 11
: 1) a enfermidade em terceira pes-
soa, ou seja, o conhecimento “objetivo” ou o que às
vezes também se denomina os “valores médicos”; e
2) a enfermidade em primeira pessoa, que engloba,
no âmbito das ciências sociais, o estudo da subjetivi-
dade tanto do doente, quanto do médico. Esta
bipolaridade tem sido traduzida, no âmbito dos estu-
dos antropológicos sobre o assunto, em terminologi-
as que procuram delimitá-la, na tentativa de melhor
compreender o fenômeno mórbido, e o seu impacto
sobre o homem e a sociedade. Assim, a análise dos
esquemas semânticos das diversas línguas humanas para
estabelecer uma terminologia precisa e intercambiável
com referência àquela bipolaridade tem despertado a
preocupação dos estudiosos. A língua francesa, por
exemplo, dispõe apenas do termo maladie, enquanto
que o idioma inglês possui uma tríplice terminologia:
disease (a doença como apreendida pelo saber médi-
co), illness (a doença tal qual é experienciada pelo do-
ente) e sickness (um estado muito menos grave e mais
indeterminado que o precedente, mais comumente um
simples mal-estar) 11
. Percebe-se, pois, que termos e
significados culturais precisos sobre o fenômeno mór-
bido são cruciais à sua apreensão.
Com base nos estudos antropológicos anglo-
saxões, que procuram construir, na perspectiva da an-
tropologia da saúde e da doença, conceitos adequa-
dos à compreensão do fenômeno mórbido, tais como
doença-sujeito (a illness ou a experiência subjetiva da
doença), doença-sociedade (a sickness, que designa os
comportamentos socioculturais conectados com a
doença em uma dada sociedade) e doença-objeto (tal
como apreendida pelo saber biomédico), foi propos-
ta para esclarecer a questão11
, com a utilização 1) do
termo illness para designar a experiência vital do indi-
víduo que sofre uma afecção mórbida; 2) do termo
disease para referir-se à doença tal como definida pela
biomedicina; e 3) do termo sickness para designar o
processo de socialização tanto da disease quanto da
illness*
. Nessa mesma linha conceitual, situam-se auto-
res norte-americanos 6,9
, percebendo-se, porém, uma
tênue diferença relativamente à socialização da disease e
da illness. Enquanto que, na primeira perspectiva, essa
socialização engloba os aspectos socioculturais, na se-
gunda, essa socialização envolve o “entendimento de
uma desordem em seu senso genérico através de uma
população em relação a forças macrossociais (econô-
micas, políticas, institucionais)” 6:6
.
Assim, desde um ponto de vista antropológico,
é possível reconhecer que as doenças, no que concerne
a sinais e sintomas particulares, são atravessadas pela
cultura em diferentes épocas e sociedades 6
. Com efeito,
os significados culturais marcam tanto a pessoa doen-
te, imprimindo-lhe sentidos existenciais, quanto os seus
cuidadores, particularmente os profissionais de saúde,
que constituem sua prática com base em redes semân-
ticas profissionais centradas na dimensão biomédica.
Na perspectiva dos pacientes, os significados culturais
subscrevem os sentidos existenciais das pessoas doen-
tes, e estão inscritos na fala através de idiomas e metá-
foras culturalmente determinados que articulam a ex-
periência da doença 9
. Na perspectiva dos cuidadores,
observa-se que a realidade da doença do ponto de
vista do ser e do agir integra-se a um sistema de cuida-
dos de saúde, definido como um sistema cultural es-
pecial, ou seja, um sistema simbólico de significados
* Neste trabalho, utilizaremos a equivalência terminológica em Português da série semântica em Inglês disease-disorder-illness-sickness-malady proposta
por Almeida Filho 20
: 1) o termo patologia para nos referirmos à disease; 2) o termo enfermidade para nos referirmos à illness; e 3) o termo doença para
nos referirmos à sickness.
Texto Contexto Enferm 2004 Jan-mar; 13(1):147-55.
- 150 - Lira GV; Nations MK; Catrib AMF
ancorado em arranjos particulares das instituições soci-
ais e dos modelos de interações interpessoais 9
. Nesse
aspecto, “em todas as culturas, a enfermidade, as res-
postas a ela, as formas como os indivíduos a
experienciam e lidam com ela, e as instituições sociais
relacionadas a ela estão todas sistematicamente
interconectadas. A totalidade destas inter-relações é o
sistema de cuidados de saúde” 9:24
. Interessa aqui, entre-
tanto, como recorte de análise, a perspectiva do pacien-
te, centrada na experiência, categoria fundante a partir
da qual procuramos apreender a cronicidade como
percepção psicossocial da doença crônica, e propor
estratégias de cuidado clínico e de enfermagem.
A NATUREZA ONTOLÓGICA DA DOEN-
ÇA NO CONTEXTO DA EXPERIÊNCIA
HUMANA
Na perspectiva da pessoa enferma, a doença traz
um impacto no fluxo da sua vida cotidiana. Seu mun-
do estará radicalmente alterado 6
, ou seja, em situação
de ruptura e desordem 12
. O fato de que o mundo do
enfermo se altera, ou seja, de que há uma ruptura com
o mundo social em que está inserido, parece estar im-
plicado na necessidade de reconfiguração das infor-
mações recebidas sobre as doenças. Não se trata ape-
nas de um conhecimento sobre fatos que dizem res-
peito à saúde, numa palavra, de uma atitude reflexiva.
O fundamento e a possibilidade dessa atitude reflexi-
va, na verdade, são dados pela experiência pré-refle-
xiva ou pré-objetiva, que significa dizer que o mundo
se apresenta para nós como esfera da ação prática, an-
tes de se apresentar como objeto de conhecimento 12
.
Numa palavra, a doença constitui uma situação-pro-
blema que afeta a vida cotidiana, causando ruptura e
desordem, exigindo dos indivíduos medidas
normalizadoras, que lhes permitam enquadrar a ex-
periência geradora de ruptura em esquemas
interpretativos e reintegrá-la, assim, à zona não questi-
onada da vida cotidiana. “Constitui muitas vezes uma
situação que revela a insuficiência do conhecimento à
mão e, por conseguinte, mobiliza os indivíduos a bus-
carem novas receitas práticas para explicar e lidar com
o problema”12:17
. No âmbito da sociologia do conhe-
cimento8
, a realidade da vida cotidiana abrange dois
tipos de setores: um rotineiro, não problemático da
vida diária, e outro, problemático, desde que aquilo
que aparece como problema não pertença a uma rea-
lidade inteiramente diferente. Porém, quando a conti-
nuidade da vida cotidiana for interrompida por um
problema, ela procura integrar o setor problemático
dentro daquilo que já é não-problemático. Para tanto,
o conhecimento do sentido comum, cujas estruturas
já estão prontas, no bojo do estoque social do pró-
prio conhecimento, contém uma multiplicidade de ins-
truções sobre a maneira de fazê-lo. Mas se o proble-
ma surgido na vida de um indivíduo não pode ser
resolvido nos termos oferecidos pelo conhecimento
da vida cotidiana, sua validade é questionada.
Por outro lado, o conhecimento da vida cotidi-
ana é socialmente distribuído, ou seja, possuído por
diversos tipos de indivíduos. Assim, quando nos de-
paramos com um problema que questiona a validade
do nosso conhecimento da vida cotidiana, isto é, se
não possuímos conhecimento para reintegrar o pro-
blema surgido ao setor não-problemático da realida-
de da vida cotidiana, podemos não apenas pedir con-
selho a “especialistas”, mas, também, pedir o conse-
lho de “especialistas em especialistas”. Ou seja, “a dis-
tribuição social do conhecimento começa assim com
o simples fato de não conhecer tudo que é conhecido
por meus semelhantes, e vice-e-versa, e culmina em
sistemas de perícia extraordinariamente complexos e
esotéricos. O conhecimento do modo como o esto-
que disponível do conhecimento é distribuído, pelo
menos em suas linhas gerais, é um importante elemen-
to deste próprio estoque de conhecimento” 8:68
.
A noção de experiência toma parte do conceito
de enfermidade (illness). A enfermidade é a “experiência
dos sintomas e do sofrimento”, “a experiência vivida do
monitoramento dos processos corporais”, incluindo a
“categorização e a explicação, em sentidos do senso co-
mum acessíveis a todas as pessoas leigas, das formas de
angústia causadas pelos processos fisiopatológicos” 6:3-4
.
Outra noção que nos interessa nesta discussão é a de que
quando se fala em enfermidade (illness), inclui-se “o julga-
mento do paciente sobre como ele pode lidar com a
angústia e com os problemas práticos em sua vida diária
que ela cria” 6:4
. Nesse modelo, a experiência da enfermi-
dade é determinada pela cultura e pela singularidade da
biografia individual. Na primeira determinação, obser-
vamos que as orientações culturais locais (as formas
modelares que nós aprendemos para pensar sobre e agir
nos mundos em que vivemos e que replicam a estrutura
social desses mundos) organizam nossas convenções do
senso comum sobre como entender e tratar as enfermi-
dades. Na segunda determinação, por outro lado, obser-
vamos que as expectativas convencionais sobre as enfer-
midades determinadas pelas orientações culturais são al-
teradas através de negociações em diferentes situações
sociais e em redes particulares de relações.
- 151-Cronicidade e cuidados de saúde: o que a antropologia da saúde tem a nos ensinar?
Texto Contexto Enferm 2004 Jan-Mar; 13(1):147-55.
Abordagensantropológicasdedistintasorigenstêm
confluído na concepção da experiência humana como
objeto de abordagem antropológica concernente aos
problemas trazidos pela enfermidade (illness) ao cotidia-
no de vida dos indivíduos, estando os significados defi-
nidos na interação social 5-6
. A negociação e o diálogo
entre os distintos significados que envolvem profissional
de saúde e paciente são um campo importante de estudo
comvistasamelhorarocuidadoadoençascrônicas,como
proporemos sumariamente, a seguir.
PATOLOGIA VERSUS ENFERMIDADE:
MODELOS EXPLICATIVOS EM CON-
FRONTO
Com efeito, no encontro entre o profissional de
saúde e o paciente, estabelece-se uma relação comuni-
cativa que se pretende cooperativa. Como já aludido,
o êxito dessa relação está no cerne da organização de
estratégias para o cuidado clínico. Nesse desiderato,
no âmbito da antropologia médica norte-americana 9
,
foi introduzido o conceito de Modelos Explicativos
(MEs), cuja eliciação de pacientes e familiares permite
estabelecer uma negociação entre estes e os profissio-
nais de saúde no sentido de remover barreiras a um
cuidado efetivo, a qual, por seu turno, contribui para
uma abordagem terapêutica mais empática e ética.
Modelos Explicativos são “as noções que os pacien-
tes, familiares e médicos têm sobre um episódio espe-
cífico de uma doença. Essas descrições informais so-
bre o que uma doença é, têm enormes significados
clínicos: ignorá-los pode ser fatal. Elas respondem a
questões, tais como: Qual a natureza deste problema?
Por que ele me afetou? Por que agora? Que curso ele
seguirá? Como ele afeta o meu corpo? Que tratamen-
to eu desejo? Que devo eu temer sobre esta doença e
seu tratamento? Os Modelos Explicativos são respos-
tas para circunstâncias de vida urgentes. [...] São nossas
representações sobre o fluxo cultural da experiência
de vida” 6:121
.
Os Modelos Explicativos são utilizados para
operacionalizar dentro de novas bases o encontro entre
o profissional de saúde e o paciente, que se tem estabe-
lecido como um encontro entre dois mundos diversos
um do outro, onde discursos marcados por significa-
dos culturais determinados pelo contexto de vida de
ambos os atores em situação se confrontam num diá-
logo desigual. O resultado deste é a transformação
semiótica da fala leiga em categorias profissionais de
apreensão do fenômeno mórbido, numa palavra, a
conversão da doença-sujeito (enfermidade – illness) em
doença-objeto (patologia – disease), da pessoa doente
em paciente, do homem-enquanto-sujeito em homem-enquan-
to-objeto, passível de investigação profissional e, eventual-
mente, de manipulação 6
. Senão vejamos.
No contexto das relações inerentes aos cuida-
dos de saúde que têm lugar no Ocidente, bem como
à moderna medicina profissional, podemos conceber
a relação médico-paciente como uma negociação en-
tre o Modelo Explicativo profissional e o Modelo
Explicativo do paciente, ou, quando presente na rela-
ção, o da família9
. Assim, sendo a perspectiva do mé-
dico distinta da do paciente, convém definir como o
problema de saúde é interpretado pelo primeiro, de-
finição que se dá dentro de uma nomenclatura e de
uma taxonomia particulares, que constituem a
nosografia médica. A patologia (disease) é o problema
de saúde na perspectiva do médico. Nos termos estri-
tos do modelo biomédico, ela significa que a doença é
configurada como uma alteração da estrutura
anatômica ou fisiológica. É “o que o médico cria ao
reconfigurar a enfermidade [illness] em termos de te-
orias da desordem” 6:5
, ou seja, a reconfiguração dos
problemas relacionados à enfermidade que é feita pelo
médico em temas estritamente técnicos, em proble-
mas clínicos. Porém, no ato clínico de reconfigurar a
enfermidade (illness) em patologia (disease), algo essen-
cial da experiência da doença crônica é perdida; a en-
fermidade (illness) não é legitimada como assunto que
concerne à clínica, nem é tida como algo que mereça
receber uma intervenção.
Os resultados da negociação entre os Modelos
Explicativos, quando realizada, dependem da transa-
ção entre duas linguagens, constituindo-se num pro-
cesso de eliciação (obtenção do Modelo Explicativo
do paciente), seguido de um processo de análise, trans-
ferência, reestruturação (em uma nova linguagem ou
Modelo Explicativo) e feedback9
. Como sugerido, a
negociação entre Modelos Explicativos é infreqüente
na prática clínica. O que se observa de fato é a
translocação da narrativa oral da experiência da doen-
ça em uma narrativa escrita, obtida por métodos
semiotécnicos, a ser utilizada no raciocínio clínico com
vistas à diagnose e à terapêutica. Estas, ao serem re-
vertidas à compreensão do tratamento por parte do
paciente são submetidas a um processo de reconstru-
ção pessoal que visa a traduzir o discurso biomédico
numa linguagem que lhe faça sentido, num processo
eminentemente semântico. De um modo geral, esse
processo de reelaboração da linguagem sobre a do-
ença inicia-se com uma redução analógica, por parte
do médico, que permite a passagem das categorias da
Texto Contexto Enferm 2004 Jan-mar; 13(1):147-55.
- 152 - Lira GV; Nations MK; Catrib AMF
medicina científica às categorias do senso comum so-
bre a saúde e a doença que o sujeito já possui em seu
repertório de conhecimentos, cuja função é fazer com
que o doente aceite a técnica de tratamento que o
médico quer lhe impor 13
. Entretanto, esse processo
pode, em determinadas circunstâncias, gerar conflitos
entre profissionais de saúde, pacientes e familiares 6
.
A análise da singularidade da enfermidade crô-
nica aponta para o reconhecimento dos limites da abor-
dagem biomédica tradicional concernente ao tratamen-
to do processo patológico, sendo necessário instituir
um sistema de cuidado humano que represente um
alargamento da perspectiva de apreensão do fenôme-
no patológico 6
. Essa necessidade avulta, uma vez que,
no modelo biomédico padrão, a abordagem terapêu-
tica instituída utilizando somente o discurso concernente
à melhora nos processos da patologia (disease) pode
confundir as avaliações do paciente e da família sobre
o cuidado no âmbito do discurso concernente aos
problemas relacionados à enfermidade (illness). Por-
tanto, no cerne do cuidado clínico de pacientes croni-
camente enfermos – aqueles que não podem ser cura-
dos, mas devem continuar a conviver com a enfermi-
dade – há uma fonte potencial (e, em muitos casos,
real) de conflito. Um desses conflitos potenciais refe-
re-se à noção de cura, objeto teleológico da medicina
terapêutica, prática social de intervenção sobre o cor-
po estruturada a partir nas noções de normal e de
patológico 14
. A cura, objetivo último de quem adoe-
ce, representa um obstáculo ao desenvolvimento de
estratégias de cuidado à doença crônica. A busca da
cura pode ser um mito perigoso que serve pobre-
mente a pacientes e cuidadores, uma vez que “a busca
da cura distrai suas atenções de comportamentos pro-
gressivos e menos tendentes ao sofrimento” 6:229
. A
questão da cura como experiência atrelada à possibili-
dade de solução da enfermidade (healing of illness) 9
é
um processo dinâmico de significação e ressignificação
da experiência advinda do impacto da cronicidade nas
biografias de vida individuais. A cura é um processo
dinâmico de representação e significação da experiên-
cia de vida, e não apenas uma realidade biomédica
centrada no êxito terapêutico 15
.
Assim, confronto entre Modelos Explicativos e
reconstrução de um discurso coerente, ou pelo me-
nos, tendendo à coerência, são etapas cruciais numa
relação entre o profissional de saúde e o paciente, de
tal sorte a garantir uma comunicação efetiva nesse en-
contro, cujo pressuposto de eficácia é a adesão do
paciente aos regimes terapêuticos.
Cabe destacar que a enfermidade (illness), nessa
concepção, é uma experiência a partir da qual se consti-
tui uma rede complexa de significados culturalmente
determinados, relacionados às causas, aos sintomas e
processos corporais e psíquicos, ao papel do enfermo
no seu meio sócio-cultural, e às opções terapêuticas dis-
poníveis a uma escolha ad hoc. Essa significação dos fe-
nômenos sócio-culturais da experiência da enfermida-
de dá-se através de um processo eminentemente se-
mântico, consubstanciada numa rede de representações
simbólicasquesedifundenaredesocialdeapoiocentrada
na pessoa enferma. Uma representação esquemática dos
Modelos Explicativos e da rede semântica da enfermi-
dade pode ser vista na Figura1, a seguir.
.
Modelos
Explicativos
Crenças sobre causas e
significados de tipos particulares
de problemas ocasionados pela
enfermidade
Procura por cuidados de saúde a
partir de escolhas de opções
terapêuticas disponíveis para tipos
particulares de problemas
ocasionados pela enfermidade
Sintomas e processos psicológicos típicos
associados com tipos particulares de
problemas ocasionados pela enfermidade
(Incluindo rótulo d doença e
idioma cultural para articulação
da experiência da enfermidade)
Problemas sociais típicos associados com tipos
particulares de problemas ocasionados pela doença
REDE SEMÂNTICA DA ENFERMIDADE
Modelos
Explicativos
Crenças sobre causas e
significados de tipos particulares
de problemas ocasionados pela
enfermidade
Procura por cuidados de saúde a
partir de escolhas de opções
terapêuticas disponíveis para tipos
particulares de problemas
ocasionados pela enfermidade
Sintomas e processos psicológicos típicos
associados com tipos particulares de
problemas ocasionados pela enfermidade
(Incluindo rótulo d doença e
idioma cultural para articulação
da experiência da enfermidade)
Problemas sociais típicos associados com tipos
particulares de problemas ocasionados pela doença
REDE SEMÂNTICA DA ENFERMIDADE
Figura 1 – Modelos explicativos, redes semânticas e procura por cuidados de saúde.
Fonte: Kleinman 6:108
Incluindo rótulo da doença e idioma
cultural para articulação da experiência da
enfermidade
- 153-Cronicidade e cuidados de saúde: o que a antropologia da saúde tem a nos ensinar?
Texto Contexto Enferm 2004 Jan-Mar; 13(1):147-55.
A NARRATIVA COMO MÉTODO PARA A
LEGITIMAÇÃO DA DOENÇA COMO
EXPERIÊNCIA HUMANA
Como visto anteriormente, importante para a
presente reflexão é a premissa de que a enfermidade
tem significados. A enfermidade, numa perspectiva an-
tropológica, é polissêmica e multifacetada; as experi-
ências e eventos a ela concernentes irradiam ou ocul-
tam mais de um significado6
. Alguns significados per-
manecem mais potenciais que reais. Outros se tornam
efetivos somente após um curso longo da desordem
crônica. Outros ainda mudam ao mudarem as situa-
ções e as relações. “A enfermidade crônica é mais do
que a soma de muitos eventos particulares que ocor-
rem no curso de uma dada enfermidade [illness]; ela é
uma relação recíproca entre a instância particular e o
curso crônico. A trajetória da enfermidade crônica
[chronic illness] é assimilada ao curso da vida, contri-
buindo muito intimamente para o desenvolvimento
de uma vida particular onde a enfermidade [illness]
torna-se inseparável da própria história de vida. As-
sim, tanto as continuidades como as transformações
levam a apreciações dos significados da enfermidade
[illness]”6:8
.
Assim, uma das tarefas centrais da atenção ao
paciente portador de enfermidade crônica, atualmen-
te desvalorizada em favor das poderosas alternativas
tecnológicas disponíveis no contexto da medicina
moderna, é decodificar os significados evidentes da
enfermidade (illness) que interferem no reconhecimen-
to dos perturbadores, porém potencialmente tratáveis,
problemas da sua vida diária. “Há evidências de que
através do exame dos significados particulares da en-
fermidade [illness] de uma pessoa é possível impedir
o ciclo vicioso que amplifica a angústia. A interpreta-
ção dos significados da enfermidade [illness] pode
contribuir para prover um cuidado mais efetivo. Atra-
vés dessas interpretações as conseqüências frustrantes
da incapacidade podem ser reduzidas”6:9
.
Nesse sentido, foi proposto um método para o
cuidado mais efetivo e humano dos pacientes croni-
camente enfermos, originado da reconceitualização do
cuidado médico como 1) um testemunho empático
da experiência existencial do sofrimento e 2) um re-
gistro das principais crises psicossociais que se consti-
tuem em ameaça da cronicidade sobre essa experiên-
cia6
. De acordo com esse método, “o trabalho do
médico inclui a solicitação sensível da história do paci-
ente e da sua família no que concerne à enfermidade
[illness], a montagem de uma mini-etnografia das
mudanças do contexto da cronicidade, a negociação
informada com as perspectivas leigas alternativas so-
bre o cuidado, e o que equivaleria a uma breve
psicoterapia médica para as múltiplas e atuais ameaças
e perdas que fazem a enfermidade crônica [chronic
illness] tão profundamente perturbadora”6:10
.
Um aspecto metodológico importante para a
legitimação da enfermidade crônica (chronic illness), nessa
perspectiva, é a eliciação das narrativas das enfermi-
dades, a qual deve estar no centro de uma educação e
de uma prática profissionais centradas no significado6
.
Podemos afirmar que eliciar a narrativa de uma enfer-
midade é problematizar a idéia de experiência da do-
ença. “Problematizar a idéia de experiência significa
assumir que a maneira como os indivíduos compre-
endem e se engajam ativamente nas situações em que
se encontram ao longo de suas vidas não pode ser
deduzida de um sistema coerente e ordenado de idéi-
as, símbolos ou representações”12:11
. Na verdade, a
experiência é muito mais complexa do que os signifi-
cados formulados para explicá-la, pois estes ofere-
cem sempre quadros parciais e inacabados de uma
realidade sempre dinâmica. Os significados não per-
tencem a um plano etéreo de puras idéias, ao contrá-
rio, atrelam-se às situações em que são formulados,
ou antes, em que são usados, as quais são fundamen-
talmente situações de diálogo com outros. Como con-
seqüência desse processo de constituição da doença
como experiência de um sujeito-no-mundo, temos o
engendramento de histórias possíveis, no concerto do
processo de apreensão, interpretação e projeção para
o futuro que pode ser empreendido pelo sujeito. “Com
a vivência da doença, as pessoas passam a ter uma
história para contar. Essas histórias não são histórias
separadas do processo de viver, mas são convergen-
tes à maneira de ver o mundo e de viver nele, passan-
do a integra-se a esse mundo. Elas relatam várias situ-
ações vividas, que, no seu conjunto, têm um sentido
maior, o que as transforma em histórias acessíveis aos
outros”16:427
.
Entretanto, tomar por técnica de coleta de da-
dos a narrativa como modo de acesso às experiências
de doença não equivale postular uma equivalência ou
mesmo uma redução da experiência ao discurso nar-
rativo, mas reconhecer que existe uma vinculação es-
treita entre a estrutura da experiência e a estrutura nar-
rativa, pois esta é semelhante à estrutura de orientação
para a ação: 1) um contexto é dado; 2) os aconteci-
mentos são seqüenciais e terminam em um determi-
nado ponto; e 3) inclui um tipo de avaliação do resul-
tado 12
. Ora, situação, colocação do objetivo, planeja-
mento e avaliação dos resultados são constituintes das
Texto Contexto Enferm 2004 Jan-mar; 13(1):147-55.
- 154 - Lira GV; Nations MK; Catrib AMF
ações humanas que possuem um objetivo 17
. A eliciação
da narrativa, assim, constitui-se num procedimento de
acesso à experiência da doença, e quando o objetivo é
estabelecer uma compreensão mais ampliada do fe-
nômeno do adoecimento humano socialmente
construído, para abarcar os pólos da reconstrução da
experiência da doença e das representações sociais
sobre a doença, é preciso, também, reconstruir as con-
dições sociais e históricas de produção, circulação e
recepção que lhe deram origem, podendo-se, inicial-
mente, fazer um estudo sobre o contexto histórico e
sociocultural da doença para melhor analisar as narra-
tivas sobre ela, ou, então, pode-se fazer tal estudo com
base nas próprias narrativas18
.
CONCLUSÃO
Procuramos empreender neste artigo uma dis-
cussão sobre os aspectos antropológicos relacionados
às doenças crônicas como fenômeno humano, cuja
percepção psicossocial (illness) manifesta-se através de
um processo de significação e ressignificação com
implicações na realidade da vida cotidiana do enfer-
mo a que chamamos de cronicidade. Nesse sentido,
como questão ontológica, vimos que a doença crôni-
ca é reconhecida como um fenômeno que se constitui
no plano do ser e do agir como experiência, referida à
realidade da vida cotidiana, representando um pro-
blema a ser solucionado com vistas à normalização
do fluxo da vida do enfermo. Como questão
epistemológica, utilizamos os referenciais teóricos da
sociologia do conhecimento e da antropologia médi-
ca para situar a relação entre o profissional de saúde e
o enfermo, superando o dualismo sujeito-objeto e o
objetivismo na apreensão da doença como fenôme-
no humano. Essa relação é entendida, na perspectiva
antropológica, como essencialmente semântica, mate-
rializada através do confronto e da negociação entre
Modelos Explicativos, que, no que tange à questão
metodológica, são viabilizadas pela eliciação de narra-
tivas. Esperamos que com essa discussão possamos
ter contribuído para a elaboração teórica requerida,
não apenas pela enfermagem, mas por todos os nú-
cleos de competência e responsabilidade do campo
da saúde 19
, com vistas ao enfrentamento das doenças
crônicas.
REFERÊNCIAS
1 Monteiro CA, Iunes RF, Torres AM. A evolução do país e
de suas doenças: síntese, hipóteses e implicações. In:
Monteiro CA, organizador. Velhos e novos males da saúde
no Brasil: a evolução do país e de suas doenças. 2ª ed. São
Paulo: Hucitec; 2000.
2 Boff L. Saber cuidar: ética do humano – compaixão pela
terra. 2ª ed. Petrópolis: Vozes; 1999.
3SomarribaM.Osdeslocamentosatuaisdocampodasciências
sociais em saúde: notas de uma orientadora. In: Vasconcelos
EM. Educação popular e a atenção à saúde da família. 2ª ed.
São Paulo: Hucitec; 2001.
4GonçalvesRBM.Tecnologiaeorganizaçãosocialdaspráticas
desaúde:característicastecnológicasdeprocessodetrabalho
na rede estadual de centros de saúde de São Paulo. São
Paulo: Hucitec; 1994.
5 Rabelo MCM. A experiência de indivíduos com problema
mental: entendendo projetos e sua realização. In: Rabelo
MCM, Alves PCB, Souza IMA, organizadores. Experiência
de doença e narrativa. Rio de Janeiro: Fiocruz; 1999. p.205-
27.
6 Kleinman A. The illness narratives: suffering, healing & the
human condition. New York: Basic Books; 1988.
7 Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa
qualitativa em saúde. 5ª ed. São Paulo: Hucitec; 1998.
8 Berger P , Luckmann T. A construção social da realidade. 21ª
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9 Kleinman A. Patients and healers in the context of culture:
an exploration of the borderland between anthropology,
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Press; 1980.
10 Guba EG, Lincoln YS. Competing paradigms in qualitative
research. In: Denzin NK, Lincoln YS, organizadores.
Handbook of qualitative research. Thousand Oaks: Sage
Publications; 1994. p.105-17.
11 Laplantine F. Antropología de la enfermedad: estúdio
etnológico de los sistemas de representaciones etiológicas
y terapéuticas en la sociedad occidental contemporánea.
Buenos Aires: Ediciones del Sol; 1999.
12AlvesPCB,RabeloMCM,SouzaIM.Introdução.In: Rabelo
MCM,Alves PCB, Souza IMA, organizadores. Experiência
dedoençaenarrativa.RiodeJaneiro:Fiocruz;1999.p.11-39.
13 Boltanski L. As classes sociais e o corpo. 3ª ed. Rio de
Janeiro: Graal; 1989.
14 Canguilhem G. O normal e o patológico. 4ª ed. Rio de
Janeiro: Forense Universitária; 1995.
15LiraGV.Avaliaçãodaaçãoeducativaemsaúdenaperspectiva
compreensiva:ocasodaHanseníase[dissertação].Fortaleza
(CE): Programa de Pós-Graduação em Educação em
Saúde/UNIFOR; 2003.
16 Silva DGV, Trentini M. Narrativas como técnica de
pesquisa em enfermagem. Rev Latino-Am Enferm 2002;
- 155-Cronicidade e cuidados de saúde: o que a antropologia da saúde tem a nos ensinar?
Texto Contexto Enferm 2004 Jan-Mar; 13(1):147-55.
10(3):423-32.
17 Jovchelovitch S, Bauer MW. Entrevista narrativa. In: Bauer
MW, Gaskell G. Pesquisa qualitativa com texto, imagem e
som: um manual prático. Petrópolis: Vozes; 2002. p.90-
113.
18 Gomes R, Mendonça EA. A representação e a experiência
da doença: princípios para a pesquisa qualitativa em saúde.
In: Minayo MCS, Deslandes SF, organizadores. Caminhos
do pensamento: epistemologia e método. Rio de Janeiro:
Editora Fiocruz; 2002. p.109-32.
19 Campos GWS. Subjetividade e administração de pessoal:
considerações sobre modos de gerenciar trabalho em
equipes de saúde. In: Merhy EE, Onocko R, organizadores.
Práxis em salud: um desafio para lo público. São Paulo:
Hucitec; 1997. p.229-66.
20AlmeidaFilhoN. Forageneraltheoryof health: preliminary
epistemological and anthropological notes. Cad Saude
Publica 2001 Jul-Ago; 17(4):753-99.

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  • 1. - 147-Cronicidade e cuidados de saúde: o que a antropologia da saúde tem a nos ensinar? Texto Contexto Enferm 2004 Jan-Mar; 13(1):147-55. CRONICIDADE E CUIDADOS DE SAÚDE: O QUE A ANTROPOLOGIA DA SAÚ- DE TEM A NOS ENSINAR? CCRONICITY AND HEALTH CARE: WHAT CAN MEDICAL ANTROPOLOGY TEACH US? CRONICIDAD Y CUIDADOS DE LA SALUD: ¿QUÉ TIENE LA ANTROPOLOGÍA DE LA SALUD PARA ENSEÑARNOS? Geison Vasconcelos Lira1 ; Marilyn K. Nations2 ; Ana Maria Fontenelle Catrib3 1 Mestre em Educação em Saúde. Professor da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Ceará. 2 PhD em Antropologia Médica. Professora Titular do Programa de Mestrado Acadêmico em Educação em Saúde da Universidades de Fortaleza. Professora Adjunta do Department of Social Medicine da Harvard Medical School. 3 Doutora em Educação. Professora Titular do Programa de Mestrado Acadêmico em Educação em Saúde da Universidade de Fortaleza. RESUMO: A ascensão das doenças crônicas no perfil de mortalidade da população brasileira trouxe implicações não apenas na agenda nacional de saúde pública, como também na organização social das práticas de saúde. Neste artigo refletimos sobre questões ontológica, epistemológica e metodológica na conformação de novos saberes em saúde para o enfrentamento do impacto das doenças crônicas na realidade da vida cotidiana das pessoas. Inicialmente, discutimos a natureza ontológica da doença na perspectiva antropológica, onde a preocupação terminológica é explicitada, e da sociologia do conheci- mento, enfocando a doença como experiência humana. A seguir, exploramos aspectos epistemológicos da relação fundacional sujeito-objeto no que concerne à apreensão da natureza da doença por pacientes e cuidadores, destacando o conceito de Modelos Explicativos e seu papel na compreensão da relação profissional de saúde-paciente. E, finalmente, na dimensão metodológica, sugerimos a eliciação da narrativa como método para aprofundar a questão da cronicidade e do cuidado. PALAVRAS-CHAVE: Antropologia. Epidemiologia. Conhecimento. KEY WORDS: Anthropology. Epidemiology. Knowledge. ABSTRACT: The ascendancy of chronic diseases in the mortality profile of the Brazilian population has implications both for the national public health policies and the social organization of health practices. This article is a critical reflection on the ontological, epistemological and methodological issues related to chronic illness, fostering the construction of new health knowledge vital for coping with the impact of the disease on daily life world. Initially, we discuss the ontological nature of illness from an anthropological perspective, focusing on the illness as human experience and explicating issues of meaning and terminology. Following, we address epistemological aspects of the subject-object interaction involving patients´ and caretakers´ understandings of the nature of illness. The authors highlight the concept of Explanatory Models and their role in the health professional-patient relationship. Finally, referring to methodology, we suggest the elicitation of illness narratives as a method to explore deeply chronicity and care taking issues. PALABRAS CLAVE: Antropología. Epidemiología. Conocimiento. RESUMEN: La ascensión de las enfermedades crónicas en el perfil de mortalidad de la población brasileña trajo implicaciones no sólo en la agenda nacional de la salud pública, también en la organización social de las prácticas de salud. En este artículo reflexionamos sobre cuestiones ontológicas, epistemológicas y metodológicas en la conformación de nuevos saberes en la salud para el enfrentamiento del impacto de las enfermedades crónicas en la realidad de la vida cotidiana. Inicialmente, discutimos la naturaleza ontológica de la enfermedad desde la antropología, donde la terminología es explicada, y de la sociología del conocimiento, enfocando la enfermedad como experiencia humana. Seguidamente, exploramos la epistemología de la relación fundacional sujeto-objeto sobre la aprehensión de la enfermedad por pacientes y cuidadores, destacando el concepto de Modelos Explicativos y su papel en la comprensión de la relación Profesional de la Salud-Paciente. Finalmente, en la metodología, sugerimos la narrativa como método para profundizar la cuestión de la cronicidad y del cuidado. Endereço: Geison Vasconcelos Lira Av. dos Expedicionários, n. 5.405, bloco 03, Apto. 102, Montese, 60410-311, Montese, Fortaleza,CE E-mail: geisonlira@bol.com.br Artigo original: Reflexão Recebido em: 15 de setembro de 2003 Aprovação final: 20 de fevereiro de 2004
  • 2. Texto Contexto Enferm 2004 Jan-mar; 13(1):147-55. - 148 - Lira GV; Nations MK; Catrib AMF INTRODUÇÃO A ascensão irresistível das doenças crônicas no perfil de mortalidade dos coletivos humanos no Bra- sil constitui-se num fenômeno que tem chamado a aten- ção dos pesquisadores no campo da epidemiologia. Nesse sentido, “as modificações da estrutura etária da população brasileira, resultado do aumento da espe- rança de vida e do declínio sistemático da fecundidade, alteraram de modo substancial o contingente de indi- víduos expostos a diferentes enfermidades: ao mes- mo tempo em que se reduziu o peso relativo dos gru- pos populacionais expostos a gastroenterites, saram- po e outras doenças incidentes sobretudo na infância, observou-se o aumento da importância dos grupos expostos a doenças crônico-degenerativas” 1:352 . Essas transformações operadas no perfil de morbimortali- dade da população acarretam alterações consideráveis no conteúdo da agenda nacional da saúde pública e recomendam formas de abordagem distintas das que têm freqüentado as políticas assistenciais do setor. De particular relevância, há que se considerar uma altera- ção na organização social das práticas de saúde, que se deslocaria do intervencionismo para o controle e o monitoramento, ou de um modo-de-ser-trabalho, que se dá na forma de inter-ação e de intervenção, para um modo-de-ser-cuidado, onde a relação não é sujei- to-objeto, mas sujeito-sujeito, “onde experimentamos os seres como sujeitos, como valores, como símbolos que remetem a uma realidade fontal” 2:95 . Como efei- to desse deslocamento, profissões vocacionadas para o cuidado, como a enfermagem, adquiriram maior autonomia e reconhecimento social 3 .Entretanto,acom- panhando a legitimação social de sua prática, deve haver sólida reflexão e elaboração teóricas, com o fito de construir saberes capazes de organizar práticas ampliadas de cuidado às doenças crônicas, as quais serão estruturantes das práticas inerentes ao processo saúde-doença-atenção a serem desenvolvidas no cam- po da saúde, incluídas aí também as práticas médicas. De fato, a investigação que se volta ao saber enquanto tecnologia, ou seja, ao saber compreendido como “a interação entre os resultados do processo de conheci- mento (as ciências) e as determinações de todas as outras ordens advindas à prática de sua articulação social” 4:35 , a ser desenvolvida no âmbito da pesquisa em enfermagem muito tem a contribuir para a reorientação da organização social das práticas de saú- de, principalmente no que tange ao devir de uma abor- dagem interdisciplinar na construção do conhecimen- to e de uma prática multiprofissional, superando os imensos desafios concernentes, no plano político-ide- ológico, à crise estrutural da saúde pública e, no plano epistemológico, à fragmentação da atenção à saúde, de corte cartesiano, possibilitando uma compreensão integral do ser humano e do processo saúde-doença- atenção. Por outro lado, é possível reconhecer o impacto das doenças crônicas na realidade da vida cotidiana das pessoas. Os trabalhos de filiação etnometodológica abordam a doença como uma ruptura de um fluxo do cotidiano, uma ameaça súbita a um mundo toma- do como suposto. “Neste sentido, trata-se de um even- to a exigir, das pessoas envolvidas, que dêem início a ações que permitam reconduzir a vida cotidiana den- tro de pressupostos aceitos. Na sua dimensão social, a doença é ‘problema’ e seu estudo implica a compre- ensão dos projetos e práticas formulados para resol- ver os impasses decorrentes e, assim, normalizar a si- tuação” 5:206 . De uma perspectiva similar, a corrente norte- americana da antropologia médica tem sustentado que os problemas trazidos pela doença crônica são, prin- cipalmente, as dificuldades que os sintomas e a inca- pacidade criam em nossas vidas, principalmente quan- do “nós podemos ficar desmoralizados e perder a nossa esperança de obtermos melhora, ou podemos estar deprimidos pelo medo da morte ou da invalidez. Nós nos afligimos com a saúde perdida, com a ima- gem corporal alterada, e com uma perigosa queda da auto-estima” 6:4 . O espectro de efeitos das doenças crônicas, o mais das vezes, varia enormemente: “Al- gumas levam a uma tal perda devastadora de função que o paciente acha-se quase completamente incapaci- tado. Algumas, enquanto menos incapacitantes, podem ainda eventualmente levar à exaustão dos recursos da família e requerer institucionalização. E outras final- mente acabam por ceifar a vida do paciente” 6:7 . Nes- se sentido, se adotarmos como foco de análise das doenças crônicas a forma como a doença aflige o doente, tomando por categoria fundante a experiên- cia de sofrimento que ela traz à vida do enfermo, po- deremos lançar mão de uma abordagem compreen- siva-interpretativa 7-8 do processo saúde-doença-cui- dado, orientada pelas contribuições da antropologia médica 6,9 , em cujo contexto abordaremos a forma como se constitui a experiência da doença crônica na realidade da vida cotidiana do enfermo: a cronicidade. Esses recursos teórico-metodológicos são, em conse- qüência, cruciais para a reflexão sobre a realidade do fenômeno do adoecimento humano e a estruturação de um saber enquanto tecnologia 4 , capaz de dar con-
  • 3. - 149-Cronicidade e cuidados de saúde: o que a antropologia da saúde tem a nos ensinar? Texto Contexto Enferm 2004 Jan-Mar; 13(1):147-55. ta dos desafios trazidos pela cronicidade, principal- mente no que tange à eficácia da comunicação entre o profissional de saúde e o paciente, a família e as redes sociais de apoio, crucial para a organização de estraté- gias para o cuidado clínico e de enfermagem. Neste artigo, à maneira de pesquisadores que colocam as questões ontológica, epistemológica e metodológica na categorização de paradigmas de in- vestigação 10 , discutimos, num primeiro momento, a natureza ontológica da doença na perspectiva antro- pológica. A seguir, exploramos aspectos epistemológi- cos inerentes à relação fundacional sujeito-objeto no que concerne à apreensão da natureza da doença por parte dos profissionais de saúde, recorrendo aos referenciais teóricos da sociologia do conhecimento e da corrente norte-americana da antropologia médica. E finalmente, na dimensão metodológica, sugerimos a eliciação da narrativa como método para aprofundar a questão da cronicidade e do cuidado. A DOENÇA NA PERSPECTIVA ANTRO- POLÓGICA A antropologia tem abordado o fenômeno da doença em duas perspectivas: como ele é experimen- tado pelos doentes e como é a experiência dos profis- sionais de saúde, particularmente o médico, no exercí- cio de sua prática. Esses pólos têm sido descritos na seguinte tipologia 11 : 1) a enfermidade em terceira pes- soa, ou seja, o conhecimento “objetivo” ou o que às vezes também se denomina os “valores médicos”; e 2) a enfermidade em primeira pessoa, que engloba, no âmbito das ciências sociais, o estudo da subjetivi- dade tanto do doente, quanto do médico. Esta bipolaridade tem sido traduzida, no âmbito dos estu- dos antropológicos sobre o assunto, em terminologi- as que procuram delimitá-la, na tentativa de melhor compreender o fenômeno mórbido, e o seu impacto sobre o homem e a sociedade. Assim, a análise dos esquemas semânticos das diversas línguas humanas para estabelecer uma terminologia precisa e intercambiável com referência àquela bipolaridade tem despertado a preocupação dos estudiosos. A língua francesa, por exemplo, dispõe apenas do termo maladie, enquanto que o idioma inglês possui uma tríplice terminologia: disease (a doença como apreendida pelo saber médi- co), illness (a doença tal qual é experienciada pelo do- ente) e sickness (um estado muito menos grave e mais indeterminado que o precedente, mais comumente um simples mal-estar) 11 . Percebe-se, pois, que termos e significados culturais precisos sobre o fenômeno mór- bido são cruciais à sua apreensão. Com base nos estudos antropológicos anglo- saxões, que procuram construir, na perspectiva da an- tropologia da saúde e da doença, conceitos adequa- dos à compreensão do fenômeno mórbido, tais como doença-sujeito (a illness ou a experiência subjetiva da doença), doença-sociedade (a sickness, que designa os comportamentos socioculturais conectados com a doença em uma dada sociedade) e doença-objeto (tal como apreendida pelo saber biomédico), foi propos- ta para esclarecer a questão11 , com a utilização 1) do termo illness para designar a experiência vital do indi- víduo que sofre uma afecção mórbida; 2) do termo disease para referir-se à doença tal como definida pela biomedicina; e 3) do termo sickness para designar o processo de socialização tanto da disease quanto da illness* . Nessa mesma linha conceitual, situam-se auto- res norte-americanos 6,9 , percebendo-se, porém, uma tênue diferença relativamente à socialização da disease e da illness. Enquanto que, na primeira perspectiva, essa socialização engloba os aspectos socioculturais, na se- gunda, essa socialização envolve o “entendimento de uma desordem em seu senso genérico através de uma população em relação a forças macrossociais (econô- micas, políticas, institucionais)” 6:6 . Assim, desde um ponto de vista antropológico, é possível reconhecer que as doenças, no que concerne a sinais e sintomas particulares, são atravessadas pela cultura em diferentes épocas e sociedades 6 . Com efeito, os significados culturais marcam tanto a pessoa doen- te, imprimindo-lhe sentidos existenciais, quanto os seus cuidadores, particularmente os profissionais de saúde, que constituem sua prática com base em redes semân- ticas profissionais centradas na dimensão biomédica. Na perspectiva dos pacientes, os significados culturais subscrevem os sentidos existenciais das pessoas doen- tes, e estão inscritos na fala através de idiomas e metá- foras culturalmente determinados que articulam a ex- periência da doença 9 . Na perspectiva dos cuidadores, observa-se que a realidade da doença do ponto de vista do ser e do agir integra-se a um sistema de cuida- dos de saúde, definido como um sistema cultural es- pecial, ou seja, um sistema simbólico de significados * Neste trabalho, utilizaremos a equivalência terminológica em Português da série semântica em Inglês disease-disorder-illness-sickness-malady proposta por Almeida Filho 20 : 1) o termo patologia para nos referirmos à disease; 2) o termo enfermidade para nos referirmos à illness; e 3) o termo doença para nos referirmos à sickness.
  • 4. Texto Contexto Enferm 2004 Jan-mar; 13(1):147-55. - 150 - Lira GV; Nations MK; Catrib AMF ancorado em arranjos particulares das instituições soci- ais e dos modelos de interações interpessoais 9 . Nesse aspecto, “em todas as culturas, a enfermidade, as res- postas a ela, as formas como os indivíduos a experienciam e lidam com ela, e as instituições sociais relacionadas a ela estão todas sistematicamente interconectadas. A totalidade destas inter-relações é o sistema de cuidados de saúde” 9:24 . Interessa aqui, entre- tanto, como recorte de análise, a perspectiva do pacien- te, centrada na experiência, categoria fundante a partir da qual procuramos apreender a cronicidade como percepção psicossocial da doença crônica, e propor estratégias de cuidado clínico e de enfermagem. A NATUREZA ONTOLÓGICA DA DOEN- ÇA NO CONTEXTO DA EXPERIÊNCIA HUMANA Na perspectiva da pessoa enferma, a doença traz um impacto no fluxo da sua vida cotidiana. Seu mun- do estará radicalmente alterado 6 , ou seja, em situação de ruptura e desordem 12 . O fato de que o mundo do enfermo se altera, ou seja, de que há uma ruptura com o mundo social em que está inserido, parece estar im- plicado na necessidade de reconfiguração das infor- mações recebidas sobre as doenças. Não se trata ape- nas de um conhecimento sobre fatos que dizem res- peito à saúde, numa palavra, de uma atitude reflexiva. O fundamento e a possibilidade dessa atitude reflexi- va, na verdade, são dados pela experiência pré-refle- xiva ou pré-objetiva, que significa dizer que o mundo se apresenta para nós como esfera da ação prática, an- tes de se apresentar como objeto de conhecimento 12 . Numa palavra, a doença constitui uma situação-pro- blema que afeta a vida cotidiana, causando ruptura e desordem, exigindo dos indivíduos medidas normalizadoras, que lhes permitam enquadrar a ex- periência geradora de ruptura em esquemas interpretativos e reintegrá-la, assim, à zona não questi- onada da vida cotidiana. “Constitui muitas vezes uma situação que revela a insuficiência do conhecimento à mão e, por conseguinte, mobiliza os indivíduos a bus- carem novas receitas práticas para explicar e lidar com o problema”12:17 . No âmbito da sociologia do conhe- cimento8 , a realidade da vida cotidiana abrange dois tipos de setores: um rotineiro, não problemático da vida diária, e outro, problemático, desde que aquilo que aparece como problema não pertença a uma rea- lidade inteiramente diferente. Porém, quando a conti- nuidade da vida cotidiana for interrompida por um problema, ela procura integrar o setor problemático dentro daquilo que já é não-problemático. Para tanto, o conhecimento do sentido comum, cujas estruturas já estão prontas, no bojo do estoque social do pró- prio conhecimento, contém uma multiplicidade de ins- truções sobre a maneira de fazê-lo. Mas se o proble- ma surgido na vida de um indivíduo não pode ser resolvido nos termos oferecidos pelo conhecimento da vida cotidiana, sua validade é questionada. Por outro lado, o conhecimento da vida cotidi- ana é socialmente distribuído, ou seja, possuído por diversos tipos de indivíduos. Assim, quando nos de- paramos com um problema que questiona a validade do nosso conhecimento da vida cotidiana, isto é, se não possuímos conhecimento para reintegrar o pro- blema surgido ao setor não-problemático da realida- de da vida cotidiana, podemos não apenas pedir con- selho a “especialistas”, mas, também, pedir o conse- lho de “especialistas em especialistas”. Ou seja, “a dis- tribuição social do conhecimento começa assim com o simples fato de não conhecer tudo que é conhecido por meus semelhantes, e vice-e-versa, e culmina em sistemas de perícia extraordinariamente complexos e esotéricos. O conhecimento do modo como o esto- que disponível do conhecimento é distribuído, pelo menos em suas linhas gerais, é um importante elemen- to deste próprio estoque de conhecimento” 8:68 . A noção de experiência toma parte do conceito de enfermidade (illness). A enfermidade é a “experiência dos sintomas e do sofrimento”, “a experiência vivida do monitoramento dos processos corporais”, incluindo a “categorização e a explicação, em sentidos do senso co- mum acessíveis a todas as pessoas leigas, das formas de angústia causadas pelos processos fisiopatológicos” 6:3-4 . Outra noção que nos interessa nesta discussão é a de que quando se fala em enfermidade (illness), inclui-se “o julga- mento do paciente sobre como ele pode lidar com a angústia e com os problemas práticos em sua vida diária que ela cria” 6:4 . Nesse modelo, a experiência da enfermi- dade é determinada pela cultura e pela singularidade da biografia individual. Na primeira determinação, obser- vamos que as orientações culturais locais (as formas modelares que nós aprendemos para pensar sobre e agir nos mundos em que vivemos e que replicam a estrutura social desses mundos) organizam nossas convenções do senso comum sobre como entender e tratar as enfermi- dades. Na segunda determinação, por outro lado, obser- vamos que as expectativas convencionais sobre as enfer- midades determinadas pelas orientações culturais são al- teradas através de negociações em diferentes situações sociais e em redes particulares de relações.
  • 5. - 151-Cronicidade e cuidados de saúde: o que a antropologia da saúde tem a nos ensinar? Texto Contexto Enferm 2004 Jan-Mar; 13(1):147-55. Abordagensantropológicasdedistintasorigenstêm confluído na concepção da experiência humana como objeto de abordagem antropológica concernente aos problemas trazidos pela enfermidade (illness) ao cotidia- no de vida dos indivíduos, estando os significados defi- nidos na interação social 5-6 . A negociação e o diálogo entre os distintos significados que envolvem profissional de saúde e paciente são um campo importante de estudo comvistasamelhorarocuidadoadoençascrônicas,como proporemos sumariamente, a seguir. PATOLOGIA VERSUS ENFERMIDADE: MODELOS EXPLICATIVOS EM CON- FRONTO Com efeito, no encontro entre o profissional de saúde e o paciente, estabelece-se uma relação comuni- cativa que se pretende cooperativa. Como já aludido, o êxito dessa relação está no cerne da organização de estratégias para o cuidado clínico. Nesse desiderato, no âmbito da antropologia médica norte-americana 9 , foi introduzido o conceito de Modelos Explicativos (MEs), cuja eliciação de pacientes e familiares permite estabelecer uma negociação entre estes e os profissio- nais de saúde no sentido de remover barreiras a um cuidado efetivo, a qual, por seu turno, contribui para uma abordagem terapêutica mais empática e ética. Modelos Explicativos são “as noções que os pacien- tes, familiares e médicos têm sobre um episódio espe- cífico de uma doença. Essas descrições informais so- bre o que uma doença é, têm enormes significados clínicos: ignorá-los pode ser fatal. Elas respondem a questões, tais como: Qual a natureza deste problema? Por que ele me afetou? Por que agora? Que curso ele seguirá? Como ele afeta o meu corpo? Que tratamen- to eu desejo? Que devo eu temer sobre esta doença e seu tratamento? Os Modelos Explicativos são respos- tas para circunstâncias de vida urgentes. [...] São nossas representações sobre o fluxo cultural da experiência de vida” 6:121 . Os Modelos Explicativos são utilizados para operacionalizar dentro de novas bases o encontro entre o profissional de saúde e o paciente, que se tem estabe- lecido como um encontro entre dois mundos diversos um do outro, onde discursos marcados por significa- dos culturais determinados pelo contexto de vida de ambos os atores em situação se confrontam num diá- logo desigual. O resultado deste é a transformação semiótica da fala leiga em categorias profissionais de apreensão do fenômeno mórbido, numa palavra, a conversão da doença-sujeito (enfermidade – illness) em doença-objeto (patologia – disease), da pessoa doente em paciente, do homem-enquanto-sujeito em homem-enquan- to-objeto, passível de investigação profissional e, eventual- mente, de manipulação 6 . Senão vejamos. No contexto das relações inerentes aos cuida- dos de saúde que têm lugar no Ocidente, bem como à moderna medicina profissional, podemos conceber a relação médico-paciente como uma negociação en- tre o Modelo Explicativo profissional e o Modelo Explicativo do paciente, ou, quando presente na rela- ção, o da família9 . Assim, sendo a perspectiva do mé- dico distinta da do paciente, convém definir como o problema de saúde é interpretado pelo primeiro, de- finição que se dá dentro de uma nomenclatura e de uma taxonomia particulares, que constituem a nosografia médica. A patologia (disease) é o problema de saúde na perspectiva do médico. Nos termos estri- tos do modelo biomédico, ela significa que a doença é configurada como uma alteração da estrutura anatômica ou fisiológica. É “o que o médico cria ao reconfigurar a enfermidade [illness] em termos de te- orias da desordem” 6:5 , ou seja, a reconfiguração dos problemas relacionados à enfermidade que é feita pelo médico em temas estritamente técnicos, em proble- mas clínicos. Porém, no ato clínico de reconfigurar a enfermidade (illness) em patologia (disease), algo essen- cial da experiência da doença crônica é perdida; a en- fermidade (illness) não é legitimada como assunto que concerne à clínica, nem é tida como algo que mereça receber uma intervenção. Os resultados da negociação entre os Modelos Explicativos, quando realizada, dependem da transa- ção entre duas linguagens, constituindo-se num pro- cesso de eliciação (obtenção do Modelo Explicativo do paciente), seguido de um processo de análise, trans- ferência, reestruturação (em uma nova linguagem ou Modelo Explicativo) e feedback9 . Como sugerido, a negociação entre Modelos Explicativos é infreqüente na prática clínica. O que se observa de fato é a translocação da narrativa oral da experiência da doen- ça em uma narrativa escrita, obtida por métodos semiotécnicos, a ser utilizada no raciocínio clínico com vistas à diagnose e à terapêutica. Estas, ao serem re- vertidas à compreensão do tratamento por parte do paciente são submetidas a um processo de reconstru- ção pessoal que visa a traduzir o discurso biomédico numa linguagem que lhe faça sentido, num processo eminentemente semântico. De um modo geral, esse processo de reelaboração da linguagem sobre a do- ença inicia-se com uma redução analógica, por parte do médico, que permite a passagem das categorias da
  • 6. Texto Contexto Enferm 2004 Jan-mar; 13(1):147-55. - 152 - Lira GV; Nations MK; Catrib AMF medicina científica às categorias do senso comum so- bre a saúde e a doença que o sujeito já possui em seu repertório de conhecimentos, cuja função é fazer com que o doente aceite a técnica de tratamento que o médico quer lhe impor 13 . Entretanto, esse processo pode, em determinadas circunstâncias, gerar conflitos entre profissionais de saúde, pacientes e familiares 6 . A análise da singularidade da enfermidade crô- nica aponta para o reconhecimento dos limites da abor- dagem biomédica tradicional concernente ao tratamen- to do processo patológico, sendo necessário instituir um sistema de cuidado humano que represente um alargamento da perspectiva de apreensão do fenôme- no patológico 6 . Essa necessidade avulta, uma vez que, no modelo biomédico padrão, a abordagem terapêu- tica instituída utilizando somente o discurso concernente à melhora nos processos da patologia (disease) pode confundir as avaliações do paciente e da família sobre o cuidado no âmbito do discurso concernente aos problemas relacionados à enfermidade (illness). Por- tanto, no cerne do cuidado clínico de pacientes croni- camente enfermos – aqueles que não podem ser cura- dos, mas devem continuar a conviver com a enfermi- dade – há uma fonte potencial (e, em muitos casos, real) de conflito. Um desses conflitos potenciais refe- re-se à noção de cura, objeto teleológico da medicina terapêutica, prática social de intervenção sobre o cor- po estruturada a partir nas noções de normal e de patológico 14 . A cura, objetivo último de quem adoe- ce, representa um obstáculo ao desenvolvimento de estratégias de cuidado à doença crônica. A busca da cura pode ser um mito perigoso que serve pobre- mente a pacientes e cuidadores, uma vez que “a busca da cura distrai suas atenções de comportamentos pro- gressivos e menos tendentes ao sofrimento” 6:229 . A questão da cura como experiência atrelada à possibili- dade de solução da enfermidade (healing of illness) 9 é um processo dinâmico de significação e ressignificação da experiência advinda do impacto da cronicidade nas biografias de vida individuais. A cura é um processo dinâmico de representação e significação da experiên- cia de vida, e não apenas uma realidade biomédica centrada no êxito terapêutico 15 . Assim, confronto entre Modelos Explicativos e reconstrução de um discurso coerente, ou pelo me- nos, tendendo à coerência, são etapas cruciais numa relação entre o profissional de saúde e o paciente, de tal sorte a garantir uma comunicação efetiva nesse en- contro, cujo pressuposto de eficácia é a adesão do paciente aos regimes terapêuticos. Cabe destacar que a enfermidade (illness), nessa concepção, é uma experiência a partir da qual se consti- tui uma rede complexa de significados culturalmente determinados, relacionados às causas, aos sintomas e processos corporais e psíquicos, ao papel do enfermo no seu meio sócio-cultural, e às opções terapêuticas dis- poníveis a uma escolha ad hoc. Essa significação dos fe- nômenos sócio-culturais da experiência da enfermida- de dá-se através de um processo eminentemente se- mântico, consubstanciada numa rede de representações simbólicasquesedifundenaredesocialdeapoiocentrada na pessoa enferma. Uma representação esquemática dos Modelos Explicativos e da rede semântica da enfermi- dade pode ser vista na Figura1, a seguir. . Modelos Explicativos Crenças sobre causas e significados de tipos particulares de problemas ocasionados pela enfermidade Procura por cuidados de saúde a partir de escolhas de opções terapêuticas disponíveis para tipos particulares de problemas ocasionados pela enfermidade Sintomas e processos psicológicos típicos associados com tipos particulares de problemas ocasionados pela enfermidade (Incluindo rótulo d doença e idioma cultural para articulação da experiência da enfermidade) Problemas sociais típicos associados com tipos particulares de problemas ocasionados pela doença REDE SEMÂNTICA DA ENFERMIDADE Modelos Explicativos Crenças sobre causas e significados de tipos particulares de problemas ocasionados pela enfermidade Procura por cuidados de saúde a partir de escolhas de opções terapêuticas disponíveis para tipos particulares de problemas ocasionados pela enfermidade Sintomas e processos psicológicos típicos associados com tipos particulares de problemas ocasionados pela enfermidade (Incluindo rótulo d doença e idioma cultural para articulação da experiência da enfermidade) Problemas sociais típicos associados com tipos particulares de problemas ocasionados pela doença REDE SEMÂNTICA DA ENFERMIDADE Figura 1 – Modelos explicativos, redes semânticas e procura por cuidados de saúde. Fonte: Kleinman 6:108 Incluindo rótulo da doença e idioma cultural para articulação da experiência da enfermidade
  • 7. - 153-Cronicidade e cuidados de saúde: o que a antropologia da saúde tem a nos ensinar? Texto Contexto Enferm 2004 Jan-Mar; 13(1):147-55. A NARRATIVA COMO MÉTODO PARA A LEGITIMAÇÃO DA DOENÇA COMO EXPERIÊNCIA HUMANA Como visto anteriormente, importante para a presente reflexão é a premissa de que a enfermidade tem significados. A enfermidade, numa perspectiva an- tropológica, é polissêmica e multifacetada; as experi- ências e eventos a ela concernentes irradiam ou ocul- tam mais de um significado6 . Alguns significados per- manecem mais potenciais que reais. Outros se tornam efetivos somente após um curso longo da desordem crônica. Outros ainda mudam ao mudarem as situa- ções e as relações. “A enfermidade crônica é mais do que a soma de muitos eventos particulares que ocor- rem no curso de uma dada enfermidade [illness]; ela é uma relação recíproca entre a instância particular e o curso crônico. A trajetória da enfermidade crônica [chronic illness] é assimilada ao curso da vida, contri- buindo muito intimamente para o desenvolvimento de uma vida particular onde a enfermidade [illness] torna-se inseparável da própria história de vida. As- sim, tanto as continuidades como as transformações levam a apreciações dos significados da enfermidade [illness]”6:8 . Assim, uma das tarefas centrais da atenção ao paciente portador de enfermidade crônica, atualmen- te desvalorizada em favor das poderosas alternativas tecnológicas disponíveis no contexto da medicina moderna, é decodificar os significados evidentes da enfermidade (illness) que interferem no reconhecimen- to dos perturbadores, porém potencialmente tratáveis, problemas da sua vida diária. “Há evidências de que através do exame dos significados particulares da en- fermidade [illness] de uma pessoa é possível impedir o ciclo vicioso que amplifica a angústia. A interpreta- ção dos significados da enfermidade [illness] pode contribuir para prover um cuidado mais efetivo. Atra- vés dessas interpretações as conseqüências frustrantes da incapacidade podem ser reduzidas”6:9 . Nesse sentido, foi proposto um método para o cuidado mais efetivo e humano dos pacientes croni- camente enfermos, originado da reconceitualização do cuidado médico como 1) um testemunho empático da experiência existencial do sofrimento e 2) um re- gistro das principais crises psicossociais que se consti- tuem em ameaça da cronicidade sobre essa experiên- cia6 . De acordo com esse método, “o trabalho do médico inclui a solicitação sensível da história do paci- ente e da sua família no que concerne à enfermidade [illness], a montagem de uma mini-etnografia das mudanças do contexto da cronicidade, a negociação informada com as perspectivas leigas alternativas so- bre o cuidado, e o que equivaleria a uma breve psicoterapia médica para as múltiplas e atuais ameaças e perdas que fazem a enfermidade crônica [chronic illness] tão profundamente perturbadora”6:10 . Um aspecto metodológico importante para a legitimação da enfermidade crônica (chronic illness), nessa perspectiva, é a eliciação das narrativas das enfermi- dades, a qual deve estar no centro de uma educação e de uma prática profissionais centradas no significado6 . Podemos afirmar que eliciar a narrativa de uma enfer- midade é problematizar a idéia de experiência da do- ença. “Problematizar a idéia de experiência significa assumir que a maneira como os indivíduos compre- endem e se engajam ativamente nas situações em que se encontram ao longo de suas vidas não pode ser deduzida de um sistema coerente e ordenado de idéi- as, símbolos ou representações”12:11 . Na verdade, a experiência é muito mais complexa do que os signifi- cados formulados para explicá-la, pois estes ofere- cem sempre quadros parciais e inacabados de uma realidade sempre dinâmica. Os significados não per- tencem a um plano etéreo de puras idéias, ao contrá- rio, atrelam-se às situações em que são formulados, ou antes, em que são usados, as quais são fundamen- talmente situações de diálogo com outros. Como con- seqüência desse processo de constituição da doença como experiência de um sujeito-no-mundo, temos o engendramento de histórias possíveis, no concerto do processo de apreensão, interpretação e projeção para o futuro que pode ser empreendido pelo sujeito. “Com a vivência da doença, as pessoas passam a ter uma história para contar. Essas histórias não são histórias separadas do processo de viver, mas são convergen- tes à maneira de ver o mundo e de viver nele, passan- do a integra-se a esse mundo. Elas relatam várias situ- ações vividas, que, no seu conjunto, têm um sentido maior, o que as transforma em histórias acessíveis aos outros”16:427 . Entretanto, tomar por técnica de coleta de da- dos a narrativa como modo de acesso às experiências de doença não equivale postular uma equivalência ou mesmo uma redução da experiência ao discurso nar- rativo, mas reconhecer que existe uma vinculação es- treita entre a estrutura da experiência e a estrutura nar- rativa, pois esta é semelhante à estrutura de orientação para a ação: 1) um contexto é dado; 2) os aconteci- mentos são seqüenciais e terminam em um determi- nado ponto; e 3) inclui um tipo de avaliação do resul- tado 12 . Ora, situação, colocação do objetivo, planeja- mento e avaliação dos resultados são constituintes das
  • 8. Texto Contexto Enferm 2004 Jan-mar; 13(1):147-55. - 154 - Lira GV; Nations MK; Catrib AMF ações humanas que possuem um objetivo 17 . A eliciação da narrativa, assim, constitui-se num procedimento de acesso à experiência da doença, e quando o objetivo é estabelecer uma compreensão mais ampliada do fe- nômeno do adoecimento humano socialmente construído, para abarcar os pólos da reconstrução da experiência da doença e das representações sociais sobre a doença, é preciso, também, reconstruir as con- dições sociais e históricas de produção, circulação e recepção que lhe deram origem, podendo-se, inicial- mente, fazer um estudo sobre o contexto histórico e sociocultural da doença para melhor analisar as narra- tivas sobre ela, ou, então, pode-se fazer tal estudo com base nas próprias narrativas18 . CONCLUSÃO Procuramos empreender neste artigo uma dis- cussão sobre os aspectos antropológicos relacionados às doenças crônicas como fenômeno humano, cuja percepção psicossocial (illness) manifesta-se através de um processo de significação e ressignificação com implicações na realidade da vida cotidiana do enfer- mo a que chamamos de cronicidade. Nesse sentido, como questão ontológica, vimos que a doença crôni- ca é reconhecida como um fenômeno que se constitui no plano do ser e do agir como experiência, referida à realidade da vida cotidiana, representando um pro- blema a ser solucionado com vistas à normalização do fluxo da vida do enfermo. Como questão epistemológica, utilizamos os referenciais teóricos da sociologia do conhecimento e da antropologia médi- ca para situar a relação entre o profissional de saúde e o enfermo, superando o dualismo sujeito-objeto e o objetivismo na apreensão da doença como fenôme- no humano. Essa relação é entendida, na perspectiva antropológica, como essencialmente semântica, mate- rializada através do confronto e da negociação entre Modelos Explicativos, que, no que tange à questão metodológica, são viabilizadas pela eliciação de narra- tivas. Esperamos que com essa discussão possamos ter contribuído para a elaboração teórica requerida, não apenas pela enfermagem, mas por todos os nú- cleos de competência e responsabilidade do campo da saúde 19 , com vistas ao enfrentamento das doenças crônicas. REFERÊNCIAS 1 Monteiro CA, Iunes RF, Torres AM. A evolução do país e de suas doenças: síntese, hipóteses e implicações. In: Monteiro CA, organizador. Velhos e novos males da saúde no Brasil: a evolução do país e de suas doenças. 2ª ed. São Paulo: Hucitec; 2000. 2 Boff L. Saber cuidar: ética do humano – compaixão pela terra. 2ª ed. Petrópolis: Vozes; 1999. 3SomarribaM.Osdeslocamentosatuaisdocampodasciências sociais em saúde: notas de uma orientadora. In: Vasconcelos EM. Educação popular e a atenção à saúde da família. 2ª ed. São Paulo: Hucitec; 2001. 4GonçalvesRBM.Tecnologiaeorganizaçãosocialdaspráticas desaúde:característicastecnológicasdeprocessodetrabalho na rede estadual de centros de saúde de São Paulo. São Paulo: Hucitec; 1994. 5 Rabelo MCM. A experiência de indivíduos com problema mental: entendendo projetos e sua realização. In: Rabelo MCM, Alves PCB, Souza IMA, organizadores. Experiência de doença e narrativa. Rio de Janeiro: Fiocruz; 1999. p.205- 27. 6 Kleinman A. The illness narratives: suffering, healing & the human condition. New York: Basic Books; 1988. 7 Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 5ª ed. São Paulo: Hucitec; 1998. 8 Berger P , Luckmann T. A construção social da realidade. 21ª ed. Petrópolis: Vozes; 2002. 9 Kleinman A. Patients and healers in the context of culture: an exploration of the borderland between anthropology, medicine, and psychiatry. Berkeley: University of California Press; 1980. 10 Guba EG, Lincoln YS. Competing paradigms in qualitative research. In: Denzin NK, Lincoln YS, organizadores. Handbook of qualitative research. Thousand Oaks: Sage Publications; 1994. p.105-17. 11 Laplantine F. Antropología de la enfermedad: estúdio etnológico de los sistemas de representaciones etiológicas y terapéuticas en la sociedad occidental contemporánea. Buenos Aires: Ediciones del Sol; 1999. 12AlvesPCB,RabeloMCM,SouzaIM.Introdução.In: Rabelo MCM,Alves PCB, Souza IMA, organizadores. Experiência dedoençaenarrativa.RiodeJaneiro:Fiocruz;1999.p.11-39. 13 Boltanski L. As classes sociais e o corpo. 3ª ed. Rio de Janeiro: Graal; 1989. 14 Canguilhem G. O normal e o patológico. 4ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 1995. 15LiraGV.Avaliaçãodaaçãoeducativaemsaúdenaperspectiva compreensiva:ocasodaHanseníase[dissertação].Fortaleza (CE): Programa de Pós-Graduação em Educação em Saúde/UNIFOR; 2003. 16 Silva DGV, Trentini M. Narrativas como técnica de pesquisa em enfermagem. Rev Latino-Am Enferm 2002;
  • 9. - 155-Cronicidade e cuidados de saúde: o que a antropologia da saúde tem a nos ensinar? Texto Contexto Enferm 2004 Jan-Mar; 13(1):147-55. 10(3):423-32. 17 Jovchelovitch S, Bauer MW. Entrevista narrativa. In: Bauer MW, Gaskell G. Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som: um manual prático. Petrópolis: Vozes; 2002. p.90- 113. 18 Gomes R, Mendonça EA. A representação e a experiência da doença: princípios para a pesquisa qualitativa em saúde. In: Minayo MCS, Deslandes SF, organizadores. Caminhos do pensamento: epistemologia e método. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2002. p.109-32. 19 Campos GWS. Subjetividade e administração de pessoal: considerações sobre modos de gerenciar trabalho em equipes de saúde. In: Merhy EE, Onocko R, organizadores. Práxis em salud: um desafio para lo público. São Paulo: Hucitec; 1997. p.229-66. 20AlmeidaFilhoN. Forageneraltheoryof health: preliminary epistemological and anthropological notes. Cad Saude Publica 2001 Jul-Ago; 17(4):753-99.