A nave-das-sombras - the hugo winners - ed. issac asimov
Robert Silverberg O Homem que Jamais Esquecia
1. O Homem que Jamais Esquecia
Robert Silverberg
Ele a viu na fila de um grande cinema de Los Angeles, na manhã de uma terça-feira ligeiramente nevoenta. Era delgada e pálida, de finos e compridos cabelos de trigo, mal teria quinze anos, e estava só. Lembrava-se dela, naturalmente.
Podia ser engano, mas, atravessando a rua, caminhou ao longo da fila até o lugar
onde ela se encontrava.
- Alô! - disse.
Ela voltou-se, encarou-o impassível, passou rapidamente nos lábios a pontinha da
língua...
- Creio que... creio que não...
- Sou Tom Niles - disse ele. - Pasadena, ano-novo de 1955. Sentou-se junto de
mim no Estado de Ohio 20 versus Califórnia do Sul. Não se lembra?
- Num jogo de futebol? Mas eu raramente... isto é... sinto muito... eu...
Alguém na fila avançou para ele com aspecto ameaçador. Niles sabia quando estava vencido. Sorriu desculpando-se e disse:
- Sinto muito, senhorita. Acho que me enganei. Confundi-a com alguém que conhecia, uma certa Miss Bete Torrance. Desculpe!
E afastou-se rapidamente. Não andou mais de dez pés, quando ouviu um pequeno
ofego e as palavras “Mas eu sou Bete Torrance!”... Ele, porém, continuou andando.
“Eu devia ter mais juízo aos vinte e oito anos”, pensou amargamente. “É que me
esqueço do fato básico: de que, embora eu me lembre das pessoas, estas necessariamente não se lembram de mim...”
Abatido, caminhou até a esquina, virou à direita, pôs-se a descer uma nova rua –
rua cujas lojas lhe eram completamente estranhas, e que, por isso mesmo, nunca
antes visitara. Sua mente, como boa máquina que era, estimulada pelo incidente da
fila de cinema, vomitou, até alcançar o diapasão normal de atividade, um exército de
lembranças tangenciais.
1º de janeiro de 1955, no Rose Bowl de Pasadena, Califórnia, número do assento,
G126; dia quente, muito úmido, cheguei ao estádio às doze e três, horário padrão do
Pacífico. Fui sozinho. A moça ao lado trazia um vestido azul de algodão e tênis branco, carregava uma fâmula do Califórnia do Sul. Falei com ela. Nome, Bete Torrance,
aluna adiantada do Califórnia do Sul, curso especializado. Tinha companheiro para o
jogo, mas o rapaz adoecera com sintomas de gripe no dia anterior e insistiu para que
ela fosse assistir à disputa futebolística mesmo sozinha. O assento ao lado dela, vazio. Comprei-lhe um cachorro-quente, vinte cents (sem mostarda...).”
Havia mais, muito mais. Porém Niles recalcou as lembranças. Havia entretanto o
relatório virtualmente estenográfico da sua conversação durante todo aquele dia:
(“...Espero que ganhemos. Assisti ao último Rose Bowl que ganhamos, faz dois
anos...)
2. (“...Sim, foi em 1953. Califórnia do Sul 7, Wisconsin 0... e duas vitórias completas
sobre Washington e Tennessee...)
(“...Puxa, conhece futebol a fundo! Costuma decorar o livro de scores? “)
E as antigas lembranças... O berro escarnecedor de Joe Merrit, o Sardento, naquele caloroso dia de abril de 1937: “Quem você pensa que é, Einstein?” E Buddy Call dizendo acerbamente a 8 de novembro de 1939: “Aí vem Tommy Niles, a máquina humana de somar. Agarrem-no!” Depois, a dor aguda de uma bola de neve acertando
logo abaixo da sua clavícula esquerda - dor que ele podia evocar com a mesma facilidade com que evocava quaisquer outras lembranças de dor que trazia consigo. Piscou e fechou repentinamente os olhos, como que golpeado pela gélida pelota, ali,
numa rua de Los Angeles, numa manhã nevoenta de terça-feira...
Já não mais o chamavam de “máquina humana de somar”, mas de “gravador humano”: os termos irônicos tinham de emparelhar-se com as décadas que passavam.
Só o próprio Niles permaneceu inalterado. O Menino de Cérebro de Esponja virou
Homem de Cérebro de Esponja, sempre condenado ao mesmo dom terrível.
Sua mente coalhada de dados lhe doía. Viu um minúsculo carro esporte estacionar
no outro lado da rua, e pelo feitio, modelo, cor e número da licença, reconheceu-o
como pertencente a Leslie F. Marshall, de vinte e seis anos, cabelos louros, olhos
azuis, ator de televisão com as seguintes habilitações...
Estremecendo, Niles desligou o circuito e apagou os dados que se avolumavam.
Estivera uma vez com Marshall, fazia seis meses, numa festa oferecida por um amigo
comum - um amigo de outrora; Niles achava difícil continuar amigo de alguém por
muito tempo. Conversara talvez dez minutos com o ator e acrescentara mais isso à
sua bagagem mental.
Era tempo de seguir adiante, pensou Niles. Residira dez meses em Los Angeles. O
fardo de lembranças acumuladas se lhe tornara excessivamente pesado; cumprimentava um número demasiado de pessoas que já o haviam esquecido. “Ao diabo com o
meu cociente, John. Tamanho normal, cinco pés e nove polegadas, cento e sessenta
e três libras; cabelos castanhos, olhos castanhos, nenhum traço fisionômico indevidamente saliente, nenhuma cicatriz visível, exceto as de dentro”, pensou. Tencionava
voltar para San Francisco, mas desistiu. Fazia apenas um ano que lá estivera; em Pasadena, fazia dois. Percebeu que chegara o dia de uma outra excursão para o leste...
“Para a frente e para trás na superfície da América, lá vai Thomas Richard Niles, o
Holandês Voador, o Judeu Errante, o Espírito do Natal Passado, o Gravador
Humano...” Sorriu para um jornaleiro que lhe vendera um exemplar do Examiner do
último dia 13, recebeu de volta o costumeiro olhar inexpressivo, e dirigiu-se para o
terminal de ônibus mais próximo.
Para Niles, a longa viagem começara a 11 de outubro de 1929, na pequena cidade
de Lowry Bridge, Ohio. Era o terceiro de três filhos, nascido de pais aparentemente
normais, Henry Niles (nascido em 1896), Mary Niles (nascida em 1899). Seus irmãos
mais velhos não tinham revelado qualquer manifestação extraordinária; ao contrário
de Tom, que revelara...
Tudo começou quando ele principiou a soletrar; uma vizinha, espiando do alpendre
para dentro da casa dele, viu-o brincando e observou a Mary Niles:
- Veja como ele está crescendo!
Nessa ocasião, Tom contava menos de um ano, e respondera, virtualmente, no
mesmo tom de voz: “Veja como ele está crescendo!”
Foi uma sensação, embora se tratasse de pura mímica, não de discurso.
3. Passou seus primeiros doze anos em Lowry Bridge, Ohio. Tempos depois cismava
frequentemente em como fora capaz de ali permanecer tanto tempo.
Entrou para a escola aos quatro anos, pois não havia como retê-lo; seus colegas
de classe tinham cinco ou seis anos, eram vastamente superiores a ele em coordenação física, vastamente inferiores em tudo o mais. De certo modo, Tom sabia ler, podia até mesmo escrever, embora seus músculos infantis logo se cansassem de segurar a caneta. E podia... lembrar.
Lembrava-se de tudo. Lembrava-se das rixas de seus pais e repetia exatamente
suas palavras a quem quisesse ouvir, até que seu pai lhe deu uma surra e ameaçou
matá-lo se ele viesse a repeti-las. Também se lembrava disso. Lembrava-se das mentiras contadas por seu irmão e sua irmã, e se esforçava em repeti-las com exatidão.
Finalmente, aprendeu a não fazer mais isso. Lembrava-se das coisas ditas por pessoas, e até mesmo as corrigia quando mais tarde elas contrariavam as suas primeiras
declarações.
Lembrava tudo.
Certa vez leu um manual, e absorveu-o todo. Quando o professor fazia uma pergunta baseada na lição do dia, o braço magricela de Tommy Niles era o primeiro a se
levantar, antes mesmo que os outros a tivessem ao menos assimilado. Passado algum tempo, o professor lhe explicou que ele não podia responder a todas as perguntas, tivesse ou não resposta para elas; havia na escola mais vinte alunos, os quais
lhe ensinaram isso fartamente... depois da aula.
Ganhou na Escola Dominical o Concurso de Memorização de Versículos Bíblicos.
Barry Harman estudara muitas semanas esperando ganhar a luva de boxe que seu
pai lhe prometera se tirasse o primeiro lugar; mas quando chegou a vez de Tommy
Niles, assim começou ele: “No princípio Deus criou o céu e a terra”, continuando com
“Estas são as origens do céu e da terra, quando foram criados: no dia em que o Senhor Deus fez a terra e o céu”, descambando para “Ora, a serpente era a mais astuta
de todas as alimárias do campo que o Senhor Deus tinha feito”; era de presumir que
tivesse recitado todo o Gênese, o Êxodo e o Livro de Josué, não tivesse o aturdido
professor mandado que ele se calasse, declarando-o vencedor.
Barry Harman não ganhou a luva; em vez disso, Tommy Niles ganhou um olho preto.
Começava a perceber que era diferente dos outros. Levou tempo para descobrir
que os outros estavam sempre a esquecer coisas, e que, em vez de admirá-lo por
lembrá-las, ao contrário, odiavam-no. Era difícil para um menino de oito anos, embora este fosse Tommy Niles, compreender por que o detestavam; mas ele o descobriu
finalmente, de modo que começou a aprender como ocultar seu talento.
No decorrer do nono e décimo anos, exercitou-se na normalidade, e foi quase bem
sucedido; as surras de após as aulas cessaram, e ele conseguiu obter alguns “B” nos
boletins, ao invés de renques de “A”. Crescia; aprendia a fingir Os vizinhos soltavam
suspiros de alívio, agora que o terrível diabrete dos Niles já não mais fazia aquelas
coisas malucas...
Mas por dentro ele era o mesmo de sempre, e percebia que em breve teria de sair
de Lowry Bridge.
Conhecia demais a todos e a cada um. Dez vezes por semana apanhava-os mentindo; até mesmo Mr. Lawrence, o ministro, que certa vez rejeitou um convite dos Niles para uma função social, dizendo: “Na verdade tenho de aprontar meu sermão de
domingo”, quando, havia apenas três dias, Tommy o ouvira dizer a Miss Emery, secretária da igreja, que ele experimentara um repentino estro de inspiração e escrevera três sermões de uma assentada, de modo que agora teria tempo livre para o resto
4. do mês...
Como veem, até Mr. Lawrence mentia... E era o melhor dos homens. Quanto aos
outros...
Tommy esperou até completar doze anos. Era grande demais para a idade e pensou poder agir por si mesmo. Tomou vinte dólares de empréstimo da pseudo-secreta
caixinha do fundo da prateleira da cozinha (fazia cinco anos que sua mãe mencionara
sua existência e ele ouvira), e saiu às escondidas de casa, às três da madrugada. Tomou o trem de carga para Chillicothe e pôs-se a caminho.
Havia umas trinta pessoas no ônibus que deixou Los Angeles. Niles sentou-se sozinho na parte traseira, junto ao banco situado logo em cima da roda de trás. Conhecia de nome três pessoas que viajavam no ônibus - mas confiava em que elas já o
houvessem esquecido e não se mexeu.
Negócio incômodo. Se dissesse “alô” a alguém que o esquecera, pensariam que
ele era um criador de casos ou um achacador. E se passasse por alguém, pensando
que ele o esquecera, quando, ao contrário, isso não acontecia, então, que tipinho
mais esnobe que ele era! Niles balançava-se entre esses dois polos cinco vezes por
dia. Via alguém, por exemplo a moça Bete Torrance, e recebia de volta um olhar gelado, impassível; ou passava por outra pessoa, acreditando que esta não se lembrava
dele mas andando depressa para escapar a um possível reconhecimento, e ouvia um
irado “Bem! Que diacho você pensa que é?” acompanhando-lhe a retirada.
Agora estava só, sacolejando para cima e para baixo a cada revolução da roda,
com a sua única maleta contendo seus pertences a pular constantemente no compartimento de bagagens sobre a sua cabeça. Uma vantagem do seu talento: poder
viajar sem bagagem. Não precisava conservar os livros depois que os lia, e não era
proveitoso entesourar pertences de qualquer espécie; estes se tornavam demasiado
conhecidos, para não dizer cacetes.
Niles olhava as tabuletas da estrada. Já estavam bem entrados em Nevada. A antiga e cansativa retirada prosseguia.
Não podia permanecer demais numa só cidade. Era-lhe preciso dirigir-se a um
novo território, a algum lugar desconhecido, do qual não tivesse lembranças, onde
ninguém o conhecesse, onde não conhecesse ninguém. Nos dezesseis anos que se
passaram desde que saíra de casa, cobrira muito terreno.
Lembrava-se dos empregos que tivera.
Fora revisor de uma casa editora de Chicago. Fazia o trabalho de dois homens. Segundo o costume, um homem lia o manuscrito enquanto o outro conferia as provas.
Niles tinha um método mais simples: lendo o manuscrito, decorava-o, depois apenas
conferia as provas em busca de discrepâncias. Ganhou por algum tempo cinquenta
dólares semanais, antes que chegasse a hora de seguir adiante.
Certa vez fora trabalhar como atração num parque de diversões ambulante que fazia o circuito regular de Alabama-Mississípi-Geórgia. Nessa época estava realmente a
nenhum. Lembrava-se de como arranjara esse emprego: agarrando o dono do parque pela lapela e pedindo-lhe um teste:
- Leia-me qualquer coisa... qualquer coisa... e eu me lembrarei!
O sujeito estava meio cético e não via nenhuma utilidade num ato desses, mas finalmente cedeu quando Niles praticamente desmaiou de fome no escritório dele. O
homem leu para ele o editorial de um semanário do interior do Mississípi, e, quando
acabou, Niles recitou-o inteirinho, palavra por palavra. Obteve o emprego de quinze
dólares por semana mais as refeições, e ficava sentado numa tenda sob a tabuleta
que dizia: “O Gravador Humano”. As pessoas liam-lhe ou diziam-lhe coisas e ele as
5. repetia. Era um trabalho monótono. Às vezes lhe diziam coisas sórdidas, e na maior
parte dos casos, daí a minutos nem ao menos se lembravam do que haviam dito. Ficou no parque quatro semanas, e quando se despediu ninguém lhe achou falta.
O ônibus rodava na noite que o nevoeiro bloqueava.
Mas ainda houve outros empregos: bons empregos, maus empregos... Nenhum
durou muito tempo. Também houve algumas garotas, porém nenhuma delas durara
muito. Todas elas descobriram-lhe o talento especial - mesmo aquelas das quais tentara escondê-lo - e o abandonaram. Não era possível ficar junto de um homem que
jamais esquecia, um homem que sempre podia catar fraquezas de ontem no reservatório que era a sua mente e lançá-las inopinadamente em público. Um homem de
memória perfeita jamais poderia viver muito tempo entre seres humanos imperfeitos.
“Perdoar é esquecer”, pensava ele. A lembrança de velhos insultos e discussões se
dissipa, e as relações se refazem. Mas para ele não podia existir esquecimento, e, em
consequência, só poderia haver pouco perdão.
Niles fechou os olhos após algum tempo e encostou-se na dura almofada de couro
da poltrona. A cadência ritmada do ônibus deu-lhe sono. Durante o sono, sua mente
descansava; ele podia enfim repousar a memória. Nunca sonhava.
Em Salt Lake City pagou a passagem, desceu do ônibus com a mala na mão e partiu na primeira direção à sua frente. Não queria se afastar muito a leste naquele ônibus. Sua reserva monetária era agora de sessenta e três dólares, e tinha de fazê-la
durar.
Descobriu um emprego de lava-pratos num restaurante do centro da cidade, conservou-o o bastante para acumular uma centena de dólares e tornou a partir, desta
vez viajando de carona para Cheyenne. Ficou um mês ali, depois tomou um ônibus
noturno para Denver, e quando deixou Denver foi para dirigir-se a Wichita.
De Wichita para Des Moines, de Des Moines para Minneapolis, de Minneapolis para
Milwaukee, depois através de Illinois, cuidadosamente evitando Chicago, e daí para
Indianápolis. Essa viagem era para ele história antiga. Celebrou melancolicamente o
seu vigésimo nono aniversário sozinho, numa casa de cômodos de Indianápolis, num
dia garoento de outubro, e com o propósito de alegrar a ocasião evocou as velhas
lembranças da festa do seu quarto aniversário, em 1933 - uma das poucas datas
perfeitamente felizes de sua vida.
Todos estavam lá - seus amigos e seus pais, e seu irmão Hank com um ar muito
importante para os seus oito anos, e sua irmã Marian, e havia velas e lembranças
festivas, ponche, bolos. Mrs. Heinsohn, vizinha do lado, entrara dizendo: “Ele parece
um homenzinho!”, e seu pais ficaram radiantes, todos cantaram e divertiram-se. Depois, jogado o último jogo, aberto o derradeiro presente, quando os meninos e as
meninas acenaram um boa-noite e desapareceram rua acima, os adultos sentaramse em roda e falaram do novo presidente e das muitas coisas estranhas que aconteciam no país, e o pequeno Tom sentou-se no meio do assoalho, ouvindo e gravando
tudo e cordialmente satisfeito, pois durante toda a tarde ninguém lhe fizera ou dissera algo cruel. Dia feliz, aquele, e, ao deitar-se, ele ainda se sentia cheio de felicidade.
Niles relembrou a festa duas vezes, como um velho filme ao qual amasse; a imagem nunca aparecia defeituosa e o som continuava tão claro e distinto como nunca.
Niles podia provar o doce travo do ponche, podia reviver o calor daquele dia no qual,
mercê de algum acidente, os outros lhe haviam permitido um pouco de felicidade.
Finalmente deixou se dissipar o brilho da festa, e novamente achou-se em Indianápolis, numa tarde cinzenta e sombria, sozinho num quarto mobiliado, de oito dólares
por semana.
6. “Desejo-me feliz aniversário”, pensou amargamente. “Feliz aniversário.”
Fitou a parede verde cheia de manchas com uma gravura barata de Corot dependurada um pouco de viés. “Bem que eu podia ser algo especial”, cismava ele, “uma
dessas maravilhas do mundo. Em vez disso, não passo de um sorrateiro excêntrico
que mora nos fundos de um terceiro andar, e não me atrevo a deixar que o mundo
saiba o que sei fazer.”
Fez um esforço e conseguiu se lembrar da execução, por Toscanini, da Nona sinfonia de Beethoven, que ouvira no Carnegie Hall certa vez em que estivera em Nova
Iorque Estava infinitamente melhor do que a última execução que o mesmo Toscanini
aprovara para gravação, todavia nenhum microfone a registrou; exceto na mente de
um homem, a fulgurante execução era tão impossível de captar como uma chama
soprada há cinco minutos. Mas Niles captara-a: a majestosa entrada dos tímpanos, o
ressoante contrabaixo produzindo a grande melodia do finale, até mesmo o balanço
do oboé que devia enfurecer o maestro, a tosse exasperadora dos ouvintes no momento mais suave do adágio, o dolorido apertão dos sapatos de Niles, que se inclinava para a frente na poltrona...
Ele gravara tudo, com a mais alta fidelidade.
Três meses depois, numa noite sem lua chegou a uma cidadezinha. Era uma noite
de janeiro, fria e cortante, quando o vento de inverno soprava do norte, penetrandolhe os ossos através da roupa fina e tornando quase insuportável o peso da mala
para suas mãos dormentes e sem luvas. Não tivera a intenção de ir para lá, mas em
Kentucky ficara sem dinheiro e não tivera escolha. Estava a caminho de Nova Iorque,
onde poderia viver anonimamente durante meses sem amolação e onde sabia não
ser notada a sua grosseria caso lhe acontecesse esbarrar em alguém ou cumprimentar alguma pessoa que o houvesse esquecido.
Mas Nova Iorque ainda se encontrava a centenas de milhas de distância - bem poderiam ser milhões naquela noite de janeiro. Viu um letreiro: “BAR”. Avançou para a
luz pisca-pisca de neon. Ordinariamente não bebia, mas agora precisava do calor do
álcool, e talvez o dono do bar precisasse de alguém para ajudar, ou talvez pudesse
lhe alugar um quarto em troca do pouco dinheiro que tinha nos bolsos.
Havia cinco homens lá dentro. Pareciam choferes de caminhão. Niles deixou cair a
mala à esquerda da porta, esfregou as mãos endurecidas, exalou uma nuvem branca
pela boca... O dono do bar arreganhou-lhe um sorriso.
- Frio que baste lá fora, hein?
Niles conseguiu sorrir.
- Não estava suando muito... Dê-me algo quente. Uma dose dupla de uísque, talvez.
Isso custava noventa cents: ele tinha apenas sete dólares e trinta e quatro cents.
Niles acalentou a bebida quando ela veio, bebericou devagar, deixou-a escorrer
pela garganta... Lembrava-se do verão em que fora parar em Washington, uma semana inteira de noventa e sete graus de temperatura e noventa e sete por cento de
umidade, e a vívida memória concorreu para lhe acalmar alguns dos efeitos psicológicos do frio.
Logo distendia os nervos, cobrava calor... Atrás dele, o rumor penetrante de uma
discussão.
-...digo-lhe que Joe Louis fez de Schmeling uma massa na segunda vez! Nocauteou-o no primeiro round!
- Está maluco! Louis simplesmente o derrubou numa luta de quinze rounds: por
pontos, no segundo...
7. - Parece que...
- Aposto dinheiro. Dez dólares numa decisão por pontos em quinze rounds, Mac.
Risadas confiantes se fizeram ouvir.
- Não quero ganhar tão fácil seu dinheiro, companheiro. Todos sabem que foi nocaute.
- Ofereci dez dólares.
Niles voltou-se para ver o que estava acontecendo. Dois dos choferes de caminhão, homens atarracados, de jaqueta cor de ervilha, encostavam um no outro os
respectivos narizes. A ideia lhe veio automaticamente: “Louis pôs Schmeling nocaute
no primeiro round, no Yankee Stadium, Nova Iorque, 22 de junho de 1938”. Niles
nunca fora grande esportista, e especialmente aborrecia-lhe o boxe, mas certa vez
dera uma vista d’olhos na página de um almanaque que catalogava as lutas pelo título, e os dados, naturalmente, lhe ficaram gravados no cérebro.
Olhava indiferente enquanto o maior dos choferes batia na mesa uma nota de dez
dólares; o outro imitou-o. Então o primeiro, olhando para o dono do bar, disse o seguinte:
- Certo, mano. Você é um sujeito esperto. Quem acertou nessa segunda luta de
Louis e Schmeling?
O dono do bar era um homem de rosto inexpressivo, de meia-idade, já meio careca, com olhos mansos e vazios. Mordeu o lábio um instante, encolheu os ombros,
hesitou, finalmente disse:
- Difícil lembrar. Foi há vinte e cinco anos essa luta.
“Vinte”, pensou Niles.
- Vejamos - prosseguiu o dono do bar. - Parece que me lembro... sim, é isso mesmo. Foram quinze rounds e os juizes deram a vitória a Louis. Houve um grande protesto; os jornais disseram que Joe devia tê-lo matado muito antes disso.
Um sorriso triunfante se esboçou na cara do motorista maior, que destramente
empolgou ambas as notas.
O outro homem fez uma careta e soltou um berro:
- Ei! Vocês dois combinaram a coisa de antemão. Sei perfeitamente que Louis nocauteou o alemão em um!
- Ouviu o que o homem disse: o dinheiro é meu.
- Não - disse Niles repentinamente numa voz tranquila, que se diria ecoar até a
metade do bar. “Fique calado”, disse freneticamente com seus botões. “Isso não lhe
diz respeito. Fique de fora.”
Mas era demasiadamente tarde.
- O que está dizendo? - perguntou o tal que pusera os dez dólares na mesa.
- Digo que está sendo logrado. Louis venceu a luta em um round, conforme você
diz, a 22 de junho de 1938, no Yankee Stadium. O dono do bar está pensando na
luta de Arturo Godoy. Essa foi de quinze rounds, completos, a 9 de fevereiro de
1940.
- Está vendo? Eu bem disse! Devolva-me o dinheiro!
Mas o outro chofer não fez caso do grito e voltou-se para encarar Niles. Era um
homem de expressão fria, atarracado, e seus punhos começavam a se crispar...
- Espertinho, hein? Especialista em boxe?
- Eu só não queria ver alguém logrado - disse Niles obstinadamente. Mas já previa
o que vinha em seguida. O chofer, embriagado, ia trocando as pernas em sua direção; o dono do bar berrava, os outros campeões recuavam...
O primeiro soco acertou Niles nas costelas; ele gemeu, recuou cambaleando para
ser agarrado pela garganta e esbofeteado três vezes. Ouviu vagamente uma voz que
8. dizia:
- Olhe aí, solte o rapaz! Ele não queria nada! E você quer matá-lo?
Uma rajada de golpes fizeram-no curvar-se; um soco inchou-lhe a pálpebra direita,
outro golpeou-lhe o ombro esquerdo, adormecendo-o. Niles rodou a esmo, sabendo
que sua mente se recordaria permanentemente de cada momento dessa agonia.
De olhos semicerrados viu os outros arrancando o chofer enfurecido de cima dele;
o homem contorcia-se nas garras de três outros, mas desferiu um último pontapé
desesperado no estômago de Niles, atingindo uma costela, e finalmente foi subjugado.
Niles ficou sozinho no meio da sala, esforçando-se para ficar de pé, tentando suportar as súbitas pontadas que o incomodavam numa dúzia de lugares.
- Você está bem? - perguntou uma voz solícita. - Diacho! Esses caras jogam duro.
Não devia se meter com eles.
- Estou bem - disse Niles numa voz cavernosa. - Mas espere um pouco... deixe-me
recuperar o fôlego.
- Isso. Sente-se. Tome um trago. Isso lhe dará ânimo.
- Não - disse Niles. - Não posso ficar aqui. Tenho de ir andando. Logo estarei bom
- murmurou sem convencer ninguém. Apanhou a mala, enrolou-se no sobretudo e
saiu do bar, passo a passo...
Andou quinze pés antes que a dor se lhe fizesse insuportável. De repente amontoou-se no chão e caiu de bruços no escuro, sentindo de encontro às faces a terra enregelada e dura como aço. Em vão tentou levantar-se. E ali ficou, lembrando-se das
muitas dores que sofrera na vida, as surras, a crueldade... Mas quando o peso da
memória se lhe tornou demasiado, perdeu os sentidos.
A cama era tépida, os lençóis limpos, frescos e macios. Niles despertou lentamente, sentindo uma momentânea sensação de tontura, mas a sua infalível memória supriu os dados do seu desmaio na neve e ele percebeu que se encontrava num hospital.
Tentou abrir os olhos; um se fechara, de tão inchado que estava, mas conseguiu
descerrar as pálpebras do outro. Achava-se no quarto de um pequeno hospital nada de um lustroso pavilhão metropolitano, mas de uma pequena clínica de condado com vistosos objetos moldados nas paredes e cortinas de renda caseira, através
das quais penetrava o sol da tarde.
Fora encontrado e conduzido ao hospital. Isso era bom. Podia facilmente ter morrido lá fora, na neve; mas alguém tropeçara nele e o recolhera. Era uma novidade alguém ter-se incomodado em socorrê-lo; o tratamento que recebera na véspera naquele bar - fora mesmo na véspera? - era mais condizente com o que até então o
mundo lhe havia dado. Em dezenove anos, ele de algum modo fracassara em aprender a se esconder e se disfarçar adequadamente, por via do que sofria, diariamente,
terríveis consequências. Era-lhe tão difícil lembrar (ele, que de tudo se lembrava) que
as outras pessoas não eram como ele, e que além disso o odiavam por ele ser o que
era.
Apalpou cautelosamente o flanco. Parecia não haver nenhuma costela quebrada apenas machucaduras. Um dia ou dois de repouso e decerto lhe dariam alta, deixando-o continuar a viagem.
Nisto, uma voz animada lhe falou:
- Oh, já acordou, Mr. Niles? Está melhor? Vou trazer-lhe um pouco de chá.
Ele ergueu a vista e sentiu uma súbita pontada muito aguda. Era uma enfermeira vinte e dois, vinte e três anos, talvez nova no emprego, com uma ondulante massa
9. de louros cachos e grandes olhos azuis, límpidos e redondos... Sorria, e pareceu a
Niles que o sorriso não era meramente profissional.
- Sou Miss Carroll, enfermeira diurna. Tudo vai bem?
- Otimamente - disse Niles com certa hesitação. - Onde estou?
- No Hospital Central Geral do Condado. Trouxeram-no ontem à noite - pelo visto
tinha sido espancado e largado na Rodovia 32. Foi uma sorte Mr. Mark McKenzie estar passeando com seu cão, Mr. Niles. - E fitou-o gravemente. - Lembra-se de ontem
à noite, não se lembra? Quero dizer... o choque... a amnésia...
Niles riu para si mesmo.
- Essa é a última indisposição no mundo que hei de recear - disse. - Sou Thomas
Richard Niles, e me lembro muito bem do que sucedeu. Até que ponto me avariaram?
- Ferimentos superficiais, um pequeno choque, um leve caso de queimadura pelo
frio - resumiu ela. - Vai viver. Daqui a pouco o Dr. Hammond lhe fará um exame geral; depois que o senhor comer. Vou buscar-lhe um pouco de chá.
Niles observou a esbelta figura que desaparecia no corredor.
Era certamente uma moça muito bonita, pensou: olhos límpidos... alerta... viva.
“O clichê é antigo: o paciente se apaixonando pela enfermeira. Porém ela não é
para mim. Receio que não.”
A porta abriu-se abruptamente e a enfermeira tornou a entrar, carregando uma
bandejinha esmaltada com o serviço de chá.
- Não adivinha? Tenho uma surpresa para o senhor, Mr. Niles. Uma visita. Sua mãe.
- Minha mãe...
- Ela leu a notícia no jornal do condado. Está esperando lá fora; disse-me que não
o vê há uns dezessete anos. Quer que eu a mande entrar?
- Acho que sim - disse Niles com voz seca e frágil. A enfermeira saiu pela segunda
vez.
“Meu Deus”, pensou Niles. “Se eu soubesse que estava tão perto de casa, teria ficado fora de Ohio de uma vez!”
A última pessoa que desejaria ver no mundo era sua mãe. Pôs-se a tremer debaixo
das cobertas. As mais antigas e as mais terríveis lembranças irrompiam do escuro
compartimento de sua mente, onde as julgava para sempre aprisionadas. A súbita
emergência do calor para o frio, da treva para a luz, a vibrante pancada contra o seu
traseiro, a dor cruciante ao saber que se acabara a sua segurança, e que, de agora
em diante, viveria, e que, por isso, seria infeliz...
A lembrança do grito agônico do seu nascimento ressoou-lhe na mente. Nunca se
esqueceria de que nascera. E entre todas, sua mãe era a única pessoa que ele jamais perdoaria, uma vez que ela o pusera no mundo que ele odiava. Tinha horror às
mulheres, mas...
- Olá, Tom. Faz tanto tempo...
Dezessete anos haviam-na murchado, marcado de rugas o seu rosto e tornado
suas faces mais balofas, os cerúleos olhos menos brilhantes, os cabelos castanhos de
um cinzento de camundongo. Ela sorria. E para seu próprio espanto, Niles conseguiu
retribuir-lhe o sorriso.
- Mãe.
- Li a notícia no jornal. Dizia que um homem de aproximadamente trinta anos fora
encontrado nas cercanias da cidade com papéis que traziam o nome de Thomas R.
Niles, e fora conduzido ao Hospital Central Geral do Condado. Por isso vim, apenas
para me certificar de que era você mesmo!
Uma mentira aforou à superfície de sua mente, uma mentira piedosa... e ele a dis-
10. se:
- Eu voltava para visitá-la, mãe. Vim de carona. Mas sofri um pequeno acidente na
estrada.
- Folgo em saber que você resolveu voltar, Tom. Fiquei tão só depois da morte de
seu pai, e, naturalmente, Hank se casou, Marian também... é bom tornar a vê-lo.
Pensei que nunca mais o veria.
Ele continuou deitado, perplexo, pensando por que não lhe vinha a costumeira
maré de ódio. Só sentia ternura por ela; estava contente em revê-la.
- E como foram todos esses anos, Tom? Não foram fáceis, não? Estou vendo. Percebo em sua cara...
- Sim, não foram fáceis - respondeu. - Sabe por que fugi?
Ela fez com a cabeça um aceno afirmativo:
- Por causa do jeito que você tem. Aquela história de jamais esquecer seja lá o que
for... Eu sabia. Sabe que seu avô tinha o mesmo dom...
- Meu avô... mas...
- Você puxou a ele. Eu nunca lhe contei. Ele não se dava bem com nenhum de
nós. Abandonou minha mãe quando eu era menina e nunca se soube para onde foi.
Por isso sempre pensei que você se fora do mesmo modo que ele. Mas você voltou.
Está casado?
Ele sacudiu a cabeça.
- Então já é tempo de decidir, Tom. Tem quase trinta anos!
A porta do quarto abriu-se e entrou um médico de aspecto eficiente.
- Receio que a sua hora já se tenha esgotado, senhora. Mais tarde poderá voltar a
vê-lo. Vou examiná-lo, agora que está acordado.
- Naturalmente, doutor. - E sorriu para ele, depois para Niles. - Voltarei mais tarde,
Tom.
- Decerto, mãe.
Niles recostou-se, fazendo carrancas à medida que o médico o cutucava aqui e
acolá. “Eu não a odiava.” Um crescente maravilhamento o invadia, e ele pensava que
havia muito já devia ter voltado. Mudara interiormente, mesmo sem perceber.
Fugir foi sua primeira fase de crescimento - fase necessária. Porém querer voltar
aconteceu mais tarde e era sinal de maturidade. Voltara. E repentinamente viu que
fora terrivelmente idiota durante toda a sua amarga vida de adulto.
Possuía um dom, um grande dom, um dom terrífico. Até agora lhe fora demasiado
pesado. Condoendo-se de si próprio, atormentando-se, até então se recusara a perdoar as faltas das pessoas que esqueciam, e pagara o preço do ódio delas. Mas não
podia andar fugindo a vida inteira. Tempo viria em que teria de crescer o suficiente
para dominar o dom, para aprender a viver com ele ao invés de gemer na dramática
angústia que a si próprio se infligia.
E esse tempo era agora. Já de há muito devia ter chegado.
Seu avô possuíra o dom - nunca lhe haviam dito isso. De modo que a coisa era geneticamente transmissível. Podia casar, ter filhos... e também estes jamais se esqueceriam.
Era seu dever não consentir que o dom morresse com ele. Outros de sua espécie,
menos sensíveis, de pele menos fina, viriam após ele, e também estes saberiam
como evocar uma sinfonia de Beethoven ou um fiapo de conversa, depois de uma
década. Pela primeira vez desde aquele quarto aniversário, Tom sentiu um hesitante
lampejo de felicidade. Os dias de correria tinham findado; estava de novo em casa.
“Se eu aprender a viver com os outros, decerto também eles aprenderão a viver comigo.”