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Monteiro, C. A. de F. / Revista de Geomorfologia, volume 2, nº 2 (2001)




                                     Revista Brasileira de Geomorfologia, Volume 2, Nº 1 (2001) 1-20




                          William Morris Davis e a Teoria Geográfica

                                   Carlos Augusto de Figueiredo Monteiro
                                                      Universidade de São Paulo
                                                      email: casusto@uol.com.br

                                           Artigo convidado recebido em 15 de maior de 2001



RESUMO
O autor põe em confronto a proposta teórica do Ciclo Geográfico de W. M. Davis, da virada dos séculos passados (1899) e a
famosa crítica sobre a carência de fundamentação científica na Geografia, feita por Fred Schaefer (1953). Este é o ponto de
partida para traçar um panorama da evolução da Geografia Física no Brasil, notadamente da Geomorfologia e da Climatologia, ao
longo do século XX. Sincronizando a evolução do pensamento geográfico com os grandes acontecimentos mundiais do passado
século, o autor destaca o segmento 1968-1973 como o possível ponto de mutação a partir do qual penetramos na Grande Crise
Histórica que atravessamos nesta virada dos séculos XX e XXI e o caráter desagregativo da atual Geografia.

Palavras chave: Teoria Geográfica, Geomorfologia, Brasil, Século XX.

ABSTRACT
The author promotes a confrontation between the W. M. Davis` “The Geographical Cycle” (1899) and Fred Schaefer´s
“Excepcionalism in Geography” (1953). This is taken as the starting point for an overview of the theoretical evolution in
geomorphology and climatology within the scope of Physical Geography produced in Brazil during the XXth Century. In this
analysis the author emphasizes the period 1968-1973 as a possible turning point toward to the great historical crises in which we
are drowned at this threshold of the new millennium and the astonishingly desegregation of todays Geography.

Keywords: Geographical Theory, Geomorphology, Brazil, XXth Century.



1. Introdução                                                                    Desde que encerrei minha carreira acadêmica,
                                                                       na docência e pesquisa, venho sendo chamado para
         Minha presença neste simpósio1 não é aquela                   eventos geográficos nos quais me tenho obstinado a
do geomorfólogo atuante que vem confrontar e debater                   fruir deles como meio de informação e, quando instado
idéias com seus colegas. Trata-se, antes, da presença                  a participar neles, ater-me ao papel de alguém que,
de um geógrafo (ou melhor, de um aprendiz de geó-                      havendo encerrado sua militância, limita-se a depor à
grafo) que, malgrado haver sido impelido à pesquisa                    base de reflexões sobre a sua experiência passada.
em Climatologia, sempre procurou considerar a Geo-                     Neste encontro, além daqueles dois propósitos, move-
grafia como uma convergência holística da relação                      me o desejo de rever colegas e amigos, inclusive com
Homem/Natureza. Atraído pela História ao ingressar                     a honrosa incumbência de apresentar alguns dos ho-
na Faculdade Nacional de Filosofia, da antiga Univer-                  menageados no certame.
sidade do Brasil, no Rio de Janeiro, nos idos de 1947,                           Ao propor-me tratar de William Morris
em pouco tempo fui capturado pela Geografia. E, nes-                   Davis, não desejo“exumá-lo para um possível revival a
se campo, a Geomorfologia foi o meu primeiro ímã.                      modo do que acontece, no momento, com outro ilustre
As circunstâncias, várias, quem sabe o acaso, impe-                    geógrafo norte-americano – Carl Orwin Sauer- na
liram-me para a pesquisa em Climatologia, área bem                     atual emersão de sua Geografia Cultural, que nunca
mais carente, entre nos, na metade do século que ex-                   medrara entre nós. Desejo tão somente focalizar sua
pira.                                                                  contribuição teórica, no geographical cycle, como fio
                                                                       condutor num panorama evolutivo da Geografia ao
1                                                                      longo deste século. Embora não haja dúvidas sobre
 Palestra ministrada no III Simpósio Nacional de Geomorfologia,
Campinas, de 3 a 6 de setembro de 2000.
                                                                       que a proposta teórica de Davis seja um dos pontos de

                                                                  1
Monteiro, C. A. de F. / Revista de Geomorfologia, volume 2, nº 1 (2001) 1-20



partida da Geomorfologia, prefiro conjugá-la ao                            Science, to repeat once more, searches for
contexto geográfico geral. Para mim, pessoalmente, é                       laws. What then, one may ask, are the
difícil (e até mesmo penoso) restringir-me a visões                        peculiarities of the laws we look for and
muito setoriais ou estanquemente compartimentadas                          which would make it advisable that they be
na evolução do pensamento geográfico. Fruto de                             kept together in one discipline? From this
minha crença na unidade da Geografia, admito que                           viewpoint, we believe that laws of geography
esta atitude possa ser fruto de uma arcaica disposição                     fall into three categories. Typical of the first
romântica que remonte, talvez, àquela visão cosmo-                         are most of the laws of physical geography.
lógica, vinculada ao Zeitgeist, do nascedouro da                           These are not strictly geographical. Many of
Geografia como ciência.                                                    them are specializations of laws indepen-
          Aliás, só agora, ao preparar esta palestra, dei-                 dently established in the physical sciences.
me conta de que nossa colega Lílian Coltrinari (1995),                     These we take as we find them, apply them
em muito boa hora, já promovera esta retomada da                           systematically to the various conditions that
contribuição de Davis, ao lado de De Martonne, numa                        prevail on the surface of the earth and
das Seleções de Textos da AGB. Alegra-me, pois, não                        analyze them with particular attention to the
estar só nesta missão de relembrar contribuições                           spatial variables they contain. To be specific,
passadas, mesmo quando as novidades e propostas                            the climatologist uses much physics (meteo-
emergentes são tão copiosas, como estas vividas em                         rology), the agricultural geographer, applied
nosso presente.                                                            biology (agronomy).
          Nossa presente conversa constará de três mo-
mentos. Em primeiro lugar, pretendo focalizar a pro-                       Para o tipo de Climatologia que vigorava
posta teórica de Davis – do finalzinho do Século XIX             naquela época (e até hoje, em certos centros), onde as
– subestimada ou mesmo esquecida na convulsão da                 vinculações com a Meteorologia eram fortes a ponto
dita revolução teorética. A seguir, procurarei promo-            de legitimar como geográfica apenas a legalização
ver – embora muito rápida e sucintamente - um jogo               estatística dos estados médios poderíamos compre-
de correlações sincrônicas, entre a Geomorfologia e              ender a argumentação de Schaefer. Para a Geografia
alguns outros setores geográficos, ao longo do século            Agrária (ou agrícola) ela causa mais surpresa
vinte. Finalmente, procurarei – numa avaliação muito             porquanto ao lado dos sistemas agrícolas, onde se
pessoal – expor algumas impressões sobre as tendên-              poderia imputar a aplicação agronômica, haveria que
cias atuais de nossa Geografia, pelo que me tem sido             admitir aquela postura de ordenar, classificatória-
dado notar de minhas últimas participações em fóruns             mente, como numa competição esportiva, produto por
geográficos nacionais.                                           produto. Mas talvez o autor incluísse esta linha no
                                                                 campo da Geografia Econômica que, em sua
2. O CICLO GEOGRÁFICO de W. M. DAVIS                             concepção, era a mais geograficamente legítima.
(Imaginação Criadora e Verdade Científica)
                                                                                        Typical of the second category
         Para minha geração ainda não está distante a                      are many laws of economic geography, for
eclosão da chamada Revolução Teorética na Geo-                             instance, the now flourishing theory – for it
grafia do final dos anos sessenta e ao longo dos se-                       hás, indeed, reached the stage where one can
tenta. Um dos pilares epistemológicos desta revolução                      speak of a theory in the strict sense of a
foi o artigo de Fred Schaefer intitulado Excep-                            whole group of deductively connected gene-
tionalism in Geographya Methodological Exami-                              ralizations – of general location. As every-
nation publicado nos Annals of the Association of                          body knows, this theory investigates the
American Geographers, Vol. 43, n.3, September, 1953                        spatial relations obtaining between the places
pp.226/249. Um artigo póstumo, desde que seu autor                         at which the various economic factors, raw
falecera a 6 de junho do mesmo ano. Peça altamente                         materials, producing units, means of commu-
polêmica abalava a estrutura epistemológica da Geo-                        nication, consumers, and so on, are to be
grafia, de Kant a Hartschorne. Mas, como tal, cheia de                     found in any region. As far as they are mor-
aspectos positivos e negativos. De qualquer modo, e                        phological,these laws are genuinely geogra-
antes de tudo, é um documento que reflete, muito                           phic The pioneer work in this area has, in
claramente, a ênfase no caráter social na Geografia e,                     fact, been done by economists, if we except
melhor do que isso, marca o advento do determinismo                        Cristaller, who is a geographer.
econômico sobre aquele ambiental. Estes são fatos
capitais naquele artigo, que afloram após a insistência                   É muito difícil compreender esta legitimidade
inicial no apelo à necessidade de leis gerais, como              dos fatos econômicos onde a multiplicidade de fatores
caráter essencial à ciência; na procura de univer-               asseguram espacialidade. Fatos geomorfológicos,
salidades em vez de excepcionalismos.

                                                             2
Monteiro, C. A. de F. / Revista de Geomorfologia, volume 2, nº 1 (2001) 1-20



climáticos e agrários não admitem múltiplos fatores?                      ment. The contemporary reaction against
Acompanhemos o raciocínio de Schaefer:                                    these exaggerations is understandable strong.
                                                                          But to fight them from the standpoint of
        Geography is essentialy morphological. Pure                       science is one thing; to fight geographical
        geographical laws contains no reference to                        determinism in order to fight science and its
        time and change. This is not to deny that the                     underlying idea of universal lawfulness is
        spatial structures we explore, are, like all                      another thing (op.cit., pp.247).
        structures anywhere, the result of processes.
        But the geographer, for most part, deals with                    O que é mais surpreendente na abordagem de
        them as he find them, ready made (As far as             Schaefer é que ele ignora completamente a contri-
        physical geography is concerned, the long               buição de W. M. Davis em sua proposta de Geogra-
        term processes that produce them are part of            phical Cycle, sobretudo quando se tem sob os olhos as
        the subject matter of geology). Let us in this          três primeiras linhas de seu famoso artigo:
        connection consider Koeppen’s Hipothetical
        Continent. The word hypothetical merely                           All the varied forms of the lands are
        indicates that he neglected, for the purpose of                   dependent on – or, as the mathematician
        his climatological generalization, all but a                      would say, are functions of – three variable
        few variables. For the remaining ones he                          quantities, which may be called structure,
        states a spatial correlation that is a mor-                       process and time.
        phological law. To call such comparatively
        crude correlation patterns, in this sense of                      Em sua proposta eminentemente teórica
        patterns, are different from laws, would be a           Davis evoca, para fins de legitimação, a linguagem
        mistake. This absence of the time factor                matemática, requisito básico da ciência.. O artigo em
        within physical geography is the source of a            pauta data do final do século XIX, intitulado The
        peculiar phenomenon within all branches of              Geographical Cycle e publicado no Geographical
        human geography (Op.cit, pp.244/244).                   Journal da Royal Geographical Society, em seu nú-
                                                                mero 14, ano de 1899, entre as páginas 481 e 504.
         No seu afã de exaltar o nomotético sobre o             Nele, além de perseguir propósitos genéticos (causais)
idiográfico, além do mérito apontado para o continente          e não apenas topográficos (formais), enfatizando o
hipotético de Koeppen (1917), o autor chega a absol-            caráter teórico, é feita, propositadamente, abstração de
ver os ultra deterministas Helen Semple (1897) e                toda a gama complexa de vetores implicados no
Ellsworth Huntington (1945):                                    modelado terrestre. Partindo da classificação genética
                                                                das formas, nos capítulos seguintes trata do papel do
        Geographical determinism or environmenta-               tempo como elemento da terminologia geográfica e a
        lism attributes to the geographical variables           descrição do ciclo geográfico ideal.
        the same role in the social process as                            Após a contribuição do engenheiro Surell
        Marxism does to the economic ones. This is              (1841) formulando as leis da erosão fluvial, a partir do
        no good reason to believe that either of these          estudo das torrentes alpinas, de onde emergiram os
        two special determinisms is anything but a              primeiros conceitos fundamentais da Geomorfologia, a
        gross exaggeration of some admittedly                   proposta de Davis vem dar um passo decisivo à sis-
        valuable insights. There is nothing wrong               tematização do estudo do relevo terrestre. Uns ligeiros
        with investigating the influence which the              dados biográficos são necessários ao entendimento da
        physical environment exercises, positively or           contribuição deste geógrafo norte-americano.
        as a limiting condition, on the social process.                   William Morris Davis nasceu a l2 de feve-
        Most geographers would expect to find lawful            reiro de l850, na Filadélfia, Pensilvânia, na comuni-
        connections in this area; that does not make            dade Quaker e estudou na Universidade de Harvard,
        them geographical determinists. Ratzel was              onde foi professor de1876 a 1912. Desde 1870
        the first to think originally and imaginatively         dedicou-se ao estudo das formas de relevo terrestre.
        along these lines. Like Marx, he was not quite          Sua formação em Geologia deu-lhe um forte funda-
        as bad as some of his latter days disciples. In         mento, numa evolução que o dirigiu à Geografia
        this country Semple was a student of Ratzel.            Física, enriquecida também por sólidos conhecimentos
        In Ellsworth Huntington’s writings geogra-              de Meteorologia. Sua obra publicada inclui 42 itens de
        phical determinism reaches some of its                  Meteorologia, inclusive um manual – Elementary
        dizziest hights. In France Demolins insisted            Meteorology - editada em 1894. Chegou mesmo a
        that in French history had to happen all over           dirigir, durante algum tempo, o Observatório Meteo-
        again it would essentially run the same                 rológico de Mendoza, na vizinha Argentina. Publicou
        course on account of the natural environ-               uma Physical Geography, em 1889 e a coletânea

                                                            3
Monteiro, C. A. de F. / Revista de Geomorfologia, volume 2, nº 1 (2001) 1-20



Geographical Essays, em 1909. Outras contribuições               nentemente geográfica. Como cada ciclo geológico só
suas são: The Rivers and Valleys of Pennsilvania                 tem início por uma nova litogênese, fica claro que um
(1889); The Coral Reef Problem (1928); The Origin of             ciclo geológico pode admitir alternadas fases de
Limestone Caverns (1931). Sua obra repercutiu                    orogênese e gliptogênese; o ciclo geográfico se ini-
fortemente na Alemanha, no inicio deste século,                  ciaria, assim, por uma superfície - litogenética pri-
conforme atesta a edição da obra Die erklarende                  mária ou de aplainamento gliptogenético ou erosivo.
Deschribung der Landformen (1912). Faleceu em 5 de               Ao abstrair – por simples estratégia didática – a inter-
fevereiro de 1934, tendo vivido 84 anos.                         venção real e efetiva (jamais negada) dos múltiplos
         Emmanuel de Martonne (1909-1925), no seu                fatores morfogenéticos, sempre foi deixado claro a
Traité de Géographie Physique - Tome 2 – Le Relief               possibilidade das peneplanícies (de senilidade) admi-
du Sol, ao apreciar o historique do estudo das formas            tirem a existência de relevos residuais, assim como
do relevo terrestre (Chap.II – Séc.l3), após registrar os        que, a sucessão das diferentes fases vitalistas (juven-
precursores, registra que:                                       tude, maturidade e senilidade) poderia ser interrom-
                                                                 pida, gerando relevos policíclicos capazes de assumir
         C’est dans les dernières années du XIX ème              alta complexidade. Um eloqüente exemplo disto
         siècle qu’a été accompli l’éffort le plus               emergiu dos estudos daviseanos do complicado relevo
         vigoureux pour systématiser les idées sur               dos Apalaches (ou Aleghanis).
         l’évolution des formes des terrains. Il a été                    Estas considerações remetem-me de volta aos
         l’oeuvre d’um esprit um peu abstrait, cons-             idos de 1952-53, quando estudante na Faculté des
         tructeur plutot qu’observateur; dans une                Sciences de l’Université de Paris (Sorbonne), quando
         série de mémoires publiées de 1889 a 1900,              cursei e obtive o Certificat d’Etudes Supérieures em
         W. M. Davis a precisé toutes les notions                Geographie Phisique et Geologie Dynamique. A
         essentielles, crée des mots qui ont fait                disciplina de Geologia (ao lado de Mineralogia-
         fortune: pénéplaine, cycle d’érosion, forgé             Petrografia, Oceanografia e Climatologia), naquele
         une nomenclature pour les accidents em                  ano letivo, foi ministrada pelo eminente geólogo Leon
         rapport avec la structure; il a contribué               Lutaud, em seu último ano de docência, já atingida a
         puissament à      donner l’apparence d’um               compulsória. Aquele notável geólogo francês, espe-
         corps de doctrine aux idées dégagées par                cialista nas famosas écailles provençales, em suas
         differents observateurs. Ellargissant peu à             aulas, enfatizava muito bem as relações entre os ciclos
         peu le champ de son activité, il a essayer de           geológico e geográfico, proposto por Davis, além de
         faire le même travail pour les familles de              uma alentada análise sobre a contribuição de Surrell,
         formes outres que celles d’érosion normale,             em suas leis da erosão fluvial (novidade para mim) de
         mais, semble-t-il, avec moins de succès (De             onde provieram os conceitos básicos de nível de base,
         Martonne, op.cit.p.546).                                erosão regressiva, perfil de equilíbrio, gênese das
                                                                 capturas etc., etc.
         Notemos, preliminarmente, a observação                           Ainda, a propósito de abstração e construção
adjetiva conferida pelo francês ao norte-americano:              teórica na proposta daviseana, é preciso lembrar que,
espírito um pouco abstrato, mais construtor que                  na virada dos séculos XIX para XX projetava-se muito
observador, o que assenta aos propósitos teorizantes             a filosofia de Henry Bergson, com suas concepções
do segundo. Em seguida notemos o uso do termo                    originais sobre o tempo espesso e exaltação da ima-
erosão normal, originalmente usada como erosão                   ginação criadora. Davis, nas ciências da Terra, reflete
ideal (pelo menos naquele artigo de 1899).                       aquilo que Marcel Proust realizou na literatura. E isto
         Note-se, também, que o rótulo do clássico               será lembrado e criticado, mais tarde, no meio do
ensaio de Davis é Geographical Cycle (Ciclo Geo-                 século, sobretudo na acerbada crítica feita a Davis por
gráfico) e não ciclo de erosão como seria, poste-                Jean Tricart, como veremos adiante.
riormente, consagrado. Ao procurar montar o modelo                        Consciente de suas abstrações teóricas, em
genético da evolução das formas de relevo, base de               sua proposta cíclica, e ante a variedade climática –
todo o cenário que caracteriza a crosta terrestre e              fonte da ação gliptogenética – no globo terrestre,
constitui o embasamento da atuação do Homem, Davis               Davis referia-se, no seu modelo, a uma (abstrata)
desejou – intui-se claramente – acrescentar o geo-               erosão ideal ou seja, aquela ligada às regiões
gráfico ao geológico. O conceito de ciclo geológico já           temperadas das latitudes médias do hemisfério norte,
era aquisição estabelecida nas Ciências da Terra,                com vigência das quatro estações e pluviosidade farta
composto de suas fases: litogênese (geração das                  mas moderada, emoldurada por climas mediterrâneos e
rochas); orogênese (deformação das estruturas rocho-             árticos. Assim é que, imediatamente após este núcleo
sas pela força dos agentes internos) e gliptogênese              climático ideal ele vê-se forçado a focalizar os casos
(modelado erosivo, esculturador de formas pelos                  contrastantes das condições glaciares e áridas (glacial
agentes externos). Esta última era, assim, emi-                  denudation e arid climates).

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         O que foi tomado como ideal na proposta                3. RETROFLEXO EVOLUTIVO DA GEOGRA-
daviseana, foi desviada para normal, à medida que se            FIA NO SECULO XX (A Geomorfologia nesse
difundia sua obra, entre outros estudiosos das formas           contexto )
de relevo, inclusive De Martonne. Uma curiosíssima
normalidade quando refletimos que aqueles condi-                          Para tentar, no âmbito de nossa conversa,
cionamentos climáticos vigoram apenas em cerca de               focalizar um panorama evolutivo da Geomorfologia,
10% da superfície do globo terrestre. Eis aqui um               após o legado de Davis – dentro do contexto da evo-
eloqüente exemplo de visão do Mundo eurocentrista,              lução da Geografia no Século XX - e associar esta
ocidental, onde o normal, desvinculado de qualquer              evolução em sintonia com os grandes acontecimentos
ordem de grandeza, reflete a pretensão dos centros              científicos, políticos e culturais, procurei esboçar um
hegemônicos da economia e poder político mundial                quadro auxiliar. Nele, o desenvolvimento linear,
em considerar como normal aquilo que lhes é peculiar.           diacrônico – em barras paralelas – visa articular,
Assim é que, embora flagrantemente dominante, em                simultaneamente, as correlações sincrônicas entre eles.
seu conjunto, e mesmo superior setorialmente, a                 Note-se que, se quisesse privilegiar o presente ou os
maioria da superfície terrestre é considerada como              tempos mais próximos, poderia ter recorrido a uma
acidental.                                                      escala logarítmica (ou quadrática) pela qual os anos
         De Martonne principia o seu capítulo (III do           mais recentes se beneficiariam de um espaço maior,
Tomo 2) relativo ao Modelé d’Érosion Normale pelos              capaz de comportar maior número de registros.
conceitos básicos obtidos no estudo das torrentes               Contudo, em sintonia com minha atual situação – mais
alpinas por Surell (1841) e sua concepção de mode-              passada do que presente – isto foi descartado. Veja-se,
lado normal é bem explicitado:                                  no plano mais inferior do quadro, o posicionamento do
                                                                observador - este que vos fala - nascido em 1927,
         Il est certain que nous sommes loin d’être             licenciado em 1950 (no exato meio do século) e
         aussi avancés dans la connaissance des fa-             exercida sua militância universitária entre 1955 e
         milles de formes glaciaires et désertiques que         1990. Assim, o início do século é objeto de pesquisa; o
         dans celles des formes d’érosion qu’on                 meio de atuação vivida; o final, de contatos indiretos e
         observe dans les pays où se concentrent les            observação com um certo afastamento.
         societés humaines. Tout nous engage à                            Na parte superior do referido quadro estão
         commencer par celles-ci et a y insister parti-         dispostas as barras relativas aos magnos aconteci-
         culièrement (De Martonne, op. Cit. p.547).             mentos mundiais na política, filosofia, artes, ciência-
                                                                tecnologia, cultura de um modo geral. Na parte cen-
          Assim, no domínio das acidentalidades ou              tral desenvolvem-se as barras relativas ao Brasil, em
excepcionalidades, o modelado das amplas regiões                seus marcos político-sociais e Geografia, mesclando-
intertropicais úmidas é descartado. No início do                se nesta barra eventos mundiais e nacionais. Na parte
século, o colonialismo europeu – que substituíra o              inferior encontra-se a barra da Geomorforlogia, avizi-
ibérico - contentava-se em sugar daquelas regiões               nhada àquela da Climatologia, não apenas pelas afini-
exóticas e de culturas diferentes (e inferiores) os seus        dades de Geografia Física mas, sobretudo, por se tratar
recursos naturais para alimentar seu crescimento                de minha área de mais efetiva atuação e, como tal,
industrial e poderio político. Tudo ou quase tudo que           mais propícia às possíveis correlações teóricas. Deve
ocorria além da linha dos trópicos, inclusive flutuações        ficar bem claro que a montagem do quadro obedece a
climáticas quaternárias, não sintonizava com o mundo            um viés muito pessoal, segundo as limitações do
normal.                                                         conhecimento do autor. Qualquer colega sentirá falta
          Retenhamos, por enquanto, neste final de              ou poderá discordar quanto a seleção de eventos aí
nossa primeira etapa, que a contribuição de W. M.               figurados. Eu próprio considero que, para melhor
Davis, trazida do finalzinho do século passado, foi             caracterização geomorfológica, seria da maior
decisiva na sistematização dos estudos geomor-                  utilidade acrescentar barras relativas à Pedologia e a
fológios, e atravessará toda a primeira metade do               Geologia, pelo menos na interface do quaternarismo.
século XX, com naturais acréscimos, ampliações e                Contudo, falta-me o necessário conhecimento para,
deformações, em outras escolas geográficas, para,               com a devida segurança, registrar os eventos capitais
atingida o meio do século, sofrer fortes impactos               nestes dois campos de conhecimento. Mas o esquema
críticos à sua metodologia, enquanto, a ampliação dos           é completamente aberto a todos os possíveis
conhecimentos e do arsenal técnico de análise virão             acréscimos e correções.
trazer novos impulsos não só à Geomorfologia mas à                        A passagem dos séculos XIX ao XX foi
Geografia em geral.                                             marcada por uma esplêndida pirotecnia na Filosofia,
                                                                nas Artes e na Ciência. Nietzsche, que concluirá sua
                                                                obra em 1888, e faleceu em 1900, promovera um
                                                                desmonte em arraigadas concepções, sendo o grande

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portador de novas luzes necessárias à evolução do               médios da atmosfera sobre os lugares. Ao final da
novo século. A Ciência era abalada tanto no nível do            guerra, W. Köppen (1917) propõe o seu sistema de
macro-físico – com Einstein (1879-1955) e a Teoria da           classificação, segundo a concepção estatística de
Relatividade - quanto naquele do micro-físico – com             Hann, ilustrada por seu continente hipotético louvado
Max Planck (1858-1947) com a Teoria dos Quanta. A               como tentativa de universal científica por Schaeffer.
proclamação de Plank dos valores discretos ou quanta                      No Brasil, as primeiras décadas do século são
reveladas num oscilador de partículas é de l4 de                uma extensão dos tratamentos corográficos de uma
dezembro de 1900. Os cinco artigos que funda-                   geografia descritiva, do século anterior, ligada aos
mentaram a Relatividade de Einstein foram capitais,             Institutos Históricos e Geográficos, federais e
publicados em 1905. Picasso, ao estampar u’ a                   estaduais, e da Sociedade Brasileira de Geografia. Os
máscara africana no rosto de uma das Demoiselles                compêndios didáticos bafejados pelo aval do Colégio
d’Avignó, em 1907, cria o cubismo. Schoenberg                   D. Pedro II, do Rio de Janeiro, norteavam o ensino da
revoluciona a harmonia musical, com o dodecafo-                 disciplina no ensino médio. Em 1917, ocorre a
nismo, no seu Harmonielehre, em 1912. Por esta                  surpreendente edição (em Paris) de uma Météorologie
época o Ballet Russo conquista Paris. As Ciências               du Brésil, de autoria de Delgado de Carvalho.
Naturais progridem enquanto as Humanas tomam                    Surpreendente pela escassez dos dados disponíveis,
corpo. As velhas concepções de Economia Política,               bem como pelo próprio tratamento dado pelo autor, foi
dos séculos precedentes, são prolongadas pelo novo              merecedor de um elogioso prefácio do meteorologista
século a dentro enquanto os progressos do capitalismo           inglês, Sir Napier Shaw. A seguir, Delgado de Carva-
geram mecanismos financeiros ainda desconhecidos                lho, associado ao engenheiro Henrique Morize, lan-
que culminam com o crack da Bolsa de Nova Iorque,               çaria a primeira classificação climática do território
em outubro de 1929, inaugurando uma grave recessão              brasileiro. A procura de recursos minerais que, desde a
mundial.                                                        segunda metade do século anterior ensejara a vinda de
         Diz-se que o século XX principiou atrasado,            geólogos europeus e norte-americanos para o Brasil,
inaugurando-se após a primeira grande guerra                    continua a produzir os estudos pioneiros sobre o
mundial, no decorrer da qual, em l917, deu-se a                 embasamento geológico e formas de relevo.
revolução bolchevique russa. Neste último sentido,                        Após a Revolução de l930, inaugurada a dita
pode-se admitir que se findou adiantadamente, com o             República Nova, com a implantação das universidades
desmonte da URSS. De qualquer modo, esta                        no Rio de Janeiro e em São Paulo (1934) é que se
experiência política, fruto do marxismo, abrangeu três          inicia a institucionalização da disciplina – associada à
quartos deste século, sendo um dos seus marcos. Na              História – nos cursos superiores, implementada com a
segunda década, enquanto o Brasil celebrava seu                 colaboração de docentes franceses. Um outro marco na
centenário de independência e tentava assumir um                evolução dos estudos geográficos entre nós, advém da
caráter nacional nas artes (Semana de Arte Moderna              fundação da Associação dos Geógrafos Brasileiros,
em São Paulo), em 1922, neste mesmo ano, eram                   orientada por Pierre Deffontaines (1935). Congraçan-
editados dois pilares na literatura do novo século com          do, de modo aberto, cientistas dos setores afins, geó-
o Ullyses de James Joyce e o A la récherche du Temps            logos, historiadores, engenheiros etc., a primeira dé-
Perdu de Marcel Proust.                                         cada foi incipiente, sendo revigorada após uma revisão
         A Geografia Ciência, do seu nascedouro                 nos estatutos, em l945, a partir do que se tornou alta-
alemão, ingressa no novo século oscilando na querela            mente dinâmica, promovendo assembléias anuais em
determinismo (Ratzel) – possibilismo (de la Blache)             diferentes regiões brasileiras, irradiando entusiasmo
enquanto se geram as escolas nacionais européias e              para a pesquisa geográfica. A ditadura Vargas – rotu-
norte-americanas, mediante a institucionalização da             lada de Estado Novo, no mesmo ano de sua implan-
disciplina nos currículos universitários. Os estudos de         tação (1937), criava o Instituto Brasileiro de Geografia
Geografia Física fornecem as bases aos estudos                  e Estatística (IBGE), promovendo pesquisa geográfica
regionais, onde a ação do Homem é apreciada em suas             e publicações especializadas (Revista Brasileira de
relações com a natureza. O estudo dos gêneros de vida           Geografia e Boletim Geográfico). Os três Conselhos,
nos grandes biócoros guarda muito de ilustração                 em que se subdividia o IBGE: Geografia, Cartografia e
etnográfica na emergente Antropologia. Após o legado            Estatística, num organismo diretamente vinculado à
de Surell e Davis, a Geomorfologia continua a evoluir           Presidência da República, demonstrava a importância
preocupada em distinguir da erosão normal aquelas               que o poder público conferia à pesquisa geográfica, a
das regiões áridas (Passarge, 1904) e glaciais de               produção cartográfica (compartilhada com aquela
montanha (Penck,1924). Mais adiante, Cotton (1942)              produzida pelas forças armadas), os levantamentos
tenta completar o quadro dos Climatic Accidents in              estatísticos rotineiros e a realização de censos dece-
Landscape Making. O estudo dos climas repousa nas               nais, como elementos indispensáveis à administração
bases traçadas pelo austríaco Julius Hann (l903) com
definição caracterizada pela abstração dos estados

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pública. Enquanto as Universidades preparavam, con-             vinha, como também o seu significado estratégico.
comitantemente, professores (licenciados) para o ensi-          Lembrando a descoberta de Yves la Coste de que a
no médio e superior, e pesquisadores (bacharéis), estes         Geografia é algo que sert à faire la guerre as formas
últimos, além de destinados às próprias Universidades,          de relevo da bacia parisiense inspiraram a estratégia
podiam abastecer os quadros técnicos do Conselho                (fracassada) da Linha Maginot.
Nacional de Geografia. Uma das atribuições deste                          O fato de que a primeira metade do século
órgão era a elaboração da Divisão Regional do Brasil,           XX é o nascedouro da Geografia-Ciência entre nós no
prática norteadora da administração pública. A pri-             Brasil, sintoniza perfeitamente com o estágio histórico
meira divisão regional, produzida para nortear o                de nossa própria formação social. Na primeira década,
recenseamento de 1940, foi publicada no ano seguinte            o povoamento ainda restringia-se, significativamente,
(Guimarães, 1941).                                              à faixa litorânea. Lembremo-nos da odisséia da missão
          A Geografia da primeira metade do século              Rondon quando, no auge (já início do declínio) do
XX foi marcada por uma forte preocupação com as                 boom da borracha na Amazônia, se instalavam as
componentes naturais, onde os estudos geomorfo-                 linhas telegráficas para Manaus. Nos anos trinta sur-
lógicos forneciam as bases para as abordagens re-               gem obras capitais no nosso auto-conhecimento como
gionais. De Martonne, além do seu tratado de Geo-               Casa Grande e Senzala (1933) e Sobrados e Mu-
grafia Física, produziu um primoroso estudo regional            cambos de Gilberto Freyre (1936) mais Raízes do
sobre La Valachie. Aliás, uma das tradições na escola           Brasil de Sergio Buarque de Holanda (1936) e
francesa de Geografia, à qual estivemos fortemente              Formação do Brasil Contemporâneo de Caio Prado
ligados, era a ênfase da Geografia Física na formação           Junior (1942). A segunda grande guerra e o esforço
de seus geógrafos, fato que se pode constatar até na            para a industrialização, nos anos quarenta, nosso esfor-
terceira geração, onde geógrafos que se notabilizariam          ço na Marcha para o Oeste, conjugando o esforço ter-
na área de Humana, produziram estudos relevantes em             restre da Misssão Roncador-Xingu dos Irmãos Villas
Geomorfologia, como os casos de Pierre George (La               Boas, com os aéreos da FAB. A necessidade de tomar
Plaine du Bas Rhône) e Mmme. Beaujeau-Garnier (Le               posse para conhecer o território e refletir sobre nossa
Morvan).                                                        formação sócio-econômica eram necessidades
          Uma das características que pode ser                  imperiosas para o que a contribuição geográfica,
apontada para esta fase é a produção de uma análise             conjugada pela ação conjunta das universidades
geomorfológica acompanhada de excelente ilustração              pioneiras, IBGE e AGB deram importante contribui-
cartográfica. Os principais geomorfólogos, a principiar         ção. O desenvolvimento tecnológico produzido pelo
pelo próprio Davis, eram excelentes desenhistas que             esforço de guerra trouxera o precioso auxílio da
expressavam suas idéias evolutivas do modelado                  aerofotogrametria. O antigo e complicado sistema
terrestre à base de bem executados blocos diagramas.            trimetrogon de fotos inclinadas, foi enriquecido por
De Davis, passando por De Martonne, até atingir sua             tomadas verticais, o que contribuiu muito para os
culminância no norte-americano Lobeck (1939), cujo              estudos geomorfológicos entre nós.
manual de Geomorfologia era muito rico, tanto em                          Nossos estudos geomorfológicos radiaram
fotografias como em desenhos. A ele se deve, também,            dos dois centros universitários básicos. No Rio de Ja-
um manual de desenho cartográfico onde se encontra              neiro houve a contribuição inestimável do mestre
(ainda hoje) a melhor explicação para construir blocos          francês Francis Ruellan, discípulo de De Martonne,
diagramas (1924-1958).                                          atuando concomitantemente na Universidade do Brasil
          Outra característica desta fase daviseana era         e no Conselho Nacional de Geografia, formador das
aquela de que, malgrado a evolução do modelado                  equipes iniciais. Na Universidade de São Paulo - onde
basear-se em pré-supostos abstratos, quando se atingia          a atuação dos mestres franceses, notadamente Pierre
o entendimento da realidade do relevo terrestre ela era         Monbeig, estava mais voltada para a Geografia
sempre conectada ao povoamento, às formas de                    Humana - as bases geomorfológicas foram autóctones.
ocupação do solo, aspectos econômicos, enfim à                  Iniciada pelo geólogo Luiz Flores de Morais Rego
fenomenologia humana. Neste sentido relembro o                  (1943), que delineou as bases da interpretação das
capítulo da Geomorfologia de Lobeck, relativa aos               formas do relevo do território paulista, elas se con-
relevos associados às estruturas em domos, onde a               tinuaram por obra de notáveis geólogos, dentre os
disposição dos arcos concêntricos, de formas mono-              quais salientaríamos Otavio Barbosa e Fernando Flá-
clinais (cuestas e hog-backs), eram associadas ao               vio Marques de Almeida os quais, dentre outros mé-
povoamento e a advertência de que a desnudação do               ritos tiveram aquele de haverem dito ativíssimos
núcleo intrusivo propiciava, o mais das vezes, uma              participantes da obra da Associação dos Geógrafos
paisagem mineradora. O tratamento dos relevos de                Brasileiros, em sua melhor fase Juntou-se a estes,
cuestas na França, nos arcos concêntricos da Bacia              antes mesmo de concluir o curso, o geógrafo Aziz
Parisiense, explicava não só mas propiciavam boas               Nacib Ab’Saber que, beneficiado por uma excelente
condições de solos e de exposição solar à cultura da            formação em conhecimentos geológicos, destacou-se

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muito cedo no setor da Geomorfologia. Enquanto isto              (1949) como sendo o último suspiro do determinismo
o quadro da Geografia Física, no Brasil, completava-se           ambiental.
por estudos climatológicos ainda limitados pela                            Nada melhor para retratar esta passagem do
insuficiência de informação meteorológica e restrita à           que confrontar os três congressos internacionais, pro-
aplicação da classificação do Köppen em estudos                  movidos pela União Geográfica Internacional (UGI),
locais e regionais. A Biogeografia, despontava, a partir         no meado do século. Naquele de Lisboa (1948) foi
de um curso ministrado no Conselho Nacional de                   retomada a realização sistemática daqueles eventos,
Geografia do IBGE, no Rio de Janeiro, pelo canadense             realizados de quatro em quatro anos, prática inter-
Dansereau, cujo conteúdo ensejou a publicação de um              rompida na vigência da guerra. Ali ainda houve preo-
notável artigo na Revista Brasileira de Geografia                cupação para ensejar a criação da Comissão para o
(1949).                                                          Estudo das Superfícies de Aplainamento em torno do
          Mas será de toda justiça assinalar que antes de        Atlântico, tema que aliava de um lado, a preocupação
atingir o meio do século, a Geografia produzida no               daviseana com as grandes superfícies aplainadas; do
Brasil, em ativas assembléias e publicações periódicas,          outro, ao vinculá-las em torno do Atlântico notava-se a
já era capaz de exibir contribuições de destaque.                relação à teoria da Derivação Continental (Pretérita
Lembremo-nos de que, para restringirmo-nos ao setor              união da América do Sul com a África, no Continente
da Geografia Física, desde 1941, com a publicação do             de Gondwana) proposta por Wegener em 1915.
artigo Ondas de Frio na Bacia Amazônica, os meteo-               Quando aluno de Jacques Bourcart, na disciplina
rologistas Adalberto Serra e Leandro Ratisbona, prati-           Oceanografia, na Faculté des Sciences, da Sorbonne,
cantes de uma meteorologia dinâmica, advinda da es-              no ano letivo de 1952/53, os estudos sobre a margem
cola escandinava, lançavam os alicerces para o futuro            continental daquele mestre promoviam alentada
nascimento de uma climatologia mais geográfica. Aziz             revisão crítica naquela teoria, mostrando tanto pontos
Ab’Saber já produzira o seu notável trabalho sobre os            de concordância quanto evidências de discordâncias. O
fenômenos de desnudação pós-cretácea (1949). Como                congresso de Washington (1952), pelo temário e co-
expressão de uma Geografia globalmente integrada,                missões, revela o peso dado à Economia. Esta passa a
Hilgard O’Reilly Sternberg publicara, na RBG, um                 varrer todos os campos de preocupação acadêmica e
primoroso estudo sobre uma calamidade pluvial na                 profissional. Tenho repetido o fato da pomposa decla-
Bacia do rio Paraíba do Sul, no qual desnudara a trama           ração do famoso arquiteto Mies van der Hohe, ao con-
de todo um jogo de relações integradas entre a herança           cluir seu edifício das torres de aço e vidro de Chicago
da cultura cafeeira transformada em pastagem, criando            (1951) de que o projeto arquitetônico é a economia.
condições extremamente vulneráveis ao desencadea-                Toda a esfera dos conhecimentos passa a girar sob o
mento de movimentos coletivos do solo. Este estudo               impulso dos processos econômicos, conduzidos pelo
foi o pioneiro numa linha de pesquisa de destaque na             antagonismo capitalismo-comunismo, ao sabor da
realidade do Brasil tropical atlântico.                          guerra fria. Lembro-me da reação do velho mestre
          Outro rumo trazido pela guerra, com a des-             inglês, o geomorfólogo Wooldridge, em sua obra The
truição dos espaços urbano-industriais na Europa, foi a          Geographer as Scientist, onde se refere ao fato de ver-
necessidade de, para reconstruí-los, planejá-los.                se a superfície terrestre como simples palco para o
Assim, a Geografia viu-se lançada a um comprometi-               desenrolar da atividade econômica como uma idéia
mento com o planejamento territorial, passando-se a              narrow and nasty (estreita e tola). O memorável
discutir, para ela, a adequação adjetiva de aplicada ou          congresso do Rio de Janeiro (1956) vai registrar uma
aplicável. Tendo sido sempre temática geográfica, os             outra importante mudança: aquela do dinamismo que
estudos urbanos passaram a se revestir de maior rele-            passa a caracterizar o estudo dos processos na
vância, ampliadas, sobremodo, pela importância que se            Geomorfologia. Na França, a Revue de Géomorpho-
passou a dar à Economia. Antes de findar a guerra, em            logie Dynamique, surgida no final dos anos quarenta,
Bretton-Woods (1944), consoante a nova configuração              já vinha se desencumbindo de promover grande impul-
do poder mundial, o Reino Unido passava o bastão da              so nessa abordagem do modelado terrestre.
liderança econômica aos Estados Unidos enquanto, na-                       A Geomorfologia na França, após a geração
quele mesmo tratado eram criados o Banco Mundial e               De Martonne (Paris), Blanchard (Grénoble) dá lugar
o Fundo Monetário Internacional (FMI). Já atingimos              àquela de Cholley (Paris), Baulig (Strasbourg). Do
o meio do século, no momento mesmo em que eu con-                primeiro deve-se a estratégia didática da abordagem
cluía a Universidade e passava a integrar-me, mais efe-          tríplice na Geomorfologia: Estrutural, Climática e
tivamente, na prática geográfica. No momento em que              Litorânea. A terceira geração, aquela do pós-guerra é
me encaminhava para a pesquisa geográfica mais                   liderada por Tricart (Strasbourg) e Dresh (Paris).
voltada para a natureza, dava-se a grande mutação que            Ambos ampliaram os seus campos de estudo para o
foi o advento do determinismo econômico em                       território africano: Dresh no árido da borda
substituição àquele dito ambiental. Em termos globais,           mediterrânea e Tricart no tropical úmido da então
aponta-se a Urban Geography de Griffith Taylor                   Afrique Noire.

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          Outro enriquecimento científico do pós-                 iaria: a noção evolutiva cíclica e a concepção de
guerra foi a introdução da Teoria Geral dos Sistemas              erosão normal. Mas o cerne de toda a crítica é cen-
proposta pelo biólogo Von Bertalanffy (1950) em que               trada no fato de que Davis coloca a intuição no lugar
iria ter grande repercussão mas que só chegaria para a            da observação, pecado advindo das concepções filo-
Geografia, no Brasil, junto com a revolução teorética.            sóficas de Bergson qu’a saisi le drapeau em lançant
          A progressão dos estudos geomorfológicos no             des concepts comme celui de l’immagination créatrice,
semi-árido e sobretudo no intertropical africano, pouco           é sobre este pedestal filosófico que principia a demo-
a pouco, foram revelando sinais de que, as flutuações             lição, na maior veemência. Esta crítica principiada
climáticas do quaternário haviam repercutido sim,                 pessoalmente nos seus muitos cursos avulsos poli-
muito além das latitudes médias. A observação de                  copiados pela Presses Universitaire de France (PUF),
stone lines, paleopavimentos e caracteres pedológicos             avulsamente, acabou por ser ordenada em sua obra,
chamavam a atenção dos geomorfólogos. A estas                     intitulada Principes ot Méthodes de la Géomorpho-
observações climáticas, na África do Sul vieram                   logie, da qual permito-me lembrar o seguinte trecho:
juntar-se outras observações capitais, relacionadas à
implicações tectônicas e isostáticas, feitas por Lester                    La méthode de Davis est significative. Ne
King (1955) na geração de pediplanações e seus resí-                       s’est-t-il pas emporté, plein de mépris, contre
duos (Inselgebirge). Neste meio de século, no Brasil,                      ces gens qui manquent d’immagination? N’a-
os núcleos basais de São Paulo e Rio de Janeiro já                         t-il pas affirmé que le recours systhematique
haviam sido acrescidos de outros. De modo autóctone                        et massif à l’immagination était la carac-
no Paraná, pela atuação do geólogo alemão R. Maack,                        téristique méthodologique de la géomorpho-
formando uma eficiente equipe, onde já emergia J. J.                       logie? N’em fit-il pas lui-même l’éclatante
Bigarella: ou seja, conquistado pela obra difusora-                        démonstration em se plaçant le dos au pay-
integradora da AGB, em Pernambuco, com Gilberto                            sage et em imaginant comment celui-ci devait
Osório de Andrade, Rachel Caldas Lins, Manoel Co-                          être, comment il s’était elaboré et, ensuite em
rrea de Andrade (inicialmente geomorfólogo) e princi-                      se retournant pour découvrir, plein de vani-
piando na Bahia, com os primeiros bolsistas enviados                       teuse satisfaction, qu’il était bien conforme à
à França, estas observações nos cortes reveladores da                      ce qu’il avait échafaudé? Autre anedocte sig-
estrutura superficial da paisagem, já despertavam                          nificative: la campagne dans les Mers du Sud
interesse. Ao ensejo do congresso da UGI houve o                           pour l’étude dês récif coraliens, pendant la-
auspicioso encontro de geógrafos dos grandes centros                       quelle Davis, enferme dans as cabine,
e os nossos. Fosse nas sessões do congresso, mas espe-                     étudiait les cartes et reconstituait la genèse
cialmente nas excursões de campo em diferentes                             des récifs dont, ensuite, une courte escale et
regiões brasileiras, por especialistas estrangeiros, nota-                 um rapide coup d’ oeil étaient censés
damente os geomorfólogos Tricart e Dresh, houve                            démontrer l’exactitude... Une telle aberration
oportunidade para um proveitoso diálogo com os                             méthodologique a directement mené à une
nacionais. Assim é que, o congresso do Rio de Janeiro,                     practique incroyable, que avait encore cours
de 1956, dentre muitos outros méritos, pode ser con-                       dans certaines universities tout récemment:
siderado como um marco na nossa Geomorfologia,                             celle de limiter les travaux practiques
que se enriqueceu desse renovador caráter dinâmico. A                      d’étudiants à la seule observation de la carte
partir daí estreitaram-se os laços de colaboração e                        topographique. On regardait lê modelé et on
intercâmbio entre Brasil e França na Geomorfologia,                        en déduisait la nature des roches et les
notadamente com a atuação de Tricart junto a UFBa,                         accidents structuraux, puis, ensuite, on
com a criação do Laboratório de Geomorfologia e                            rendait compte du modelé à partir des
Estudos Regionais. Além do treinamento local de seus                       éléments soi-disant acquis de cette manière.
geógrafos, atraiu outros que para ali convergiram, de                      Monstrueuse faute de méthode, qui n’a pu
outras regiões. Também fomentava a troca de idéias,                        être commise que par des personnes ignorant
ajudada pelos encontros anuais nas assembléias da                          les plus élémentaires príncipes de la méthode
AGB.                                                                       scientifique. Toute loi scientifique se déduit
          O dinamismo e ênfase processual na geração                       d’une corrélation systhematiquement obser-
das formas do relevo viria assentar-se sobre uma séria                     vée entre de nombreuses données d’ordre
crítica à metodologia daviseana. E, neste particular, o                    different, portées les unes sur l’axe des x, les
porta voz mais ferrenho foi Jean Tricart. Embora                           outres sur l’axe des y. Le modele est une
concedendo a W. M. Davis o crédito de fundador da                          donnée, la structure em est une autre. Leur
Geomorfologia como disciplina especializada, Tricart                       confrontation aboutit à l’établissement d’une
aponta como único mérito de Davis aquele de apre-                          corrélation. Mais on ne peut tirer x et y de la
sentar um conjunto coerente, um sistema. Mas ataca,                        même équation, seule et unique. En tentant de
radicalmente, os dois pilares sobre os quais ele se apo-                   le faire, ou about-it nécessairement à une

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         solution arbitraire que, dans notre cas, est            considerei muito esta colocação de Tricart sobre a
         une pétition de principe ou, si l’on préfère,           importância da seqüência no estudo dos processos. Daí
         une vulgaire devinette… On conçoit combine              minha preocupação em centralizar o estudo climático
         de semblables pratique on pu effarer les                no ritmo, no estudo das seqüências de tipos de tempo,
         autres naturalists et la prevention qu’elles            capazes de, embora muito difícil, aproximar-se daquilo
         ont crée vis-à-vis de la géomorphologie.                que seria o habitual. Se era válido produzir uma
                                                                 Geomorfologia Dinâmica por que não o seria também
         Cette grave faute de méthode est sensible tout          perseguir uma Climatologia Dinâmica? E é em nome
         au long de l’oeuvre de Davis, mais devient de           dessa associação - que a meu ver nivela logicamente e
         plus en plus apparente avec le temps: les               sincroniza modos de análise, em proveito da unidade
         exemples les plus outranciers correspondent             da Geografia – que eu procurei incluir no quadro uma
         à la seconde décennie de notre siècle. Mais             barra relativa à Climatologia, na qual, sem pretensão
         l’insuffisance méthodologique est sous-                 descabida ou falsa modéstia, registrei etapas
         jacente aux concepts fondamentaux de la                 importantes em minha contribuição aos estudos
         géomorphologie davisienne qui sont une                  climatológicos em nosso país. No final dos anos
         construction de l’esprit pure et simple, certes         cinqüenta e ao longo dos sessenta, encontrei o apoio
         douée de cohesion interne, mais qui ne                  na literatura meteorológica brasileira, notadamente em
         repose pas sur une observation systématique             A. Serra, o apoio necessário para enfronhar-me nos
         des faits. En somme, la différence entre                mecanismos da circulação atmosférica na América do
         l’intrigue bien menée d’un roman de fiction et          Sul. E fiz um grande esforço para, partindo do material
         la réalité quotidienne (Op,Cit, pp. 63/64).             precário disponível naquele então, em cartas sinóticas
                                                                 rudimentares, anteriores ao benefício das imagens do
         Contrapondo-se ao verbalismo imaginativo de             satélites, compreender os mecanismos daquela circu-
Davis, Tricart examina les tatonnements des écoles               lação. Ao procurar iniciar os meus alunos universi-
germano-slaves, sobretudo destas últimas: Lomono-                tários naquela prática de análise, defrontei-me com
sov, séc. XVIII; Kropotkine, segunda metade do sé-               uma grande dificuldade didática. Foi quando ocorreu-
culo XIX e Dokoutchaev, pai da pedologia, no final               me recorrer a estratégia daviseana de imaginar um
daquele século. A falta de consideração da cobertura             ciclo que, embora abstrato, servisse à iniciação dos
de solos e vegetação é uma das grandes demonstrações             meus alunos numa tarefa difícil. Ao tratar do Clima da
da abstração daviseana. E é nos alemães que o crítico            Região Sul da Geografia Regional do Brasil, editada
francês vai encontrar o cerne da necessária fundamen-            pelo IBGE em 1963, inseri o esquema Ciclo Vital de
tação climatológica, reveladora dos efetivos processos.          uma Onda de Frio que, abstraindo as costumeiras
         A apaixonada crítica de Tricart, justa em mui-          complicações de que se revestem os avanços de Frente
tos pontos, carece da compreensão do que a proposta              Polar Atlântica sul-americana, exibia quatro estágios:
de Davis continha de propósito didático. Didática                prenúncio, avanço, domínio e transição. É absolu-
também foi à preocupação de Cholley ao preconizar o              tamente óbvio que os avanços dos anticilones polares
tratamento separado das componentes estruturais das              admitem infinita variedade de maneiras mas, era
climáticas e completá-las pela azonalidade das bordas            necessário simplificar a complexa realidade em um
litorâneas. Qualquer um geógrafo a quem já tenha sido            modelo que, embora, declaradamente teórico, servisse
dada a tarefa de ensinar geomorfologia, sabe bem das             a iniciação dos alunos na análise. Eles, a medida que
dificuldades em explicar aos alunos tal complexidade e           evoluíam pela multiplicação dos casos observados,
superposição de fatores contidos na geomorfogênese.              davam-se conta de que a sucessão das quatro fases não
Eu próprio usava a estratégia de, nas disciplinas finais,        era ocorrente daquele modo, podendo haver, por
recorrer a uma abordagem regional específica para                exemplo, dois ou três avanços seguidos, conforme o
afastar todas as abstrações teóricas. E forneci, a este          abastecimento do fluxo polar no extremo sul do
propósito, um depoimento, ao elaborar o ensaio                   continente; as significativas diferenças de duração das
Geossistemas - A Estória de uma Procura (Monteiro,               diferentes fases, a eliminação de algumas delas
2000).                                                           segundo certas circunstâncias etc., etc. O mal,
         Em minha carreira acadêmica, sobretudo na               portanto, não repousa na utilização da idéia do ciclo,
função docente, aproveitei muito dos ensinamentos                dependendo da maneira como ela é utilizada. Seria
tanto de Davis quanto de Tricart. Concordei com este             descabido tratar aqui, nesta palestra, da recorrência e
último quando ele enfatizou que la notion de cycle doit          conspicuidade da noção de ciclo na vida humana.
donc être remplacée par celle d’évolution, séquence. E           Principiaríamos desde a associação do homem
foi exatamente por isso que procurei um paradigma                primitivo entre fases da lua e ciclo menstrual das mu-
mais satisfatório para a Climatologia que pratiquei. Se          lheres, atravessando um longo percurso até o nível fi-
ele repousa basicamente na revisão crítica formulada             losófico, na teoria nietzschiana do eterno retorno. Se
por Sorre, como já expus exaustivamente, também                  de um lado podemos criticar o simplismo da

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abordagem dos ciclos econômicos em nossa Historia,              artigos, sendo difícil deixar de vê-lo estampado nas
poderemos também, encontrar grandes méritos,                    provas de Geografia dos exames vestibulares às Uni-
sobretudo de compreensão didática, na teoria das                versidades. Um outro trabalho, mais dirigido a espe-
dualidades brasileiras, na qual nosso saudoso econo-            cialistas, representa a síntese da contribuição teórica
mista Ignácio Rangel, a partir da proposta do econo-            de Ab’Saber à Geomorfologia feita no Brasil. Trata-se
mista russo Kondratief, nos anos vinte, arquitetou algo         de um excerto de uma de suas teses acadêmicas na
que ajuda muito à compreensão de nossa formação                 USP, apresentado como artigo na Revista Brasileira de
sócio-econômica, sincronizada aos acontecimentos                Geografia e intitulado Uma Revisão do Quaternário
mundiais: Rangel (1981); Mamigonian (1987).                     Paulista: do presente para o passado (Ab’Saber, 1969).
          O início da segunda metade do século iria             Neste trabalho ele explicita sua diretriz teórico-
sediar grandes mudanças. Enquanto o mundo vivia a               metodológica calcada no tríptico: compartimentação,
guerra fria, russos e americanos promoviam a corrida            estrutura superficial da paisagem e fisiologia da pai-
espacial. À era nuclear, superpunha-se, agora, a era            sagem. Este último nível ensejou, por algum tempo, a
espacial. Iniciada com o Sputnik russo (1957) cul-              vigência de uma disciplina do currículo de graduação
minou com a missão americana da Apolo 11, colo-                 em Geografia no Departamento da FFLCH da USP, da
cando o Homem na Lua (l969). Os anos sessenta re-               qual eu tive o privilégio de ministrá-la. Este referencial
presentaram, talvez, o período áureo das reuniões               teórico de Ab’Saber, pela sua abertura, propiciava
anuais da AGB que, ao início dos setenta promovia               amplas conexões a outras estratégias metodológicas,
uma assembléia administrativa em São Paulo, para                notadamente a conciliação do esquema daviseano com
uma mudança nos estudos que, dentre outras mu-                  aquelas mais integrativas, em torno do conceito com-
danças, fez passar as assembléias para uma ocorrência           plexo de paisagem da escola alemã (Landschaft
bi-anual. Inauguravam-se outros tempos, tanto no                Oekologie).
mundo quanto no Brasil. A mudança territorial mar-                        O segmento temporal entre 1968 e 1973 é
cada pela inauguração de Brasília (1960) foi seguida            abalado por uma séria concentração de eventos da
por aquela política, com a intervenção militar (1964),          maior relevância que, superpondo-se cumulativamen-
introduzindo violentas mudanças político-institucio-            te, vão fazer com que este qüinqüênio possa ser cre-
nais, econômicas e ideológicas, na vigência da segu-            denciado como o muito provável ponto de mutação a
rança nacional, aplicada à pretensa integração econô-           partir do qual ingressamos na grande crise histórica na
mica da Amazônia Brasileira e à abertura de grandes             qual estamos mergulhados e que caracteriza esta
eixos rodoviários. A Geografia vê-se abalada pela in-           virada de séculos, soleira do novo milênio. Alguns
trodução das revoluções teorético-quantitativas.                acontecimentos, como fenômenos de dinâmica pro-
          Conquanto o sopro revolucionário se dirigisse         gressiva, ultrapassando uma significação pontual do
mais enfaticamente à Geografia Humana, não deixou               evento episódico, desenvolveram-se pelos anos ses-
de afetar também a Física. De um lado, a Clima-                 senta e setenta. Assim foram os movimentos de rebe-
tologia, até então, puramente quantitativa, numa esta-          lião juvenil contra as guerras, os valores burgueses
tística elementar, esforçava-se justamente para tornar-         vigentes, que desembocaram na ideologia do flower
se mais qualitativa para o que, encontrava sérias li-           power, associada à evasão dionisíaca nos alucinó-
mitações no tratamento estatístico vigente, para exibir         genos, arte psicodélica, etc.. A revolução sexual, com
sua dinâmica. A Geomorfologia, atingido o estatuto              o advento da pílula anticoncepcional, os movimentos
dinâmico, enfatizando os processos, já beirava um               reivindicatórios de liberação da mulher, estão nesta
estágio que perseguia aquela dinâmica até mesmo em              categoria. Liberação feminina que se reflete expres-
tentativas experimentais, associando-se aos estudos             sivamente na moda. Se Coco Chanel, no inicio dos
pedológicos e à geologia quaternarista. Assim, as               anos vinte, liberou as mulheres do espartilho e levan-
técnicas quantitativas revolucionárias canalizavam-se           tou-lhes as saias, agora, nos sessenta, Mary Quant
para a geometria da drenagem hidrológico-fluvial. Em            levanta-lhe mais ainda nas mini shirts. E as feministas
meio a toda essa efervescência permito-me extrair e             americanas queimam os porta-seios. No quadro –
relembrar aqui, acima da melée quantitativa, duas               apesar de suas limitações já apontadas - procurei
contribuições de Ab’Saber, pelo que elas encerraram             registrar eventos datados, indicadores de mudanças
de influência útil sobre a comunidade de geógrafos              relevantes. A sobrecarga foi assinalada por uma régua
nacionais. No contexto singelo da revista Orientação,           vertical, destacando o qüinqüênio iniciador da grande
editada pelo extinto Instituto de Geografia da USP,             crise que atravessamos, vestíbulo da nova
Ab’Saber nos apresenta uma magistral síntese, em                modernidade. Acompanhemos, no quadro, a menção
texto e expressivo cartograma, rotulado Domínios                dos eventos, seguindo de baixo para cima.
Morfoclimáticos e Províncias Fitogeográficas do                           Se bem que numa convergência de idéias de
Brasil (Ab’Saber,1967). Sua difusão foi considerável,           alguns cientistas (Cordoni, 1968), a novidade da
sendo o referido cartograma reproduzido (quase                  Tectônica de Placas surgiu em torno de 1968, tendo
sempre sem menção do autor) por livros didáticos e              em vista as contribuições de Morgan (1968), Lê

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Pichon (1968) e Isacks, Oliver e Sykes (1968) que               mento que, junto aquele brilhante momento do início
veio trazer nova interpretação à teoria de Wegener              do século, mais aquele outro induzido pelo esforço
(l915). Neste mesmo 1968, numa outra curiosa                    dirigido à segunda guerra mundial, têm se conduzido,
convergência, surgiram na França, com Bertrand, e na            sem solução de continuidade, ao longo de todo o sé-
então URSS, com Sotchava a proposta integrativa do              culo XX. O espaço disponível no quadro seria insu-
novo paradigma dos Geossistemas. De importância                 ficiente a registrar estas importantes aquisições, dentre
fundamental para a Geografia, desde que preconizada             as quais eu procurei inteirar-me e registrá-las em
com tentativa de uma Geografia Física Global, esta              minha obra de despedida da pesquisa climatológica,
proposta visou, desde o início, um esforço de antro-            intitulada Clima e Excepcionalismo: conjecturas so-
pização do sistema. Ao longo de trinta anos, grandes            bre o desempenho da atmosfera como fenômeno
passos foram dados nessa tentativa de referencial               geográfico. Em seu capítulo IV insistira em que são
teórico para uma análise integrada do complexo geo-             enriquecimentos fundamentais no desvelamento de sis-
gráfico, sem que se possa considerá-la com meta                 temas de alta complexidade, de novas geometrias
plenamente alcançada. Abstenho-me de alongar-me                 (fractais) até a Teoria do Caos. Difícil de registrar
sobre este tópico porquanto já dei o meu testemunho             estas obras no quadro as apresento nas referências
sobre esta busca no meu trabalho entitulado                     bibliográfico, assinaladas por um asterístico.
Geossistemas: a estória de uma procura (Monteiro,                         Insistindo ainda em 1968, lembro a realização
2000). Ainda em 1968 deu-se um fato, altamente                  do Simpósio realizado em Paris, pela UNESCO, sobre
significativo para o andamento da Geografia no Brasil.          os problemas ambientais, evento este que prenuncia a
Infelizmente trata-se de um registro negativo posto que         Conferência de Estocolmo, em 1972, que será o le-
evidencia o declínio de importância da Geografia no             gítimo marco da eclosão da Questão Ambiental, uma
IBGE. Já transmudado em uma Fundação, a Geografia               das facetas importantes na nossa atual crise. Também,
no IBGE, embora aparentemente revigorada pela                   1968 é o ano que registrou a rebelião dos jovens fran-
adesão às técnicas quantitativas e à moda da                    ceses na turbulenta Primavera de Paris, da qual resul-
teoretização - proclamada oficialmente para todo o              taria a reformulação da estrutura universitária francesa,
país na realização de uma conferencia especial                  inclusive fragmentando a tradicional Sorbonne, em
(CONFEGE,1969), os geógrafos daquele quadro insti-              várias unidades.
tucional foram, paulatinamente, declinando em prestí-                     Para nós, no Brasil, 1968 foi o ano de implan-
gio. Isto se comprova quando registramos que a antiga           tação do Ato Institucional nº.5 enquanto, para mim,
tarefa de elaborar a divisão regional passa a ser tarefa        pessoalmente foi o ano de meu ingresso na Univer-
transferida aos economistas do Instituto de Pesquisas           sidade de São Paulo, em seguida a obtenção de meu
Econômicas Aplicadas (IPEA). Os geógrafos da Di-                título de doutor, no ano anterior. Ali, concomitante-
visão de Geografia do IBGE limitaram-se a elaboração            mente na docência junto ao Departamento e na pes-
de um considerável acervo de cartogramas, agluti-               quisa no Laboratório de Climatologia do IGEOG-USP,
nados na obra Subsídios à Regionalização (IBGE,                 nos vinte anos seguintes, iria continuar a perseguir
1969), oferecida, aos economistas. Continuava, assim,           uma melhoria nos estudos climatológicos, a partir da
a ascensão da Economia, principiada no meio do                  base iniciada em Florianópolis e nas conquistas alcan-
século. Os estudos geográficos, visando a regiona-              çadas em Rio Claro. Em 1972, consoante a reformu-
lização perseguiam a definição de micro regiões                 lação nos cursos de Pós-Graduação eu introduzia a
homogêneas e o estudo de Redes Urbanas, agora                   disciplina Introdução à Climatologia Urbana, consubs-
subordinadas a técnicas quantitativas, sobretudo aque-          tanciada pela proposta teórica (Monteiro, 1976) que
la da análise fatorial. O conteúdo da Revista Brasileira        estaria fadada a um acolhimento entre nulo e lento,
de Geografia, desta época, é essencialmente teorético-          para revelar-se e colher os seus primeiros frutos nos
quantitativo, assinalando o princípio de decadência             anos noventa.
daquela prestimosa publicação. Mas a revolução em                         Retornando ao ponto de mutação, e como pro-
foco foi acontecimento de temporalidade seqüencial              vável marco delimitador no qüinqüênio em pauta,
que, neste quadro, ficará marcado pelo evento CON-              deve-se registrar a crise dos combustíveis, desencade-
FEGE.                                                           ada pelos árabes do petróleo em 1973. A partir daí,
          Outro movimento importante, coincidente               prosseguimos nas convulsões da grande crise histórica
com este período de cinco anos, mas não se restrin-             que atravessamos e que, muito provavelmente penetra-
gindo a seus limites, foi aquele de um extraordinário           rá pelo princípio do século entrante. Penetramos, as-
avanço na Ciência. Curiosamente, enquanto se exalta-            sim, num passado mais recente que, por tão próximo e
va a imperiosa necessidade de matematização e afir-             tão tumultuado, dificulta o discernimento para extrair
mação em leis universais, aconteciam importantes                as relevâncias e obscurece o horizonte projetivo, Con-
pesquisas que traziam dúvidas – mas sobretudo novas             tudo, atrevo-me à ousadia de apontar, ainda, alguns
perspectivas – sobre o que a revolução insistia. Estas          fatos brasileiros que me parecem aflorar. Lembraria a
importantes inovações constituem um terceiro mo-                atuação, a partir de 1973, do Projeto RADAM,

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planejado inicialmente para a Amazônia e posterior-             culpa, esta facção ajudou muito o crescente afas-
mente ampliado para o território nacional. Além dos             tamento que já se vinha produzindo entre Geografia
benefícios trazidos na revelação de riquezas minerais e         Humana e Física entre nós. A crescente pressão interna
aprimoramento ao sistema cartográfico, aquele projeto           nos Departamentos de Geografia das nossas univer-
desempenharia um relevante papel na formação de                 sidades para, nas revisões curriculares, diminuir as
pessoal tanto nas técnicas de análise das imagens, em           disciplinas naturais em proveito das sociais, aliou-se
gabinete, quanto nas observações diretas em sobrevôos           outra discriminação, das comunicações de Geografia
de controle e pesquisa de campo. Neste particular,              Física no temário dos encontros da AGB. Disto resul-
dentre outras especialidades, foi marcante o número de          tou uma natural resposta na criação dos Seminários de
técnicos no campo da Geomorfologia. Até seus fins,              Geografia Física Aplicada, inaugurado na primeira se-
ao término dos anos oitenta, seja pela documentação             mana de dezembro de l984, em Rio Claro e sobre o
gerada para o CPRN – um acervo inestimável – seja               que já tratei num artigo para a revista francesa
pela formação de pessoal, incorporado aos quadros do            L’Espace Géographique (Monteiro, l989). O aumento
IBGE (Setor de Recursos Naturais) e disperso por vá-            considerável de participantes e o interesse crescente,
rias universidades, órgãos de pesquisa, públicos e par-         desembocaram no desdobramento dos simpósios de
ticulares, aquele projeto desempenhou relevante papel           Climatologia Geográfica e este próprio de Geomor-
no enriquecimento de informação para a Geografia do             fologia, igualmente realizados a cada dois anos.
Brasil.                                                                   Enquanto atravessamos a crise, da qual so-
          Outro fato merecedor de registro parece-me            bressai uma preocupação econômica marcada por um
aquele, ocorrido em 1974, que assinala a edição dos             ambíguo neo-liberalismo onde o capitalismo, após o
primeiros manuais de Geomorfologia, em nosso país,              malogro das tentativas comunistas com o desmonte da
ambos provenientes de Rio Claro, de seus docentes               URSS e das Repúblicas Populares da Europa Central,
Antonio Christofoletti e Margarida Penteado Orellana.           persegue uma globalização conduzida pelo mercado;
Neste setor didático não deve ser esquecida a cola-             onde a aproximação produzida nas comunicações pela
boração pioneira de Antonio Teixeira Guerra com o               tecnologia eletrônica acentua a separação entre os
seu Dicionário de Geomorfologia. Principiada desde              países ricos –o fechado clube dos sete – e os pouco
1949, após o retorno daquele colega dos seus estudos            remediados cercados por maioria de pobres e
na França, esta obra seria editada pelo IBGE, nos anos          miseráveis, parece estar havendo - pelo menos no
sessenta, em sucessivas edições, que prestaram grande           escopo da Geografia – uma saturação com este deter-
serviço aos estudantes de Geografia universitários.             minismo econômico. Passando pela experiência de
          Entre o dicionário e os primeiros manuais             uma Geografia da Percepção, emerge uma Geografia
pode-se registrar, também, as seguintes obras auxi-             Humanística, da qual, ao lado das relações com a
liares à Geomorfologia. Em 1964 o IBGE edita uma                Literatura, emerge também uma nova onda de
coletânea de fotos, rotulada Exercícios e Pratica de            Geografia Cultural, que se vêm firmando entre nós no
Geomorfologia, com legendas organizadas pelos Geó-              Brasil. Também desponta uma preocupação em
grafos da Divisão de Geografia: Antônio Teixeira                focalizar em diferentes atividades humanas, uma abor-
Guerra, Alfredo José Porto Rodrigues, Carlos de                 dagem dirigida às diferenças de gênero, transposta da
Castro Botelho, Gelson Rangel de Lima e Jorge Xavier            antropologia para o contexto gráfico. É até muito
da Silva. Em 1973, o IBGE lançava outra coletânea de            sintomático, e mesmo esclarecedor que, em meio a
fotos, comentários organizados por Celeste Rodrigues            este turbilhão de mudanças, a medida que surgem
Maio, rotulada Geomorfologia do Brasil.                         tendências novas, voltadas ao futuro, ressurgem tam-
          Desde a reformulação estatutária de 1970,             bém antigas preocupações de revivals, o que converge
passando a assembléias gerais de dois em dois anos, a           para aquela concepção de um tempo espesso ou tríbio,
AGB via-se acrescida de enorme número de asso-                  na fusão de passado, presente e futuro.
ciados, predominantemente estudantes universitários,                      Neste contexto a Geomorfologia que se faz no
o que implicará num novo período na vida daquela                Brasil, beneficiada pela preocupação com a dinâmica
entidade. Em 1978, a assembléia geral realizada em              processual, pela aliança com a Pedologia e Geologia
Fortaleza foi sede de um sério conflito que iria inau-          no denominador comum do quaternarismo – para o
gurar uma nova fase na AGB. Dentre aquele tumulto,              que a filiação ao IBEQUA (1986) é um indicador
de várias implicações, pode-se destacar que aquele              temporal – encontra-se hoje numa fase muito promis-
evento assinalou, de modo bem claro, a forte reação ao          sora, do que a realização deste Simpósio, do seu temá-
movimento teorético-quantitativo, e o desencadeamen-            rio e do conjunto das atividades programadas, é um
to, entre nós, da revolução crítico-radical sob forte           expressivo comprovante.
influência dos marxismos. De certo modo, uma reper-                       Tenho em minha frente um auditório especial
cussão nativa do que nos vinha do hemisfério norte,             onde estão reunidas expressivas figuras da produção
divulgado, sobretudo, pelas revistas. Hérodote e                geomorfológica deste país – geógrafos e especialistas
Antipode. Sem que lhe possa ser imputada toda a                 das ciências afins – pelo que me eximo de qualquer

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Monteiro, C. A. de F. / Revista de Geomorfologia, volume 2, nº 1 (2001) 1-20



preocupação de especular sobre o caráter atual.                 Geografia Física desacredita tal opinião. Em visita ao
Reservo-me apenas para, na terceira e última parte              meu antigo Departamento na USP constatei que, no
desta palestra, acrescentar as minhas impressões. E             ano anterior, as dissertações e teses ali produzidas em
estas serão realmente impressões de alguém que, fora            Humana e Física estavam em número equivalente.
da militância ativa da prática geográfica, tem fruído de                 Enquanto eu ouvira, no Seminário “Geografia
participar de assembléias geográficas várias, nestes            2001”, realizado em setembro de 1999, na Univer-
três últimos anos, após o retorno de uma estada de dois         sidade Federal de Sergipe, em Aracajú, assertivas de
anos no Japão (1995-1997).                                      que a questão ambiental era uma falsa questão na
                                                                Geografia, eu constatava que a vigência daquela
4. DO MEADO DO SÉCULO AO SEU FINAL                              questão estava desempenhando um importante papel
(Unidade ou Desintegração na Geografia? )                       em integrar nas pesquisas de Geografia Física, já que,
                                                                em muitos casos, os trabalhos apresentados revelavam
          Fosse pelas mudanças ocorridas na AGB e               um nítido direcionamento às componentes humanas.
suas assembléias, fosse pelo meu enredamento com                E, agora mesmo, este Simpósio de Geomorfologia, não
comissões da UGI – Environmental Problems (1976 -               deixa duvidas sobre isto. Como atenuante a esse
1984) e Geographical Monitoring and Forecast                    indesejável afastamento constatou-se que, a própria
(1985-1988) mantive-me ausente dos fóruns geográ-               reunião da AGB, realizada no próximo passado agosto,
ficos nacionais. No ano de 1988, após minha aposen-             em Florianópolis, sob a Presidência de Carlos Walter
tadoria na USP, na reunião comissional em Canberra,             Gonçalves, procurou imprimir um cunho de aproxi-
antecedente ao Congresso da UGI, em Sidney, encerrei            mação, tanto na composição do temário quanto pelo
minha participação nos eventos geográficos interna-             fato de que a conferência de abertura, foi proferida
cionais. Nos dez anos seguintes dediquei-me a escre-            pelo nosso colega Ab’Saber. Estes são fatos muito aus-
ver uma obra sobre a minha memória familiar no Piauí            piciosos que me dão novo alento. E será no sentido de
(1850-1950); e colaborações avulsas em Cursos de                contribuir para um maior entrosamento na comunidade
Pós-Graduação (UFSC e UFMG) e num Curso de                      nacional de geógrafos que eu me esforçarei, no fecho
Estudos Brasileiros na Universidade de Tenri,                   dessa nossa conversa, para advogar pela causa da
Província de Nara, no Japão (1995-1997).                        unidade na Geografia. Unidade esta que – como em
          Ao retornar do Japão, em março de 1997,               toda unidade não implica em uniformidade, desde que
passei a receber convites e a comparecer a algumas              a diversidade é caráter inerente tanto à Natureza
reuniões. Minha ida ao Seminário de Geografia Física            quanto às Sociedades Humanas.
Aplicada, em Curitiba (1997) e aquele de Climatologia                    A mim, parece-me muito estranho que, en-
Geográfica, em Salvador (1998), foram gratificantes.            quanto tudo leva a crer que a Ciência, em nossos dias,
Eles mostraram-me, pelo temário, pelo elevado núme-             assume uma atitude menos pretensiosa e quando se
ro de participantes (superior a 300) e pela qualidade           propugna elaborar um novo conhecimento (episteme)
das comunicações e debates, que o interesse pela                mais conjuntivo, que a Geografia – que tinha nesse
Geografia Física era entusiasmante. Naquele de Clima-           atributo um dos seus grandes trunfos, inclusive como
tologia, em Salvador, tive a grata surpresa de encontrar        veículo de educação – queira desfazer-se dele justo
38 comunicações sobre a temática Climas Urbanos,                agora. Na hipótese de uma inevitável separação
discutidas em quatro sessões de trabalho, por colegas           geradora de uma Geografia “Ciência Social” e outra
de diferentes regiões brasileiras. Até então eu vinha           “Ciência da Terra” não teria dúvidas de que esta se-
sentindo um certo desalento por constatar que minha             gunda, seria sempre, e cada vez mais, antropocêntrica
contribuição naquele setor, incluindo o credenciamen-           já que o Homem não é, meramente, um paciente, mas
to de uma disciplina de Pós-Graduação na USP e uma              importante agente na organização dos espaços,
proposta teórica (Monteiro,1976) não frutificara. Dei-          sobretudo naqueles espaços concretos, euclidianos, do
me conta, então, que a coletânea de artigos consagrada          viés das paisagens ou geossistemas.
àquela temática, no número 9 da revista GEOSUL, da                       Meu querido colega, e grande amigo, Armen
UFSC, tinha conseguido, efetivamente, motivar a nova            Mamigonian, não faz muito tempo (Mamigonian,
geração de nossos geógrafos.                                    1996), ao comentar tal conflito, advertiu que :
          A consulta aos periódicos geográficos – con-
sideravelmente aumentados - revelava-me que na ver-                       Por isso, quando alguns propõem a inversão
tente da Geografia Humana, a ênfase no social se                          da relação Geografia Física / Geografia
acentuara ainda mais, o que é compreensível e louvá-                      Humana, visto que na geografia tradicional os
vel a não ser quando se depara com assertivas do tipo                     fenômenos humanos eram subordinados à
já que a natureza está suficientemente conhecida e sob                    base natural e, nessa inversão proposta, o
controle, a Geografia hodierna tem que privilegiar o                      natural é reduzido a recursos econômicos
social. Uma estranhíssima opinião, sobretudo para o                       (matérias primas, etc.), a Geografia Física,
caso brasileiro. Felizmente a própria produção em                         armada do paradigma geossistema, continua

                                                           15
Monteiro, C. A. de F. / Revista de Geomorfologia, volume 2, nº 1 (2001) 1-20



         suas pesquisas, indiferente a esse reducionis-         um cartograma da distribuição funcional urbana para
         mo empobrecedor e realiza mais progressos              definir toda a complexidade de vida de uma cidade.
         do que a Geografia Humana, pois se existem,                      Ainda em proveito da apreciação de uma
         por interferência humana, a chuva ácida ou             visão unitária, integradora, na Geografia, permito-me
         os buracos na camada de ozônio, as massas              retomar o dualismo idiográfico-nomotético assinalado
         de ar continuam deslocando-se, os vulcões              por Scheffer em sua crítica à Geografia do meio do
         não precisam pedir autorização dos governos            século XX. Indagaria se a visão nomotética da
         da Nova Zelândia ou da Colômbia e nem os               economia capitalista, dita neo-liberal da atual decanta-
         terremotos aos poderosos governos dos                  da globalização dispensaria aquela outra, idiográfica
         E.U.A. ou do Japão etc., etc. Afinal está na           da realidade dos graus de desenvolvimento nacionais
         hora de se perceber, com humildade, que                dos países pobres. Aqui também neste caso, os foros
         existem leis naturais e leis sociais, indepen-         de normalidade caberiam aos centros hegemônicos
         dentemente da vontade dos indivíduos.                  (Clube dos Sete) que se arrogam ao direito de impor
         (Armem Mamigonian: A Geografia e a                     um modelo econômico à maioria absoluta de países
         Formação Social como Teoria e como                     remediados, pobres ou miseráveis, tidos como
         Método).                                               acidentais excepcionalidades.
                                                                          Outra das descabidas críticas de Schaefer à
          Eu não saberia dizer se a Geografia Física faz        Geografia é aquela de que o excepcionalismo geo-
mais progressos que a Geografia Humana. Mas, não                gráfico tem suas raízes no idealismo de Kant (1756)
duvido de que esta tem mais aceitação, por vários               consubstanciado no romantismo literário da cosmolo-
motivos, mas, sobretudo pela pretensão humana –                 gia de Humboldt (1845). Bendita subjetividade artís-
mormente na civilização judaico-cristã – em arrogar-se          tica esta que concede ao Homem o privilégio de sentir
ao direito de veto sobre a natureza e, mais ainda, pelo         o Mundo. Mundo que é sua própria marca edificatória
que Nietzsche apontou, na “hiperbólica ingenuidade              (ação sócio-econômica-técnica) sobre o planeta Terra,
do homem: colocar a si mesmo como sentido e medida              ou globo terrestre, projetado na amplidão do Sistema
de valor das coisas” (Sobre o Niilismo, parágrafo 12:           Solar, numa das inúmeras galáxias do universo. Daí o
Queda dos Valores Cosmológicos).                                termo globalização (no artefato físico Terra) não dever
          Não me alimenta nenhuma rivalidade. Embo-             ser sinônimo ou equivalente a mundialização (cons-
ra seja tido como fato já consumado que, nos centros            truto técnico cultural materializado pelo Homem no
hegemônicos do saber e do poder mundial Geografia               globo terrestre). A falta de sintonia entre o construto
Física e Geografia Humana já se tenham apartado,                humano sobre o globo terrestre (ou melhor, à sua
seria uma pena que isso viesse a acontecer no Brasil.           superfície) é que emerge a séria questão ambiental.
Meu apelo pela unidade repousa no fato de que a                 Ressalta daí que a semântica de ambiente deve ligar-se
Geografia tem seu maior encanto naquilo que ela                 construído, derivadamente, da primitiva natureza pelo
encerra não como ciência analítica mas pelo que                 Homem.
acrescenta à compreensão filosófica. Mesmo pelo seu                       É necessário que, assim como as concepções
lado Ciência, envolvida com leis naturais e sociais,            de tempo e espaço são a priori à condição humana a
não faltam estratégias lógicas no confronto de fatos            relação Homem-Natureza, como preconizou Bergson,
das mais diversas categorias. Veja-se, por exemplo,             é algo que se coloca no plano transcendental. A este
que em fatos tão diversos quanto umidade relativa               propósito assinalo que, no momento atual, parece
(fato físico na atmosfera), perfil de equilíbrio (fato          haver um revival da filosofia de Bergson, pelo menos
hidrodinâmico fluvial na litosfera) e mais valia (fato          na França, onde a tese de nosso filósofo Bento de
econômico na economia das sociedades capitalistas)              Almeida Prado, intitulada        “Presença e Campo
permitem aspirar-se a uma quantificação que lhes con-           Transcental”, defendida na USP em 1964, está sendo
fira foros de concretude à sua condição conceitual              ali traduzida e editada.
puramente abstrata. Este esforço de sintonia ou apa-
rentamento de atributos, ou elementos discretos,                Como nos aconselhou Nietzsche, mesmo o homem
também se pode projetar, ampliadamente, para con-               mais racional precisa outra vez, de tempo em tempo,
cepções mais complexas, de síntese, como clima,                 da natureza, isto é, de sua postura fundamental ilógica
relevo, economia. Assim, por exemplo, parece-me                 diante de todas as coisas (Humano, Demasiado
absolutamente equivalente a falta de lógica em                  Humano, parágrafo 31: O Ilógico Necessário). E
considerar-se erosão normal na gênese dos relevos               notemos, com o devido orgulho, a posição em que e
quanto o estado médio dos elementos atmosféricos                companhia de quem aquele filósofo, ao analisar o
naquela do clima. Não sei se exorbitaria em estender o          paganismo grego e seu papel na organização do
raciocínio sobre as limitações de PIB ou renda per              Estado, coloca o geógrafo:
capita para caracterizar plenamente uma economia ou



                                                           16
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Introdução a Ciência Geográfica
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  • 1. Monteiro, C. A. de F. / Revista de Geomorfologia, volume 2, nº 2 (2001) Revista Brasileira de Geomorfologia, Volume 2, Nº 1 (2001) 1-20 William Morris Davis e a Teoria Geográfica Carlos Augusto de Figueiredo Monteiro Universidade de São Paulo email: casusto@uol.com.br Artigo convidado recebido em 15 de maior de 2001 RESUMO O autor põe em confronto a proposta teórica do Ciclo Geográfico de W. M. Davis, da virada dos séculos passados (1899) e a famosa crítica sobre a carência de fundamentação científica na Geografia, feita por Fred Schaefer (1953). Este é o ponto de partida para traçar um panorama da evolução da Geografia Física no Brasil, notadamente da Geomorfologia e da Climatologia, ao longo do século XX. Sincronizando a evolução do pensamento geográfico com os grandes acontecimentos mundiais do passado século, o autor destaca o segmento 1968-1973 como o possível ponto de mutação a partir do qual penetramos na Grande Crise Histórica que atravessamos nesta virada dos séculos XX e XXI e o caráter desagregativo da atual Geografia. Palavras chave: Teoria Geográfica, Geomorfologia, Brasil, Século XX. ABSTRACT The author promotes a confrontation between the W. M. Davis` “The Geographical Cycle” (1899) and Fred Schaefer´s “Excepcionalism in Geography” (1953). This is taken as the starting point for an overview of the theoretical evolution in geomorphology and climatology within the scope of Physical Geography produced in Brazil during the XXth Century. In this analysis the author emphasizes the period 1968-1973 as a possible turning point toward to the great historical crises in which we are drowned at this threshold of the new millennium and the astonishingly desegregation of todays Geography. Keywords: Geographical Theory, Geomorphology, Brazil, XXth Century. 1. Introdução Desde que encerrei minha carreira acadêmica, na docência e pesquisa, venho sendo chamado para Minha presença neste simpósio1 não é aquela eventos geográficos nos quais me tenho obstinado a do geomorfólogo atuante que vem confrontar e debater fruir deles como meio de informação e, quando instado idéias com seus colegas. Trata-se, antes, da presença a participar neles, ater-me ao papel de alguém que, de um geógrafo (ou melhor, de um aprendiz de geó- havendo encerrado sua militância, limita-se a depor à grafo) que, malgrado haver sido impelido à pesquisa base de reflexões sobre a sua experiência passada. em Climatologia, sempre procurou considerar a Geo- Neste encontro, além daqueles dois propósitos, move- grafia como uma convergência holística da relação me o desejo de rever colegas e amigos, inclusive com Homem/Natureza. Atraído pela História ao ingressar a honrosa incumbência de apresentar alguns dos ho- na Faculdade Nacional de Filosofia, da antiga Univer- menageados no certame. sidade do Brasil, no Rio de Janeiro, nos idos de 1947, Ao propor-me tratar de William Morris em pouco tempo fui capturado pela Geografia. E, nes- Davis, não desejo“exumá-lo para um possível revival a se campo, a Geomorfologia foi o meu primeiro ímã. modo do que acontece, no momento, com outro ilustre As circunstâncias, várias, quem sabe o acaso, impe- geógrafo norte-americano – Carl Orwin Sauer- na liram-me para a pesquisa em Climatologia, área bem atual emersão de sua Geografia Cultural, que nunca mais carente, entre nos, na metade do século que ex- medrara entre nós. Desejo tão somente focalizar sua pira. contribuição teórica, no geographical cycle, como fio condutor num panorama evolutivo da Geografia ao 1 longo deste século. Embora não haja dúvidas sobre Palestra ministrada no III Simpósio Nacional de Geomorfologia, Campinas, de 3 a 6 de setembro de 2000. que a proposta teórica de Davis seja um dos pontos de 1
  • 2. Monteiro, C. A. de F. / Revista de Geomorfologia, volume 2, nº 1 (2001) 1-20 partida da Geomorfologia, prefiro conjugá-la ao Science, to repeat once more, searches for contexto geográfico geral. Para mim, pessoalmente, é laws. What then, one may ask, are the difícil (e até mesmo penoso) restringir-me a visões peculiarities of the laws we look for and muito setoriais ou estanquemente compartimentadas which would make it advisable that they be na evolução do pensamento geográfico. Fruto de kept together in one discipline? From this minha crença na unidade da Geografia, admito que viewpoint, we believe that laws of geography esta atitude possa ser fruto de uma arcaica disposição fall into three categories. Typical of the first romântica que remonte, talvez, àquela visão cosmo- are most of the laws of physical geography. lógica, vinculada ao Zeitgeist, do nascedouro da These are not strictly geographical. Many of Geografia como ciência. them are specializations of laws indepen- Aliás, só agora, ao preparar esta palestra, dei- dently established in the physical sciences. me conta de que nossa colega Lílian Coltrinari (1995), These we take as we find them, apply them em muito boa hora, já promovera esta retomada da systematically to the various conditions that contribuição de Davis, ao lado de De Martonne, numa prevail on the surface of the earth and das Seleções de Textos da AGB. Alegra-me, pois, não analyze them with particular attention to the estar só nesta missão de relembrar contribuições spatial variables they contain. To be specific, passadas, mesmo quando as novidades e propostas the climatologist uses much physics (meteo- emergentes são tão copiosas, como estas vividas em rology), the agricultural geographer, applied nosso presente. biology (agronomy). Nossa presente conversa constará de três mo- mentos. Em primeiro lugar, pretendo focalizar a pro- Para o tipo de Climatologia que vigorava posta teórica de Davis – do finalzinho do Século XIX naquela época (e até hoje, em certos centros), onde as – subestimada ou mesmo esquecida na convulsão da vinculações com a Meteorologia eram fortes a ponto dita revolução teorética. A seguir, procurarei promo- de legitimar como geográfica apenas a legalização ver – embora muito rápida e sucintamente - um jogo estatística dos estados médios poderíamos compre- de correlações sincrônicas, entre a Geomorfologia e ender a argumentação de Schaefer. Para a Geografia alguns outros setores geográficos, ao longo do século Agrária (ou agrícola) ela causa mais surpresa vinte. Finalmente, procurarei – numa avaliação muito porquanto ao lado dos sistemas agrícolas, onde se pessoal – expor algumas impressões sobre as tendên- poderia imputar a aplicação agronômica, haveria que cias atuais de nossa Geografia, pelo que me tem sido admitir aquela postura de ordenar, classificatória- dado notar de minhas últimas participações em fóruns mente, como numa competição esportiva, produto por geográficos nacionais. produto. Mas talvez o autor incluísse esta linha no campo da Geografia Econômica que, em sua 2. O CICLO GEOGRÁFICO de W. M. DAVIS concepção, era a mais geograficamente legítima. (Imaginação Criadora e Verdade Científica) Typical of the second category Para minha geração ainda não está distante a are many laws of economic geography, for eclosão da chamada Revolução Teorética na Geo- instance, the now flourishing theory – for it grafia do final dos anos sessenta e ao longo dos se- hás, indeed, reached the stage where one can tenta. Um dos pilares epistemológicos desta revolução speak of a theory in the strict sense of a foi o artigo de Fred Schaefer intitulado Excep- whole group of deductively connected gene- tionalism in Geographya Methodological Exami- ralizations – of general location. As every- nation publicado nos Annals of the Association of body knows, this theory investigates the American Geographers, Vol. 43, n.3, September, 1953 spatial relations obtaining between the places pp.226/249. Um artigo póstumo, desde que seu autor at which the various economic factors, raw falecera a 6 de junho do mesmo ano. Peça altamente materials, producing units, means of commu- polêmica abalava a estrutura epistemológica da Geo- nication, consumers, and so on, are to be grafia, de Kant a Hartschorne. Mas, como tal, cheia de found in any region. As far as they are mor- aspectos positivos e negativos. De qualquer modo, e phological,these laws are genuinely geogra- antes de tudo, é um documento que reflete, muito phic The pioneer work in this area has, in claramente, a ênfase no caráter social na Geografia e, fact, been done by economists, if we except melhor do que isso, marca o advento do determinismo Cristaller, who is a geographer. econômico sobre aquele ambiental. Estes são fatos capitais naquele artigo, que afloram após a insistência É muito difícil compreender esta legitimidade inicial no apelo à necessidade de leis gerais, como dos fatos econômicos onde a multiplicidade de fatores caráter essencial à ciência; na procura de univer- asseguram espacialidade. Fatos geomorfológicos, salidades em vez de excepcionalismos. 2
  • 3. Monteiro, C. A. de F. / Revista de Geomorfologia, volume 2, nº 1 (2001) 1-20 climáticos e agrários não admitem múltiplos fatores? ment. The contemporary reaction against Acompanhemos o raciocínio de Schaefer: these exaggerations is understandable strong. But to fight them from the standpoint of Geography is essentialy morphological. Pure science is one thing; to fight geographical geographical laws contains no reference to determinism in order to fight science and its time and change. This is not to deny that the underlying idea of universal lawfulness is spatial structures we explore, are, like all another thing (op.cit., pp.247). structures anywhere, the result of processes. But the geographer, for most part, deals with O que é mais surpreendente na abordagem de them as he find them, ready made (As far as Schaefer é que ele ignora completamente a contri- physical geography is concerned, the long buição de W. M. Davis em sua proposta de Geogra- term processes that produce them are part of phical Cycle, sobretudo quando se tem sob os olhos as the subject matter of geology). Let us in this três primeiras linhas de seu famoso artigo: connection consider Koeppen’s Hipothetical Continent. The word hypothetical merely All the varied forms of the lands are indicates that he neglected, for the purpose of dependent on – or, as the mathematician his climatological generalization, all but a would say, are functions of – three variable few variables. For the remaining ones he quantities, which may be called structure, states a spatial correlation that is a mor- process and time. phological law. To call such comparatively crude correlation patterns, in this sense of Em sua proposta eminentemente teórica patterns, are different from laws, would be a Davis evoca, para fins de legitimação, a linguagem mistake. This absence of the time factor matemática, requisito básico da ciência.. O artigo em within physical geography is the source of a pauta data do final do século XIX, intitulado The peculiar phenomenon within all branches of Geographical Cycle e publicado no Geographical human geography (Op.cit, pp.244/244). Journal da Royal Geographical Society, em seu nú- mero 14, ano de 1899, entre as páginas 481 e 504. No seu afã de exaltar o nomotético sobre o Nele, além de perseguir propósitos genéticos (causais) idiográfico, além do mérito apontado para o continente e não apenas topográficos (formais), enfatizando o hipotético de Koeppen (1917), o autor chega a absol- caráter teórico, é feita, propositadamente, abstração de ver os ultra deterministas Helen Semple (1897) e toda a gama complexa de vetores implicados no Ellsworth Huntington (1945): modelado terrestre. Partindo da classificação genética das formas, nos capítulos seguintes trata do papel do Geographical determinism or environmenta- tempo como elemento da terminologia geográfica e a lism attributes to the geographical variables descrição do ciclo geográfico ideal. the same role in the social process as Após a contribuição do engenheiro Surell Marxism does to the economic ones. This is (1841) formulando as leis da erosão fluvial, a partir do no good reason to believe that either of these estudo das torrentes alpinas, de onde emergiram os two special determinisms is anything but a primeiros conceitos fundamentais da Geomorfologia, a gross exaggeration of some admittedly proposta de Davis vem dar um passo decisivo à sis- valuable insights. There is nothing wrong tematização do estudo do relevo terrestre. Uns ligeiros with investigating the influence which the dados biográficos são necessários ao entendimento da physical environment exercises, positively or contribuição deste geógrafo norte-americano. as a limiting condition, on the social process. William Morris Davis nasceu a l2 de feve- Most geographers would expect to find lawful reiro de l850, na Filadélfia, Pensilvânia, na comuni- connections in this area; that does not make dade Quaker e estudou na Universidade de Harvard, them geographical determinists. Ratzel was onde foi professor de1876 a 1912. Desde 1870 the first to think originally and imaginatively dedicou-se ao estudo das formas de relevo terrestre. along these lines. Like Marx, he was not quite Sua formação em Geologia deu-lhe um forte funda- as bad as some of his latter days disciples. In mento, numa evolução que o dirigiu à Geografia this country Semple was a student of Ratzel. Física, enriquecida também por sólidos conhecimentos In Ellsworth Huntington’s writings geogra- de Meteorologia. Sua obra publicada inclui 42 itens de phical determinism reaches some of its Meteorologia, inclusive um manual – Elementary dizziest hights. In France Demolins insisted Meteorology - editada em 1894. Chegou mesmo a that in French history had to happen all over dirigir, durante algum tempo, o Observatório Meteo- again it would essentially run the same rológico de Mendoza, na vizinha Argentina. Publicou course on account of the natural environ- uma Physical Geography, em 1889 e a coletânea 3
  • 4. Monteiro, C. A. de F. / Revista de Geomorfologia, volume 2, nº 1 (2001) 1-20 Geographical Essays, em 1909. Outras contribuições nentemente geográfica. Como cada ciclo geológico só suas são: The Rivers and Valleys of Pennsilvania tem início por uma nova litogênese, fica claro que um (1889); The Coral Reef Problem (1928); The Origin of ciclo geológico pode admitir alternadas fases de Limestone Caverns (1931). Sua obra repercutiu orogênese e gliptogênese; o ciclo geográfico se ini- fortemente na Alemanha, no inicio deste século, ciaria, assim, por uma superfície - litogenética pri- conforme atesta a edição da obra Die erklarende mária ou de aplainamento gliptogenético ou erosivo. Deschribung der Landformen (1912). Faleceu em 5 de Ao abstrair – por simples estratégia didática – a inter- fevereiro de 1934, tendo vivido 84 anos. venção real e efetiva (jamais negada) dos múltiplos Emmanuel de Martonne (1909-1925), no seu fatores morfogenéticos, sempre foi deixado claro a Traité de Géographie Physique - Tome 2 – Le Relief possibilidade das peneplanícies (de senilidade) admi- du Sol, ao apreciar o historique do estudo das formas tirem a existência de relevos residuais, assim como do relevo terrestre (Chap.II – Séc.l3), após registrar os que, a sucessão das diferentes fases vitalistas (juven- precursores, registra que: tude, maturidade e senilidade) poderia ser interrom- pida, gerando relevos policíclicos capazes de assumir C’est dans les dernières années du XIX ème alta complexidade. Um eloqüente exemplo disto siècle qu’a été accompli l’éffort le plus emergiu dos estudos daviseanos do complicado relevo vigoureux pour systématiser les idées sur dos Apalaches (ou Aleghanis). l’évolution des formes des terrains. Il a été Estas considerações remetem-me de volta aos l’oeuvre d’um esprit um peu abstrait, cons- idos de 1952-53, quando estudante na Faculté des tructeur plutot qu’observateur; dans une Sciences de l’Université de Paris (Sorbonne), quando série de mémoires publiées de 1889 a 1900, cursei e obtive o Certificat d’Etudes Supérieures em W. M. Davis a precisé toutes les notions Geographie Phisique et Geologie Dynamique. A essentielles, crée des mots qui ont fait disciplina de Geologia (ao lado de Mineralogia- fortune: pénéplaine, cycle d’érosion, forgé Petrografia, Oceanografia e Climatologia), naquele une nomenclature pour les accidents em ano letivo, foi ministrada pelo eminente geólogo Leon rapport avec la structure; il a contribué Lutaud, em seu último ano de docência, já atingida a puissament à donner l’apparence d’um compulsória. Aquele notável geólogo francês, espe- corps de doctrine aux idées dégagées par cialista nas famosas écailles provençales, em suas differents observateurs. Ellargissant peu à aulas, enfatizava muito bem as relações entre os ciclos peu le champ de son activité, il a essayer de geológico e geográfico, proposto por Davis, além de faire le même travail pour les familles de uma alentada análise sobre a contribuição de Surrell, formes outres que celles d’érosion normale, em suas leis da erosão fluvial (novidade para mim) de mais, semble-t-il, avec moins de succès (De onde provieram os conceitos básicos de nível de base, Martonne, op.cit.p.546). erosão regressiva, perfil de equilíbrio, gênese das capturas etc., etc. Notemos, preliminarmente, a observação Ainda, a propósito de abstração e construção adjetiva conferida pelo francês ao norte-americano: teórica na proposta daviseana, é preciso lembrar que, espírito um pouco abstrato, mais construtor que na virada dos séculos XIX para XX projetava-se muito observador, o que assenta aos propósitos teorizantes a filosofia de Henry Bergson, com suas concepções do segundo. Em seguida notemos o uso do termo originais sobre o tempo espesso e exaltação da ima- erosão normal, originalmente usada como erosão ginação criadora. Davis, nas ciências da Terra, reflete ideal (pelo menos naquele artigo de 1899). aquilo que Marcel Proust realizou na literatura. E isto Note-se, também, que o rótulo do clássico será lembrado e criticado, mais tarde, no meio do ensaio de Davis é Geographical Cycle (Ciclo Geo- século, sobretudo na acerbada crítica feita a Davis por gráfico) e não ciclo de erosão como seria, poste- Jean Tricart, como veremos adiante. riormente, consagrado. Ao procurar montar o modelo Consciente de suas abstrações teóricas, em genético da evolução das formas de relevo, base de sua proposta cíclica, e ante a variedade climática – todo o cenário que caracteriza a crosta terrestre e fonte da ação gliptogenética – no globo terrestre, constitui o embasamento da atuação do Homem, Davis Davis referia-se, no seu modelo, a uma (abstrata) desejou – intui-se claramente – acrescentar o geo- erosão ideal ou seja, aquela ligada às regiões gráfico ao geológico. O conceito de ciclo geológico já temperadas das latitudes médias do hemisfério norte, era aquisição estabelecida nas Ciências da Terra, com vigência das quatro estações e pluviosidade farta composto de suas fases: litogênese (geração das mas moderada, emoldurada por climas mediterrâneos e rochas); orogênese (deformação das estruturas rocho- árticos. Assim é que, imediatamente após este núcleo sas pela força dos agentes internos) e gliptogênese climático ideal ele vê-se forçado a focalizar os casos (modelado erosivo, esculturador de formas pelos contrastantes das condições glaciares e áridas (glacial agentes externos). Esta última era, assim, emi- denudation e arid climates). 4
  • 5. Monteiro, C. A. de F. / Revista de Geomorfologia, volume 2, nº 1 (2001) 1-20 O que foi tomado como ideal na proposta 3. RETROFLEXO EVOLUTIVO DA GEOGRA- daviseana, foi desviada para normal, à medida que se FIA NO SECULO XX (A Geomorfologia nesse difundia sua obra, entre outros estudiosos das formas contexto ) de relevo, inclusive De Martonne. Uma curiosíssima normalidade quando refletimos que aqueles condi- Para tentar, no âmbito de nossa conversa, cionamentos climáticos vigoram apenas em cerca de focalizar um panorama evolutivo da Geomorfologia, 10% da superfície do globo terrestre. Eis aqui um após o legado de Davis – dentro do contexto da evo- eloqüente exemplo de visão do Mundo eurocentrista, lução da Geografia no Século XX - e associar esta ocidental, onde o normal, desvinculado de qualquer evolução em sintonia com os grandes acontecimentos ordem de grandeza, reflete a pretensão dos centros científicos, políticos e culturais, procurei esboçar um hegemônicos da economia e poder político mundial quadro auxiliar. Nele, o desenvolvimento linear, em considerar como normal aquilo que lhes é peculiar. diacrônico – em barras paralelas – visa articular, Assim é que, embora flagrantemente dominante, em simultaneamente, as correlações sincrônicas entre eles. seu conjunto, e mesmo superior setorialmente, a Note-se que, se quisesse privilegiar o presente ou os maioria da superfície terrestre é considerada como tempos mais próximos, poderia ter recorrido a uma acidental. escala logarítmica (ou quadrática) pela qual os anos De Martonne principia o seu capítulo (III do mais recentes se beneficiariam de um espaço maior, Tomo 2) relativo ao Modelé d’Érosion Normale pelos capaz de comportar maior número de registros. conceitos básicos obtidos no estudo das torrentes Contudo, em sintonia com minha atual situação – mais alpinas por Surell (1841) e sua concepção de mode- passada do que presente – isto foi descartado. Veja-se, lado normal é bem explicitado: no plano mais inferior do quadro, o posicionamento do observador - este que vos fala - nascido em 1927, Il est certain que nous sommes loin d’être licenciado em 1950 (no exato meio do século) e aussi avancés dans la connaissance des fa- exercida sua militância universitária entre 1955 e milles de formes glaciaires et désertiques que 1990. Assim, o início do século é objeto de pesquisa; o dans celles des formes d’érosion qu’on meio de atuação vivida; o final, de contatos indiretos e observe dans les pays où se concentrent les observação com um certo afastamento. societés humaines. Tout nous engage à Na parte superior do referido quadro estão commencer par celles-ci et a y insister parti- dispostas as barras relativas aos magnos aconteci- culièrement (De Martonne, op. Cit. p.547). mentos mundiais na política, filosofia, artes, ciência- tecnologia, cultura de um modo geral. Na parte cen- Assim, no domínio das acidentalidades ou tral desenvolvem-se as barras relativas ao Brasil, em excepcionalidades, o modelado das amplas regiões seus marcos político-sociais e Geografia, mesclando- intertropicais úmidas é descartado. No início do se nesta barra eventos mundiais e nacionais. Na parte século, o colonialismo europeu – que substituíra o inferior encontra-se a barra da Geomorforlogia, avizi- ibérico - contentava-se em sugar daquelas regiões nhada àquela da Climatologia, não apenas pelas afini- exóticas e de culturas diferentes (e inferiores) os seus dades de Geografia Física mas, sobretudo, por se tratar recursos naturais para alimentar seu crescimento de minha área de mais efetiva atuação e, como tal, industrial e poderio político. Tudo ou quase tudo que mais propícia às possíveis correlações teóricas. Deve ocorria além da linha dos trópicos, inclusive flutuações ficar bem claro que a montagem do quadro obedece a climáticas quaternárias, não sintonizava com o mundo um viés muito pessoal, segundo as limitações do normal. conhecimento do autor. Qualquer colega sentirá falta Retenhamos, por enquanto, neste final de ou poderá discordar quanto a seleção de eventos aí nossa primeira etapa, que a contribuição de W. M. figurados. Eu próprio considero que, para melhor Davis, trazida do finalzinho do século passado, foi caracterização geomorfológica, seria da maior decisiva na sistematização dos estudos geomor- utilidade acrescentar barras relativas à Pedologia e a fológios, e atravessará toda a primeira metade do Geologia, pelo menos na interface do quaternarismo. século XX, com naturais acréscimos, ampliações e Contudo, falta-me o necessário conhecimento para, deformações, em outras escolas geográficas, para, com a devida segurança, registrar os eventos capitais atingida o meio do século, sofrer fortes impactos nestes dois campos de conhecimento. Mas o esquema críticos à sua metodologia, enquanto, a ampliação dos é completamente aberto a todos os possíveis conhecimentos e do arsenal técnico de análise virão acréscimos e correções. trazer novos impulsos não só à Geomorfologia mas à A passagem dos séculos XIX ao XX foi Geografia em geral. marcada por uma esplêndida pirotecnia na Filosofia, nas Artes e na Ciência. Nietzsche, que concluirá sua obra em 1888, e faleceu em 1900, promovera um desmonte em arraigadas concepções, sendo o grande 5
  • 6. Monteiro, C. A. de F. / Revista de Geomorfologia, volume 2, nº 1 (2001) 1-20 6
  • 7. Monteiro, C. A. de F. / Revista de Geomorfologia, volume 2, nº 1 (2001) 1-20 portador de novas luzes necessárias à evolução do médios da atmosfera sobre os lugares. Ao final da novo século. A Ciência era abalada tanto no nível do guerra, W. Köppen (1917) propõe o seu sistema de macro-físico – com Einstein (1879-1955) e a Teoria da classificação, segundo a concepção estatística de Relatividade - quanto naquele do micro-físico – com Hann, ilustrada por seu continente hipotético louvado Max Planck (1858-1947) com a Teoria dos Quanta. A como tentativa de universal científica por Schaeffer. proclamação de Plank dos valores discretos ou quanta No Brasil, as primeiras décadas do século são reveladas num oscilador de partículas é de l4 de uma extensão dos tratamentos corográficos de uma dezembro de 1900. Os cinco artigos que funda- geografia descritiva, do século anterior, ligada aos mentaram a Relatividade de Einstein foram capitais, Institutos Históricos e Geográficos, federais e publicados em 1905. Picasso, ao estampar u’ a estaduais, e da Sociedade Brasileira de Geografia. Os máscara africana no rosto de uma das Demoiselles compêndios didáticos bafejados pelo aval do Colégio d’Avignó, em 1907, cria o cubismo. Schoenberg D. Pedro II, do Rio de Janeiro, norteavam o ensino da revoluciona a harmonia musical, com o dodecafo- disciplina no ensino médio. Em 1917, ocorre a nismo, no seu Harmonielehre, em 1912. Por esta surpreendente edição (em Paris) de uma Météorologie época o Ballet Russo conquista Paris. As Ciências du Brésil, de autoria de Delgado de Carvalho. Naturais progridem enquanto as Humanas tomam Surpreendente pela escassez dos dados disponíveis, corpo. As velhas concepções de Economia Política, bem como pelo próprio tratamento dado pelo autor, foi dos séculos precedentes, são prolongadas pelo novo merecedor de um elogioso prefácio do meteorologista século a dentro enquanto os progressos do capitalismo inglês, Sir Napier Shaw. A seguir, Delgado de Carva- geram mecanismos financeiros ainda desconhecidos lho, associado ao engenheiro Henrique Morize, lan- que culminam com o crack da Bolsa de Nova Iorque, çaria a primeira classificação climática do território em outubro de 1929, inaugurando uma grave recessão brasileiro. A procura de recursos minerais que, desde a mundial. segunda metade do século anterior ensejara a vinda de Diz-se que o século XX principiou atrasado, geólogos europeus e norte-americanos para o Brasil, inaugurando-se após a primeira grande guerra continua a produzir os estudos pioneiros sobre o mundial, no decorrer da qual, em l917, deu-se a embasamento geológico e formas de relevo. revolução bolchevique russa. Neste último sentido, Após a Revolução de l930, inaugurada a dita pode-se admitir que se findou adiantadamente, com o República Nova, com a implantação das universidades desmonte da URSS. De qualquer modo, esta no Rio de Janeiro e em São Paulo (1934) é que se experiência política, fruto do marxismo, abrangeu três inicia a institucionalização da disciplina – associada à quartos deste século, sendo um dos seus marcos. Na História – nos cursos superiores, implementada com a segunda década, enquanto o Brasil celebrava seu colaboração de docentes franceses. Um outro marco na centenário de independência e tentava assumir um evolução dos estudos geográficos entre nós, advém da caráter nacional nas artes (Semana de Arte Moderna fundação da Associação dos Geógrafos Brasileiros, em São Paulo), em 1922, neste mesmo ano, eram orientada por Pierre Deffontaines (1935). Congraçan- editados dois pilares na literatura do novo século com do, de modo aberto, cientistas dos setores afins, geó- o Ullyses de James Joyce e o A la récherche du Temps logos, historiadores, engenheiros etc., a primeira dé- Perdu de Marcel Proust. cada foi incipiente, sendo revigorada após uma revisão A Geografia Ciência, do seu nascedouro nos estatutos, em l945, a partir do que se tornou alta- alemão, ingressa no novo século oscilando na querela mente dinâmica, promovendo assembléias anuais em determinismo (Ratzel) – possibilismo (de la Blache) diferentes regiões brasileiras, irradiando entusiasmo enquanto se geram as escolas nacionais européias e para a pesquisa geográfica. A ditadura Vargas – rotu- norte-americanas, mediante a institucionalização da lada de Estado Novo, no mesmo ano de sua implan- disciplina nos currículos universitários. Os estudos de tação (1937), criava o Instituto Brasileiro de Geografia Geografia Física fornecem as bases aos estudos e Estatística (IBGE), promovendo pesquisa geográfica regionais, onde a ação do Homem é apreciada em suas e publicações especializadas (Revista Brasileira de relações com a natureza. O estudo dos gêneros de vida Geografia e Boletim Geográfico). Os três Conselhos, nos grandes biócoros guarda muito de ilustração em que se subdividia o IBGE: Geografia, Cartografia e etnográfica na emergente Antropologia. Após o legado Estatística, num organismo diretamente vinculado à de Surell e Davis, a Geomorfologia continua a evoluir Presidência da República, demonstrava a importância preocupada em distinguir da erosão normal aquelas que o poder público conferia à pesquisa geográfica, a das regiões áridas (Passarge, 1904) e glaciais de produção cartográfica (compartilhada com aquela montanha (Penck,1924). Mais adiante, Cotton (1942) produzida pelas forças armadas), os levantamentos tenta completar o quadro dos Climatic Accidents in estatísticos rotineiros e a realização de censos dece- Landscape Making. O estudo dos climas repousa nas nais, como elementos indispensáveis à administração bases traçadas pelo austríaco Julius Hann (l903) com definição caracterizada pela abstração dos estados 7
  • 8. Monteiro, C. A. de F. / Revista de Geomorfologia, volume 2, nº 1 (2001) 1-20 pública. Enquanto as Universidades preparavam, con- vinha, como também o seu significado estratégico. comitantemente, professores (licenciados) para o ensi- Lembrando a descoberta de Yves la Coste de que a no médio e superior, e pesquisadores (bacharéis), estes Geografia é algo que sert à faire la guerre as formas últimos, além de destinados às próprias Universidades, de relevo da bacia parisiense inspiraram a estratégia podiam abastecer os quadros técnicos do Conselho (fracassada) da Linha Maginot. Nacional de Geografia. Uma das atribuições deste O fato de que a primeira metade do século órgão era a elaboração da Divisão Regional do Brasil, XX é o nascedouro da Geografia-Ciência entre nós no prática norteadora da administração pública. A pri- Brasil, sintoniza perfeitamente com o estágio histórico meira divisão regional, produzida para nortear o de nossa própria formação social. Na primeira década, recenseamento de 1940, foi publicada no ano seguinte o povoamento ainda restringia-se, significativamente, (Guimarães, 1941). à faixa litorânea. Lembremo-nos da odisséia da missão A Geografia da primeira metade do século Rondon quando, no auge (já início do declínio) do XX foi marcada por uma forte preocupação com as boom da borracha na Amazônia, se instalavam as componentes naturais, onde os estudos geomorfo- linhas telegráficas para Manaus. Nos anos trinta sur- lógicos forneciam as bases para as abordagens re- gem obras capitais no nosso auto-conhecimento como gionais. De Martonne, além do seu tratado de Geo- Casa Grande e Senzala (1933) e Sobrados e Mu- grafia Física, produziu um primoroso estudo regional cambos de Gilberto Freyre (1936) mais Raízes do sobre La Valachie. Aliás, uma das tradições na escola Brasil de Sergio Buarque de Holanda (1936) e francesa de Geografia, à qual estivemos fortemente Formação do Brasil Contemporâneo de Caio Prado ligados, era a ênfase da Geografia Física na formação Junior (1942). A segunda grande guerra e o esforço de seus geógrafos, fato que se pode constatar até na para a industrialização, nos anos quarenta, nosso esfor- terceira geração, onde geógrafos que se notabilizariam ço na Marcha para o Oeste, conjugando o esforço ter- na área de Humana, produziram estudos relevantes em restre da Misssão Roncador-Xingu dos Irmãos Villas Geomorfologia, como os casos de Pierre George (La Boas, com os aéreos da FAB. A necessidade de tomar Plaine du Bas Rhône) e Mmme. Beaujeau-Garnier (Le posse para conhecer o território e refletir sobre nossa Morvan). formação sócio-econômica eram necessidades Uma das características que pode ser imperiosas para o que a contribuição geográfica, apontada para esta fase é a produção de uma análise conjugada pela ação conjunta das universidades geomorfológica acompanhada de excelente ilustração pioneiras, IBGE e AGB deram importante contribui- cartográfica. Os principais geomorfólogos, a principiar ção. O desenvolvimento tecnológico produzido pelo pelo próprio Davis, eram excelentes desenhistas que esforço de guerra trouxera o precioso auxílio da expressavam suas idéias evolutivas do modelado aerofotogrametria. O antigo e complicado sistema terrestre à base de bem executados blocos diagramas. trimetrogon de fotos inclinadas, foi enriquecido por De Davis, passando por De Martonne, até atingir sua tomadas verticais, o que contribuiu muito para os culminância no norte-americano Lobeck (1939), cujo estudos geomorfológicos entre nós. manual de Geomorfologia era muito rico, tanto em Nossos estudos geomorfológicos radiaram fotografias como em desenhos. A ele se deve, também, dos dois centros universitários básicos. No Rio de Ja- um manual de desenho cartográfico onde se encontra neiro houve a contribuição inestimável do mestre (ainda hoje) a melhor explicação para construir blocos francês Francis Ruellan, discípulo de De Martonne, diagramas (1924-1958). atuando concomitantemente na Universidade do Brasil Outra característica desta fase daviseana era e no Conselho Nacional de Geografia, formador das aquela de que, malgrado a evolução do modelado equipes iniciais. Na Universidade de São Paulo - onde basear-se em pré-supostos abstratos, quando se atingia a atuação dos mestres franceses, notadamente Pierre o entendimento da realidade do relevo terrestre ela era Monbeig, estava mais voltada para a Geografia sempre conectada ao povoamento, às formas de Humana - as bases geomorfológicas foram autóctones. ocupação do solo, aspectos econômicos, enfim à Iniciada pelo geólogo Luiz Flores de Morais Rego fenomenologia humana. Neste sentido relembro o (1943), que delineou as bases da interpretação das capítulo da Geomorfologia de Lobeck, relativa aos formas do relevo do território paulista, elas se con- relevos associados às estruturas em domos, onde a tinuaram por obra de notáveis geólogos, dentre os disposição dos arcos concêntricos, de formas mono- quais salientaríamos Otavio Barbosa e Fernando Flá- clinais (cuestas e hog-backs), eram associadas ao vio Marques de Almeida os quais, dentre outros mé- povoamento e a advertência de que a desnudação do ritos tiveram aquele de haverem dito ativíssimos núcleo intrusivo propiciava, o mais das vezes, uma participantes da obra da Associação dos Geógrafos paisagem mineradora. O tratamento dos relevos de Brasileiros, em sua melhor fase Juntou-se a estes, cuestas na França, nos arcos concêntricos da Bacia antes mesmo de concluir o curso, o geógrafo Aziz Parisiense, explicava não só mas propiciavam boas Nacib Ab’Saber que, beneficiado por uma excelente condições de solos e de exposição solar à cultura da formação em conhecimentos geológicos, destacou-se 8
  • 9. Monteiro, C. A. de F. / Revista de Geomorfologia, volume 2, nº 1 (2001) 1-20 muito cedo no setor da Geomorfologia. Enquanto isto (1949) como sendo o último suspiro do determinismo o quadro da Geografia Física, no Brasil, completava-se ambiental. por estudos climatológicos ainda limitados pela Nada melhor para retratar esta passagem do insuficiência de informação meteorológica e restrita à que confrontar os três congressos internacionais, pro- aplicação da classificação do Köppen em estudos movidos pela União Geográfica Internacional (UGI), locais e regionais. A Biogeografia, despontava, a partir no meado do século. Naquele de Lisboa (1948) foi de um curso ministrado no Conselho Nacional de retomada a realização sistemática daqueles eventos, Geografia do IBGE, no Rio de Janeiro, pelo canadense realizados de quatro em quatro anos, prática inter- Dansereau, cujo conteúdo ensejou a publicação de um rompida na vigência da guerra. Ali ainda houve preo- notável artigo na Revista Brasileira de Geografia cupação para ensejar a criação da Comissão para o (1949). Estudo das Superfícies de Aplainamento em torno do Mas será de toda justiça assinalar que antes de Atlântico, tema que aliava de um lado, a preocupação atingir o meio do século, a Geografia produzida no daviseana com as grandes superfícies aplainadas; do Brasil, em ativas assembléias e publicações periódicas, outro, ao vinculá-las em torno do Atlântico notava-se a já era capaz de exibir contribuições de destaque. relação à teoria da Derivação Continental (Pretérita Lembremo-nos de que, para restringirmo-nos ao setor união da América do Sul com a África, no Continente da Geografia Física, desde 1941, com a publicação do de Gondwana) proposta por Wegener em 1915. artigo Ondas de Frio na Bacia Amazônica, os meteo- Quando aluno de Jacques Bourcart, na disciplina rologistas Adalberto Serra e Leandro Ratisbona, prati- Oceanografia, na Faculté des Sciences, da Sorbonne, cantes de uma meteorologia dinâmica, advinda da es- no ano letivo de 1952/53, os estudos sobre a margem cola escandinava, lançavam os alicerces para o futuro continental daquele mestre promoviam alentada nascimento de uma climatologia mais geográfica. Aziz revisão crítica naquela teoria, mostrando tanto pontos Ab’Saber já produzira o seu notável trabalho sobre os de concordância quanto evidências de discordâncias. O fenômenos de desnudação pós-cretácea (1949). Como congresso de Washington (1952), pelo temário e co- expressão de uma Geografia globalmente integrada, missões, revela o peso dado à Economia. Esta passa a Hilgard O’Reilly Sternberg publicara, na RBG, um varrer todos os campos de preocupação acadêmica e primoroso estudo sobre uma calamidade pluvial na profissional. Tenho repetido o fato da pomposa decla- Bacia do rio Paraíba do Sul, no qual desnudara a trama ração do famoso arquiteto Mies van der Hohe, ao con- de todo um jogo de relações integradas entre a herança cluir seu edifício das torres de aço e vidro de Chicago da cultura cafeeira transformada em pastagem, criando (1951) de que o projeto arquitetônico é a economia. condições extremamente vulneráveis ao desencadea- Toda a esfera dos conhecimentos passa a girar sob o mento de movimentos coletivos do solo. Este estudo impulso dos processos econômicos, conduzidos pelo foi o pioneiro numa linha de pesquisa de destaque na antagonismo capitalismo-comunismo, ao sabor da realidade do Brasil tropical atlântico. guerra fria. Lembro-me da reação do velho mestre Outro rumo trazido pela guerra, com a des- inglês, o geomorfólogo Wooldridge, em sua obra The truição dos espaços urbano-industriais na Europa, foi a Geographer as Scientist, onde se refere ao fato de ver- necessidade de, para reconstruí-los, planejá-los. se a superfície terrestre como simples palco para o Assim, a Geografia viu-se lançada a um comprometi- desenrolar da atividade econômica como uma idéia mento com o planejamento territorial, passando-se a narrow and nasty (estreita e tola). O memorável discutir, para ela, a adequação adjetiva de aplicada ou congresso do Rio de Janeiro (1956) vai registrar uma aplicável. Tendo sido sempre temática geográfica, os outra importante mudança: aquela do dinamismo que estudos urbanos passaram a se revestir de maior rele- passa a caracterizar o estudo dos processos na vância, ampliadas, sobremodo, pela importância que se Geomorfologia. Na França, a Revue de Géomorpho- passou a dar à Economia. Antes de findar a guerra, em logie Dynamique, surgida no final dos anos quarenta, Bretton-Woods (1944), consoante a nova configuração já vinha se desencumbindo de promover grande impul- do poder mundial, o Reino Unido passava o bastão da so nessa abordagem do modelado terrestre. liderança econômica aos Estados Unidos enquanto, na- A Geomorfologia na França, após a geração quele mesmo tratado eram criados o Banco Mundial e De Martonne (Paris), Blanchard (Grénoble) dá lugar o Fundo Monetário Internacional (FMI). Já atingimos àquela de Cholley (Paris), Baulig (Strasbourg). Do o meio do século, no momento mesmo em que eu con- primeiro deve-se a estratégia didática da abordagem cluía a Universidade e passava a integrar-me, mais efe- tríplice na Geomorfologia: Estrutural, Climática e tivamente, na prática geográfica. No momento em que Litorânea. A terceira geração, aquela do pós-guerra é me encaminhava para a pesquisa geográfica mais liderada por Tricart (Strasbourg) e Dresh (Paris). voltada para a natureza, dava-se a grande mutação que Ambos ampliaram os seus campos de estudo para o foi o advento do determinismo econômico em território africano: Dresh no árido da borda substituição àquele dito ambiental. Em termos globais, mediterrânea e Tricart no tropical úmido da então aponta-se a Urban Geography de Griffith Taylor Afrique Noire. 9
  • 10. Monteiro, C. A. de F. / Revista de Geomorfologia, volume 2, nº 1 (2001) 1-20 Outro enriquecimento científico do pós- iaria: a noção evolutiva cíclica e a concepção de guerra foi a introdução da Teoria Geral dos Sistemas erosão normal. Mas o cerne de toda a crítica é cen- proposta pelo biólogo Von Bertalanffy (1950) em que trada no fato de que Davis coloca a intuição no lugar iria ter grande repercussão mas que só chegaria para a da observação, pecado advindo das concepções filo- Geografia, no Brasil, junto com a revolução teorética. sóficas de Bergson qu’a saisi le drapeau em lançant A progressão dos estudos geomorfológicos no des concepts comme celui de l’immagination créatrice, semi-árido e sobretudo no intertropical africano, pouco é sobre este pedestal filosófico que principia a demo- a pouco, foram revelando sinais de que, as flutuações lição, na maior veemência. Esta crítica principiada climáticas do quaternário haviam repercutido sim, pessoalmente nos seus muitos cursos avulsos poli- muito além das latitudes médias. A observação de copiados pela Presses Universitaire de France (PUF), stone lines, paleopavimentos e caracteres pedológicos avulsamente, acabou por ser ordenada em sua obra, chamavam a atenção dos geomorfólogos. A estas intitulada Principes ot Méthodes de la Géomorpho- observações climáticas, na África do Sul vieram logie, da qual permito-me lembrar o seguinte trecho: juntar-se outras observações capitais, relacionadas à implicações tectônicas e isostáticas, feitas por Lester La méthode de Davis est significative. Ne King (1955) na geração de pediplanações e seus resí- s’est-t-il pas emporté, plein de mépris, contre duos (Inselgebirge). Neste meio de século, no Brasil, ces gens qui manquent d’immagination? N’a- os núcleos basais de São Paulo e Rio de Janeiro já t-il pas affirmé que le recours systhematique haviam sido acrescidos de outros. De modo autóctone et massif à l’immagination était la carac- no Paraná, pela atuação do geólogo alemão R. Maack, téristique méthodologique de la géomorpho- formando uma eficiente equipe, onde já emergia J. J. logie? N’em fit-il pas lui-même l’éclatante Bigarella: ou seja, conquistado pela obra difusora- démonstration em se plaçant le dos au pay- integradora da AGB, em Pernambuco, com Gilberto sage et em imaginant comment celui-ci devait Osório de Andrade, Rachel Caldas Lins, Manoel Co- être, comment il s’était elaboré et, ensuite em rrea de Andrade (inicialmente geomorfólogo) e princi- se retournant pour découvrir, plein de vani- piando na Bahia, com os primeiros bolsistas enviados teuse satisfaction, qu’il était bien conforme à à França, estas observações nos cortes reveladores da ce qu’il avait échafaudé? Autre anedocte sig- estrutura superficial da paisagem, já despertavam nificative: la campagne dans les Mers du Sud interesse. Ao ensejo do congresso da UGI houve o pour l’étude dês récif coraliens, pendant la- auspicioso encontro de geógrafos dos grandes centros quelle Davis, enferme dans as cabine, e os nossos. Fosse nas sessões do congresso, mas espe- étudiait les cartes et reconstituait la genèse cialmente nas excursões de campo em diferentes des récifs dont, ensuite, une courte escale et regiões brasileiras, por especialistas estrangeiros, nota- um rapide coup d’ oeil étaient censés damente os geomorfólogos Tricart e Dresh, houve démontrer l’exactitude... Une telle aberration oportunidade para um proveitoso diálogo com os méthodologique a directement mené à une nacionais. Assim é que, o congresso do Rio de Janeiro, practique incroyable, que avait encore cours de 1956, dentre muitos outros méritos, pode ser con- dans certaines universities tout récemment: siderado como um marco na nossa Geomorfologia, celle de limiter les travaux practiques que se enriqueceu desse renovador caráter dinâmico. A d’étudiants à la seule observation de la carte partir daí estreitaram-se os laços de colaboração e topographique. On regardait lê modelé et on intercâmbio entre Brasil e França na Geomorfologia, en déduisait la nature des roches et les notadamente com a atuação de Tricart junto a UFBa, accidents structuraux, puis, ensuite, on com a criação do Laboratório de Geomorfologia e rendait compte du modelé à partir des Estudos Regionais. Além do treinamento local de seus éléments soi-disant acquis de cette manière. geógrafos, atraiu outros que para ali convergiram, de Monstrueuse faute de méthode, qui n’a pu outras regiões. Também fomentava a troca de idéias, être commise que par des personnes ignorant ajudada pelos encontros anuais nas assembléias da les plus élémentaires príncipes de la méthode AGB. scientifique. Toute loi scientifique se déduit O dinamismo e ênfase processual na geração d’une corrélation systhematiquement obser- das formas do relevo viria assentar-se sobre uma séria vée entre de nombreuses données d’ordre crítica à metodologia daviseana. E, neste particular, o different, portées les unes sur l’axe des x, les porta voz mais ferrenho foi Jean Tricart. Embora outres sur l’axe des y. Le modele est une concedendo a W. M. Davis o crédito de fundador da donnée, la structure em est une autre. Leur Geomorfologia como disciplina especializada, Tricart confrontation aboutit à l’établissement d’une aponta como único mérito de Davis aquele de apre- corrélation. Mais on ne peut tirer x et y de la sentar um conjunto coerente, um sistema. Mas ataca, même équation, seule et unique. En tentant de radicalmente, os dois pilares sobre os quais ele se apo- le faire, ou about-it nécessairement à une 10
  • 11. Monteiro, C. A. de F. / Revista de Geomorfologia, volume 2, nº 1 (2001) 1-20 solution arbitraire que, dans notre cas, est considerei muito esta colocação de Tricart sobre a une pétition de principe ou, si l’on préfère, importância da seqüência no estudo dos processos. Daí une vulgaire devinette… On conçoit combine minha preocupação em centralizar o estudo climático de semblables pratique on pu effarer les no ritmo, no estudo das seqüências de tipos de tempo, autres naturalists et la prevention qu’elles capazes de, embora muito difícil, aproximar-se daquilo ont crée vis-à-vis de la géomorphologie. que seria o habitual. Se era válido produzir uma Geomorfologia Dinâmica por que não o seria também Cette grave faute de méthode est sensible tout perseguir uma Climatologia Dinâmica? E é em nome au long de l’oeuvre de Davis, mais devient de dessa associação - que a meu ver nivela logicamente e plus en plus apparente avec le temps: les sincroniza modos de análise, em proveito da unidade exemples les plus outranciers correspondent da Geografia – que eu procurei incluir no quadro uma à la seconde décennie de notre siècle. Mais barra relativa à Climatologia, na qual, sem pretensão l’insuffisance méthodologique est sous- descabida ou falsa modéstia, registrei etapas jacente aux concepts fondamentaux de la importantes em minha contribuição aos estudos géomorphologie davisienne qui sont une climatológicos em nosso país. No final dos anos construction de l’esprit pure et simple, certes cinqüenta e ao longo dos sessenta, encontrei o apoio douée de cohesion interne, mais qui ne na literatura meteorológica brasileira, notadamente em repose pas sur une observation systématique A. Serra, o apoio necessário para enfronhar-me nos des faits. En somme, la différence entre mecanismos da circulação atmosférica na América do l’intrigue bien menée d’un roman de fiction et Sul. E fiz um grande esforço para, partindo do material la réalité quotidienne (Op,Cit, pp. 63/64). precário disponível naquele então, em cartas sinóticas rudimentares, anteriores ao benefício das imagens do Contrapondo-se ao verbalismo imaginativo de satélites, compreender os mecanismos daquela circu- Davis, Tricart examina les tatonnements des écoles lação. Ao procurar iniciar os meus alunos universi- germano-slaves, sobretudo destas últimas: Lomono- tários naquela prática de análise, defrontei-me com sov, séc. XVIII; Kropotkine, segunda metade do sé- uma grande dificuldade didática. Foi quando ocorreu- culo XIX e Dokoutchaev, pai da pedologia, no final me recorrer a estratégia daviseana de imaginar um daquele século. A falta de consideração da cobertura ciclo que, embora abstrato, servisse à iniciação dos de solos e vegetação é uma das grandes demonstrações meus alunos numa tarefa difícil. Ao tratar do Clima da da abstração daviseana. E é nos alemães que o crítico Região Sul da Geografia Regional do Brasil, editada francês vai encontrar o cerne da necessária fundamen- pelo IBGE em 1963, inseri o esquema Ciclo Vital de tação climatológica, reveladora dos efetivos processos. uma Onda de Frio que, abstraindo as costumeiras A apaixonada crítica de Tricart, justa em mui- complicações de que se revestem os avanços de Frente tos pontos, carece da compreensão do que a proposta Polar Atlântica sul-americana, exibia quatro estágios: de Davis continha de propósito didático. Didática prenúncio, avanço, domínio e transição. É absolu- também foi à preocupação de Cholley ao preconizar o tamente óbvio que os avanços dos anticilones polares tratamento separado das componentes estruturais das admitem infinita variedade de maneiras mas, era climáticas e completá-las pela azonalidade das bordas necessário simplificar a complexa realidade em um litorâneas. Qualquer um geógrafo a quem já tenha sido modelo que, embora, declaradamente teórico, servisse dada a tarefa de ensinar geomorfologia, sabe bem das a iniciação dos alunos na análise. Eles, a medida que dificuldades em explicar aos alunos tal complexidade e evoluíam pela multiplicação dos casos observados, superposição de fatores contidos na geomorfogênese. davam-se conta de que a sucessão das quatro fases não Eu próprio usava a estratégia de, nas disciplinas finais, era ocorrente daquele modo, podendo haver, por recorrer a uma abordagem regional específica para exemplo, dois ou três avanços seguidos, conforme o afastar todas as abstrações teóricas. E forneci, a este abastecimento do fluxo polar no extremo sul do propósito, um depoimento, ao elaborar o ensaio continente; as significativas diferenças de duração das Geossistemas - A Estória de uma Procura (Monteiro, diferentes fases, a eliminação de algumas delas 2000). segundo certas circunstâncias etc., etc. O mal, Em minha carreira acadêmica, sobretudo na portanto, não repousa na utilização da idéia do ciclo, função docente, aproveitei muito dos ensinamentos dependendo da maneira como ela é utilizada. Seria tanto de Davis quanto de Tricart. Concordei com este descabido tratar aqui, nesta palestra, da recorrência e último quando ele enfatizou que la notion de cycle doit conspicuidade da noção de ciclo na vida humana. donc être remplacée par celle d’évolution, séquence. E Principiaríamos desde a associação do homem foi exatamente por isso que procurei um paradigma primitivo entre fases da lua e ciclo menstrual das mu- mais satisfatório para a Climatologia que pratiquei. Se lheres, atravessando um longo percurso até o nível fi- ele repousa basicamente na revisão crítica formulada losófico, na teoria nietzschiana do eterno retorno. Se por Sorre, como já expus exaustivamente, também de um lado podemos criticar o simplismo da 11
  • 12. Monteiro, C. A. de F. / Revista de Geomorfologia, volume 2, nº 1 (2001) 1-20 abordagem dos ciclos econômicos em nossa Historia, artigos, sendo difícil deixar de vê-lo estampado nas poderemos também, encontrar grandes méritos, provas de Geografia dos exames vestibulares às Uni- sobretudo de compreensão didática, na teoria das versidades. Um outro trabalho, mais dirigido a espe- dualidades brasileiras, na qual nosso saudoso econo- cialistas, representa a síntese da contribuição teórica mista Ignácio Rangel, a partir da proposta do econo- de Ab’Saber à Geomorfologia feita no Brasil. Trata-se mista russo Kondratief, nos anos vinte, arquitetou algo de um excerto de uma de suas teses acadêmicas na que ajuda muito à compreensão de nossa formação USP, apresentado como artigo na Revista Brasileira de sócio-econômica, sincronizada aos acontecimentos Geografia e intitulado Uma Revisão do Quaternário mundiais: Rangel (1981); Mamigonian (1987). Paulista: do presente para o passado (Ab’Saber, 1969). O início da segunda metade do século iria Neste trabalho ele explicita sua diretriz teórico- sediar grandes mudanças. Enquanto o mundo vivia a metodológica calcada no tríptico: compartimentação, guerra fria, russos e americanos promoviam a corrida estrutura superficial da paisagem e fisiologia da pai- espacial. À era nuclear, superpunha-se, agora, a era sagem. Este último nível ensejou, por algum tempo, a espacial. Iniciada com o Sputnik russo (1957) cul- vigência de uma disciplina do currículo de graduação minou com a missão americana da Apolo 11, colo- em Geografia no Departamento da FFLCH da USP, da cando o Homem na Lua (l969). Os anos sessenta re- qual eu tive o privilégio de ministrá-la. Este referencial presentaram, talvez, o período áureo das reuniões teórico de Ab’Saber, pela sua abertura, propiciava anuais da AGB que, ao início dos setenta promovia amplas conexões a outras estratégias metodológicas, uma assembléia administrativa em São Paulo, para notadamente a conciliação do esquema daviseano com uma mudança nos estudos que, dentre outras mu- aquelas mais integrativas, em torno do conceito com- danças, fez passar as assembléias para uma ocorrência plexo de paisagem da escola alemã (Landschaft bi-anual. Inauguravam-se outros tempos, tanto no Oekologie). mundo quanto no Brasil. A mudança territorial mar- O segmento temporal entre 1968 e 1973 é cada pela inauguração de Brasília (1960) foi seguida abalado por uma séria concentração de eventos da por aquela política, com a intervenção militar (1964), maior relevância que, superpondo-se cumulativamen- introduzindo violentas mudanças político-institucio- te, vão fazer com que este qüinqüênio possa ser cre- nais, econômicas e ideológicas, na vigência da segu- denciado como o muito provável ponto de mutação a rança nacional, aplicada à pretensa integração econô- partir do qual ingressamos na grande crise histórica na mica da Amazônia Brasileira e à abertura de grandes qual estamos mergulhados e que caracteriza esta eixos rodoviários. A Geografia vê-se abalada pela in- virada de séculos, soleira do novo milênio. Alguns trodução das revoluções teorético-quantitativas. acontecimentos, como fenômenos de dinâmica pro- Conquanto o sopro revolucionário se dirigisse gressiva, ultrapassando uma significação pontual do mais enfaticamente à Geografia Humana, não deixou evento episódico, desenvolveram-se pelos anos ses- de afetar também a Física. De um lado, a Clima- senta e setenta. Assim foram os movimentos de rebe- tologia, até então, puramente quantitativa, numa esta- lião juvenil contra as guerras, os valores burgueses tística elementar, esforçava-se justamente para tornar- vigentes, que desembocaram na ideologia do flower se mais qualitativa para o que, encontrava sérias li- power, associada à evasão dionisíaca nos alucinó- mitações no tratamento estatístico vigente, para exibir genos, arte psicodélica, etc.. A revolução sexual, com sua dinâmica. A Geomorfologia, atingido o estatuto o advento da pílula anticoncepcional, os movimentos dinâmico, enfatizando os processos, já beirava um reivindicatórios de liberação da mulher, estão nesta estágio que perseguia aquela dinâmica até mesmo em categoria. Liberação feminina que se reflete expres- tentativas experimentais, associando-se aos estudos sivamente na moda. Se Coco Chanel, no inicio dos pedológicos e à geologia quaternarista. Assim, as anos vinte, liberou as mulheres do espartilho e levan- técnicas quantitativas revolucionárias canalizavam-se tou-lhes as saias, agora, nos sessenta, Mary Quant para a geometria da drenagem hidrológico-fluvial. Em levanta-lhe mais ainda nas mini shirts. E as feministas meio a toda essa efervescência permito-me extrair e americanas queimam os porta-seios. No quadro – relembrar aqui, acima da melée quantitativa, duas apesar de suas limitações já apontadas - procurei contribuições de Ab’Saber, pelo que elas encerraram registrar eventos datados, indicadores de mudanças de influência útil sobre a comunidade de geógrafos relevantes. A sobrecarga foi assinalada por uma régua nacionais. No contexto singelo da revista Orientação, vertical, destacando o qüinqüênio iniciador da grande editada pelo extinto Instituto de Geografia da USP, crise que atravessamos, vestíbulo da nova Ab’Saber nos apresenta uma magistral síntese, em modernidade. Acompanhemos, no quadro, a menção texto e expressivo cartograma, rotulado Domínios dos eventos, seguindo de baixo para cima. Morfoclimáticos e Províncias Fitogeográficas do Se bem que numa convergência de idéias de Brasil (Ab’Saber,1967). Sua difusão foi considerável, alguns cientistas (Cordoni, 1968), a novidade da sendo o referido cartograma reproduzido (quase Tectônica de Placas surgiu em torno de 1968, tendo sempre sem menção do autor) por livros didáticos e em vista as contribuições de Morgan (1968), Lê 12
  • 13. Monteiro, C. A. de F. / Revista de Geomorfologia, volume 2, nº 1 (2001) 1-20 Pichon (1968) e Isacks, Oliver e Sykes (1968) que mento que, junto aquele brilhante momento do início veio trazer nova interpretação à teoria de Wegener do século, mais aquele outro induzido pelo esforço (l915). Neste mesmo 1968, numa outra curiosa dirigido à segunda guerra mundial, têm se conduzido, convergência, surgiram na França, com Bertrand, e na sem solução de continuidade, ao longo de todo o sé- então URSS, com Sotchava a proposta integrativa do culo XX. O espaço disponível no quadro seria insu- novo paradigma dos Geossistemas. De importância ficiente a registrar estas importantes aquisições, dentre fundamental para a Geografia, desde que preconizada as quais eu procurei inteirar-me e registrá-las em com tentativa de uma Geografia Física Global, esta minha obra de despedida da pesquisa climatológica, proposta visou, desde o início, um esforço de antro- intitulada Clima e Excepcionalismo: conjecturas so- pização do sistema. Ao longo de trinta anos, grandes bre o desempenho da atmosfera como fenômeno passos foram dados nessa tentativa de referencial geográfico. Em seu capítulo IV insistira em que são teórico para uma análise integrada do complexo geo- enriquecimentos fundamentais no desvelamento de sis- gráfico, sem que se possa considerá-la com meta temas de alta complexidade, de novas geometrias plenamente alcançada. Abstenho-me de alongar-me (fractais) até a Teoria do Caos. Difícil de registrar sobre este tópico porquanto já dei o meu testemunho estas obras no quadro as apresento nas referências sobre esta busca no meu trabalho entitulado bibliográfico, assinaladas por um asterístico. Geossistemas: a estória de uma procura (Monteiro, Insistindo ainda em 1968, lembro a realização 2000). Ainda em 1968 deu-se um fato, altamente do Simpósio realizado em Paris, pela UNESCO, sobre significativo para o andamento da Geografia no Brasil. os problemas ambientais, evento este que prenuncia a Infelizmente trata-se de um registro negativo posto que Conferência de Estocolmo, em 1972, que será o le- evidencia o declínio de importância da Geografia no gítimo marco da eclosão da Questão Ambiental, uma IBGE. Já transmudado em uma Fundação, a Geografia das facetas importantes na nossa atual crise. Também, no IBGE, embora aparentemente revigorada pela 1968 é o ano que registrou a rebelião dos jovens fran- adesão às técnicas quantitativas e à moda da ceses na turbulenta Primavera de Paris, da qual resul- teoretização - proclamada oficialmente para todo o taria a reformulação da estrutura universitária francesa, país na realização de uma conferencia especial inclusive fragmentando a tradicional Sorbonne, em (CONFEGE,1969), os geógrafos daquele quadro insti- várias unidades. tucional foram, paulatinamente, declinando em prestí- Para nós, no Brasil, 1968 foi o ano de implan- gio. Isto se comprova quando registramos que a antiga tação do Ato Institucional nº.5 enquanto, para mim, tarefa de elaborar a divisão regional passa a ser tarefa pessoalmente foi o ano de meu ingresso na Univer- transferida aos economistas do Instituto de Pesquisas sidade de São Paulo, em seguida a obtenção de meu Econômicas Aplicadas (IPEA). Os geógrafos da Di- título de doutor, no ano anterior. Ali, concomitante- visão de Geografia do IBGE limitaram-se a elaboração mente na docência junto ao Departamento e na pes- de um considerável acervo de cartogramas, agluti- quisa no Laboratório de Climatologia do IGEOG-USP, nados na obra Subsídios à Regionalização (IBGE, nos vinte anos seguintes, iria continuar a perseguir 1969), oferecida, aos economistas. Continuava, assim, uma melhoria nos estudos climatológicos, a partir da a ascensão da Economia, principiada no meio do base iniciada em Florianópolis e nas conquistas alcan- século. Os estudos geográficos, visando a regiona- çadas em Rio Claro. Em 1972, consoante a reformu- lização perseguiam a definição de micro regiões lação nos cursos de Pós-Graduação eu introduzia a homogêneas e o estudo de Redes Urbanas, agora disciplina Introdução à Climatologia Urbana, consubs- subordinadas a técnicas quantitativas, sobretudo aque- tanciada pela proposta teórica (Monteiro, 1976) que la da análise fatorial. O conteúdo da Revista Brasileira estaria fadada a um acolhimento entre nulo e lento, de Geografia, desta época, é essencialmente teorético- para revelar-se e colher os seus primeiros frutos nos quantitativo, assinalando o princípio de decadência anos noventa. daquela prestimosa publicação. Mas a revolução em Retornando ao ponto de mutação, e como pro- foco foi acontecimento de temporalidade seqüencial vável marco delimitador no qüinqüênio em pauta, que, neste quadro, ficará marcado pelo evento CON- deve-se registrar a crise dos combustíveis, desencade- FEGE. ada pelos árabes do petróleo em 1973. A partir daí, Outro movimento importante, coincidente prosseguimos nas convulsões da grande crise histórica com este período de cinco anos, mas não se restrin- que atravessamos e que, muito provavelmente penetra- gindo a seus limites, foi aquele de um extraordinário rá pelo princípio do século entrante. Penetramos, as- avanço na Ciência. Curiosamente, enquanto se exalta- sim, num passado mais recente que, por tão próximo e va a imperiosa necessidade de matematização e afir- tão tumultuado, dificulta o discernimento para extrair mação em leis universais, aconteciam importantes as relevâncias e obscurece o horizonte projetivo, Con- pesquisas que traziam dúvidas – mas sobretudo novas tudo, atrevo-me à ousadia de apontar, ainda, alguns perspectivas – sobre o que a revolução insistia. Estas fatos brasileiros que me parecem aflorar. Lembraria a importantes inovações constituem um terceiro mo- atuação, a partir de 1973, do Projeto RADAM, 13
  • 14. Monteiro, C. A. de F. / Revista de Geomorfologia, volume 2, nº 1 (2001) 1-20 planejado inicialmente para a Amazônia e posterior- culpa, esta facção ajudou muito o crescente afas- mente ampliado para o território nacional. Além dos tamento que já se vinha produzindo entre Geografia benefícios trazidos na revelação de riquezas minerais e Humana e Física entre nós. A crescente pressão interna aprimoramento ao sistema cartográfico, aquele projeto nos Departamentos de Geografia das nossas univer- desempenharia um relevante papel na formação de sidades para, nas revisões curriculares, diminuir as pessoal tanto nas técnicas de análise das imagens, em disciplinas naturais em proveito das sociais, aliou-se gabinete, quanto nas observações diretas em sobrevôos outra discriminação, das comunicações de Geografia de controle e pesquisa de campo. Neste particular, Física no temário dos encontros da AGB. Disto resul- dentre outras especialidades, foi marcante o número de tou uma natural resposta na criação dos Seminários de técnicos no campo da Geomorfologia. Até seus fins, Geografia Física Aplicada, inaugurado na primeira se- ao término dos anos oitenta, seja pela documentação mana de dezembro de l984, em Rio Claro e sobre o gerada para o CPRN – um acervo inestimável – seja que já tratei num artigo para a revista francesa pela formação de pessoal, incorporado aos quadros do L’Espace Géographique (Monteiro, l989). O aumento IBGE (Setor de Recursos Naturais) e disperso por vá- considerável de participantes e o interesse crescente, rias universidades, órgãos de pesquisa, públicos e par- desembocaram no desdobramento dos simpósios de ticulares, aquele projeto desempenhou relevante papel Climatologia Geográfica e este próprio de Geomor- no enriquecimento de informação para a Geografia do fologia, igualmente realizados a cada dois anos. Brasil. Enquanto atravessamos a crise, da qual so- Outro fato merecedor de registro parece-me bressai uma preocupação econômica marcada por um aquele, ocorrido em 1974, que assinala a edição dos ambíguo neo-liberalismo onde o capitalismo, após o primeiros manuais de Geomorfologia, em nosso país, malogro das tentativas comunistas com o desmonte da ambos provenientes de Rio Claro, de seus docentes URSS e das Repúblicas Populares da Europa Central, Antonio Christofoletti e Margarida Penteado Orellana. persegue uma globalização conduzida pelo mercado; Neste setor didático não deve ser esquecida a cola- onde a aproximação produzida nas comunicações pela boração pioneira de Antonio Teixeira Guerra com o tecnologia eletrônica acentua a separação entre os seu Dicionário de Geomorfologia. Principiada desde países ricos –o fechado clube dos sete – e os pouco 1949, após o retorno daquele colega dos seus estudos remediados cercados por maioria de pobres e na França, esta obra seria editada pelo IBGE, nos anos miseráveis, parece estar havendo - pelo menos no sessenta, em sucessivas edições, que prestaram grande escopo da Geografia – uma saturação com este deter- serviço aos estudantes de Geografia universitários. minismo econômico. Passando pela experiência de Entre o dicionário e os primeiros manuais uma Geografia da Percepção, emerge uma Geografia pode-se registrar, também, as seguintes obras auxi- Humanística, da qual, ao lado das relações com a liares à Geomorfologia. Em 1964 o IBGE edita uma Literatura, emerge também uma nova onda de coletânea de fotos, rotulada Exercícios e Pratica de Geografia Cultural, que se vêm firmando entre nós no Geomorfologia, com legendas organizadas pelos Geó- Brasil. Também desponta uma preocupação em grafos da Divisão de Geografia: Antônio Teixeira focalizar em diferentes atividades humanas, uma abor- Guerra, Alfredo José Porto Rodrigues, Carlos de dagem dirigida às diferenças de gênero, transposta da Castro Botelho, Gelson Rangel de Lima e Jorge Xavier antropologia para o contexto gráfico. É até muito da Silva. Em 1973, o IBGE lançava outra coletânea de sintomático, e mesmo esclarecedor que, em meio a fotos, comentários organizados por Celeste Rodrigues este turbilhão de mudanças, a medida que surgem Maio, rotulada Geomorfologia do Brasil. tendências novas, voltadas ao futuro, ressurgem tam- Desde a reformulação estatutária de 1970, bém antigas preocupações de revivals, o que converge passando a assembléias gerais de dois em dois anos, a para aquela concepção de um tempo espesso ou tríbio, AGB via-se acrescida de enorme número de asso- na fusão de passado, presente e futuro. ciados, predominantemente estudantes universitários, Neste contexto a Geomorfologia que se faz no o que implicará num novo período na vida daquela Brasil, beneficiada pela preocupação com a dinâmica entidade. Em 1978, a assembléia geral realizada em processual, pela aliança com a Pedologia e Geologia Fortaleza foi sede de um sério conflito que iria inau- no denominador comum do quaternarismo – para o gurar uma nova fase na AGB. Dentre aquele tumulto, que a filiação ao IBEQUA (1986) é um indicador de várias implicações, pode-se destacar que aquele temporal – encontra-se hoje numa fase muito promis- evento assinalou, de modo bem claro, a forte reação ao sora, do que a realização deste Simpósio, do seu temá- movimento teorético-quantitativo, e o desencadeamen- rio e do conjunto das atividades programadas, é um to, entre nós, da revolução crítico-radical sob forte expressivo comprovante. influência dos marxismos. De certo modo, uma reper- Tenho em minha frente um auditório especial cussão nativa do que nos vinha do hemisfério norte, onde estão reunidas expressivas figuras da produção divulgado, sobretudo, pelas revistas. Hérodote e geomorfológica deste país – geógrafos e especialistas Antipode. Sem que lhe possa ser imputada toda a das ciências afins – pelo que me eximo de qualquer 14
  • 15. Monteiro, C. A. de F. / Revista de Geomorfologia, volume 2, nº 1 (2001) 1-20 preocupação de especular sobre o caráter atual. Geografia Física desacredita tal opinião. Em visita ao Reservo-me apenas para, na terceira e última parte meu antigo Departamento na USP constatei que, no desta palestra, acrescentar as minhas impressões. E ano anterior, as dissertações e teses ali produzidas em estas serão realmente impressões de alguém que, fora Humana e Física estavam em número equivalente. da militância ativa da prática geográfica, tem fruído de Enquanto eu ouvira, no Seminário “Geografia participar de assembléias geográficas várias, nestes 2001”, realizado em setembro de 1999, na Univer- três últimos anos, após o retorno de uma estada de dois sidade Federal de Sergipe, em Aracajú, assertivas de anos no Japão (1995-1997). que a questão ambiental era uma falsa questão na Geografia, eu constatava que a vigência daquela 4. DO MEADO DO SÉCULO AO SEU FINAL questão estava desempenhando um importante papel (Unidade ou Desintegração na Geografia? ) em integrar nas pesquisas de Geografia Física, já que, em muitos casos, os trabalhos apresentados revelavam Fosse pelas mudanças ocorridas na AGB e um nítido direcionamento às componentes humanas. suas assembléias, fosse pelo meu enredamento com E, agora mesmo, este Simpósio de Geomorfologia, não comissões da UGI – Environmental Problems (1976 - deixa duvidas sobre isto. Como atenuante a esse 1984) e Geographical Monitoring and Forecast indesejável afastamento constatou-se que, a própria (1985-1988) mantive-me ausente dos fóruns geográ- reunião da AGB, realizada no próximo passado agosto, ficos nacionais. No ano de 1988, após minha aposen- em Florianópolis, sob a Presidência de Carlos Walter tadoria na USP, na reunião comissional em Canberra, Gonçalves, procurou imprimir um cunho de aproxi- antecedente ao Congresso da UGI, em Sidney, encerrei mação, tanto na composição do temário quanto pelo minha participação nos eventos geográficos interna- fato de que a conferência de abertura, foi proferida cionais. Nos dez anos seguintes dediquei-me a escre- pelo nosso colega Ab’Saber. Estes são fatos muito aus- ver uma obra sobre a minha memória familiar no Piauí piciosos que me dão novo alento. E será no sentido de (1850-1950); e colaborações avulsas em Cursos de contribuir para um maior entrosamento na comunidade Pós-Graduação (UFSC e UFMG) e num Curso de nacional de geógrafos que eu me esforçarei, no fecho Estudos Brasileiros na Universidade de Tenri, dessa nossa conversa, para advogar pela causa da Província de Nara, no Japão (1995-1997). unidade na Geografia. Unidade esta que – como em Ao retornar do Japão, em março de 1997, toda unidade não implica em uniformidade, desde que passei a receber convites e a comparecer a algumas a diversidade é caráter inerente tanto à Natureza reuniões. Minha ida ao Seminário de Geografia Física quanto às Sociedades Humanas. Aplicada, em Curitiba (1997) e aquele de Climatologia A mim, parece-me muito estranho que, en- Geográfica, em Salvador (1998), foram gratificantes. quanto tudo leva a crer que a Ciência, em nossos dias, Eles mostraram-me, pelo temário, pelo elevado núme- assume uma atitude menos pretensiosa e quando se ro de participantes (superior a 300) e pela qualidade propugna elaborar um novo conhecimento (episteme) das comunicações e debates, que o interesse pela mais conjuntivo, que a Geografia – que tinha nesse Geografia Física era entusiasmante. Naquele de Clima- atributo um dos seus grandes trunfos, inclusive como tologia, em Salvador, tive a grata surpresa de encontrar veículo de educação – queira desfazer-se dele justo 38 comunicações sobre a temática Climas Urbanos, agora. Na hipótese de uma inevitável separação discutidas em quatro sessões de trabalho, por colegas geradora de uma Geografia “Ciência Social” e outra de diferentes regiões brasileiras. Até então eu vinha “Ciência da Terra” não teria dúvidas de que esta se- sentindo um certo desalento por constatar que minha gunda, seria sempre, e cada vez mais, antropocêntrica contribuição naquele setor, incluindo o credenciamen- já que o Homem não é, meramente, um paciente, mas to de uma disciplina de Pós-Graduação na USP e uma importante agente na organização dos espaços, proposta teórica (Monteiro,1976) não frutificara. Dei- sobretudo naqueles espaços concretos, euclidianos, do me conta, então, que a coletânea de artigos consagrada viés das paisagens ou geossistemas. àquela temática, no número 9 da revista GEOSUL, da Meu querido colega, e grande amigo, Armen UFSC, tinha conseguido, efetivamente, motivar a nova Mamigonian, não faz muito tempo (Mamigonian, geração de nossos geógrafos. 1996), ao comentar tal conflito, advertiu que : A consulta aos periódicos geográficos – con- sideravelmente aumentados - revelava-me que na ver- Por isso, quando alguns propõem a inversão tente da Geografia Humana, a ênfase no social se da relação Geografia Física / Geografia acentuara ainda mais, o que é compreensível e louvá- Humana, visto que na geografia tradicional os vel a não ser quando se depara com assertivas do tipo fenômenos humanos eram subordinados à já que a natureza está suficientemente conhecida e sob base natural e, nessa inversão proposta, o controle, a Geografia hodierna tem que privilegiar o natural é reduzido a recursos econômicos social. Uma estranhíssima opinião, sobretudo para o (matérias primas, etc.), a Geografia Física, caso brasileiro. Felizmente a própria produção em armada do paradigma geossistema, continua 15
  • 16. Monteiro, C. A. de F. / Revista de Geomorfologia, volume 2, nº 1 (2001) 1-20 suas pesquisas, indiferente a esse reducionis- um cartograma da distribuição funcional urbana para mo empobrecedor e realiza mais progressos definir toda a complexidade de vida de uma cidade. do que a Geografia Humana, pois se existem, Ainda em proveito da apreciação de uma por interferência humana, a chuva ácida ou visão unitária, integradora, na Geografia, permito-me os buracos na camada de ozônio, as massas retomar o dualismo idiográfico-nomotético assinalado de ar continuam deslocando-se, os vulcões por Scheffer em sua crítica à Geografia do meio do não precisam pedir autorização dos governos século XX. Indagaria se a visão nomotética da da Nova Zelândia ou da Colômbia e nem os economia capitalista, dita neo-liberal da atual decanta- terremotos aos poderosos governos dos da globalização dispensaria aquela outra, idiográfica E.U.A. ou do Japão etc., etc. Afinal está na da realidade dos graus de desenvolvimento nacionais hora de se perceber, com humildade, que dos países pobres. Aqui também neste caso, os foros existem leis naturais e leis sociais, indepen- de normalidade caberiam aos centros hegemônicos dentemente da vontade dos indivíduos. (Clube dos Sete) que se arrogam ao direito de impor (Armem Mamigonian: A Geografia e a um modelo econômico à maioria absoluta de países Formação Social como Teoria e como remediados, pobres ou miseráveis, tidos como Método). acidentais excepcionalidades. Outra das descabidas críticas de Schaefer à Eu não saberia dizer se a Geografia Física faz Geografia é aquela de que o excepcionalismo geo- mais progressos que a Geografia Humana. Mas, não gráfico tem suas raízes no idealismo de Kant (1756) duvido de que esta tem mais aceitação, por vários consubstanciado no romantismo literário da cosmolo- motivos, mas, sobretudo pela pretensão humana – gia de Humboldt (1845). Bendita subjetividade artís- mormente na civilização judaico-cristã – em arrogar-se tica esta que concede ao Homem o privilégio de sentir ao direito de veto sobre a natureza e, mais ainda, pelo o Mundo. Mundo que é sua própria marca edificatória que Nietzsche apontou, na “hiperbólica ingenuidade (ação sócio-econômica-técnica) sobre o planeta Terra, do homem: colocar a si mesmo como sentido e medida ou globo terrestre, projetado na amplidão do Sistema de valor das coisas” (Sobre o Niilismo, parágrafo 12: Solar, numa das inúmeras galáxias do universo. Daí o Queda dos Valores Cosmológicos). termo globalização (no artefato físico Terra) não dever Não me alimenta nenhuma rivalidade. Embo- ser sinônimo ou equivalente a mundialização (cons- ra seja tido como fato já consumado que, nos centros truto técnico cultural materializado pelo Homem no hegemônicos do saber e do poder mundial Geografia globo terrestre). A falta de sintonia entre o construto Física e Geografia Humana já se tenham apartado, humano sobre o globo terrestre (ou melhor, à sua seria uma pena que isso viesse a acontecer no Brasil. superfície) é que emerge a séria questão ambiental. Meu apelo pela unidade repousa no fato de que a Ressalta daí que a semântica de ambiente deve ligar-se Geografia tem seu maior encanto naquilo que ela construído, derivadamente, da primitiva natureza pelo encerra não como ciência analítica mas pelo que Homem. acrescenta à compreensão filosófica. Mesmo pelo seu É necessário que, assim como as concepções lado Ciência, envolvida com leis naturais e sociais, de tempo e espaço são a priori à condição humana a não faltam estratégias lógicas no confronto de fatos relação Homem-Natureza, como preconizou Bergson, das mais diversas categorias. Veja-se, por exemplo, é algo que se coloca no plano transcendental. A este que em fatos tão diversos quanto umidade relativa propósito assinalo que, no momento atual, parece (fato físico na atmosfera), perfil de equilíbrio (fato haver um revival da filosofia de Bergson, pelo menos hidrodinâmico fluvial na litosfera) e mais valia (fato na França, onde a tese de nosso filósofo Bento de econômico na economia das sociedades capitalistas) Almeida Prado, intitulada “Presença e Campo permitem aspirar-se a uma quantificação que lhes con- Transcental”, defendida na USP em 1964, está sendo fira foros de concretude à sua condição conceitual ali traduzida e editada. puramente abstrata. Este esforço de sintonia ou apa- rentamento de atributos, ou elementos discretos, Como nos aconselhou Nietzsche, mesmo o homem também se pode projetar, ampliadamente, para con- mais racional precisa outra vez, de tempo em tempo, cepções mais complexas, de síntese, como clima, da natureza, isto é, de sua postura fundamental ilógica relevo, economia. Assim, por exemplo, parece-me diante de todas as coisas (Humano, Demasiado absolutamente equivalente a falta de lógica em Humano, parágrafo 31: O Ilógico Necessário). E considerar-se erosão normal na gênese dos relevos notemos, com o devido orgulho, a posição em que e quanto o estado médio dos elementos atmosféricos companhia de quem aquele filósofo, ao analisar o naquela do clima. Não sei se exorbitaria em estender o paganismo grego e seu papel na organização do raciocínio sobre as limitações de PIB ou renda per Estado, coloca o geógrafo: capita para caracterizar plenamente uma economia ou 16