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       Quando Flávio Junqueira deixa apressadamente a livraria,
carrega consigo mais um começo furtado.
       O prazer de sentir a adrenalina inundando o sistema nervoso já não
o excita há algum tempo. A sensação é mais como a apreensão seguida
de arrependimento, como ao se atravessar uma rua no farol vermelho
sem confrontar as distâncias entre uma margem e outra da via, e a do
veículo em movimento e a si próprio. Flávio não fuma nem bebe, mas
sempre imaginou que o efeito do primeiro trago seja algo similar à
sensação de sair de uma livraria sem ser sucedido por alguém em seu
encalço. Mas se a prática reiterada e constante já não mais o abala, isso
não quer dizer que não sinta o efeito físico desencadeado: a respiração
ofegante, as unhas cravadas contra a palma da mão, o movimento
desordenado das sobrancelhas sob a armação dos óculos para miopia.
       Caminhando pelas ruas do Centro, aparenta uma convicção de
destino que chega a enganar a si mesmo. Em meio à multidão, é só mais
um indigitado neurótico que se desloca de um ponto de partida a outro
de chegada, apenas um elemento do caos de cuja imperscrutável lógica
emerge a desordem da metrópole.
       Assim que o ritmo dos passos diminui, a roda da cidade
desacelera.
       Sentindo a respiração retomar o estado de repouso, Flávio retira
um lenço de tecido do bolso, ergue os óculos e limpa o suor que começa
a escorrer. Depois, dobra metodicamente o pedaço de pano e o devolve
ao bolso da calça. Ele para no meio da calçada e gira a cabeça buscando
se situar: “1.324 passos”, diz, resfolegando. Desliga, enfim, o piloto
automático.
       O antigo TissotSeastar no pulso indica que ainda restam alguns
minutos para o término do horário de almoço, de forma que ele decide
comer alguma coisa no boteco da esquina.
       “O que vai ser, chefia?”
       Lápis preso na orelha, o garçom lava um copo, pano de prato
imundo pendurado no ombro. Na rua, uma fila interminável de veículos
que se acumulam diante do semáforo, sons dos mais variados matizes
sobrepondo-se no infernal arranjo da sinfonia urbana.
       “Uma Coca-Cola e um misto-quente, por gentileza.”
       Flávio se acomoda no balcão. O garçom seca as mãos no pano sujo
e se retira para o fundo do bar.
Para quem passa pela calçada diante do boteco, a imagem captada
de relance é desalentadora. Conforme o corpo relaxa do estresse, Flávio
arqueia as costas, os cotovelos apoiados na base das coxas, o olhar
perdido na direção do asfalto quente. As sobrancelhas grisalhas e
volumosas, também arqueadas, fazem com que ele adquira contornos
curvilíneos. Ao transeunte mais incauto possivelmente sobreviria a
sensação de ter visto um “S” sentado ao balcão.
       Flávio se recompõe e espia ao redor, assegurando-se de que
ninguém o observa. Em seguida, enfia com cautela a mão em outro
bolso, retira uma folha de papel e desfaz duas dobras. Um sorriso se
insinua no canto da boca: o branco gelo do pólen noventa gramas, a
porosidade da textura, a fonte utilizada, a editoração. Cada detalhe é
captado com as pálpebras entrecerradas, gerando o desfocamento que
abstrai e dá qualidade artística. Somente após o cumprimento do rito é
que ele passa a ler o texto do que deveria ser um romance, não tivesse a
página sido meticulosamente amputada de seu livro.
       “Misto-quente e Coca-Cola.” O garçom larga o prato e a garrafa
no balcão. “Ketchup?”
       Despertado do transe, Flávio constata com certa tristeza que,
apesar de frequentar o mesmo boteco há anos, não passa de um completo
desconhecido aos olhos do atendente. Mas o pesar de saber-se ignorado
esvaece assim que ele retoma a degustação da página recém-subtraída,
feito criança que se distrai com um brinquedo novo.
       O horário de almoço se esgota, Flávio guarda a folha na carteira,
termina rapidamente o lanche e dispara para o trabalho.
       Minutos depois, ele entra na seção de processamento, situada no
segundo andar da agência do Instituto de Seguridade. E, como em toda
vez que se atrasa, Flávio chega de cabeça baixa, sorrateiro, buscando
discretamente localizar o diretor da agência, Humberto Peçanha, seu
carrasco particular. O diretor está sentado à mesa no fundo da seção,
blazer pendurado no encosto da cadeira, à espera da oportunidade de
flagrar o furtivo funcionário.
       “Junqueira!”
       Peçanha grita, mais alto que o necessário até para chamar a
atenção de um surdo. Tamborila com os dedos no tampo da mesa.
       “Foi almoçar aonde? Em casa, porra?”
       “Desculpe-me, senhor Peçanha”, responde Flávio praticamente
afônico, “é que precisei fazer uma coisa urgente, um compromisso...”
       “Sei. E os processos de abertura, que são urgentes também, já
estão prontos?”
       Flávio acena com a cabeça, morde os lábios, levanta as
sobrancelhas como quem não encontra palavras para responder. Mas a
resposta nem é necessária. Humberto Peçanha sabe muito bem que o
serviço não está pronto. Como sabe das dificuldades que o infortunado
funcionário enfrenta com o expediente essencialmente burocrático
daquele setor, a enfadonha rotina das requisições de aposentadorias,
pensões por morte, por invalidez, auxílios-doença, auxílios-reclusão,
auxílios-o-diabo-a-quatro. Movimentos idióticos, repetitivos, de
elevação e compressão de carimbos, abertura e fechamento de pedidos
de benefícios previdenciários deferidos, diferidos ou negados.
      “O que foi, Junqueira, engoliu a língua?”
      Peçanha fuzila Flávio com o olhar.
      “Bom, não quero nem saber. Quinta-feira eu quero tudo pronto na
minha mesa para enviar o relatório da estatística, ok?”
      O diretor faz um movimento brusco com a cabeça, como quem tem
uma linha com um anzol presa no queixo e acaba de fisgar um peixe.
Flávio interpreta o movimento, confirma que entendeu e se retira.
Abandona o campo de visão do diretor, não sem antes ouvir um
comentário sarcástico a seu respeito: “Esse aí, sim, é o clássico
estereótipo do funcionário público”.

       18h15min. Flávio está dentro do ônibus da linha 354-L, que faz o
trajeto do Centro da cidade à Zona Oeste. Dado o seu temperamento, ele
aprendeu a se desligar do trabalho pontualmente às dezoito horas,
momento em que passa o cartão de identificação pelo leitor óptico e
registra sua saída. Para ele, acostumar-se a deixar os problemas
profissionais no lado de dentro da repartição fora uma questão de
sobrevivência, de preservação psíquica.
       Mas Flávio não tem exatamente consciência da própria fragilidade.
       Ele não é dado a grandes questionamentos.
       Desde cedo abraçara os dogmas religiosos, e tem no fiel
cumprimento deles a redenção do seu livre-arbítrio. Não desconfia, por
exemplo, de que sua mente recalcitrante seja como uma ampola de
remédio, cujo rompimento depende apenas de uma pressão exata sobre a
tampa. E que sua índole cordial e pacífica seja tão instável quanto a
nitroglicerina, que não explode ao menor movimento como mostram
alguns filmes hollywoodianos, mas que, se submetida a impacto
suficiente...
       Bem, Flávio está no ônibus e, embora não seja do seu feitio, fica
pensando nas palavras de Peçanha. Estereótipo do funcionário público.
Não é expressão típica do diretor, ele pensa, embora não se possa supor
que Peçanha desconheça o sentido da afirmação. Mas, em se tratando de
quem se trata, a frase soou estranha. Flávio estala a língua, pega no bolso
a página furtada e uma caneta na pasta. Anota a palavra “estereótipo” na
margem da folha, sublinhando-a. Sua caligrafia, apesar de firme, é
circular e larga como a de uma criança, praticamente sem inclinação.
Flávio guarda de volta caneta e papel e põe-se a divagar enquanto o
ponto não chega.
       Embora seja outono passado, a noite é quente e seca na cidade.
       Como de costume, ele chega por volta das sete e coloca um LP do
João Gilberto para tocar. Notas dissonantes e o estalido das ranhuras do
vinil embalam um banho rápido, cujos vapores escapam pelas frestas da
porta e invadem o corredor, criando uma atmosfera onírica.
       Das paredes azuis aos móveis coloniais; do toca-discos ao tapete
que imita os persas; da Santa Ceia esculpida na madeira aos porta-
retratos sobre o bufê. Tudo na casa de Flávio Junqueira é anacrônico. A
espessa camada de poeira denuncia a ausência de uma mulher. A
ausência de marcas de dedo, que ali não moram crianças. Ao fundo, ao
lado da poltrona de veludo, um longilíneo abajur emite uma luz fraca
que empalidece o cenário. Ironicamente, o alto-falante reproduz “Chega
de saudade”, gravação acústica de 1958.
       Flávio sai do banheiro usando apenas roupão e os indefectíveis
óculos de fundo de garrafa, o cabelo ralo desgrenhado. Ao se encaminhar
para o quarto, detém-se diante do tucunaré empalhado que adorna o
corredor. Ainda que não seja o maior da espécie, trata-se de um peixe
razoavelmente grande, de uns setenta centímetros, boca aberta, exibindo
o maxilar serrilhado. O incomum atavio apresenta a postura retorcida
que certamente adotara durante a batalha travada com seu algoz, o
mesmo que agora resvala com os dedos a inscrição da placa do troféu:
Três Marias – Rio São Francisco – 1989.
       Ao admirar o espécime com veneração, Flávio lembra como o
instinto de sobrevivência do animal valorizara sua conquista. Tem
certeza de que não existe outro peixe de água doce que possua tamanha
força e destreza na superfície. Afinal, pescadores de todo o continente
excursionam aos rios da Amazônia atrás da emoção de capturá-lo, quase
sempre o troféu mais cobiçado. E o peixe, bom de briga, justifica a
viagem. Quando fisgado, reage com fortes e intermitentes puxões na
linha, enreda-se entre galhos e pedras embaixo d'água, debate-se para se
livrar do anzol. Mesmo pescadores experientes podem perder a presa
nesse confronto, tendo a linha arrebentada ou irremediavelmente
emaranhada em algum enrosco.
       Porém, há muito mais em comum entre ele e o peixe do que Flávio
possa imaginar.
       Assim como ele, o tucunaré também é um animal sedentário. Não
realiza migrações. Em represas, recolhe-se raramente nas profundezas,
optando pelas águas quentes da margem, escondido sob galhos e
vegetação. Quando adulto, vive sozinho ou, no máximo, em pares, numa
convivência fugaz e pontual, abandonando o hábito juvenil de nadar em
cardumes tão logo atinja a idade madura.
À margem do cotidiano, constatando a própria solidão, talvez
Flávio nem sequer intua o quanto tucunaré ele próprio seja. E quem sabe
seja justamente essa cruel identificação – por ele ignorada – a razão de a
presa não ter sido, conforme os princípios da pesca esportiva, devolvida
ao seu habitat tão logo se consumara a briga. Mas, como o tucunaré,
Flávio Junqueira evita as profundezas e as águas frias do mergulho em
si, de forma que, dando dois tapinhas nas costas do bicho, retira-se para
o quarto.
       Quando as próximas notas anunciam Desafinado, e os estalidos do
vinil ameaçam sobrepor-se à música, Flávio volta à sala assobiando e
apanha a pasta de lona. Com a página furtada em mãos, ele abre uma
gaveta do bufê repleta de centenas de outras páginas. Confere pela
última vez o texto e coloca a folha por cima das demais, fechando a
gaveta. Apaga o abajur, certifica-se de ter fechado a porta e, a caminho
da cama, para rapidamente diante do tucunaré: “Vara médio pesada,
linha de vinte e cinco libras, arranque com linha grossa de zero ponto
setenta”, dispara para o peixe como se este o pudesse ouvir: “Isca de
flystreamer médio!” E, sorrindo, volta para o quarto.

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Água Turva - Capítulo 1

  • 1. 1 Quando Flávio Junqueira deixa apressadamente a livraria, carrega consigo mais um começo furtado. O prazer de sentir a adrenalina inundando o sistema nervoso já não o excita há algum tempo. A sensação é mais como a apreensão seguida de arrependimento, como ao se atravessar uma rua no farol vermelho sem confrontar as distâncias entre uma margem e outra da via, e a do veículo em movimento e a si próprio. Flávio não fuma nem bebe, mas sempre imaginou que o efeito do primeiro trago seja algo similar à sensação de sair de uma livraria sem ser sucedido por alguém em seu encalço. Mas se a prática reiterada e constante já não mais o abala, isso não quer dizer que não sinta o efeito físico desencadeado: a respiração ofegante, as unhas cravadas contra a palma da mão, o movimento desordenado das sobrancelhas sob a armação dos óculos para miopia. Caminhando pelas ruas do Centro, aparenta uma convicção de destino que chega a enganar a si mesmo. Em meio à multidão, é só mais um indigitado neurótico que se desloca de um ponto de partida a outro de chegada, apenas um elemento do caos de cuja imperscrutável lógica emerge a desordem da metrópole. Assim que o ritmo dos passos diminui, a roda da cidade desacelera. Sentindo a respiração retomar o estado de repouso, Flávio retira um lenço de tecido do bolso, ergue os óculos e limpa o suor que começa a escorrer. Depois, dobra metodicamente o pedaço de pano e o devolve ao bolso da calça. Ele para no meio da calçada e gira a cabeça buscando se situar: “1.324 passos”, diz, resfolegando. Desliga, enfim, o piloto automático. O antigo TissotSeastar no pulso indica que ainda restam alguns minutos para o término do horário de almoço, de forma que ele decide comer alguma coisa no boteco da esquina. “O que vai ser, chefia?” Lápis preso na orelha, o garçom lava um copo, pano de prato imundo pendurado no ombro. Na rua, uma fila interminável de veículos que se acumulam diante do semáforo, sons dos mais variados matizes sobrepondo-se no infernal arranjo da sinfonia urbana. “Uma Coca-Cola e um misto-quente, por gentileza.” Flávio se acomoda no balcão. O garçom seca as mãos no pano sujo e se retira para o fundo do bar.
  • 2. Para quem passa pela calçada diante do boteco, a imagem captada de relance é desalentadora. Conforme o corpo relaxa do estresse, Flávio arqueia as costas, os cotovelos apoiados na base das coxas, o olhar perdido na direção do asfalto quente. As sobrancelhas grisalhas e volumosas, também arqueadas, fazem com que ele adquira contornos curvilíneos. Ao transeunte mais incauto possivelmente sobreviria a sensação de ter visto um “S” sentado ao balcão. Flávio se recompõe e espia ao redor, assegurando-se de que ninguém o observa. Em seguida, enfia com cautela a mão em outro bolso, retira uma folha de papel e desfaz duas dobras. Um sorriso se insinua no canto da boca: o branco gelo do pólen noventa gramas, a porosidade da textura, a fonte utilizada, a editoração. Cada detalhe é captado com as pálpebras entrecerradas, gerando o desfocamento que abstrai e dá qualidade artística. Somente após o cumprimento do rito é que ele passa a ler o texto do que deveria ser um romance, não tivesse a página sido meticulosamente amputada de seu livro. “Misto-quente e Coca-Cola.” O garçom larga o prato e a garrafa no balcão. “Ketchup?” Despertado do transe, Flávio constata com certa tristeza que, apesar de frequentar o mesmo boteco há anos, não passa de um completo desconhecido aos olhos do atendente. Mas o pesar de saber-se ignorado esvaece assim que ele retoma a degustação da página recém-subtraída, feito criança que se distrai com um brinquedo novo. O horário de almoço se esgota, Flávio guarda a folha na carteira, termina rapidamente o lanche e dispara para o trabalho. Minutos depois, ele entra na seção de processamento, situada no segundo andar da agência do Instituto de Seguridade. E, como em toda vez que se atrasa, Flávio chega de cabeça baixa, sorrateiro, buscando discretamente localizar o diretor da agência, Humberto Peçanha, seu carrasco particular. O diretor está sentado à mesa no fundo da seção, blazer pendurado no encosto da cadeira, à espera da oportunidade de flagrar o furtivo funcionário. “Junqueira!” Peçanha grita, mais alto que o necessário até para chamar a atenção de um surdo. Tamborila com os dedos no tampo da mesa. “Foi almoçar aonde? Em casa, porra?” “Desculpe-me, senhor Peçanha”, responde Flávio praticamente afônico, “é que precisei fazer uma coisa urgente, um compromisso...” “Sei. E os processos de abertura, que são urgentes também, já estão prontos?” Flávio acena com a cabeça, morde os lábios, levanta as sobrancelhas como quem não encontra palavras para responder. Mas a resposta nem é necessária. Humberto Peçanha sabe muito bem que o
  • 3. serviço não está pronto. Como sabe das dificuldades que o infortunado funcionário enfrenta com o expediente essencialmente burocrático daquele setor, a enfadonha rotina das requisições de aposentadorias, pensões por morte, por invalidez, auxílios-doença, auxílios-reclusão, auxílios-o-diabo-a-quatro. Movimentos idióticos, repetitivos, de elevação e compressão de carimbos, abertura e fechamento de pedidos de benefícios previdenciários deferidos, diferidos ou negados. “O que foi, Junqueira, engoliu a língua?” Peçanha fuzila Flávio com o olhar. “Bom, não quero nem saber. Quinta-feira eu quero tudo pronto na minha mesa para enviar o relatório da estatística, ok?” O diretor faz um movimento brusco com a cabeça, como quem tem uma linha com um anzol presa no queixo e acaba de fisgar um peixe. Flávio interpreta o movimento, confirma que entendeu e se retira. Abandona o campo de visão do diretor, não sem antes ouvir um comentário sarcástico a seu respeito: “Esse aí, sim, é o clássico estereótipo do funcionário público”. 18h15min. Flávio está dentro do ônibus da linha 354-L, que faz o trajeto do Centro da cidade à Zona Oeste. Dado o seu temperamento, ele aprendeu a se desligar do trabalho pontualmente às dezoito horas, momento em que passa o cartão de identificação pelo leitor óptico e registra sua saída. Para ele, acostumar-se a deixar os problemas profissionais no lado de dentro da repartição fora uma questão de sobrevivência, de preservação psíquica. Mas Flávio não tem exatamente consciência da própria fragilidade. Ele não é dado a grandes questionamentos. Desde cedo abraçara os dogmas religiosos, e tem no fiel cumprimento deles a redenção do seu livre-arbítrio. Não desconfia, por exemplo, de que sua mente recalcitrante seja como uma ampola de remédio, cujo rompimento depende apenas de uma pressão exata sobre a tampa. E que sua índole cordial e pacífica seja tão instável quanto a nitroglicerina, que não explode ao menor movimento como mostram alguns filmes hollywoodianos, mas que, se submetida a impacto suficiente... Bem, Flávio está no ônibus e, embora não seja do seu feitio, fica pensando nas palavras de Peçanha. Estereótipo do funcionário público. Não é expressão típica do diretor, ele pensa, embora não se possa supor que Peçanha desconheça o sentido da afirmação. Mas, em se tratando de quem se trata, a frase soou estranha. Flávio estala a língua, pega no bolso a página furtada e uma caneta na pasta. Anota a palavra “estereótipo” na margem da folha, sublinhando-a. Sua caligrafia, apesar de firme, é circular e larga como a de uma criança, praticamente sem inclinação.
  • 4. Flávio guarda de volta caneta e papel e põe-se a divagar enquanto o ponto não chega. Embora seja outono passado, a noite é quente e seca na cidade. Como de costume, ele chega por volta das sete e coloca um LP do João Gilberto para tocar. Notas dissonantes e o estalido das ranhuras do vinil embalam um banho rápido, cujos vapores escapam pelas frestas da porta e invadem o corredor, criando uma atmosfera onírica. Das paredes azuis aos móveis coloniais; do toca-discos ao tapete que imita os persas; da Santa Ceia esculpida na madeira aos porta- retratos sobre o bufê. Tudo na casa de Flávio Junqueira é anacrônico. A espessa camada de poeira denuncia a ausência de uma mulher. A ausência de marcas de dedo, que ali não moram crianças. Ao fundo, ao lado da poltrona de veludo, um longilíneo abajur emite uma luz fraca que empalidece o cenário. Ironicamente, o alto-falante reproduz “Chega de saudade”, gravação acústica de 1958. Flávio sai do banheiro usando apenas roupão e os indefectíveis óculos de fundo de garrafa, o cabelo ralo desgrenhado. Ao se encaminhar para o quarto, detém-se diante do tucunaré empalhado que adorna o corredor. Ainda que não seja o maior da espécie, trata-se de um peixe razoavelmente grande, de uns setenta centímetros, boca aberta, exibindo o maxilar serrilhado. O incomum atavio apresenta a postura retorcida que certamente adotara durante a batalha travada com seu algoz, o mesmo que agora resvala com os dedos a inscrição da placa do troféu: Três Marias – Rio São Francisco – 1989. Ao admirar o espécime com veneração, Flávio lembra como o instinto de sobrevivência do animal valorizara sua conquista. Tem certeza de que não existe outro peixe de água doce que possua tamanha força e destreza na superfície. Afinal, pescadores de todo o continente excursionam aos rios da Amazônia atrás da emoção de capturá-lo, quase sempre o troféu mais cobiçado. E o peixe, bom de briga, justifica a viagem. Quando fisgado, reage com fortes e intermitentes puxões na linha, enreda-se entre galhos e pedras embaixo d'água, debate-se para se livrar do anzol. Mesmo pescadores experientes podem perder a presa nesse confronto, tendo a linha arrebentada ou irremediavelmente emaranhada em algum enrosco. Porém, há muito mais em comum entre ele e o peixe do que Flávio possa imaginar. Assim como ele, o tucunaré também é um animal sedentário. Não realiza migrações. Em represas, recolhe-se raramente nas profundezas, optando pelas águas quentes da margem, escondido sob galhos e vegetação. Quando adulto, vive sozinho ou, no máximo, em pares, numa convivência fugaz e pontual, abandonando o hábito juvenil de nadar em cardumes tão logo atinja a idade madura.
  • 5. À margem do cotidiano, constatando a própria solidão, talvez Flávio nem sequer intua o quanto tucunaré ele próprio seja. E quem sabe seja justamente essa cruel identificação – por ele ignorada – a razão de a presa não ter sido, conforme os princípios da pesca esportiva, devolvida ao seu habitat tão logo se consumara a briga. Mas, como o tucunaré, Flávio Junqueira evita as profundezas e as águas frias do mergulho em si, de forma que, dando dois tapinhas nas costas do bicho, retira-se para o quarto. Quando as próximas notas anunciam Desafinado, e os estalidos do vinil ameaçam sobrepor-se à música, Flávio volta à sala assobiando e apanha a pasta de lona. Com a página furtada em mãos, ele abre uma gaveta do bufê repleta de centenas de outras páginas. Confere pela última vez o texto e coloca a folha por cima das demais, fechando a gaveta. Apaga o abajur, certifica-se de ter fechado a porta e, a caminho da cama, para rapidamente diante do tucunaré: “Vara médio pesada, linha de vinte e cinco libras, arranque com linha grossa de zero ponto setenta”, dispara para o peixe como se este o pudesse ouvir: “Isca de flystreamer médio!” E, sorrindo, volta para o quarto.