1) Os estados-nação surgiram nos séculos XVII-XVIII na Europa, em parte devido à expansão colonial.
2) A globalização comercial conduzida pelas coroas europeias no século XV, através da navegação e colonização, exigiu uma maior concentração de recursos e poderes no estado, levando ao surgimento de burocracias, impostos e exércitos permanentes.
3) Companhias como a Companhia Britânica das Índias Orientais assumiram inicialmente funções comerciais, mas acabaram por
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O futuro precário do estado-nação (1)
A descolonização e os independentismos recentes têm a constituição de
estados-nação como ponto alto, quiçá definitivo para a bem-aventurança
dos povos, replicando a construção dos estados-nação na Europa, onde
foram objeto de um lento processo, desde há alguns séculos atrás.
Atualmente, a globalização desenvolve processos de subalternização
dos estados-nação, com a criação de normas e instituições de âmbito
plurinacional ou internacional, dando como adquirido que o plano dos
estados-nação é demasiado estreito.
Entre o estado-nação do passado e a unificação e uniformização do
planeta levadas a cabo pelas multinacionais e pelo capital financeiro,
onde se situam os povos e as pessoas? E, de um ponto de vista activo e
prospetivo, que atitudes e escolhas deverão os povos assumir?
Sumário
A - Notas para o nascimento do estado-nação
1 - A expansão colonial conduziu à construção do Estado moderno
2 - O Estado, elemento essencial para a acumulação
3 - Nações e estados-nação
4 – O engrandecimento de um aparelho de estado envolve sempre violência
5 - L’Etat, c’est moi!
6 – A importância do patriotismo
7 - O início do capitalismo industrial
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A - Notas para o nascimento do estado-nação
1 - A expansão colonial conduziu à construção do Estado moderno
Os estados-nação surgiram nos séculos XVII/XVIII. Até aí, na Europa, desde o
desmembramento do Império Romano, existiam territórios tutelados por um rei,
aceite como agregador e árbitro por uma nobreza de possuidores de terra, a quem
uma multidão de camponeses pobres estava vinculada, numa relação de
vassalagem. Para essa multidão, a relação com o rei era muito distanciada e
ocasional, enquanto o apego à terra, à comunidade próxima onde se inseriam, era
a única relação de pertença sentida e solidária, embora modelada pelas exigências
dos senhores.
As disputas dinásticas entre casas reais, as junções e partições dos domínios
senhoriais só atingiam a grande massa da população se daí sobrassem acréscimos
nas já pesadas rendas, censos, multas, direitos e contribuições especiais exigidas
pelo senhor das terras; ou, se nessas disputas, as operações militares
provocassem a destruição de cultivos, saques e violações, geradoras de períodos
de fome.
A assunção de pertença a uma entidade alargada e abstrata – o estado-nação -
como hoje acontece, não existia, porque também não existia um Estado como
estrutura administrativa, coerciva e tributária que lhe desse corpo ou visibilidade e,
vincasse essa pertença, em antagonismo com outras. Não existia o estado-nação.
Somente existiam súbditos do rei e dos senhores, indivíduos concretos, exigentes
de obediência pessoal; mas, não emissores de cartão de cidadão, passaporte ou
número de contribuinte, entre outros modos de vínculo obrigatório a um estado-
nação.
A dialética entre os camponeses e os senhores feudais oscilava entre a tolerância
dos primeiros e a cupidez dos segundos que, em caso de desencontro,
regularmente provocava grandes e sangrentas revoltas de camponeses. Por
exemplo, em França, essas revoltas sucederam-se nos séculos X a XV, com relevo
para a Grande Jacquerie, quase em simultâneo com ações similares dos
camponeses ingleses sob o impulso de Wat Tyler e John Ball. Em Aragão, em
finais do seculo XV, a luta dos remensas, pelo direito de não pagar um tributo ao
seu senhor para puderem abandonar a terra a que estavam adstritos, durou mais
de dez anos. Na Alemanha, os camponeses tentaram aproveitar as movimentações
decorrentes da secessão luterana para se libertarem dos senhores mas, Lutero
preferiu ajudar a nobreza alemã no seu propósito de abandono da suserania papal.
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Nestas lutas, os revoltosos não se dirigiam contra um longínquo rei, a quem
pediam intervenção mas, contra os senhores, seus opressores diretos.
O predomínio de uma economia agrária de base local não gerava grande volume
de trocas com regiões muito afastadas, daí resultando o abandono, a má qualidade
e a segurança nas estradas e caminhos, frequentadas por bandos de salteadores.
Na Europa, estava-se longe da rede de estradas que ligava as várias regiões do
Império Romano e por onde circulavam mercadorias e soldados. O centro de um
domínio real era o local onde estava o rei e a corte que, com o seu poder de
compra, atraia o comércio de bens de luxo e os suprimentos para a soldadesca;
onde vivia o rei era o que hoje se chamaria a capital administrativa do reino.
O elemento perturbador desta ordem eram as cidades onde se concentrava a
riqueza gerada no comércio distante e na finança, como em Itália ou na Flandres,
cujos magnatas se constituíram igualmente como senhorios, acudindo com
empréstimos a nobres e reis em dificuldades. O comércio, a produção artesanal, a
construção naval, a navegação e as universidades criaram sociedades
cosmopolitas que exigiam mais força de trabalho, atraindo gente do campo, à
procura de uma vida melhor, fugida das crises alimentares, das guerras ou, da
cupidez dos senhores.
Foi sob a tutela real que se chegou à abertura do caminho marítimo da Europa
para o Oriente e à descoberta da América; o facto de esses acontecimentos terem
partido das coroas ibéricas prende-se com aspetos particulares. Primeiro, a
tradição expansionista bem marcada em Castela, à custa dos reinos muçulmanos,
depois de coartadas idênticas possibilidades de expansão, quer a Portugal, quer a
Aragão; e que motivou as primeiras incursões portuguesas em Ceuta e Tânger,
ainda com um caráter típico dos rituais aristocratas, da cavalaria. Em segundo
lugar, porque a luta secular dos reinos cristãos do norte da Península contra os do
sul, muçulmanos, criou um frequente estado de guerra que facilitou a concentração
do poder dos reis, em Portugal e Castela-Leão, em detrimento da gestação de uma
nobreza feudal típica de Além-Pirinéus. E, em terceiro lugar, estando os países
peninsulares em presença de um mar aberto, os custos da sua exploração seriam
sempre elevados e de rendabilidade não assegurada, próprios portanto, para
serem levados a cabo pelas casas reais ou, por um potentado chamado Ordem de
Cristo, dirigido pelo infante D. Henrique.
Foram as Coroas que armaram os navios e, quando nas Américas a exploração
colonial exigiu capitais para além das capacidades reais, passou-se a nomear (em
Espanha) encomenderos com direitos sobre terrenos e seus habitantes no novo
continente, que se encarregavam de armar navios e mobilizar dinheiro para o
efeito, cobrando a Coroa uma parte das riquezas obtidas do saque. E existiam
também contratos (capitulaciones) entre o rei e aventureiros como Cortez e Pizarro,
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para a procura de ouro e prata, em que à coroa cabia uma parte. Em Portugal, o rei
instituiu Cartas de Doação a donatários vindos da pequena nobreza, com direitos
hereditários sobre o território brasileiro e a quem competia dar ao rei 20% do ouro
ou pedras preciosas encontradas ou, 10% se se tratasse de produtos da
exploração agrícola. Ainda em Portugal, a estratégica construção naval estava
instalada junto ao paço real para que a Coroa mais facilmente controlasse o seu
desenvolvimento e viesse a cobrar no subsequente comércio de escravos, ouro ou
especiarias. Nesta lógica, ainda com traços medievais, toda a terra era do rei que
cedia os seus direitos no âmbito de contratos e concessões.
Nesse âmbito, a proveniência, a “nacionalidade” era irrelevante; os Reis Católicos
não tiveram qualquer problema em contratar o genovês Colombo ou o português
Magalhães, tal como a Inglaterra contratou o veneziano Cabot e o infante D.
Henrique contratou um traficante de escravos veneziano, Cadamosto. Uma
situação que hoje, com a erosão da relevância dos estados-nação e o domínio da
lógica da globalização, se voltou a tornar banal, com a lenta formação de vastas
elites globalizadas que trabalham para empresas transnacionais, bancos globais,
instâncias internacionais, para além, no caso europeu, das relações criadas através
do Erasmus.
Esse enorme alargamento do espaço de atuação, de saque colonial e de grande
diversificação de bens transacionados, incluindo o volumoso e rentável tráfico de
escravos, constituiu o início da globalização e deu um decisivo impulso ao
capitalismo comercial, que ainda não era dominante na Europa. E, daí que se
tenha gerado grande concorrência entre as coroas europeias da fachada atlântica,
todas procurando territórios na América, muitas vezes na perspetiva mercantilista
de encontrar ouro; todas procurando fixar-se nas ilhas das especiarias, afastando a
concorrência; todas semeando os litorais com fortalezas para dominarem as rotas
marítimas; todas armando os seus próprios corsários ou combatendo os piratas;
enfim, estabelecendo bases em África, subornando sobas com armas e álcool,
para a entrega de escravos em troca. Tudo isso alimentou uma acumulação de
capital que viria a estar ligada à agricultura de plantação, à exploração mineira, à
pilhagem que, no que respeita ao capitalismo, foi uma acumulação primitiva. O
capitalismo afirmava-se através da violência e do roubo; uma marca que nunca
abandonou.
Essa dimensão intercontinental e global exigiu grande concentração de meios –
navios mais robustos para conter grandes lotes de mercadoria e canhões,
guarnições espalhadas por um vasto espaço e armamento para alimentar um
esforço guerreiro continuado pelo controlo do comércio e das terras colonizadas,
para além das disputas dinásticas e de influência entre as várias casas reais
europeias; disputas que se vieram a articular, no século XVI, com espadas e
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canhões, como argumentos essenciais para definir quem detinha a pureza
religiosa.
As necessidades da realeza aumentaram substancialmente, no âmbito da defesa,
com a constituição de exércitos permanentes e marinhas de guerra onde era
frequente a incorporação de mercenários, pagos com o ouro ou a prata vindos das
Américas e do Golfo da Guiné, espalhados pela Europa como meios de pagamento
de transações comerciais. O endividamento cresceu bastante junto de banqueiros
italianos, flamengos ou, sob a forma de letras de câmbio; já não bastava a
desvalorização do valor da moeda, reduzindo-lhe o teor em prata, metal entretanto
embaratecido pela larga extração em minas americanas, como as de Potosi.
Assim, a carga fiscal, sob a forma de tributos e direitos no âmbito do comércio
colonial tinha de crescer substancialmente, criando-se sisas, dízimas e impostos
alfandegários; o que implicava funcionalismo, técnicos, ministros, contabilidade e
orçamento, uniformização de pesos e medidas, fiscais e, arrolamento de capelas,
albergarias, fogos e moradores, como no Numeramento em 1527/32, em Portugal,
para aplicação de um antepassado do IMI. Surgia o aparelho de estado, finava-se a
relação típica dos tempos medievais, entre a punção fiscal e os gastos com a corte
e a defesa.
2 - O Estado, elemento essencial para a acumulação
O desastre da Invencível Armada debilitou irreversivelmente o poder das marinhas
espanhola e portuguesa, deu supremacia nos mares à Inglaterra e, indiretamente
também à Holanda. Tendo em conta as distâncias, as tempestades e os riscos de
intrusão no Índico, então tomado como área de jurisdição portuguesa (no que aos
europeus dizia respeito), ingleses e holandeses criaram as respetivas Companhias
das Índias Orientais, no início do século XVII, como forma de unificação de
esforços entre os mercadores, com uma supervisão distanciada dos respetivos
Estados. Em ambos os casos, a ideia inicial era a do comércio e não a da
ocupação de território. Por outro lado, houve uma partição geográfica, com a
Companhia inglesa a concentrar os seus negócios na Índia e na China, envolvendo
o chá, a seda, o algodão, o sal e o ópio; enquanto a Companhia holandesa se
focava na área que hoje constitui a Indonésia, para comercializar a pimenta, o
sândalo, a noz-moscada e o cravinho, numa lógica de plantação, controlando o
comércio longínquo, com a Europa e, particularmente, entre as ilhas do arquipélago
de Sunda.
A Companhia inglesa foi constituída com capitais de nobres e burgueses, no
âmbito de concessão real, em regime de monopólio, com pena de confisco para os
prevaricadores. Inicialmente, o objeto da Companhia era o comércio mas, em
meados do século XVIII, as rivalidades entre os frágeis estados indianos levou-a a
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armar tropas (basicamente com soldados indianos) e assumir a administração
direta do território ocupado. Só em 1858 o Estado inglês assumiu, diretamente, até
às independências, o governo da Índia, do Raj.
A administração colonial no Índico, de ingleses e holandeses, procurava ser
discreta e pouco interventiva, dado que a numerosa população dos territórios seria
desastrosa para os europeus em caso de revolta em larga escala, dadas as
limitações das potências coloniais em projetar grandes meios bélicos em tão
extensas e populosas áreas. Se os ingleses ainda deixaram na Índia a sua língua,
os holandeses nunca procuraram sequer transmitir a sua aos povos subjugados,
mantendo uma dominação muito distanciada e o malaio como a língua franca na
região.
Numa fase mais recente, o poder colonial da Companhia das Índias, em interação
com assumidos capitalistas conduziu à ruina da indústria têxtil indiana e ao
empobrecimento dramático do povo, para benefício das fábricas de Manchester,
onde o capitalismo industrial dava os primeiros passos, introduzindo novas formas
de exploração do trabalho alheio.
Ainda na Inglaterra do século XVII o rei Carlos I julgava-se com todos os direitos de
aumentar os impostos e punir os opositores, como era a regra da época, das
monarquias absolutas feudais. A existência de um Parlamento, ainda que
constituído pelo clero e pela nobreza, dificultou-lhe a tarefa, acabando mais tarde
por ser julgado e condenado à morte, dando lugar à instituição de uma república,
onde Cromwell surgiu como homem forte, sobretudo depois de ter domesticado o
próprio Parlamento.
Cromwell criou um exército profissional e, apoiado por burgueses e camponeses
anulou os direitos feudais sobre os últimos e confiscou as terras da Igreja
Anglicana, para garantir um melhor rendimento da terra; e, sublinhamos, promulgou
o Ato de Navegação (1651). Este, instituía o monopólio do comércio marítimo entre
a Inglaterra e as suas colónias para os navios ingleses e só admitia nas suas
exportações ou importações navios seus ou da outra parte, com a exclusão de
terceiros, o que redundou em prejuízo para a Holanda. Esses tráfegos reservados1
iam ao encontro dos interesses da burguesia comercial, ávida em desenvolver o
comércio marítimo e da posse de terras coloniais, sem concorrência exterior. O não
domínio das terras propícias ao extrativismo do ouro e da prata (não existentes nas
1
Em Portugal, o monopólio do tráfego marítimo com as colónias durou até à independência daquelas.
Estava entregue a duas companhias de navegação que, pouco depois foram dadas como falidas – a CTM e a
CNN; e que, em 1975 haviam sido… nacionalizadas, tornadas “nossas”, como herdeiros das perdas
inerentes à descolonização, poupando-se assim os grupos económicos do fascismo à assunção dessas
perdas.
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colónias britânicas) veio a promover colónias de povoamento na América do Norte.
Mais tarde, a produção manufatureira, protegida da concorrência viria a fomentar a
acumulação capitalista associada a um território unificado e bem delimitado, com o
crescente domínio dos oceanos.
3 - Nações e estados-nação
Os exemplos atrás referidos mostram como as comunidades humanas europeias
passaram da vassalagem face a senhores feudais, estes, com um suserano,
distanciado do povo, a vassalos diretos desse suserano (rei), com o esbatimento
ou desaparição dos vínculos feudais.
Uma nação corresponde a um povo, à partida ligado a um local comum de
nascimento (natio), cuja convivência duradoura gerou uma cultura própria; e que
pode ou não, conduzir à edificação de um estado-nação, sem que haja qualquer
causa-efeito daí decorrente. Hoje, no século XXI do neoliberalismo e das
alterações climáticas, há muito mais nações sem Estado do que estados-nação; e
no seio de muitos destes, convivem, pacificamente ou de modo conflitual, várias
nações. Por outro lado, os estados-nação vão cedendo a sua suserania a
instituições globais, num processo de interligação, em rede, protagonizado por
empresas multinacionais e pelo sistema financeiro, que funcionalizam e
domesticam ao seu serviço as classes políticas nacionais.
Na génese dos estados-nação europeus, em geral, os territórios basearam-se nas
áreas correspondentes à suserania de uma casa real, com mais ou menos
alterações, resultantes, sobretudo de numerosas guerras. Porém, nesse processo,
muitas dessas soberanias, umas com menos território ou população, outras com
mais, desapareceram, diluídas num ou mais estados-nação, como o reino das
Duas Sicílias; outras, mesmo com uma dimensão média assenhorearam-se de
territórios e populações muito superiores, eliminando pelo caminho, muitos
senhorios, como foi o caso da Prússia.
Dentro da mesma lógica senhorial, nos antigos territórios colonizados, os estados-
nação daí resultantes herdaram as fronteiras estabelecidas pelas potências
ocupantes, a régua e esquadro, sem qualquer preocupação se daí resultaria ou
não uma separação política de uma nação, de uma tribo, de uma cultura resultante
de ancestral convivência; ou mesmo, se a linha divisória viria a separar partes de
uma mesma aldeia. As vantagens tecnológicas e bélicas induziam a uma
superioridade dos “brancos” que era acompanhada por um misto de desprezo e de
punição, pois “as raças inferiores” não correspondiam às virtudes da civilização dos
europeus ou dos seus descendentes, made in USA. Essas atitudes viriam, a partir
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do século XIX, a marcar também o espírito dos japoneses - mesmo que de “raça
amarela”- no seu expansionismo na Ásia, nomeadamente face aos chineses…
No âmbito dessa dita superioridade civilizadora, as potências coloniais deixaram,
em África sobretudo, estados-nação, onde nunca eles existiram, porque os povos
durante séculos procederam às suas trocas comerciais, de ideias, de corpos e de
conflitos, valorizando essencialmente as redes, os itinerários, as línguas locais,
como as línguas francas; e pouco ou nada, atentos a algo que se equiparasse a
fronteiras. A construção de estados-nação, cerca de cinquenta anos após a
descolonização, revelou inúmeras guerras civis, impôs limitações aos tradicionais
corredores comerciais e criou outros, para o tráfico de armas, drogas e candidatos
à entrada na Europa; favoreceu genocídios, deslocações massivas de gente em
fuga, implantação de cliques corruptas protegidas pelo capital global ou pela antiga
potência colonial; originou exércitos nacionais ou privados especializados na
predação e no massacre; gerou crianças-soldados, emigração compulsiva,
intervenções militares exteriores (agora monitoradas pelo Pentágono, via Africom),
refugiados e, nos países de imigração, exclusões, exploração, racismo, gente
“inexistente” denominada “sem-papéis”.
A distinção entre os seres humanos, em função da “raça”, qualificada basicamente
pela cor da pele, tem sido um instrumento de hierarquização social e discriminação,
surgida na sequência do domínio colonial; contudo, em países como os EUA, as
pessoas ainda são confrontadas para uma autoqualificação racial, surgindo daí
casos de impossível qualificação, dentro do “catálogo”, tal como de pessoas que
recusam outra qualificação que não seja a de ser humano.
No entanto, essas divisões arbitrárias não se cingem aos territórios outrora
colonizados. Em Portugal, no Alto Trás-os-Montes conhecemos uma aldeia dividida
pela fronteira – Rio de Onor na parte portuguesa e Río de Onor na parte leonesa
(com acento agudo no i como é devido, em castelhano); Rio de Onor reporta a
Bragança, sede de concelho e Río de Onor reporta a Puebla de Sanabria, província
de Zamora, comunidade de Leão e Castela. Em outras situações, a fronteira era
totalmente ignorada pelas pessoas, que se mudavam para o outro lado, com gado
e alfaias, em função das investidas da punção fiscal ou na perspetiva de
recrutamentos para a tropa.
Os estados-nação, nos seus primórdios, passaram a incorporar uma ou mais
nações englobando gente de várias culturas, línguas e tradições, como na
Inglaterra do século XVII ou em Espanha, desde os primórdios da sua constituição.
Por regra, os estados-nação tendem a gerar um totalitarismo unificador,
uniformizador, destruindo ou dificultando a expressão das nações englobadas, em
detrimento de uma que se pretende hegemónica, seja ou não maioritária; essa
pulsão, tanto se pode manifestar através de receios centrífugos (separatismos ou
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pendor para a incorporação num outro estado-nação, vizinho) ou centrípetos
(reivindicações expansionistas, de incorporar partes de outros estados-nação
vizinhos). Essa pulsão territorial expansionista correspondia à inclusão de mais
força de trabalho, recursos naturais, subjugação de outras classes possidentes;
mais mercado, como se diz hoje. Em regra, qualquer estado-nação assume-se
como avaro zelador do seu território e dos destinos dos seus “súbditos”; tal como
guloso candidato ao controlo de territórios alheios, em capturar novos súbditos, sob
qualquer pretexto, para enriquecer os seus ricos e, aumentar a ração e o prestígio
da sua classe política. A globalização, contudo, tende a dinamitar essa construção
– estado-nação – e a demonstrar a sua vulnerabilidade ou mesmo inconveniência
ou inutilidade, não só para os povos – para os quais sempre constituiu uma prisão -
como perante o capitalismo globalizado de hoje, como assinalaremos no contexto
deste trabalho.
Assim, na Grã-Bretanha actual convivem escoceses, galeses e irlandeses (do
norte), com as suas línguas2
e culturas; mas o predomínio político, económico e
cultural dimana da Inglaterra e, mormente da emblemática e gigantesca Londres.
Em França, os monarcas e, mais tarde os republicanos, instalados em Paris
acharam por conveniente destruir no sul, a cultura do provençal, da langue d’oc,
espremer para um canto os bretões, esquecer a cultura alemã da Alsácia ou dos
bascos no sudoeste e impedir qualquer devaneio soberanista dos corsos;
remetendo as respetivas línguas para o olvido do “não reconhecimento”. Por seu
turno, em Espanha, a classe política dominante, sediada em Madrid, sempre
sonhou com uma homogeneidade impossível, mesmo tendo utilizado meios brutais
no tempo do fascismo, como a proibição do ensino e da utilização em público das
línguas das nações integradas sob a tutela de uma monarquia sem rei; uma
integração que Rajoy e o seu nacionalismo arreigado, típico dos fascismos – tenta
manter, com sucesso mais que duvidoso a não ser que coloque na cabeça o
tricórnio de Franco e restaure os fuzilamentos, como aventado pelo seu confrade
Casado. No Brasil como nos EUA, as nações índias tentam sobreviver, no primeiro
caso, às investidas do agro-negócio que lhes destrói o habitat e, no segundo, como
zoos ou reservas.
4 – O engrandecimento de um aparelho de estado envolve sempre violência
A competição por territórios, mormente coloniais, transformou a gestão das
despesas do rei e da corte, numa estrutura burocrática e financeira complexa, com
gastos militares e administrativos elevados, a exigir uma máquina de cobrança de
rendimentos, adequada aos meios da época mas, muito zelosa de obter o
adequado aos vultuosos gastos exigidos pelas circunstâncias. Como se disse atrás
2
Para além das pequenas comunidades que falam manx (ilha de Man) ou cornish (Cornualha)
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(ponto 1) a carga fiscal e o aparelho para a sua recolha restrita ao território original,
mesmo tendo crescido bastante, não era suficiente para as necessidades das
finanças reais.
Uma fonte essencial de recursos financeiros a que os Estados recorreram de forma
massiva foi através do tráfico de escravos. Segundo Philip D. Curtin na sua obra
The Atlantic Slave Trade foram despejados, entre os séculos XVI e XIX, nas
colónias espanholas da América 1.6 M de escravos africanos, nas colónias
portuguesas 3.6 M, nas inglesas 2 M, nas francesas 1.6 M, nas holandesas 0.5 M,
num total de 9.2 M de pessoas. Isto, esquecer que 20 a 40% dos embarcados em
África morriam durante uma viagem de 30/50 dias durante a qual jaziam
acorrentados no porão. Só de Liverpool, nos doze anos terminados em 1707
zarparam para África 5300 embarcações de negreiros.
Os Estados europeus, durante séculos cobraram aos negreiros elevadas quantias
como licenças. A Fazenda espanhola, para além de cobrar um imposto de 100
pesos por “peça” (um standard de escravo, de 15/30 anos e com saúde) recebia
ainda 2.5 a 5% de imposto de venda e transação (o IVA da época…) no embarque
e 5 a 7.5% no local de destino, nas Américas. O recibo do pagamento do imposto
consistia… numa marca de fogo na pele do escravo. Se se pensar que à chegada
a Cartagena de las Índias uma “peça” era transacionada por 300 pesos, que no
Chile chegava a 600 e nas minas de Potosi o preço chegava aos 900 pesos, pode
imaginar-se a enorme margem de lucro dos negreiros e das receitas estatais que o
negócio permitia.
A questão da escravatura, como a ocupação da terra das comunidades nativas das
Américas, revela que a acumulação capitalista teve um primordial início no seio da
maior violência e no roubo; a que se seguia alguma redistribuição “democrática”
com os assaltos piratas aos galeões da prata vindos da América e a resultante dos
pagamentos em ouro dos deficits comerciais. Como as potências ibéricas tinham
recebido, importada do mundo muçulmano - e antes da Europa do Norte,
tipicamente feudal - a lógica do boullionismo, a extração de metais preciosos e os
altos lucros do comércio das especiarias e dos escravos permitiu-lhes negligenciar
a manufactura e as medidas protecionistas para a importação de bens acabados, o
que a Inglaterra não fez. Nos dois países ibéricos, a erosão do poder militar ou do
controlo dos mares, a continuidade do extrativismo colonial, o desinteresse por
uma reforma da posse da terra, a continuidade de um poder real conservador e,
entretanto, enfeudado à perseguição das elites mais endinheiradas e
empreendedoras, em nome de um proselitismo religioso, selaram a decadência e a
sua chegada mais tardia – e subalterna - ao capitalismo.
5 - L’Etat, c’est moi
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A edificação dos estados-nação na Europa e a acumulação de capital gerada em
torno do comércio negreiro e na sequência do trabalho escravo são peças
essenciais para o futuro desenvolvimento do capitalismo. Aliás, mesmo hoje e
apesar das altas tecnologias, a economia do crime representa cerca de 15% do
PIB mundial e o capitalismo não dispensa as “peças” do século XXI, os refugiados,
os imigrantes de África ou do Médio Oriente que tentam chegar à Europa; nem os
latino-americanos que tentam a sua sorte nos EUA; para não referir os tráficos de
prostitutas, crianças de órgãos e outros “nichos de mercado”. O sistema financeiro,
hoje, não se dispensa do protagonismo na integração (lavagem) de tamanho
volume de capitais; e as classes políticas dos estados-nação não cobram imposto
aos cartéis de traficantes mas, sabem que o dinheiro envolvido é branqueado nas
filiais offshore dos seus bancos e que muitos empresários ganharão
competitividade com o recrutamento ou mesmo a escravização das “peças”, o que
é fundamental para fazer crescer o sacrossanto PIB.
Para que se mantivesse um superavit no comércio externo com uma
correspondente entrada de ouro, as importações de matérias-primas teriam de ser
objeto de monopólios e de subsídios, concedidos pelo Estado, ao mesmo tempo
que se combatia a importação de bens manufaturados, através de tarifas
alfandegárias. A concentração de dinheiro no comércio viria, gradualmente, a
permitir um novo modelo de produção material, com a mercantilização da terra e
transferência de mão-de-obra agrícola, desnecessária no campo, para a produção
industrial; esse novo modelo acrescentou aos poderes do Estado todo-poderoso,
absolutista, os instrumentos de regulação do trabalho; e isso, fora e contra as
corporações de artes e ofícios, que definharam até desaparecerem na
generalidade, embora repescadas mais recentemente com as ordens profissionais,
como formas de controlo do acesso ao trabalho dos seus (obrigados) associados.
Esse papel de regulador, financiador, protagonista no que se pode chamar política
industrial e no equilíbrio financeiro com o exterior, juntou-se aos poderes mais
antigos, no âmbito do controlo das fronteiras, de manutenção da ordem, dos
tribunais e da guerra. Em conjunto, consubstanciaram a base do protecionismo e
da afirmação do estado-nação, face aos concorrentes; marcaram o poder
absolutista, bem expresso por Luis XIV, na segunda metade do séc XVII, quando
terá dito “L’Etat c’est moi”.
Em Portugal, pode acompanhar-se o desempenho de um país e uma economia
que construiu a peculiar situação de colonizador e colonizado. O tratado de
Methwen, em 1703, traduz, claramente, uma aplicação da (desigual) divisão
internacional do trabalho, em que a manufactura de têxteis seria uma
especialização inglesa enquanto Portugal se dedicaria à produção de vinhos, o que
agradava aos grandes senhores da terra duriense. Poucos anos antes (1690)
suicidava-se o conde da Ericeira, grande promotor da indústria em Portugal,
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incapaz de vencer a influência inglesa e a desestabilização patrocinada pelos
adversários da manufatura do têxtil na Serra da Estrela que chegaram a obter o
apoio da Inquisição uma vez que alguns industriais eram… cristãos-novos.
A incapacidade da sociedade em impor uma via de desenvolvimento capitalista
articula-se com a facilidade com que o fluxo de ouro brasileiro permitia recorrer à
importação e colmatar os deficits resultantes das trocas desiguais com a Inglaterra.
Por outro lado, o ouro brasileiro foi permitindo grandes gastos em construção que
não geraram desenvolvimento industrial em Portugal mas, produziram
mamarrachos como o Convento de Mafra; do mesmo modo, o fluxo de ouro não
evitou que os lisboetas, para terem um aqueduto que lhes trouxesse água em
abundância, tivessem de o pagar com impostos específicos sobre os bens
alimentares, durante muitos anos. Mais tarde, em meados do século XIX, a
construção de linhas de caminho-de-ferro ligando áreas rurais – e não centros
urbanos industrializados (inexistentes) - veio a demonstrar a sua desadequação
quando se observou o abandono dos campos, a fuga para o litoral ou para a
emigração.
Os pobres diabos que dizem “o Estado somos todos nós” não se julgam Luís XIV,
nem se mascaram de tal pelo carnaval. Mas imputam ao Estado um espírito
justiceiro, igualitário e protetor sobre todos os súbditos que, na sua concepção,
estariam representados e protegidos pelo Estado. Mesmo as funções estatais no
âmbito da educação, da saúde ou da ação social, a favor da população, mormente
trabalhadora, nunca deixam de ser integradas nos interesses mais gerais da
acumulação capitalista. O Estado sempre se revelou oligárquico e executor das
medidas que interessam ao capitalismo, através dos elementos da classe política
que o detêm, no sentido de manter a turba mansa, entre o pau e a cenoura. Os
referidos pobres diabos, muitos dos quais se dizem “de esquerda”, são como os
escravos, agradecidos pela malga oferecida pelo dono, a quem não contestam a
legitimidade da sua posse.
6 – A importância do patriotismo
A ligação entre o poder real, a burguesia comercial e, mais tarde, a industrial e a
financeira, exigia um Estado poderoso perante o exterior e que disputasse com os
rivais os mercados, as colónias e mesmo o espaço físico europeu, no âmbito de
sucessivas crises de sucessão real, promotoras de alianças antagónicas. Qualquer
estado-nação nascia e afirmava-se na desconfiança e no antagonismo com os
rivais, criando um aparelho cada vez mais poderoso, invasivo e exigente face à
população abrangida; porém, não bastava uma relativa unidade das várias facções
da burguesia e da aristocracia em torno do omnipotente rei, contra as ameaças
externas ou para monitorar as suas próprias ambições face ao exterior. Era preciso
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envolver, engajar, a grande massa da população dos campos e das cidades nesse
desígnio “nacional” para que aceitassem, sem protestos ou revoltas, a carga fiscal,
o recrutamento militar e o domínio das classes possidentes; e, para isso tornou-se
necessário incutir um elemento novo nas mentes dos povos – esse sentimento
arreigado e irracional de pertença, o patriotismo; e, através deste, a subordinação
às camadas dirigentes e ao rei, em particular, como encarnação viva da pátria.
Pretendia-se que as pessoas insufladas de patriotismo respeitassem fronteiras,
aceitassem a perda de autonomia nas suas vidas, a categoria de súbditos do
Estado, de membros de um estado-nação3 no âmbito do qual são fragmentados
em várias categorias – consumidor, contribuinte, espectador, eleitor, devedor,
colaborador, desperdício (ver O Homem, Ser Social e Fragmentado)
Como súbditos, teriam de estar dispostos a antagonizarem-se com gente
desconhecida que tivesse sorvido o mesmo elixir patriótico mas, num frasco
diferente, com o rótulo de outro estado-nação, em conflito com a sua “pátria4
”. De
um ponto de vista mais restrito e de captura ideológica, o patriotismo não é
diferente, nem mais inteligente do que o clubismo; embora as classes políticas
exaltem o primeiro e se manifestem mais contidos quanto ao segundo, não
deixando de aceitar como úteis, as descargas de tensões dos mais fervorosos
adeptos. A adopção de uma nacionalidade é como a “raça”, divide a espécie
humana, espartilha as solidariedades e estilhaça a Humanidade.
3
Na verdade, as deserções face às guerras entre os estados-nação demonstram que há muita gente pouco
disposta a dar a vida por uma abstração que capeia interesses muito próprios de uma minoria privilegiada,
que assim se acha com o direito de envolver, no âmbito desses interesses, gente que nada tem a ver com
eles, nem com as suas fortunas. Os desertores e refratários são tratados pelos regimes políticos como
cobardes e antipatriotas, um superlativo da ignomínia para os regimes políticos, o pior dos anátemas; ou,
na hipótese mais benévola são ignorados mesmo que a História lhes tenha vindo a dar razão em não terem
participado ao serviço de opressores, como no caso da guerra colonial que Portugal levou a cabo nas
colónias entre 1961 e 1974. Aliás, em Portugal, o regime instaurado em 1974, mostrou-se discreto quanto
aos refratários, desertores e presos políticos pelo regime fascista, tanto quanto aos agentes da pide, aos
militares que cometeram atrocidades e crimes de guerra ou, aos membros da oligarquia política do
fascismo. Sobre este tema, anotámos estes testemunhos:
http://g1.globo.com/Noticias/Mundo/0,,MUL912907-5602,00-
BELGICA+HOMENAGEIA+DESERTORES+DA+PRIMEIRA+GUERRA+MUNDIAL.html
https://www.em.com.br/app/noticia/internacional/2014/06/28/interna_internacional,542164/confraternizacoes-
motins-e-desercoes-para-expressar-rejeicao-a-guerra.shtml
http://rr.sapo.pt/noticia/66884/o_pais_ainda_nao_absolveu_os_desertores_da_guerra_colonial
https://br.reuters.com/article/entertainmentNews/idBRKCN0ID2FK20141024
http://col2.com/bandas-de-desertores-en-tierra-de-nadie-durante-la-primera-guerra-mundial
4
A própria designação de pátria revela a prevalência do machismo, a secundarização da mulher, do
feminino que, até ver ainda não foi espoliado nas designações de mãe-natureza ou terra-mãe.
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Ao inventarem o patriotismo, as burguesias europeias criaram também uma forma
de embaratecer as guerras em que frequentemente se envolviam - o serviço militar
obrigatório - nos tempos modernos inventado pela França, no seguimento da
Revolução Francesa. Com as novas tecnologias da época, a guerra exigia muitos
soldados, a artilharia gerava muitas baixas e tornava impossível o recrutamento de
dezenas ou centenas de milhares de mercenários, porque não havia candidatos
suficientes; e, sendo o risco elevado, os salários teriam de ser forçosamente
elevados, no seio da célebre lei da oferta e da procura.
Os capitalistas, que nunca foram desastrados na contabilidade, viram que seria
mais barato convencer ou obrigar uma população a defender a pátria “comum”,
incutindo-lhe o tal sentido de pertença para que aceitassem o sacrifício e a ideia de
que o rei e os possidentes estavam empenhados na defesa do povo quando na
realidade, quem tinha bens e interesses em jogo eram aqueles e não a grande
massa do povo.
Mais tarde, a escola foi um instrumento essencial para incutir conceitos tão
inquinados, como a raça e o patriotismo, num contexto viciado de exaltação dos
feitos históricos da pátria; uma pátria em que os “nossos” soldados brilharam,
foram heróis e, os adversários, esses, foram derrotados, mesmo em maioria, pela
valentia e espírito de sacrifício do nosso povo, bla bla. E quando a derrota foi
inapelável, seguida de subjugação secular, cai-se no saudosismo, no lamento,
como transposto na metáfora do “chegar numa manhã de nevoeiro” referente a um
desejado regresso do rei Sebastião, derrotado em Marrocos e que, voltando
retiraria legitimidade à investidura de Felipe II de Espanha como rei português. As
derrotas podem também vir a alicerçar xenofobia, como o que ocorreu séculos
depois da derrota sérvia face aos otomanos na batalha do Kosovo Polje. No
seguimento, aqueles que se tornaram, com o tempo, membros da administração
otomana adoptando o islamismo, passaram, na Bósnia, à categoria recente de
muçulmanos, para se diferenciarem dos sérvios-bósnios e dos croatas, numa
mistura imbecil de distinções, onde se usam, critérios étnicos ou religiosos, para a
manutenção de divisões e ódios.
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O vincar do patriotismo, do exacerbamento da pertença a um estado-nação,
corresponde à sobrevalorização das fronteiras, à desconfiança, à animosidade face
ao Outro que vive do outro lado. Em Portugal diz-se “de Espanha, nem bom vento,
nem bom casamento” embora as ligações familiares entre os dois lados da dita
fronteira tenham sido comuns durante séculos e as afinidades linguísticas e
culturais, imensas. Politicamente, a separação entre os dois estados-nação
encontra-se estável há séculos, sendo no essencial uma abstração pois nada
distingue um lado do outro (a chamada raia seca); ou, quando constituída por um
rio, este embora ajude à demarcação é, em regra, um elo de ligação entre as duas
margens e um fraco obstáculo, excepto no caso do Douro Internacional que,
escavando margens alcantiladas, inviabiliza fáceis passagens. Se a fronteira era
um verdadeiro passador, já no passado, como o demonstra o comércio formal, o
contrabando e, sobretudo a passagem dos exércitos, hoje, as fronteiras são
marcas do passado, com os seus castelos e fortalezas como atrações turísticas e,
só se fecham em situações excepcionais, como relatamos a seguir, onde toda a
classe política surgiu unificada.
Em Portugal, depois da integração simultânea com a Espanha na CEE, só nos
recordamos de dois momentos de fronteiras com entradas controladas pela polícia.
O primeiro, terá sido quando da vinda do papa Wojtyla e, mais recentemente,
durante a Cimeira da NATO em 2010 em Lisboa, quando grupos pacifistas e
antimilitaristas foram impedidos de entrar em Portugal. Recordamos um autocarro
com finlandeses, impedido de entrar na fronteira norte, um grupo de andaluzes
travado em Vila Verde de Ficalho e outros casos que abrangeram cerca de 150
pessoas, sem que a “esquerda” parlamentar tenha gasto um neurónio face ao
atropelo à liberdade de circulação nas fronteiras. O governo Sócrates, hospedeiro
da NATO, mandou para a prisão 42 ativistas para que não viessem a perturbar a
ritual procissão convocada pela CGTP/PCP e apoiada pela “esquerda”; nesse
contexto, o mesmo governo mandou isolar e cercar pela polícia os manifestantes
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antimilitaristas, apontados como potenciais terroristas durante os dias anteriores,
para criar um ambiente propício a uma repressão brutal.
7 - O início do capitalismo industrial
O mercantilismo cedeu o passo ao capitalismo de predominância industrial que
integrou no processo produtivo a terra, a atividade comercial, a tecnologia e o
trabalho, sendo este autonomizado sob a forma de salariato. A tecnologia baseava-
se na mecanização, na utilização de novos materiais, do carvão, do vapor e,
integrada no sistema fabril; isto é, na aceitação pelos trabalhadores, sem
discussão, de um horário de trabalho de treze horas, durante as quais poderia
haver acidentes e, com a absoluta obediência às instruções dimanadas do patrão,
entidade suprema dentro da fábrica.
Na escravatura, o dono providenciava a subsistência e a produtividade tendia a ser
baixa; esta só aumentava com o chicote nas costas, o que exigia uma vigilância
prolongada, com os devidos custos. No novo paradigma, no capitalismo, os
assalariados - homens, mulheres e crianças – já não eram parte do inventário de
um dono e podiam adestrar-se em rotinas técnicas. Recebiam um salário que
podiam formalmente negociar, como podiam mudar de patrão ou de lugar, podendo
também, ser liminarmente despedidos; neste contexto, um desempenho
considerado insuficiente representava o despedimento e a fome… em liberdade.
Os assalariados, cujo salário, numa fase inicial, se situava no limiar da
subsistência, não tinham outros recursos para fazer frente a todas as suas
necessidades; e essa penúria jogava a favor do capitalista que pressionava para a
superação do desempenho dos trabalhadores, conducente ao aumento da
produtividade; a sua produtividade seria, naturalmente mais elevada do que a de
um escravo.
Quanto à rotina imposta pelo sistema fabril, cada assalariado tinha, como únicas
alternativas, a submissão ou, a inanição e a morte. Assim, foi-se gerando uma
vontade coletiva de mudança, de melhoria das condições de trabalho e de vida que
poderia chegar à abolição do capitalismo. Para o efeito seria necessário destruir a
máquina estatal que funciona na defesa dos capitalistas.
Esta realidade economicista coadunou-se com o espírito humanitário que, nas
camadas sociais inglesas mais elevadas, combatia a escravatura e veio a conduzir
à abolição do tráfico em 1807 e da escravatura em Inglaterra e colónias, em 1833.
Essas mesmas camadas anti-esclavagistas, porém, esqueciam o humanitarismo à
porta das suas fábricas onde vigorava a enorme dureza do trabalho e os parcos
salários auferidos, sobretudo por mulheres e crianças.
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Há em Portugal quem se ufane da primeira legislação anti-esclavagista a nível
mundial pela mão do Marquês de Pombal, em 1761 e que, já então, evidenciou a
prática muito actual de uma aplicação truncada ou não cumprida. Note-se, que
apenas tinha aplicação legal no território europeu e da Índia dita portuguesa, uma
vez que no Brasil a escravatura continuava pujante, só sendo abolida em 1888,
depois de proibido o tráfico em 1850. Assim, o Marquês reafirmou, mais tarde, essa
disposição legal com a lei do ventre livre, no âmbito da qual, um filho de escrava,
nascia livre.
Na realidade, a escravatura só acabou em Portugal em 1854 (muito depois da
Inglaterra e sob pressão inglesa) quando um decreto libertou os escravos
possuídos pelo Estado, continuando até 1856 a existirem escravos detidos pela
piedosa Igreja católica; a última antiga escrava morreu nos anos trinta do século
XX5
. Só em decreto de 25/2/1869 a escravatura foi abolida nas colónias mas, na
prática, durou até 1876, tendo rapidamente sido substituída pelo trabalho forçado,
uma forma de “civilizar” os africanos (Regulamento do Trabalho Indígena, 18996
). A
duração factual da escravatura em Portugal prende-se, naturalmente, com o atraso
das estruturas económicas e sociais que permitiam uma “rendabilidade” para a
escravatura uma vez que estes eram sobretudo serviçais, desligados, portanto da
atividade económica. Como em muitas partes do mundo, a escravatura continua a
existir em Portugal.
(continua)
Este e outros textos em:
http://grazia-tanta.blogspot.com/
http://www.slideshare.net/durgarrai/documents
https://pt.scribd.com/uploads
5
http://oficinadahistoriad.blogspot.pt/2008/12/abolio-da-escravatura-em-portugal.html
“Escravos em Portugal - Das Origens ao Século XIX” de Arlindo Manuel Caldeira
6
Margarida Seixas “O trabalho escravo e o trabalho forçado na colonização portuguesa
oitocentista: uma análise histórico-jurídica”, 2015