Luta por um desenvolvimento sustentável na Planície do Campeche
1. 1
Janice Tirelli
Raúl Burgos
Tereza Cristina Pereira Barbosa
(Organizadores)
O campo de peixe e os senhores do asfalto
Memória das lutas do Campeche
Ed. Cidade Futura Isacampeche
Campeche, Desterro, 2007
2. 2
Consultoria de edição: Antoninha Santiago -–- AS Comunicações.
Projeto gráfico e Capa: Pedro Paulo Delpino.
Editoração eletrônica: FláviaKunradi
Revisão do texto Introdutório: Tanira Piacentini
Foto capa: ..................
Digitalização de documentos: Dilceane Carraro
Ficha catalográfica
e todas as informações da edição
Apoio:
Ministério do Meio Ambiente – MMA.
Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura - UNESCO
Fundação de Amparo à Pesquisa e Extensão Universitária – FAPEU
Departamento de Sociologia e Ciência Política – CFH – UFSC
Departamento de Serviço Social – CSE – UFSC
Departamento de Ecologia e Zoologia – CCB – UFSC
Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC
4. 4
Agradecemos
Em especial às centenas de moradores que com sua participação deram forma às experiências que
aqui relatamos; aos moradores entrevistados, aos colaboradores conhecidos e anônimos.
Aos professores pareceristas e consultores técnicos da Universidade Federal de Santa Catarina.
Ao Ministério do Meio Ambiente e à UNESCO, financiadores do Projeto Parque Orla do
Campeche do qual faz parte este livro.
Aos Departamentos de Sociologia e Ciência Política, de Serviço Social e de Ecologia e Zoologia da
Universidade Federal de Santa Catarina, aos quais pertencem os organizadores, pelo apoio aos projetos e
trabalhos de Extensão Comunitária no Campeche.
Aos pacientes funcionários da Fundação de Amparo à Pesquisa de Extensão Universitária
FAPEU.
A Editora Cidade Futura que acolheu este projeto.
7. 7
Apresentação
Este livro está sintonizado com os movimentos sociais que trabalham para a construção de
uma cidade justa e sustentável. Recuperando a memória do movimento comunitário visa contribuir
com elementos históricos e técnicos que alicercem as lutas na região do Campeche, mas também na
cidade de Florianópolis. É, portanto, um texto de intervenção, elaborado por mãos militantes, e
conta a história do lugar em que está sendo construída.
O documento assume a forma de um relato resultante da observação crítica dos
organizadores sobre a sua prática e como tal, isento de neutralidade na análise dos fatos,
documentos e informações. Outros participantes poderiam contar a mesma história de forma
diversa. Alguns relatos, principalmente os relativos às diferentes organizações e movimentos foram
feitos a partir de depoimentos ou textos dos moradores com suas visões e experiências, o que levará
os leitores a se identificarem ou não com a apresentação dos acontecimentos e situações aqui
relatados.
Trata-se de um texto produzido no dia a dia de um trabalho comunitário intenso e exigente;
a escrita poderá não ser impecável, os temas poderão pecar pela incompletude e a organização
formal poderá resultar insatisfatória. Contudo, o leitor encontrará uma quantidade crítica de
informações e documentos que seguramente lhe permitirá formar uma opinião consistente das razões
e os objetivos que mantêm acesa uma luta comunitária que já é medida por décadas.
Interesses particulares mesquinhos e o descaso e a conivência do poder público criaram as
condições para um desenvolvimento desordenado da região do Campeche, colocando em risco seu
valioso patrimônio natural e cultural. Mas se esse crescimento desordenado, fomentado pela falta de
fiscalização e pelas mudanças de zoneamento para favorecer interesses particulares, desconsiderando
absolutamente o interesse público, foi deletério, a pior parte veio quando planeja-dores municipais
(com o apoio dos grandes interesses imobiliários), com uma visão ultrapassada de desenvolvimento
urbano, e sem uma real preocupação com as questões ambientais e culturais, propuseram uma
ocupação irresponsável, insustentável, que uma vez consumada resultaria no colapso ambiental da
planície – e provavelmente da cidade.
As lutas dos moradores da região, iniciadas na década de 1980, frearam temporariamente os
desejos dos senhores do cimento e do asfalto. Contudo, não é possível baixar a guarda. Os poderosos
predadores continuam incansavelmente sua batalha pelos lucros à custa da vida. Compram alvarás,
licenças ambientais, desconhecem e desafiam as leis e, amparados na impunidade, trabalham
isolados em seus gabinetes, esperando o cansaço e desgaste dos movimentos sócio- ambientais.
Neste sentido, se este livro contribuir para o sustento das lutas que estão por vir para a
construção de um bairro e de uma cidade que organize seu presente pensando nas gerações futuras,
terá cumprido seu objetivo.
11. 11
20 anos de luta por um desenvolvimento sustentável na Planície do Campeche
O Campo de Peixe: uma planície em perigo
A Planície do Campeche é a maior área plana sedimentar da Ilha de Santa Catarina. Com 55
km2, estende-se de leste a oeste da Ilha e abrange praias de mar aberto e da baía sul, daí o nome
também conhecido de Planície Entremares.
Localizada ao sul da Ilha, abrange a Lagoa da Conceição, Joaquina, Manguezal do Rio
Tavares, Morro das Pedras, Alto Ribeirão, Costeira do Pirajubaé, Tapera. Abrange as localidades do
Aeroporto, Base Aérea, Tapera, Ribeirão da Ilha, Carianos, Porto da Lagoa, Rio Tavares, Fazenda
do Rio Tavares, Sertão da Costeira, Alto Ribeirão, Campeche e Morro das Pedras. A planície dista
aproximadamente 10 km do Centro de Florianópolis.
Como área plana cheia de areia resultante da deposição dos sedimentos aprisionados entre as
serras e maciços litorâneos durante os avanços e recuos do mar nos últimos seis mil anos, a Planície
do Campeche, assim como outras planícies costeiras, é “bebê” na escala geológica (figura 2 – a
planície do Campeche).
A fragilidade do seu solo é alta e sua feição plana é resultado da exposição às correntes, marés e
ventos predominantes. Extensa, porosa e cheia de areias, a região recebe e acumula no subsolo as
águas das chuvas, formando um vasto lençol freático – o aqüífero Campeche – que, juntamente com
as barreiras arenosas, impede o avanço das águas marinhas para dentro da Planície. As águas do
mar, mais pesadas, ficam embaixo, enquanto as águas doces, do lençol freático, ficam por cima.
Essa bacia de areia e água recebe o nome de Bacia Hidrogeológica do Campeche e é recarregada pelas
chuvas, ribeirões e riachos que descem dos morros. As águas do lençol afloram nas concavidades e
baixios formando várias lagoas que se sobressaem após as chuvas: as mais evidentes são a Lagoa
Pequena e a Lagoa da Chica, alem dos brejos e pântanos que recebem e drenam natural e lentamente
suas águas para o mar. (Material de Referência nº 1)
Preservada em sua maior parte, apesar das graves alterações produzidas nas suas faixas
litorâneas por uma ocupação desordenada e “ordenada” incentivada pelo não cumprimento das leis,
descaso e pela falta de fiscalização do poder público, a Planície enfrentou nas décadas de 1980 e 1990
o seu pior inimigo: o projeto de ocupação insustentável elaborado pelo Instituto de Planejamento
Urbano de Florianópolis desde 1989, que favorecia os interesses imobiliários e as grandes
empreiteiras da construção civil. Nas páginas seguintes, relataremos as lutas das comunidades da
planície do Campeche para a preservação e a sustentabilidade de seus recursos.
O começo da resistência
“O primeiro grande golpe contra a meio ambiente no Campeche foi em 1975, quando [um
conhecido empresário de Florianópolis} devastou uma das maiores dunas do Campeche e aterrou o Rio do
Rafael para construir sua casa de fim de semana”. Com estas palavras Ataíde Silva, presidente da
Associação do Surf do Campeche, expressa o sentimento da comunidade local, que nunca se
conformou com o acontecido e que se colocou em estado de alerta.1
O sinal de alerta tornou-se alarme quando a invasão das dunas começou em larga escala. “A
grande invasão das dunas do Campeche começou entre 1979 e 1980 no Morro das Pedras. Depois, o dono
do Hotel Morro das Pedras comprou os barracos e continuou a destruição para construir o
empreendimento em 1981. A essa devastação seguiu-se o desmatamento e destruição de dunas para um
loteamento da família Berenhausen entre 1984 e 1986. O fato é que, a partir, dessa época, de 1979 em
diante, começou a luta mais decidida da comunidade, encabeçada pelos surfistas, contra a invasão das
dunas e a preservação do meio ambiente”.2
O depoimento do surfista ativista nos remete ao início da ocupação das áreas de preservação
na Planície do Campeche e mostra a região como um dos exemplos da emergência da contradição
entre os espaços naturais e aqueles criados pela intervenção humana. As mais belas regiões, as mais
1 Ataíde Silva, em BURGOS, Raúl. Campeche, o teimoso democrata, revista Cidadania, nº 1, Florianópolis, 2003.
2 Idem.
12. deslumbrantes paisagens da Ilha de Santa Catarina, a partir de 1970 passaram a compor as áreas
mais almejadas para assentamentos dos grandes negócios. Esse é um período em que essa concepção
se impõe, inclusive, sobre a modesta cobertura das leis municipais, como a de 1976 – Plano Diretor
do Distrito Sede restrito à parte mais densamente povoada do município. Somente em 1985 a Lei
Municipal 2193/85 – Plano dos Balneários — instituiu as diretrizes para o zoneamento, uso e a
ocupação do solo nas áreas ainda não atingidas pela lei anterior.
Ainda em 1985, foi fundada a Associação de Surf do Campeche (ASC) cujo “intuito principal
sempre foi o de preservar o meio ambiente e não apenas organizar a categoria. Nesse sentido, a Associação
começou, desde sua fundação, a conscientizar a comunidade sobre a necessidade de cuidar da defesa do
meio ambiente”, esclarece Ataíde. Para isso, a Associação organizou dois seminários. O primeiro deles
aconteceu durante a realização, em 1986, do Festival ArtSurf; o segundo, realizado em 1987,
denominou-se “Discutindo o Campeche”. Nele já se reivindicava a redefinição do Plano Diretor dos
Balneários , em vigor até hoje, com muitas alterações de zoneamento. Solicitava-se, também, a criação de
uma comissão de entidades e representantes da comunidade para o planejamento e execução do plano
diretor; assim como, decisão sobre a ocupação das dunas e o repasse da área da aeronáutica para a
comunidad, visandoa criar um Centro de Esporte e Lazer e outras reivindicações comunitárias.3
Em 1987 é fundada a Associação dos Moradores do Campeche (AMOCAM), que coordena, a
partir de então, um novo ciclo de lutas pelo desenvolvimento do bairro com a preservação do meio
ambiente. No mesmo ano, a entidade envia um abaixo assinado ao prefeito Edson Andrino exigindo:
“ 1- Cumprimento da Legislação que protege as dunas e as margens das Lagoas; 2- Criação do
Parque da Lagoa da Chica, demarcando a área com árvores frutíferas e mantendo um herbário da
rica flora nativa;3- Tombamento da área do antigo aeroporto de Florianópolis; 4- Contrariedade em
relação ao projeto de acesso à Joaquina , via Campeche, pelos danos que irá causar ao meio
ambiente”. Este último ponto expressava um alerta dos moradores que acenavam com as lutas que
viriam pela frente (Material de referência nº 1).
Em 21 de dezembro de 1989 é redigida a “1ª Carta dos Moradores do Campeche sobre os
Projetos de Urbanização da Área” (Material de referência nº 2). Esse texto sintetizava as
reivindicações dos moradores tiradas das reuniões semanais que se realizavam desde 27 de novembro
daquele ano. A carta contém um conjunto de propostas populares para o planejamento da cidade,
ainda no momento inicial da elaboração do Plano Diretor do Campeche pelo Instituto de
Planejamento Urbano de Florianópolis (IPUF). As propostas partiam da rejeição dos projetos
apresentados pelo órgão de planejamento “por não atenderem as reivindicações básicas da comunidade,
uma vez que não foi ouvida previamente, nem respeitarem sua história e ecologia”.4
Estabelece-se ao final de 1980 e início de 1990 a dissociação entre os dois tipos de
desenvolvimento para a cidade: aquele que pensava ser possível a existência de cidades médias, de
tamanho limitado, descentralizadas, com gestão participativa de seus habitantes, e aquele que
considerava o crescimento urbano como inevitável e incontrolável, sem limites e condicionantes da
sua expansão e sem levar em conta a participação popular. Sob uma gestão centralizadora inicia-se,
por conseqüência, uma trajetória de conflitos, insatisfações, desentendimentos e perseguições contra
os moradores que se organizaram em oposição ao plano diretor da prefeitura. Mas, por outro lado,
surgiam novas iniciativas que revitalizaram a defesa do meio ambiente e a organização popular. A
resposta dos movimentos sócio-ambientalistas ao fenômeno da expansão da urbanização desse
período trouxe repercussões irreversíveis para Florianópolis e suas políticas de desenvolvimento.5
Em 24 de novembro de 1992, o IPUF envia à Câmara de Vereadores (IPUF, 1997) um novo
projeto de Plano Diretor para a região da Planície do Campeche – o Plano de Desenvolvimento do
Campeche (PDC), que estava sendo elaborado desde 1989 nos gabinetes do IPUF e da PMF (Figura
nº 2)
Nos fundamentos ideológicos desse plano se encontra o incentivo à vocação turística e ao
desenvolvimento de indústrias de alta tecnologia, na perspectiva de fazer de Florianópolis uma
12
3 Associação de Surf do Campeche. Convite para o seminário “Discutindo o Campeche”, Florianópolis, 1986.
4 Associação dos Moradores do Campeche – AMOCAM. “1ª Carta dos Moradores do Campeche sobre os Projetos de
Urbanização da Área”, 1989.
5 Centro de Estudos Culturais e Cidadania – CECCA/FNMA. Uma cidade numa Ilha. Relatório Sobre os Problemas Sócio-ambientais
na Ilha de Santa Catarina. Florianópolis: Insular, 1996.
13. metrópole. Para isso, o poder executivo pensou a construção de um extenso e caro sistema viário
seguindo o modelo da cidade inglesa Milton Keynes.6 Os elementos geradores de empregos seriam o
pólo tecnológico segundo o paradigma das tecnópolis japonesas7, a exploração turística e imobiliária
(hotéis, pousadas, conjuntos residenciais de alto nível, incluindo um autódromo internacional e um
campo de golfe) e uma população de aproximadamente 450.000 habitantes ocupando 70% do solo da
planície.8 Levando em conta que a população total da cidade é hoje de aproximadamente 400.000
habitantes considerando continente e ilha, tratava-se da construção de uma cidade nova numa única
região da Ilha de Santa Catarina.
No início de 1993, o novo prefeito, Sérgio Grando, retira o Plano Diretor da Câmara para
discussão com as comunidades; o IPUF convoca professores da Universidade Federal de Santa
Catarina (UFSC) para discutir o projeto. Na ocasião, o Plano é questionado pelo modelo de
desenvolvimento urbano e são sugeridas reavaliações que não chegam a ser atendidas, dando início a
um desentendimento duradouro entre o órgão de planejamento e segmentos de profissionais da
UFSC sobre o projeto de desenvolvimento mais adequado para a região.
Em 1994, fruto das pressões de moradores, o IPUF abre um processo de discussão direta com
a comunidade. Foram então realizadas reuniões nas áreas de abrangência do plano com os bairros da
Tapera, Alto Ribeirão, Campeche e Fazenda do Rio Tavares. Os pontos de discórdia mais evidentes
eram o dimensionamento do sistema viário, a via Parque nas dunas com 40 metros de largura9, os
altos gabaritos dos prédios, a densidade populacional induzida e as conseqüências ambientais e
sócio-culturais do desenvolvimento proposto para o sul da Ilha. A discussão não trouxe resultados
na modificação dos pontos críticos sugeridos pela comunidade e o Instituto de Planejamento Urbano
de Florianópolis manteve o plano com poucas alterações.
Em 1995 o plano é reeditado. Apesar da sua militância no campo da oposição, o prefeito, na
sua mensagem à Câmara de Vereadores de Florianópolis, apresenta o projeto sem qualquer
posicionamento crítico à concepção meramente imobiliária do plano diretor proposto: “Trata-se de
uma concepção urbana integrada, de um projeto de uma cidade-nova, com capacidade para cerca de
450.000 pessoas e capaz de colocar Florianópolis no século XXI” (Material de Referência nº 4).
Contudo, como resultado das pressões das comunidades envolvidas, o projeto não chegou a ser
enviado à Câmara (IPUF, 1997).
Com efeito, entre 1995 e 1996, representantes do Orçamento Participativo do Sul da Ilha
continuam solicitando a suspensão dos encaminhamentos do PDC para sua ampla discussão com as
comunidades. O abaixo-assinado ao prefeito municipal, solicitando a retirada do Plano de
Desenvolvimento do Campeche da Câmara para uma consulta à população, surte o efeito desejado. Em
novembro de 1996, reabrem-se as discussões de planejamento na região e as comunidades, em
conjunto com o IPUF, preparam um seminário para o sul da Ilha, na Associação de Pais e Amigos
da Criança e do Adolescente do Morro das Pedras – APAM. O evento tinha caráter consultivo sobre
os problemas da região e reafirmava a necessidade de a população participar do planejamento
urbano de sua área. O IPUF, na ocasião, apresentou suas diretrizes para o planejamento da Ilha
(levantamentos, diagnóstico, propostas, diretrizes econômicas e sociais), porém, não apresentou o
Plano de Desenvolvimento da Planície do Campeche que vinha sendo aprovado parceladamente
pelos vereadores a partir do projeto do IPUF10. A maior parte das alterações transformava Áreas
6 AMORA, Ana Albano. O Lugar do Público no Campeche. Dissertação de Mestrado em Geografia CFH/UFSC, Florianópolis,
1996.
7 VIEIRA, Sheila. A Industria de Alta Tecnologia em Florianópolis. Dissertação de Mestrado em Geografia CFH/UFSC,
Florianópolis. 1995.
8 Instituto de Planejamento Urbano de Florianópolis – IPUF. Diagnóstico do Plano de Desenvolvimento da Planície Entremares.
Florianópolis, mimeografado, 1996.
9 Estudo de impacto Ambiental (EIA), Relatório de Impacto Ambiental (RIMA) da rodovia SC 406 - Via Parque - trecho Lagoa
da Conceição - Morro das Pedras (MPB Saneamento LTDA. Florianópolis, 1995), descreve o valor das desapropriações na sua
faixa de domínio. A alternativa mais barata era estimada em R$ 12,3 milhões e a mais cara em R$ 27,5 milhões de reais
10 Esse é um procedimento que prevalece até os dias atuais. Como regra, são aprovados novos projetos empresariais, novas
obras, viabilidade e mudança de zoneamento. Esse procedimento não democrático, utilizando como referência um plano ainda
não aprovado, indica a forte influência de grupos econômicos, empresarias e as relações de favorecimento entre prefeitos,
vereadores e seus eleitores mais poderosos. Como exemplo, o Decreto Municipal 440/91, do Prefeito Bulcão Viana, e o Projeto de
Lei 4854/92, redefiniam o zoneamento da área do entorno da Lagoa Pequena como alterações de zoneamento da Lei 2193/85,
reduzindo a área protegida pelo Decreto n.º 135/88 e permitindo o parcelamento do solo e a implantação de residências, apesar
13
14. Verdes de Lazer (AVL), Áreas de Preservação Limitada (APL) e Áreas de Preservação Permanente
– Ambientais e Históricas – em Áreas Turísticas Residenciais (ATR)11 sem qualquer planejamento
ou infra-estrutura, apenas para satisfazer certos interesses econômicos de parceiros políticos ou
eleitores poderosos.
Ainda nessa reunião a comunidade critica o sistema viário, que reforçava e estimulava as
tendências ao transporte individual, e não priorizava o transporte coletivo, assim como também não
zelava pela acessibilidade12 e segurança dos pedestres, ciclistas, cadeirantes, deficientes visuais. Além
disso, elaborou-se uma lista contendo um conjunto de problemas no sul da Ilha: a inexistência de
áreas públicas; a precariedade das estradas e ruas; a falta de fiscalização nas praias e parques
(Naufragados, Lagoa do Peri, Campeche); a segurança pública; a privatização da orla; a falta de
planejamento na coleta e tratamento dos resíduos urbanos; o fechamento de acessos à praia; a falta
de cemitério na região; a falta de vontade política em planejar e legalizar o bairro Areias do
Campeche (área desapropriada de inúmeras carências); a falta de saneamento básico; o
desconhecimento do Plano Diretor por parte da população; a substituição de árvores nativas por
exóticas; a localização problemática da empresa Pedrita e do Aeroporto; a falta de equipamentos
públicos (creches, escolas, praças, parques, etc). Além dos problemas, os moradores indicaram a
necessidade de preservar a faixa de dunas, morros, rios e a garantia da fiscalização; a intervenção
popular no planejamento e preservação dos caminhos e construções históricas das comunidades
tradicionais e sítios arqueológicos; a implantação de um Parque Cultural no Campeche na área do
antigo Campo de Aviação como área pública de lazer e preservação do patrimônio histórico local; a
preservação da área da CASAN–, adquirida para alocar o sistema de tratamento de esgotos, área na
qual, no plano do IPUF, previa-se a instalação de um campo de golfe – e sua mata nativa; a
manutenção dos gabaritos de dois andares e da baixa densidade populacional da região até a
melhoria da infra-estrutura de saneamento básico, bem como um diagnóstico da capacidade de
suporte para o desenvolvimento proposto; manutenção e preservação das praias e baias como espaço
de atividade econômica pesqueira e de lazer; organização do uso da praia de Naufragados,
preservando seu acesso original.
Esses encaminhamentos revelam o conhecimento dos moradores, construído nas experiências
do cotidiano ilhéu, e essa iniciativa coletiva da região sul contribuiu fortemente para a indicação de
propostas que viessem solucionar os problemas locais. Essa compreensão aparece, inclusive, quando
a população aponta que o poder público, nos seus diferentes papéis, não é o único responsável pela
situação de degradação da região, mas é o principal responsável pela fiscalização e pelo cumprimento
das leis ambientais, assim como de organizar o entrosamento entre as instituições e órgãos estatais
em nível municipal e estadual, tendo as leis como referência no trabalho conjunto entre Estado e
sociedade civil13.
Como fruto dessas discussões foram estabelecidos os seguintes encaminhamentos: (1) buscar
um acordo entre Câmara Municipal, Comunidades e Órgãos Públicos para evitar aprovações
parcializadas de zoneamento antes da definição do plano diretor; (2) atuar para um entrosamento e
acordo entre os órgãos públicos (SUSP, CELESC, IPUF, CASAN, Procuradorias do Meio Ambiente,
etc) para que a prestação de serviços públicos fosse acompanhada de critérios, e não atropelada pela
ocupação de condomínios e loteamentos – regulares e irregulares – em áreas problemáticas; (3)
solicitar à SUSP a coordenação e a reativação da defesa e fiscalização do uso do solo e a ocupação
da inconstitucionalidade e da ilegalidade flagrante. De fato, o MPE entrou com Ação de Inconstitucionalidade em 92, porém o
julgamento e o acordão judicial demoraram tanto que o local já abrigava quase um quarteirão de residências irregulares no
entorno da Lagoa Pequena. O número de casas e agora prédios não pára de crescer. Nenhuma ação da justiça foi implementada
na região.
11 A qualidade do “planejamento” dos vereadores – aleatória e predatória – primou em favorecer empreendimentos privados
(loteamentos, residências, prédios, hotéis, campos de golfe, leis 3636/91 e 3637/91) sem a infra-estrutura e espaços sociais
necessários e sem considerar os moradores da região. Trouxe em conseqüência o adensamento populacional do bairro e seus
inúmeros problemas de lixo, esgotos, engarrafamentos, etc.
12 A Norma Brasileira NBR 9050-1994 (§3.1) adota a seguinte definição de acessibilidade: "Possibilidade e condição de alcance
para utilização, com segurança e autonomia, de edificações, espaço, mobiliário e equipamentos urbanos", isto é, a possibilidade
de acesso de todos os cidadãos às facilidades da cidade, independente de sua condição física.
13 Nesse sentido, o Estado é chamado a assumir a sua função no cumprimento da legislação vigente e na coordenação da defesa e
fiscalização dos patrimônios histórico, ambiental e cultural do sul da Ilha, além de mediar os conflitos de interesses da sociedade
civil no que diz respeito à propriedade e, inclusive, em grupos de trabalho, atuar em conjunto com a comunidade,
14
15. baseada na legislação vigente; (4) convocar os proprietários para assegurar áreas públicas no
processo de parcelamento e urbanização; (5) identificação dessas áreas possíveis em conjunto com as
associações de moradores da localidade; (6) fazer mapeamento dos locais sem acesso à praia (IPUF;
Associações de Moradores) e descumprimento da legislação vigente, para uma desapropriação
posterior; (7) encaminhamento da resolução dos problemas legais que envolvem a área
desapropriada das Areias do Campeche junto ao Departamento de Habitação; (8) criação de um
grupo de Trabalho e Atuação Permanente junto ao IPUF (associações, órgãos públicos, prestadoras
de serviço) para discutir e acompanhar o desenvolvimento da região; (9) continuidade da
mobilização popular independentemente da oficialização do grupo de trabalho, criado no Seminário.
A partir desse seminário, o processo de aproximação de interesses entre as comunidades do
sul da Ilha e o poder público parecia estar caminhando para instaurar um diálogo que solucionasse
os problemas sócio-ambientais apontados. Os moradores aguardavam a oficialização do grupo de
trabalho que coordenaria as discussões quando houve a mudança de gestão municipal com as
eleições de 1996, com a eleição de Ângela Amim. No início de seu governo o Plano Diretor da
Planície do Campeche é autoritariamente reenviado à Câmara de Vereadores sem novas discussões.
O grupo político que assumiu a prefeitura, apoiado por técnicos dos diferentes órgãos do
município, deixou clara a sua indisposição em continuar o diálogo iniciado no governo anterior. Ao
mesmo tempo, as novas autoridades iniciaram uma campanha pública com o objetivo de dividir as
lideranças comunitárias (e os cidadãos organizados que se opunham a seu projeto de governo)
através de um discurso segregacionista que celebrava os segmentos sociais nascidos na Ilha, os
nativos, e discriminava os segmentos sociais de fora, considerados estrangeiros. Estes últimos
deveriam ficar mudos diante da destruição da cidade, uma vez que esta não lhes pertencia –era o
recado claramente dado, e apoiado por grupos de moradores e empresários também claramente
interessados no “progresso”.
A conseqüência mais visível dessa nova política foi a interrupção completa do diálogo entre
os movimentos organizados e o poder público, que passou a discriminar o sul da ilha. Decisões
pontuais de caráter clientelista sustentaram projetos imobiliários de empresas e grupos não apenas
para a região do Campeche, mas também em outras regiões, como a grande planície úmida adjacente
aos bairros Pântano do Sul e Açores, envolvendo, fundamentalmente, projetos de interesses
empresariais de caráter imobiliário.14 No sul da Ilha inicia-se um processo de desmonte da
articulação construída no período anterior entre os bairros da região. As lideranças que conduziam o
processo de unificação regional pelas questões comuns chegaram à conclusão de que era necessário
dirigir seu trabalho organizativo voluntário em cada bairro durante um tempo, para evitar a perda
de seus vínculos locais, e dar continuidade ao processo educativo relacionado às questões sócio-ambientais.
Assim, por exemplo, a retomada do debate sobre o saneamento básico na região e outras
iniciativas conjuntas ficaram mais episódicas, e sofreram com a descontinuidade. Mesmo assim, em
março de 1997, um novo abaixo assinado contendo assinaturas de várias entidades comunitárias,
movimentos pela qualidade de vida do sul da Ilha foi levado ao IPUF. O documento solicitava
basicamente a retomada das discussões de planejamento. O IPUF concorda, mas fica com a
prerrogativa de definir a metodologia a ser adotada.
Em julho do mesmo ano, o IPUF apresenta o Plano de Desenvolvimento do Campeche numa
assembléia com mais de 200 pessoas, na Sociedade Amigos do Campeche (SAC). A novidade da
apresentação era que o plano diretor original havia sido dividido em 14 parcelas – denominadas
Unidades Espaciais de Planejamento (UEPs), numa estratégia de “dividir para reinar” por parte do
IPUF – e as plantas dessas diferentes UEPs que correspondiam às regiões da associações
comunitárias e de moradores presentes foram repassadas às lideranças locais para que se
manifestassem até 29 de setembro, data limite para o posicionamento comunitário.
O recorte do plano causou indignação aos moradores por impedir uma visão global do projeto
proposto, e a assembléia rejeitou o plano apresentado sob o principal argumento de que era
praticamente igual ao apresentado em 1992, sem alterações nos seus pontos mais polêmicos, já
15
14 No caso, as empresas C. R. Almeida, JAT Engenharia e Pedrita.
16. denunciados anteriormente pela comunidade local15. Mesmo assim, a comunidade organizada decidiu
pela análise do plano e um posicionamento com propostas e diretrizes. Como conseqüência dos
encaminhamentos da assembléia, em agosto, os moradores fundam o Movimento Campeche Qualidade
de Vida (MCQV), que passa a coordenar os embates com o Executivo Municipal. Para embasar seus
argumentos, o MCQV solicita a diversos centros de conhecimento da Universidade Federal de Santa
Catarina pareceres acerca do projeto em discussão. Solicita também à Companhia Catarinense de
Águas e Saneamento – CASAN – informações oficiais sobre a capacidade de abastecimento de água
para a região da Planície. Os pareceres acadêmicos sobre o Plano diretor do IPUF (Materiais de
referência nº 5, 6, 7, 8 e 9), profundamente críticos, tornaram-se material de referência para as
análises posteriores elaboradas pela comunidade. A resposta da CASAN (Material de referência nº
10), indicou uma capacidade limite de abastecimento de água para 147.161 pessoas. Esse documento
tornou-se um alerta diante da previsão do IPUF de assentar 450.000 pessoas na planície,
contribuindo para reforçar a posição dos moradores sobre os limites de densidade abastecível da
região, que incluía o leste e o sul.
O MCQV se constituiu como um movimento de articulação das diversas entidades da região
(Associações de Moradores, movimentos e entidades de bairro, ongs) atingidas pelo Plano de
Desenvolvimento da Planície do Campeche. Como princípio norteador de sua organização, o
movimento decidiu por não se constituir legalmente como “associação” nem definir formas
organizacionais burocráticas, preservando-se como movimento aberto à participação de associações
e indivíduos e flexível nas suas formas de funcionamento.
A trajetória bem sucedida do MCQV pode ser explicada pela capacidade de mobilização
autônoma que as localidades adquiriram nas últimas décadas. Sua pauta voltada para os grandes
problemas sócio-ambientais tocava no cotidiano da população, o que, somado à carência crônica de
políticas públicas municipais, estaduais e federais, criou uma significativa disposição participativa.
A atitude crítica e a capacidade de autonomia assumida pelos movimentos sociais desse período
foram dois elementos importantes que, sem dúvida, incentivaram o crescimento dos grupos,
principalmente o MCQV. Um dos movimentos pioneiros na Planície, nesse período, foi o Movimento
Campeche a Limpo – CAL –, que buscava criar uma política ambiental voltada a soluções e
adequação da coleta dos resíduos sólidos na região, a exemplo do antigo projeto Beija Flor, que se
voltou para a coleta seletiva no município. Esse movimento foi um dos responsáveis pela criação de
feiras culturais – Feira do Cacareco, por exemplo, que se consolidou como uma atividade
comunitária de integração, diversão e educação. (Figura nº 3).
Em 28 de agosto, uma nova assembléia com presença expressiva dos moradores discute a
proposta do IPUF, rejeita novamente o plano oficial e, através do recém- criado jornal comunitário
Fala Campeche 16, convoca o I Seminário Comunitário de Planejamento do Campeche para 23 a 25
de outubro. O objetivo era definir as diretrizes da comunidade para o desenvolvimento da região. No
seu editorial, o periódico enfatizava a necessidade de preservação do lençol freático que abastecia a
região e a necessidade de uma urbanização orientada ao uso cuidadoso dos recursos ambientais
(Figura nº 24). O jornal esclarecia ainda a necessidade de equipamentos urbanos que valorizassem e
preservassem os potencias e as atrações naturais locais; incentivava um turismo ecológico e
sustentável como recurso econômico, geração de emprego e renda, além de permitir aos moradores
uma vida de melhor qualidade, sem a transfiguração total do Campeche como uma área urbana,
igual a tantas outras da Ilha e da costa brasileira.
Nesse momento, o movimento comunitário inicia uma campanha pedindo o adiamento do
prazo de entrega dos posicionamentos sobre suas UEPs ao IPUF. A campanha visava adiar a data
de entrega (29 de setembro) para depois da realização do I Seminário de Planejamento da Planície
do Campeche e recebe a solidariedade de diversas instituições da cidade. Não obstante, em
documento oficial, datado de 12 de setembro, o Diretor Presidente e outros diretores do IPUF
15 Estímulo de uma densidade populacional incompatível com os recursos da região, falta da previsão de um sistema de
saneamento básico imediato para o bairro, sistema viário segregador do bairro (física e socialmente), com a previsão de largas
vias de alta velocidade, etc.
16 O periódico Fala Campeche, criado em julho de 1997 pelo MCQV, é um jornal comunitário de caráter informativo, mobilizador
e educativo do bairro nas questões sócio-ambientais e outras decorrentes do Plano Diretor.
16
17. reiteram a data limite, alertando que “a ausência de resposta pela Associação de Moradores será
considerada como nada tendo a opor ao plano apresentado”.
A comunidade responde à intransigência do Executivo Municipal e do órgão de planejamento
com iniciativas que fortaleceriam seu posicionamento e organização. Em primeiro lugar, solicita a
mediação da Câmara de Vereadores para o adiamento do prazo de entrega de propostas até a
realização do I Seminário Comunitário de Planejamento. Estendendo sua reclamação para o nível
federal, em 23 de setembro, encaminha extensa carta ao Secretário Nacional de Recursos Hídricos,
expondo o desrespeito do órgão de planejamento com os recursos hídricos limitados da região e
solicita a intervenção daquela Secretaria junto às autoridades municipais (Material de referência nº
11). Por último, em 29 de setembro, data limite oficial estabelecida para a entrega do
posicionamento comunitário para alterações do plano oficial, o MCQV encaminha um extenso
documento ao IPUF explicando as razões da rejeição ao plano proposto e reiterando a urgência de
um plano diretor para a região, com a participação ativa da população na sua elaboração. Também
convida as autoridades para participarem do I Seminário de Planejamento e solicita adiamento do
prazo de entrega para 18 de novembro, data considerada como suficiente para a sistematização das
deliberações desse seminário. Sem resposta oficial, e preocupado com a possibilidade de uma
aprovação apressada do Plano Diretor, em 9 de outubro o movimento comunitário realiza uma das
ações de maior impacto na época: a Associação dos Moradores do Campeche – AMOCAM –, em
nome de um amplo movimento do bairro, interpõe na justiça local uma Ação Cautelar de Notificação
(Material de referência nº 12) contra a Prefeitura Municipal de Florianópolis e contra o IPUF, “com
o objetivo de prevenir responsabilidades, prover a combinação de direitos e externar judicialmente a
preocupação daquela comunidade” em relação aos riscos ambientais decorrentes da implantação de
um plano com as proporções propostas. Cópias da ação judicial foram enviadas para os órgãos
públicos e os principais meios de comunicação e formadores de opinião.
Como subsídio ao processo de difusão e convite ao seminário, entidades e lideranças locais
produziram diversos documentos internos e públicos, entre eles, de particular difusão na época, o
documento “Uma questão de responsabilidade” (Material de referência nº 13), alertando para os
sérios riscos de um planejamento que não leva em conta os limites ambientais para as futuras
gerações. Ao mesmo tempo, numa carta-documento intitulada “Problema Público no Campeche”,
um conjunto de entidades da região se expressa pela necessidade urgente de um Plano Diretor “antes
que seja tarde e esteja tudo perdido” e exigindo “um planejamento compatível com as
disponibilidades e sustentabilidade da qualidade de vida”. Solicitavam também, ao Colegiado de
Gerenciamento Costeiro de Santa Catarina, o estabelecimento e execução de um “programa de
gerenciamento da Bacia Hidrogeológica do Campeche com vistas à sustentabilidade dos recursos
hídricos, sob pena de agir de maneira irresponsável para com as gerações atuais e futuras”. (Material
de referência nº 14)
17
O Planejamento Autônomo do Bairro.
O Dossiê Campeche
Com o intuito de criar um espaço coletivo de discussão em que fosse possível a participação
ativa da população na formulação de diretrizes para o desenvolvimento sustentável da região, o
Movimento Campeche Qualidade de Vida realiza, ainda em 1997, o 1º Seminário Comunitário de
Planejamento do Campeche. Dele participaram, durante 3 dias, cerca de 350 pessoas distribuídas em
comissões temáticas de trabalho: sistema viário; saneamento básico; espaços públicos; recursos
naturais e zoneamento (parcelamento do solo para a urbanização). Na ocasião foi re-apresentado e
discutido o plano diretor proposto pelo IPUF para a região. Os órgãos vinculados ao Executivo
Municipal (IPUF, COMCAP, FLORAM e SUSP) não participaram no evento, alegando, mediante o
ofício nº 06096, de 21 de outubro de 1997, que “após tomarem conhecimento da ação cautelar
notificação promovida pela Associação de Moradores contra a Prefeitura Municipal de Florianópolis
e o IPUF, no último dia 09, sentem-se constrangidos em participar do Seminário que visa discutir
um plano, agora colocado sub-júdice por essa Associação ”.
18. No seminário, a sociedade civil organizada reviu o Plano Diretor oficial e decidiu recusá-lo
mais uma vez. Também estabeleceu as diretrizes para o desenvolvimento sustentável da região. O
relatório final (Materiais de referência nº 15 e nº 16) baseado no trabalho das comissões e das
plenárias de discussão, foi aprovado em nova assembléia realizada em 31 de outubro. O resultado
geral do seminário foi consolidado num documento de 242 páginas denominado Dossiê Campeche,
que reúne o documento final do encontro e um conjunto de análises e pareceres especializados sobre
o plano elaborado pelo IPUF, além das diretrizes de desenvolvimento sustentável que balizaram e
fundamentaram as discussões no evento.
O Dossiê Campeche foi encaminhado a todos os órgãos públicos municipais, estaduais e
federais com atuação na área ambiental e de planejamento do uso do solo. A carta de
encaminhamento do Dossiê expressa:
Este documento é resultado de um trabalho árduo e laborioso de cidadãos preocupados com as mais
diversas atividades impostas pelo cotidiano (filhos, trabalho, e problemas pessoais), que destinaram
todas as suas horas de lazer e de convívio com os seus para sua elaboração. O cansaço, as correrias em
busca de financiamento para xérox e cópias, e as noites em claro, podem ter, eventualmente, agido em
detrimento da qualidade do dossiê....
Dos órgãos públicos que receberam o Dossiê, somente dois responderam. Numa dessas
respostas, da diretoria do IPUF17, encontra-se uma análise crítica que desqualifica o “dossiê” e as
suas contribuições e, na outra, da direção do Departamento de Gestão de Águas Federais, Secretaria
de Recursos Hídricos do Ministério do Meio Ambiente– MMA, que elogia a organização da
sociedade local na preocupação com os recursos hídricos.
A análise do conteúdo do documento do IPUF deixa transparecer, entre outros motivos, a
forte intransigência do órgão de planejamento em admitir a incompatibilidade entre os critérios
metodológicos do IPUF e a participação popular. A participação é entendida pelo IPUF como uma
ousadia, uma inconveniência dentro de uma proposta pré-estabelecida e definida. A falta de
sensibilidade dos funcionários municipais se instalou como um viseira que impossibilitou ver que o
Dossiê elaborado por “outros” técnicos que não aqueles institucionalizados no órgão municipal não
propõe um plano, mas diretrizes para o planejamento.
A tônica do texto é a desqualificação como estratégia para o questionamento da legitimidade
da sua elaboração. Para os técnicos do IPUF que subscreveram o documento, o Dossiê denegria a
imagem do Instituto de Planejamento com alegações inadequadas e os seus signatários tinham a
“pretensão” de representar a opinião de toda a comunidade da região, com o argumento de que nem
eram as associações participaram do seminário, nem são signatárias do documento e que se pretendia
“insistir numa discussão sem resultados” que vinha ocorrendo desde 1992. 18
A análise dos pareceres dos profissionais da UFSC demonstra uma disputa de conhecimentos
em que a desqualificação é mais uma vez o eixo da argumentação dos técnicos do IPUF, deixando
transparecer a não aceitação do engajamento dos professores universitários junto à população, em
assuntos que passam não só por questões técnicas, mas também políticas. As acusações se
desdobram ao longo do texto: os profissionais da UFSC falam em nome próprio, não representam
oficialmente a UFSC ou seus departamentos; alegam que, por serem moradores da região “objeto de
análise”, incorrem em “vício de parcialidade” e sofrem da “dificuldade dos teóricos em lidar com a
realidade”.
O texto do IPUF acusava o movimento comunitário de ser responsável pelo tipo de
ocupação desordenada do bairro, isentando-se da responsabilidade sobre o tipo de urbanização que
foi se consolidando na região. Segundo o órgão de planejamento, “assistiu-se à [sic] favelização do
Campeche”, eximindo-se de qualquer envolvimento com a falta de fiscalização, as concessões
irregulares de licenças, mudanças arbitrárias de gabaritos e mudanças de zoneamento para
17 Instituto de Planejamento Urbano de Florianópolis. Parecer Técnico 214/98 sobre o relatório do Seminário da “AMOCAM”
(Dossiê Campeche). Proc. 177/97-1. Florianópolis, 19 de fevereiro de 1998, mimeografado, 46 pág. O parecer é uma análise
crítica ao Dossiê, ao conteúdo, à representatividade, à estrutura, aos autores, assinada pelo Diretor Presidente do IPUF, Carlos
Alberto Riederer; o arquiteto Amilton Vergara de Sousa; o arquiteto José Rodrigues da Rocha – Diretor de Planejamento e a
arquiteta Jeanine M. Tavares, gerente.
18 IPUF, Op. Cit., págs. 1 e 2.
18
19. favorecimentos particulares, aprovados/encaminhados pelos diversos setores do próprio poder
público.
A estratégia do IPUF foi usar da linguagem técnica, supostamente neutra, para se contrapor
ao conteúdo político presente na demanda popular, sugerindo má-fé dos signatários do Dossiê. Dão a
idéia de que a pressão popular, durante todo o tempo, é uma prática que encobre motivos políticos e
interesses pessoais que só se explicam pela suposta ocupação de áreas de preservação permanente e
implantação de loteamentos clandestinos pelos signatários do Dossiê19. Acusam os signatários de
irresponsáveis e coniventes com grileiros por reivindicarem o recomeço do processo do zero e
quererem uma discussão geral com a intenção de reiniciar a elaboração do Plano numa tentativa de
dominar o processo e impedir a planificação da região.20
Nesse sentido, aparece outro aspecto da crítica feita ao Dossiê pelo órgão de planejamento,
que é relevante ressaltar: a concepção de que há uma demagogia em torno do caráter da participação
popular solicitada e que “a voz do povo não é a voz de Deus” [sic]; assim os técnicos do IPUF
rejeitam a discussão coletiva com a comunidade e colocam-se contra o “assembleísmo” dos
moradores. Assumem uma posição classista e parcial, celebrando o empresariado e colocando o povo
como vilão ao afirmar que “empresários se relacionam com o IPUF para discutir a doação de áreas
públicas e implantação de infra-estrutura, enquanto a comunidade se relaciona para discutir o que o
poder público lhe dará, qual o recurso que amealhará”. O documento do IPUF aceita a participação
popular apenas como apêndice e não como gênese do conhecimento e do planejamento.
Desconhecia-se em Florianópolis, até aquela data, uma experiência de elaboração popular de
um documento do porte do Dossiê Campeche com embasamento legal, social e ambiental que
servisse como subsídio ao planejamento do bairro. O Dossiê continha as reivindicações das
comunidades e visava auxiliar os órgãos públicos a planejarem com mais justiça a Planície do
Campeche. Frente a esse conjunto denso de propostas a crítica do IPUF afirma, deixando
transparecer seu método de diálogo: “É óbvio que os pedidos da comunidade têm que ser avaliados e só se
pode atender ao que seja tecnicamente viável e socialmente aceitável”.21 Acontece que a comunidade da
Planície do Campeche exigia, em primeiro lugar, participar da escolha dos critérios daquilo que seria
“tecnicamente viável e socialmente aceitável”, uma vez que o bairro não dispunha de nenhuma
infra-estrutura social (praça, biblioteca, museu, parque, correio, área esportiva, espaços culturais) e
recebia diariamente mais moradores, mais prédios, mais adensamento.
Quanto ao questionamento comunitário sobre a insustentablidade do plano do IPUF
relativamente aos recursos hídricos, o documento crítico do IPUF acusava os signatários do Dossiê
de “ambientalistas primários”.22 Diante do argumento de um possível colapso no abastecimento de
água sugerem que é falso, porque, em última instância, quando a água faltar, poder-se-ia utilizar as
águas dos mananciais da área continental, “isso para não falar em usinas de dessalinização da água
de mar”23, e acrescenta ainda:
A utilização mais intensa dos mananciais da área continental (Cubatão, Pilões e Biguaçu), com
capacidade de abastecer a mais de 1,8 milhão de pessoas, segundo informações extra-oficias da Casan
ou a dessalinização da água do mar, não apresentam problemas técnicos, mas apenas financeiros.24
Fora a irresponsabilidade de utilizar dados extra-oficiais para um problema tão delicado, o
texto afirma que trazer água do continente ou dessalinizar água do mar “não apresenta problemas
técnicos, mas apenas financeiros”. O cotidiano das políticas públicas num país com as carências do
Brasil nos ensina que o aspecto financeiro está longe de ser secundário na elaboração de projetos
19 IPUF, Op. Cit., pág. 6
20Esta luta comunitária foi desgastante e desigual e deixou marcas profundas na vida de alguns moradores. A Prefeitura
Municipal de Florianópolis tentou silenciar a ex-presidente da AMOCAM, a professora e bióloga Tereza Cristina Pereira
Barbosa. A FLORAM e IPUF denunciaram falsamente sua propriedade como Área de Preservação Permanente sendo que o
local era uma antiga pedreira e a vegetação hoje existente foi plantada pela bióloga. A perseguição estendeu-se também ao pai
do ex-vereador Lázaro Daniel, Seu Chico. O Bar do Chico quase foi demolido, apesar do seu valor cultural. O local foi
reconhecido posteriormente como Patrimônio Cultural Imaterial no Relatório de Vistoria Nº007/06, 18/10/2006 do Ministério
Público Estadual (MPE). Maiores detalhes no site www.campeche.org.br.
21 IPUF, Op. Cit., pág 7.
22 Op. Cit., pág. 9.
23 Op. Cit., pág. 15.
24 Op. Cit., pág. 14.
19
20. sociais. Tratando-se de uma questão básica como o uso de um recurso natural como a água,
esperava-se do planejador da coisa pública uma posição responsável. Foi com esse mesmo
posicionamento que, diante das críticas da população sobre a insustentável densidade proposta de
450.000 habitantes, o IPUF afirma que “só deverá ser alcançada em uns 30 anos”, e, portanto, “a
CASAN terá de 10 a 15 anos até esgotar a capacidade atual e estudar novas alternativas de abastecimento
para a região”.
Quanto à rejeição comunitária à segregação social decorrente da proposta oficial, o IPUF
argumenta que ela inexistia e, contraditoriamente, afirma: “O plano tem áreas para baixa renda, mas
em localizações econômica e socialmente viáveis. O plano prevê lugar para todas as classes sociais, mas
não as coloca todas misturadas”, o que conceitualmente corresponde exatamente à definição de
“segregação”.25 A aplicação prática desse conceito mostra que os de alta renda ocupam a orla
marinha e têm acesso à praia e paisagem particulares, enquanto os de baixa renda ficam em áreas
“econômica e socialmente viáveis”, compatíveis com o tamanho do seu bolso.
Questionados sobre o sistema viário desagregador da vida comunitária, os planejadores da
prefeitura afirmam que os anéis viários para retirar o tráfego de passagem das áreas residenciais não
têm características de isolamento, mas de “proteção da comunidade contra os inconvenientes do tráfego:
acidentes, barulho e poluição atmosférica” (p. 18). Assim, o sistema viário teria a função de solucionar
os problemas que o próprio sistema viário (e o plano em geral) iria gerar, – este foi mais um motivo
para que o movimento o rejeitasse.
O que se pode identificar na crítica do IPUF ao Dossiê Campeche é a perfeita coerência com
a prática histórica do órgão de planejamento em elaborar propostas em gabinetes, consensuadas com
os interesses empresariais – aquilo que não se encaixasse nos preceitos fundamentais assim
elaborados seria “tecnicamente inaceitável”. Nenhuma vontade de ouvir, nenhuma consideração ao
trabalho sócio-comunitário, nenhuma tentativa de somar e rever sua proposta para melhorar a
cidade de todos. Daí a recusa em aceitar as propostas comunitárias do Campeche.
A segunda resposta recebida pelo movimento comunitário do Campeche ao envio do Dossiê
Campeche teve um tom diametralmente oposto à resposta do IPUF. A carta de Raymundo José
Santos Garrido, Diretor do Departamento de Gestão de Águas Federais, Secretaria de Recursos Hídricos
– Ministério do Meio Ambiente, de 10 de novembro de 1997, expressa: “percebemos, pelo material
enviado e pelo número de associações que assinam a correspondência, que a região já tem uma grande
mobilização social, e esse é o ponto básico para se conseguir uma gestão de recursos hídricos participativa e
consciente”. Numa atitude solidária com o movimento comunitário, sugeria a criação do Comitê da
Bacia Hidrográfica do Campeche e se colocava à disposição para enviar um profissional da
Secretaria para um evento no qual fosse debatida a criação de tal Comitê.
Aceitando o desafio, a AMOCAM e o MCQV convocam uma ampla reunião das entidades da
planície do Campeche com o objetivo de “discutir, decidir e encaminhar a criação” do Comitê da
Bacia do Campeche. Em 27 de janeiro de 1998, a comunidade realiza uma assembléia que contou
com a presença de representante da Secretaria de Recursos Hídricos do Ministério de Meio
Ambiente. Desse encontro resultou a criação de uma comissão provisória encarregada de levar
adiante a organização de uma nova entidade, que foi denominada Comitê da Bacia Hidrogeológica do
Sul da Ilha. 26
Contudo, tal comitê nunca chegou efetivamente a se estabelecer. A sua constituição efetiva e
a continuidade dos trabalhos foi prejudicada pelas conseqüências do envolvimento comunitário na
preservação de um dos ecossistemas mais importantes e de maior beleza da região: a Lagoa Pequena.
(Figura nº 4) Localizada no limite entre os bairros Campeche e Rio Tavares – a “lagoinha”, como é
conhecida na região –, numa área tombada pelo município em 1988, como patrimônio natural e
25 Com efeito, segundo o dicionário Aurélio, “segregação” racial ou social significa: “Política que objetiva separar e/ou isolar no
seio de uma sociedade as minorias raciais e, p. ext., as sociais, religiosas, etc.”
26 Na ocasião, assinaram a adesão à Comissão pró-formação do Comitê da Região Hidrográfica do Sul da Ilha: Conselho de
Moradores da Lagoa do Peri; Movimento pela Qualidade de Vida da Armação; Movimento Campeche Qualidade de Vida;
Associação dos Moradores da Localidade da Lagoa do Peri; Klimata – Centro de Estudos Ambientais; Associação dos Moradores
do Campeche.
20
21. paisagístico (Dec. Municipal 135/88),27 abrigava, na margem sudeste, um dos poços artesianos de
captação de água de abastecimento da região28. Três anos após o tombamento da Lagoa Pequena,
em 1991, inicia-se um processo de grilagem na sua margem nordeste, quando o seu entorno e a área
verde de lazer, de propriedade do Estado, são transformadas em ATR (Área Turística Residencial),
facilitando a sua ocupação. Essa alteração de zoneamento, desprovida de uma política de gestão
ambiental voltada para o interesse público, foi a porta de entrada de sérios danos ambientais
causados na localidade29. A paisagem original da região da bela lagoa foi transfigurada.
Parcelamento do solo, loteamentos, extinção da vegetação, edificações muito próximas ao espelho
d’água e mais adiante, nas dunas próximas, abertura de ruas, aterros para viabilização das
construções e abertura de escoadouro artificial na Lagoa, foram os prejuízos causados na região
(para maiores informações, ver GERI, 2007). O poder público foi incapaz de cercar adequadamente
a área tombada – e até o presente mantém essa incapacidade –, assim como foi omisso na
fiscalização e punição dos invasores.30 O movimento pela preservação da Lagoa Pequena, apoiado e
impulsionado pelo MCQV, intensificou as ações na região, gerando conflito entre o movimento sócio-ambiental
e os responsáveis pela grilagem das terras tombadas. Desdobraram-se, na ocasião,
denúncias, audiências com a Procuradoria Federal e Estadual, visitas aos órgãos municipais
responsáveis e manifestações públicas em defesa do lugar, com destaque especial para o “Abraço à
Lagoinha” (Fig. nº 5) a, passeata pelas ruas do bairro e ato público na forma de piquenique,
denominado “Primavera na Lagoa Pequena”. Durante a realização deste ultimo evento, o conflito
teve seu momento mais grave, com a agressão física de um dos manifestantes ambientalistas. A
agressão resultou em ferimentos graves e perda de equipamentos fotográficos. A partir de então,
iniciou-se um período marcado por inquéritos policiais e judiciais, mas, sobretudo, por ameaças
contra os militantes comunitários e suas famílias, consumindo as forças do movimento.
Desencadeou-se uma campanha civil contra a violência na região. A sociedade organizada
juntamente com os moradores que sofriam ameaças, em audiência com a prefeita municipal, e
solicita uma atuação mais contundente na localidade, mas prevalece por parte da autoridade do
Executivo uma interpretação xenófoba do episódio e a neutralização da violência pelo fato de
moradores não nativos serem os agredidos.
Como indicado, tais acontecimentos consumiram as forças do movimento na época e
impediram a constituição do mencionado Comitê de Bacia. Lamentavelmente, apesar dos duros
embates da época, das denúncias e do intenso diálogo com os órgãos responsáveis, o movimento
comunitário não conseguiu, até hoje, uma demarcação adequada da área tombada e tampouco uma
atitude decidida das autoridades para implantar e estruturar o Parque Municipal da Lagoa Pequena
e tampouco considerar os termos do acórdão judicial. Contudo, as lutas conseguiram frear, naquele
momento, o processo de destruição da região. Um resultado positivo do processo político
mencionado foi a elaboração de um acurado estudo das características da Lagoa Pequena por parte
de profissionais da Universidade Federal de Santa Catarina e militantes do movimento comunitário.
31
Fruto desse conjunto de lutas, ainda em 1998 o Plano Diretor Oficial do Ipuf foi novamente
retirado da Câmara de Vereadores para modificações que deveriam atender às reclamações da
comunidade. Entretanto, no ano seguinte, o Plano volta à Câmara já dividido em 14 parcelas. O
MCQV consegue a mediação da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara no intuito de abrir
27 Centro de Estudos Culturais e Cidadania – CECCA – Unidades de Conservação e Áreas Protegidas da Ilha de Santa Catarina:
Caracterização e legislação. Florianópolis, SC, 1997.
28 Até 2000, eram 13 poços da CASAN, interligados em anel, que abasteciam a costa leste e sul da ilha.
29 Em 03 de dezembro de 1992, o Ministério Público Estadual ajuizou uma Ação Civil Pública (n. 02395026511.6) contra o
Município de Florianópolis e Pedro Manuel Borba Neto. O pedido de liminar requeria o fim da ocupação ilegal da Área de
Preservação Permanente (APP) da Lagoa Pequena e a declaração de ilegalidade do Decreto 440/91 e da Lei 4.854/92 que tinham
promovido o destombamento de parte da Área Verdade de Lazer (AVL). O Acordão judicial de 9 de junho de 1998, estabeleceu a
inconstitucionalidade das leis questionadas e retrotraiu a situação jurídica da área a o estabelecido pelo decreto Municipal
135/88, do Prefeito Edson Andrino, que promoveu o tombamento do lugar.
30 Na tentativa mais decidida para a demarcação da área, segundo as informações fornecidas ao movimento pelas autoridades da
FLORAM, os técnicos foram “corridos a bala”.
31 Para uma informação mais completa, consultar o Relatório Final do Projeto Adote a Lagoinha, BARBOSA, T. C. & SOUSA,
J.P. UFSC/ CCB/ CFH, 1999, disponível no sitio www.campeche.org.br.
21
22. um diálogo “técnico” entre o órgão de planejamento e a comunidade, com o objetivo de encontrar os
pontos de consenso. O diálogo, realizado entre julho e setembro, fracassa pela incompatibilidade dos
pontos de vista em torno dos temas mais controversos, como o sistema viário, a Via Expressa em
áreas de dunas e o adensamento populacional propostos pelo plano oficial.
Dado o impasse, o MCQV convida a população para uma assembléia comunitária, em
outubro de 1999. Dela participaram mais de 300 moradores que decidem pela construção de um
Plano Diretor Comunitário a partir das diretrizes do Dossiê Campeche e contando com o potencial
de trabalho voluntário de moradores, incluindo técnicos locais.
A partir desse momento o movimento se amplia e unifica-se através de iniciativas
mobilizadoras de outros bairros da Planície. Nessa ampliação, se destaca a APAM – Associação de
Pais e Amigos da Criança e do Adolescente – do Morro das Pedras, entidade beneficente fundada em
28/11/1989. Desde então a APAM atua em atividades sócio-educativas na região das Areias do
Campeche. Além da sua natureza voltada para o serviço social, essa entidade se notabiliza pelo
envolvimento nas questões sócio-ambientais e na organização do movimento autônomo do bairro,
contribuindo com a criação do Movimento Nosso Bairro. Essa participação no Movimento
Campeche Qualidade de Vida contribuiu para ampliar a sua representatividade e fortaleceu com a
proposta de envolver a Planície do Campeche na elaboração de um do plano diretor, sendo sede, por
diversas ocasiões, de oficinas, assembléias e reuniões comunitárias.
22
A Construção do Plano Comunitário
Uma metodologia participativa
O acúmulo de experiência do MCQV que, desde a sua fundação, continuava se reunindo aos
sábados em escolas locais e associações comunitárias para a definição de uma política em relação ao
plano diretor e assuntos relativos, permitiu ao movimento comunitário elaborar um plano diretor
alternativo. Como estratégia de educação sócio-ambiental e engajamento da comunidade, o
movimento realizou várias intervenções significativas: em primeiro lugar, organizou festas populares
e eventos culturais, como as 1ª , 2ª, 3ª e 4ª Festa da Cultura e da Arte do Campeche (Figura nº 6) e o
Festival Zé Perry (Figura nº 22), em comemoração ao centenário do aviador e escritor Antoine de
Saint Exupéry. Em segundo lugar, continuou e aprimorou a edição do periódico comunitário de
distribuição gratuita Fala Campeche, peça fundamental na construção de uma visão coletiva sobre o
futuro da região. Em conjunto, essas ações conseguiram atrair uma significativa adesão dos cidadãos
da comunidade local e da cidade de Florianópolis.32
Assim, o movimento inicia um processo de oficinas itinerantes comunitárias de planejamento
urbano – oficinas semanais – nas escolas, salões de igreja, grupos de 3ª idade, associações
comunitárias locais, nos diferentes bairros da Planície. Durante as oficinas, era problematizada a
situação da região e discutidos, com apoio de mapas e plantas, dados sobre a origem e
disponibilidade de água para abastecimento, tipos de saneamento, os problemas locais, a falta de
infra-estrutura e as diretrizes do Dossiê. Ressalte-se que esse material de trabalho, apesar de
público, nunca foi disponibilizado pelo Campeche, tendo que ser obtido por caminhos tortuosos
através de diferentes atores sociais.
Com a metodologia indicada, a população elaborou sua proposta que foi denominada Plano
Comunitário para a Planície de Campeche - Proposta para um Desenvolvimento Sustentável. O
objetivo foi propor um plano que contemplasse o desenvolvimento das potencialidades econômicas
fundamentado no uso sustentável dos recursos naturais e no respeito à qualidade de vida dos
habitantes do lugar. (Figuras nº 7, 8 e 9). A elaboração coletiva deu consistência e apoio popular à
proposta alternativa, cuja referência principal foi o atendimento às leis ambientais e culturais, ao
fomento racional do turismo não predatório, às regulamentações do uso do solo propostas pelas
legislações federal, estadual e municipal e aos anseios da população quanto ao destino da região.
32 Plano Comunitário da Planície do Campeche. Proposta para um Desenvolvimento Sustentável. Florianópolis. Mimeografado.
Disponível em www.campeche.org.br.
23. O Plano Comunitário (Materiais de referência nº 17 e nº 18; Figuras nº 15 e 16), subscrito pelo
conjunto de associações que participaram de sua elaboração33, é aprovado numa nova assembléia
realizada em 27 de novembro de 1999 e apresentado à Câmara de Vereadores, em março de 2000,
como substitutivo global ao Plano Diretor do Poder Executivo Municipal. A experiência de
elaboração autônoma do Plano Diretor, inédita no Brasil, lhe valeu o Prêmio Qualidade de Vida 2000
da Federação de Entidades Ecologistas Catarinenses (FEEC) (Figura nº 19), foi um exemplo para
outras comunidades da Ilha de Santa Catarina e ganhou apoio e simpatia de diversos segmentos da
sociedade florianopolitana.34
A luta pelo Plano Diretor Comunitário
No primeiro semestre de 2001, na segunda legislatura da prefeita Ângela Amin (reeleita nas
eleições de 2000), recomeçaram as discussões e as tentativas de aprovação do Plano Diretor oficial
para a Planície do Campeche. Levando-se em conta a existência dos dois planos em disputa – o
comunitário e o oficial–, a Câmara, por iniciativa da Comissão de Meio Ambiente, realiza a primeira
Audiência Pública para a discussão dos planos diretores, a pedido dos movimentos sociais. Na
realidade, essa Audiência Pública foi a primeira ocasião em que se confrontaram publicamente os
dois planos, ficando claros os eixos principais da crítica do movimento comunitário. Na audiência,
ficou evidente também o descontentamento de diversos órgãos públicos com a megalomania do
23
plano do IPUF.
Como parte de uma campanha publicitária para pressionar a Câmara para a aprovação do
Plano Comunitário, o movimento produziu duas ações de impacto na comunidade.
A primeira consistiu na instalação, num local de ampla visualização na via principal do
Campeche, a Avenida Pequeno Príncipe, de um placar comunitário com os nomes dos vereadores e os
seguintes dizeres: “A favor do Plano Comunitário”, “Contra o Plano Comunitário”, “Em cima do
Muro”. O placar teve alto impacto na comunidade e presumivelmente entre os vereadores.
A segunda iniciativa foi a publicação de uma história em quadrinhos sobre as lutas da
comunidade pelo Plano Diretor, no formato de uma cartilha elaborada em oficinas comunitárias
realizadas entre maio e setembro de 2000. Os quadrinhos, com roteiro e editoração de moradores do
bairro35, foram distribuídos nas escolas e nos principais pontos de venda do Campeche. (Material de
Referência nº 19)
Influenciada pelas pressões comunitárias e pelos resultados da Audiência Pública, e
impossibilitada de encaminhar um processo de votação envolvendo os dois planos, a Câmara decide
produzir uma terceira versão de Plano Diretor. Em junho a Comissão do Meio Ambiente da Câmara
de Vereadores anuncia que decidiu construir um novo projeto, substitutivo global, baseado nos dois
anteriores em confronto na Câmara. O projeto elaborado pela equipe técnica da Câmara e conhecido
no Campeche como “projeto Frankenstein” – que conserva a quase totalidade da proposta oficial do
IPUF, acrescentada de alguns detalhes do plano comunitário –, mantinha o sistema viário com suas
largas pistas de alta velocidade e um uso do Campo de Aviação contrário às expectativas da
população local, pontos mais criticados pela comunidade.36
O movimento comunitário rejeita essa proposta e exige, mais uma vez, um processo
democrático de discussão, conforme o Estatuto da Cidade (Lei Federal 10.257/ 01). Fazendo uso dos
instrumentos previstos nessa Lei, a comunidade exige a realização de Audiências Públicas nas
diversas regiões afetadas pelo Plano Diretor, estudo e relatório de impacto ambiental (EIA / RIMA)
e estudo de impacto de vizinhança (EIV). Em 2002, sem força política suficiente, a situação é
condicionada pelo iminente processo eleitoral (presidente da República, governador e representantes
33 Associação dos Moradores do Campeche (AMOCAM); Movimento Campeche Qualidade de Vida; Associação dos Moradores da
Lagoa (AMOLA); Movimento Nosso Bairro; Conselho Comunitário dá Fazenda do Rio Tavares.
34 PEREZ, Lino Fernando Bragança ET. al. 2000. Oficinas de planejamento urbano em Florianópolis. A universidade e a cidade
na construção do espaço urbano. Revista Participação. Universidade de Brasília. Brasília, DF, ano 4, n. 8, dezembro, p. 55-58.
35 Roteiro do jornalista Silvio Costa Pereira e ilustrações de Guilherme Fialho.
36 Quase ao mesmo tempo, em 8 de julho de 2001, no jornal AN Capital, o presidente do IPUF Carlos Alberto Riederer reconhece
os erros cometidos no processamento do Plano Diretor do Campeche e afirma que nos novos processos de planejamento
procederia de modo a envolver a comunidade. Apesar disso, o órgão de planejamento se nega a rever seus procedimentos e
produzir alterações substanciais no caso do Campeche.
24. federais e estaduais). A maioria dos candidatos evitava desafiar uma opinião pública favorável à
comunidade e a situação permanece a mesma até após as eleições37.
24
A luta comunitária pelo Campo da Aviação
A luta comunitária desde 1987, encabeçada pela AMOCAM e pela Associação de Surf do
Campeche, já apontava a falta gritante de espaços públicos no Campeche. Esse ponto, como já
indicado, foi um dos elementos que levaram à rejeição do plano diretor proposto pelo IPUF,
particularmente no que tange ao destino proposto para a histórica (e extensa) área pública do
terreno conhecido como Campo de Aviação. A luta por esse Campo de Aviação é um capítulo à parte
na saga da comunidade do Campeche por um desenvolvimento que conserve o meio ambiente e as
tradições culturais da região.
A história do Campo de Aviação e do Casarão como espaços públicos38
O Campo de Aviação abrange uma área com 352 mil m2 localizada na região central da
Planície do Campeche que, apesar das marcas do tempo, ainda guarda lembranças de uma história
construída ao longo do século passado, como a primeira pista de pouso de Santa Catarina. A área em
questão foi, de 1927 a 1944, utilizada pela antiga Companhia Aérea Francesa Latecoère, ou “Societé
Latecoère”, e posteriormente "Air France". A história do lugar mistura-se à cultura, ao coletivo e à
identidade do Campeche e de Florianópolis. O campo foi comprado pelos franceses através de um
morador do Rio Tavares, chamado Senem, por 10 contos de réis. A área do campo era maior do que
é hoje e ia além da Avenida Pequeno Príncipe, até a rua Auroreal.39 Nela foram construídos: o
hangar de estrutura metálica, o telégrafo, a popota (espécie de alojamento dos pilotos, localizada
junto ao hangar e que, posteriormente, serviu para encontros e festas comunitárias) e o casarão em
alvenaria, com várias dependências, para apoio às atividades do Campo de Aviação. O Casarão40 era
a residência do mecânico-chefe francês e sua família. Todo o conjunto servia de apoio aos aviões
franceses da rota Toulouse, Rio de Janeiro, Buenos Aires, Santiago do Chile.
A implantação da pista de pouso em 1927 marcou a vida da comunidade do Campeche,
entremeando a história da pesca e da lavoura com a modernidade das máquinas voadoras. Em 1926,
quando Florianópolis ainda estava se acostumando com motores dos automóveis, após a
inauguração da Ponte Hercílio Luz, seus habitantes foram surpreendidos com a chegada dos aviões.
Os ruídos, as formas, a pista, novos moradores, os prédios de arquitetura diferente, os lampiões no
alto do morro... Os pilotos do além-mar causaram impacto, principalmente na pequena comunidade
do Campeche. A chegada das inusitadas máquinas voadoras rasgando os céus trouxe também novos
horizontes, uma realidade quase desconhecida aos campechanos quando os pilotos franceses da
Compagnie Génerale Aéropostale, entre 1927 e 1933, por aqui repousavam e reabasteciam. O morro
próximo, iluminado com seus lampiões, hoje conhecido como Morro do Lampião, servia de referência
ao campo para o pouso dos vôos noturnos daqueles tempos. Dentre os pilotos franceses que
pousaram no Campo de Aviação e conviveram com os nativos destacam-se o piloto e escritor Antoine
Saint Exupéry, autor do livro “O Pequeno Príncipe”, e, também um dos heróis da aviação francesa,
Jean Mermoz. Os nativos do Campeche e os franceses logo interagiram, tanto pela curiosidade com
as máquinas voadoras, como também pelos homens de "calça larga" e língua "enrolada". Em suas
passagens pelo Campeche, Saint Exupéry41 deixou marcas no imaginário popular e entre vôos e
pousos, estabeleceu-se um convívio com alguns nativos, dentre os quais o pescador Manoel Rafael
37 Nas eleições de 2002 o bloco político no poder (na cidade e no estado) sofre um duro golpe: o governador e candidato à re-eleição,
Esperidião Amim, marido da prefeita de Florianópolis, é derrotado por Luis Henrique da Silveira, aliado do presidente
Luis Inácio Lula da Silva no estado.
38 A importância do Campo de Aviação do Campeche para a comunidade resultou em vários estudos acadêmicos que
subsidiaram este documento. Dentre eles, destacam-se os de Kátia Regina Junckes (1995), Ana Maria Gadelha Albano Amora
(1996), Vilson Groh (1998), NEVES (2000), BUENO (2000), VIDAL (2000).
39 AMORA, Op. Cit., p. 152.
40 Hoje utilizado pela Intendência do Campeche e de usucapião da família da profa. Carolina Inácia de Jesus Heerdt.
41 Há controvérsias sobre o fato de Saint Exupéry ter convivido com os campechanos, contudo assumimos aqui a versão
presente no imaginário popular e também registrada em bibliografia produzida por pesquisadores nativos e acadêmicos.
25. Inácio, o seu Deca42, na época com 18 anos. Do piloto existe uma única referência a Florianópolis –
“escala Florianópolis”, relacionada em sua obra “Vôo Noturno” (na pág. 64, Ed. Nova Fronteira).
Com o início da 2º Guerra Mundial, o serviço aéreo postal francês foi interrompido e os pilotos foram
convocados para esforço de guerra. Saint Exupéry não mais freqüentou o Campeche e passou a
pilotar aviões militares quando, em 31 de julho de 1944, em uma missão de patrulha no sul da
França, sobre o mar Mediterrâneo, não mais retornou.
O patrimônio da Societé Latecoère passa à Air France, que paralisa as atividades aéreas na
pista do Campeche em função da 2º Guerra Mundial na França. Em 1944, um ano antes do fim da
guerra, o governo brasileiro, através do Decreto Federal n°6.870 de 14/9/1944, desapropria a área do
Campo de Aviação do Campeche e suas benfeitorias (a pista, o hangar metálico, a popota e o
casarão/estação de passageiros). A área passa à União e a empresa Air France é indenizada seis anos
depois.43 O campo passa a ser o primeiro aeroporto de Florianópolis, usado comercialmente pela
empresa Panair.
Com o início do funcionamento do Aeroporto Hercílio Luz, no bairro Carianos, a pista do
Campeche é desativada. O hangar metálico, antes localizado onde hoje é a Escola Brigadeiro
Eduardo Gomes, é transferido para o novo aeroporto. Todas as construções do campo passam por
transformações. A popota que servia à administração do hangar e alojamento passou a ser uma casa
de festas da comunidade local e, aos poucos, foi se deteriorando: telhas e tijolos foram roubados até o
desaparecimento da construção.
Já em 1957, o Casarão ou Estação de Passageiros passa a sediar a escola primária municipal.
Com grande número de cômodos, em 1958 o lugar acolheu flagelados de uma chuva de granizo e,
noutra ocasião, parte da construção foi residência provisória de duas famílias sem teto. Por último,
alguns cômodos da casa serviram de moradia à família da primeira professora da escola, Carolina
Inácia de Jesus Heerdt, cujos descendentes, mesmo após o seu falecimento, habitam o local até hoje.
Em 1966 o Casarão também abrigou o grupo de jovens e adultos, o posto de saúde e assistência
social e, em 1983, o Conselho Comunitário. Na realidade, o posto de saúde e assistência fazia um
trabalho de extensão de projetos da Universidade Federal de Santa Catarina, que agregava
professores e alunos daquela instituição, principalmente do curso de medicina na formação e
participação dos jovens locais em trabalhos de erradicação da verminose, comum na época pela falta
de higiene e saneamento básico.
O posto de saúde iniciou e orientou a formação dos jovens campechanos denominados
“Juventude Alegre”, na construção das primeiras fossas sépticas44. Ainda em 1966, a LBA também
desenvolveu ali um projeto com o grupo “Juventude Alegre”, criando uma pequena fábrica de
colchões de crina (palha de butiá e capim colchão) como geradora de emprego e renda; entretanto a
fabriqueta foi desativada em 1968, após um acidente com o transporte de palha.
Quanto ao Conselho Comunitário é importante dizer que ficou muitos anos nas mãos do
mesmo grupo, com fortes vínculos com a prefeitura, perdendo sua qualidade “comunitária” na
medida em que se tratava de uma entidade “quase-oficial”, veículo de trocas e favores com o
governo municipal. No início dos anos 1990, o local abrigou uma delegacia de polícia, um posto da
TELESC, e algumas salas abrigavam o Grupo de Mães do Campeche, que tinha entre suas
atividades, a recuperação de cantigas e lendas da região: dançavam e cantavam a Ratoeira,
representavam histórias e lendas e cantavam músicas da Farinhada.
A partir daí, a história do campo e do casarão tomam rumos distintos que por vezes se
cruzam em interesses comuns: um, desenhado pelo governo federal a partir de leis que valorizam o
solo; outro do governo municipal e de cunho assistencialista – ambos indiferentes ao valor histórico e
cultural do espaço. Por último, o projeto desenhado pela comunidade, que propõe o uso da área
como espaço de lazer e busca formalizar esse uso de preservação da história através de documentos e
solicitações às instâncias governamentais.
Em 1973, durante o Governo do general Emílio Garrastazu Médici, em plena ditadura militar
foi aprovada a Lei Federal nº 5.972 que definia o procedimento de regularização de terras da União e
42 INÁCIO, Getúlio Manoel, “Deca e Zé Perri”. Florianópolis: M&M Buss Assessoria Gráfica Digital, 2001.
43 A indenização foi de Cr$ 269.614,70, valores de 02/02/1951.
44 Informações pelo morador e ex-vereador Lázaro Bregue Daniel, em entrevistas nos dias 12 de fevereiro e 21 de maio de 2007.
25
26. autorizava os Ministério da Aeronáutica e Marinha a venderem ou permutarem imóveis sob sua
administração. 45
Em 1975, o Ministério da Aeronáutica inicia na Delegacia do Patrimônio da União – DPU –
o processo de regularização dos imóveis sob sua responsabilidade, entre os quais o Campo de Aviação
do Campeche. 46
Em 1980, o presidente João Baptista Figueiredo assina o Decreto que autoriza o registro e o
26
Campo de Aviação passa a ser administrado, oficialmente, pela Aeronáutica.
Em 1983, o montepio da família dos militares tenta construir no campo um condomínio de
casas militares – “Vila Militar” –, projeto que não foi adiante porque o terreno era da união e não
permitia usos particulares.
Em 1987, a Sociedade Amigos do Campeche e a Aeronáutica assinam a cessão de uso do
Campo para difusão de cultura e realização de reuniões de caráter sócio-cultural. Nesse mesmo ano,
em junho, a Associação de Surf do Campeche, a partir do já citado seminário “Discutindo o
Campeche”, envia ao prefeito Edson Andrino a solicitação de repasse da área da aeronáutica para a
comunidade, criação de um Centro de Esporte e Lazer e atividades comunitárias. A recém-criada
AMOCAM entra na luta pela preservação e uso do Campo de Aviação, e também envia documento
com um abaixo-assinado ao prefeito Edson Andrino, reivindicando, entre outras coisas, além da
criação do Parque da Lagoa da Chica, o tombamento da área do antigo aeroporto de Florianópolis47 ,
como já mencionado anteriormente.
Em 1991, a mobilização do Campeche contra a venda do terreno pela Aeronáutica resultou
na união de várias entidades locais: União das Associações Comunitárias Eclesiásticas e Desportivas
do Campeche – UNACAMP. Dela faziam parte o Conselho Comunitário do Campeche, a AMOCAM,
a SAC - Sociedade dos Amigos do Campeche, a ARCEU - Associação Recreativa, Cultural e
Desportiva Unidos, a Associação de Pais e Professores (APP) da Escola Básica Brigadeiro Eduardo
Gomes, a APP da Escola Januária Teixeira da Rocha, Conselho Econômico e Administrativo da
Capela São Sebastião (CAEP). A UNACAMP reiniciou o movimento pela garantia do uso público da
área do Campo de Aviação e enviou apelo ao então Presidente da República, Fernando Collor, para
a preservação da área e a cessão do terreno para administração pelo Município. Cópias dessa carta
foram enviadas para os parlamentares federais representantes do estado de Santa Catarina48. Nesse
mesmo ano foi inaugurado um marco na esquina da Avenida Pequeno Príncipe com a Rua da
Capela, em homenagem à primeira pista de pouso de Santa Catarina. O marco simbólico é uma base
de cimento e uma grande pedra contendo duas placas: numa delas, o desenho da ponte Hercílio Luz
se sobrepõe a outro desenho: uma pista de pouso e uma torre de 33 metros com a inscrição: PRF Air
France, e o seguinte registro: "Campeche 1927, Homenagem aos Pioneiros da Aviação". Na outra
placa o seguinte registro: “Este local foi palco dos primeiros pousos e decolagens dos precursores da
aviação. Vindos do além-mar em suas primitivas máquinas voadoras, por aqui passaram os
pioneiros do ar, Antoine de Saint-Exupèry, Jean Mermoz e Henry Guillaumet, fazendo a ligação
entre a Europa e a América do Sul. A Associação dos Amigos da Base Aérea de Florianópolis –
AABAF, como testemunha histórico-cultural, ergue este marco em homenagem aos primórdios da
aviação da Ilha de Santa Catarina, a reverenciar permanentemente os bravos aviadores de ontem,
hoje e de sempre". O marco surgiu de um acordo entre a AABAF e a sociedade organizada do
Campeche em um projeto conhecido como “Tradição”, que visava à preservação da história e à
conservação daquele espaço. No evento inaugural estiveram presentes autoridades civis e militares,
dentre as quais o Comandante do 5º Comando Aéreo Regional e Anésia Pinheiro Machado, com 90
anos, a primeira aviadora brasileira. A comunidade foi convidada para as atividades de lazer e para
assistir à apresentação de aviões e pára-quedismo, exposição de monomotores e giroscópio.
Em 28 de julho de 1994, o Estado Maior das Forças Armadas – EMFA - envia ofício ao DPU,
informando do "Plano de Alienação de Imóveis" e autorizando a venda do terreno do Campeche. A
primeira avaliação da área é concluída em 9 de setembro de 1994, estipulando o valor do campo em
45 Amora, Op. Cit.
46 Delegacia do Patrimônio da União - DPU/Florianópolis, Santa Catarina. Processo nº. 10.80131435-61.
47 Amora, Op. cit.
48 Amora. Op. Cit..
27. R$ 1.645.225,00. Esse procedimento não teve continuidade. Em 11 de novembro de 1999, o terreno
do Campo de Aviação, anteriormente registrado no Cartório de Registro de Imóveis com a matrícula
n° 7.216, foi desmembrado em quatro registros distintos. Com isto, o receio da comunidade era de
que o terreno fosse vendido em pedaços, considerando que os dois maiores lotes, que correspondem a
cerca de 88% da área total, foram avaliados pela Caixa Econômica, naquela época, em R$ 19
milhões. Uma das partes, que correspondia ao local onde se encontram a Escola Brigadeiro Eduardo
Gomes, o Núcleo de Educação Infantil, o Posto de Saúde e o Casarão, que já vinha sendo usada pelo
município, foi cedida à Prefeitura de Florianópolis.
Já em abril de 2000, a Câmara Municipal de Florianópolis aprovou requerimento Nº 078, de
autoria do Vereador Lázaro Bregue Daniel, solicitando ao Comandante da Base Aérea de
Florianópolis, autorização para alargar a rua Cata-Vento no limite norte do Campo de Aviação.
Somente em 2001 um ofício do 5° Comando Aéreo Regional informa que, em decorrência da
alienação do terreno, "se torna impossível ceder parte dessas áreas, em vistas dos interesses do
Comando".
Por outro lado, o Casarão – localizado na esquina da Avenida Pequeno Príncipe com a
Avenida Campeche – que fora cedido pela Aeronáutica à Prefeitura desde 1989, com uma longa
historia de uso social, foi aos poucos perdendo essa característica pelos desmandos e relaxamentos de
políticos na administração do município. Atualmente abriga a Intendência do Campeche, duas salas
servem para a reunião de um grupo de idosos que ali guarda seus pertences, e parte da estrutura
ainda serve de moradia à família da falecida professora.
As inúmeras reivindicações comunitárias e pedidos de tombamento do antigo Casarão como
patrimônio histórico e cultural de Florianópolis jamais tiveram eco. Desde o Orçamento
Participativo, em 1993, 95 e 96, foram grandes os esforços comunitários no sentido de viabilizar a
sua recuperação , para criação de um centro cultural e social.49 Em 1997, durante o I Seminário
Comunitário de Planejamento realizado no bairro, entre outras reivindicações foi encaminhado o
pedido de seu tombamento e uso social. Apesar do acúmulo de história e quantidade de áreas
públicas, o Campeche sempre foi carente de espaços sociais e culturais. Ainda em 1997, um
documento foi enviado à Fundação Franklin Cascaes (órgão municipal então pelo Casarão), à
Câmara de Vereadores e à então prefeita de Florianópolis pedindo o seu uso para atividades sócio-comunitárias
(reuniões de entidades do bairro). A resposta do município eximia a Fundação de
27
responsabilidade sobre o imóvel.
Quando em 2000, o mundo celebrou o centenário de nascimento de Saint Exupéry,
Florianópolis, orgulhosa, comemorou. No Campeche ocorreram duas comemorações: uma
organizada pela prefeitura municipal (29 de julho) e o Festival Zé Perry, organizado pela comunidade
que, sentindo-se excluída dos festejos oficiais, decidiu promover atividades culturais e de lazer
durante todo o dia 30 de julho. Esse evento serviu também para protestar contra o Plano Diretor do
IPUF que previa, no Campo de Aviação, a construção de um centro administrativo, um terminal
rodoviário, um centro de convenções e uma pequena área verde de lazer, sem jamais considerar os
pedidos comunitários no seu planejamento. O Movimento Campeche Qualidade de Vida expôs o
Plano Diretor Comunitário aos participantes do evento dando destaque ao planejamento do Campo
cuja definição como área verde de lazer e área comunitária institucional visava suprir a carência de
espaços públicos do bairro. Aquele espaço de mais 300 mil m2 abrigaria um centro de convívio sócio-cultural
com biblioteca, vídeoteca, museu, teatro, concha acústica, espaços esportivos, culturais,
serviços públicos (correio e agencia bancária), rua das artes entre outros equipamentos urbanos
voltados para a integração e convívio comunitário. Seu tombamento era reivindicado também como
sítio histórico, para assegurar a livre circulação e promoção da memória cultural da Ilha e do
Campeche em especial. Porém, tombar um bem patrimonial com tanto interesse econômico
dependeria do empenho de vários órgãos públicos entre os quais o IPUF, IPHAN, Fundação
Catarinense de Cultura, Secretaria de Patrimônio da União, Câmara de Vereadores, deputados e,
principalmente, do interesse dos governantes que na realidade nunca estabeleceram de livre e
espontânea vontade nenhuma manifestação, exceto em épocas de eleição, para esquecerem logo em
seguida.
49 AMORA, Op. Cit.
28. Em 2002, quando foi novamente aventada a possível venda do imóvel pelo 5º Comando
Aéreo sediado em Canoas (RS), a comunidade entrou com duas representações no Ministério Público
Federal,50 uma denunciando a intenção de venda e a outra o desmatamento e comercialização de
areia pela Intendência do município; afinal, tratava-se de um bem público da União e de direito da
coletividade de Florianópolis, em especial da Planície do Campeche. A representação, subscrita por
18 entidades locais, questionava a indiferença do Ministério da Aeronáutica, da DPU (Delegacia de
Patrimônio da União) e da SPU (Secretaria de Patrimônio da União) com o patrimônio histórico e
público que o campo representava, como também o desrespeito aos interesses da coletividade local.
Ainda em 2002, na gestão do presidente Fernando Henrique Cardoso, novos documentos
solicitando o tombamento e o uso público do campo foram enviados: à Presidência da República, ao
Ministério da Aeronáutica, ao 5° COMAR, à Base Aérea de Florianópolis, ao governador Esperidião
Amin e a vários parlamentares de Santa Catarina. Dele resultou uma carta do deputado federal An
tônio Carlos Konder Reis, ao Ministério da Aeronáutica, pedindo atenção aos desejos da comunidade
e ao patrimônio histórico do campo. Também foi realizada uma audiência pública na Assembléia
Legislativa de Santa Catarina, por iniciativa do Deputado Estadual Afrânio Boppre com a presença do
Cel. Eduardo Sebastião de Paiva Vidual, comandante da BASF, e representantes do estado de Santa
Catarina. Novos documentos foram elaborados e levados aos políticos locais, sem retorno para a
comunidade. Em 2003, quando assume a Presidência da República Luis Inácio Lula da Silva, houve
grande expectativa da comunidade sobre a conquista desse espaço como área pública de lazer,
principalmente, por ser um momento em que haviam sido eleitos um deputado estadual e uma
senadora, assíduos freqüentadores das assembléias comunitárias, das festas no Campo de Aviação,
sendo signatários dos diversos pedidos de tombamento. Em março de 2003, o Movimento Campeche
Qualidade de Vida, a AMOCAM e o conjunto do movimento comunitário convocam uma assembléia
popular na qual mais de 200 moradores receberam a Diretora da Secretaria de Patrimônio da União
(Alexandra Reschke), a convite do deputado federal Mauro Passos. Participaram o novo
comandante da Base Aérea, Cel. Marcos Antonio Pereira, e políticos locais. Os convidados ouviram
toda a história de luta pelo Campo de Aviação e pelo Casarão, apresentada pela comunidade e
expressaram a solidariedade com a luta local. A assembléia encaminhou a formação de uma
comissão que coordenaria os trabalhos em torno do Campo de Aviação (Figura nº 18 SPU). Ao
mesmo tempo, em resposta aos Processos Administrativos contra a venda, desmatamento e
comercialização de areia do campo de aviação pela intendência local, o Ministério Público propõe ao
comando da Base Aérea e à sociedade civil organizada do Campeche um Termo de Ajustamento de
Conduta – TAC (Material de referência nº 20). Formou-se uma comissão de 22 entidades da Planície
do Campeche, em conjunto com o comando da Base Aérea que novamente buscou parlamentares
catarinenses, desta vez na tentativa de viabilizar recursos (dez milhões de reais) através de uma
emenda parlamentar para a construção de um hospital, um restaurante e um hotel na Base Aérea.
Isso possibilitaria a permuta da área e um ajuste de conduta com o Ministério Público para o uso
sócio-comunitário do Campo. Apesar da disposição e empenho da comunidade e do comandante da
Base Aérea, o processo encontra-se paralisado e dependendo do apoio dos parlamentares que jamais
se manifestaram no sentido de atender aquelas reivindicações, resultando na caducidade do referido
TAC em 2005. Um documento encaminhado em 2003 a Gerencia de Patrimônio da União – GPU,
assinado por 1800 pessoas também não conseguiu a repercussão esperada.
Em 2004, o MCQV, a AMOCAM, a Rádio Campeche, o Instituto Sócio-Ambiental Campeche
e a APP da Escola Brigadeiro Eduardo Gomes encaminharam novos pedidos para a Prefeitura
Municipal de Florianópolis, e Gerência Regional de Patrimônio da União – GRPU – reiterando as
reivindicações de tombamento e uso do espaço do Casarão e Campo de Aviação para as atividades
sócio-comunitárias, dentre as quais a sede da Rádio Comunitária do Campeche, biblioteca e
videoteca públicas, sala para atividades educativas e de formação em informática e artesanato, além
de uma sala para informação sobre plano diretor.
No dia 20 de maio de 2005, o IPUF encaminhou um documento à Gerência de Patrimônio da
União manifestando que o processo estava paralisado e que o Casarão estava sob a guarda da
Secretaria de Obras Públicas. No dia 30 de maio, no evento “Prefeitura nas Comunidades”, foram
28
50 Ministério Público Federal, Procedimentos Administrativos 1841 e 1842. Florianópolis, 2002.
29. encaminhados novos documentos ao Prefeito Dário Berger. As mesmas solicitações foram reiteradas
na 2ª Conferência da Cidade, em 29 e 30 de julho. Contudo, nada mudou; a Intendência e
particulares continuam usufruindo exclusivamente do espaço, dificultando o acesso público
enquanto a carência de áreas de lazer no Campeche é notória, e são muitas as crianças e adolescentes
nas ruas sem espaço para atividades sociais, culturais e oficinas educativas. (Figuras nº 21).
Os fatos e encaminhamentos descritos acima testemunham o quanto, por diversas ocasiões,
desde meados de 1980, os moradores se mobilizaram para a defesa do Campo como área pública.
Além disso, recolheram assinaturas pela sua preservação para uso esportivo e recreativo e realizaram
atividades culturais e educativas, num gesto simbólico de apropriação do local como um bem
imaterial (Figuras nº 13 e 14), e foram várias as tentativas de uso do prédio do Casarão e do Campo
de Aviação pela comunidade como ponto de encontro comunitário.
Esses espaços, o Campo de Aviação e o Casarão, fazem parte da história local, são
continuamente reivindicados para o uso coletivo da sociedade civil organizada do Campeche através
de moções em conferências municipais51 ou em manifestações como assembléias, encontros, festas
populares, jornais comunitários, cartas e ofícios às autoridades municipais, estaduais e federais. Esse
conjunto de iniciativas conduziu a um novo momento de luta, cujo desfecho, ainda incompleto,
implica em outras definições relacionadas ao cumprimento, pelos municípios, do Estatuto da Cidade,
que exige a elaboração ou revisão dos planos diretores regionais. A definição do destino dessa área,
portanto, está relacionada ao processo iniciado em Florianópolis em julho de 2006, com a criação do
Conselho Popular da Planície do Campeche e, posteriormente, Núcleo Distrital do Plano Diretor
Participativo de Florianópolis. Atender ao Estatuto da Cidade significa atender à sociedade, à
coletividade, à melhoria da qualidade de vida da população, solucionando as deficiências e
necessidades locais, valorizando a natureza, a história e as potencialidades locais como trunfo do
desenvolvimento sustentável. Com a participação efetiva, a comunidade do Campeche se mantém
alerta sobre os destinos da área, denunciando a intenção de venda e o desmatamento e
comercialização de areia ao Ministério Público em 2002, assim como toda e qualquer alteração de
uso dessa área pública da União.52
Nestas últimas décadas, a preservação do patrimônio cultural tem gerado discussões e se
destaca sua vinculação à construção da cidadania. Evidencia-se a necessidade de uma política de
preservação cultural, que não leve em conta apenas exemplares da história da alta sociedade ou do
patrimônio institucional, mas que preserve a identidade da comunidade, seus locais amplos e
culturalmente variados, evitando que a cidade se transforme num local estranho e hostil ao cidadão.
A idéia de progresso e modernidade tem sistematicamente destruído as marcas do passado. É
preciso, dos órgãos de planejamento, uma visão responsável, conhecimento e vontade política para
planejar a cidade considerando a história, a memória social e a identidade cultural dos seus
habitantes. Assim, é de importância fundamental a preservação de bens culturais e a memória dos
lugares no planejamento do espaço urbano, direcionando as políticas dos órgãos públicos no sentido
de valorizar a memória dos seus habitantes pelo “significado de luta social que ela possui". Isso
inclui preservar o patrimônio urbano para uma convivência equilibrada entre o “antigo” e o “novo”,
em que o cidadão não seja excluído do seu próprio meio, da sua própria historia. Daí a necessidade
de que a política de preservação do patrimônio cultural ultrapasse os limites técnicos ou critérios e
conceitos operacionais, e que caminhe na direção da politização do tema53 mantendo viva a
identidade cultural e social dos habitantes da cidade.
O Campo de Pouso e o Casarão são partes da identidade cultural e social das comunidades
que vivem na Planície do Campeche. A região tem em ambos, os vínculos com a história que os
relaciona à chegada e trabalho dos franceses, ainda que por curto tempo, no local. Esta ligação se
expressou através de leis que denominaram ruas e avenidas com este tema, como a Lei Municipal nº
3.024, de 18/10/1988, que denomina Avenida Pequeno Príncipe, a mais importante via de acesso do
51 Moções encaminhadas na 1a e 2a Conferências Municipal e Nacional das Cidades, solicitando que o campo de aviação,
patrimônio histórico-cultural de Florianópolis, seja transformado em “Parque Municipal sócio-cultural” a ser administrado pelo
município.
52 Ministério Público Federal, Op Cit.
53 MAGALDI, C. - O Direito à Memória - Patrimônio Histórico e Cidadania, Secretaria Municipal de Cultura, Prefeitura
Municipal de São Paulo, 199. Congresso Internacional "Patrimônio Histórico e Cidadania
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