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Cad. Pesq. Cdhis, Uberlândia, v.25, n.2, jul./dez. 2012 407
A fonte histórica e seu lugar de produção
José D’Assunção Barros 1
Resumo: Este artigo busca desenvolver algumas considerações relacionadas à metodo-
logia de tratamento de ‘fontes históricas’. Após algumas considerações relacionadas à es-
colha e constituição de fontes históricas, é discutida uma questão mais específica: o lugar
de produção de um texto tomado como fonte histórica. As questões tratadas neste artigo
referem-se mais especificamente aos textos autorais.
Palavras-chave: Fontes históricas. Teoria da História. Metodologia.
Abstract: This article aims to develop some considerations related to the methodology
for treatment of historical resources. After some considerations about the choice and cons-
titution of the historical resources, it is discussed a specific question: the production place
of a text constitute as an historical resource. The questions treated in this article refer most
specifically to the authorial texts.
Keywords: Historical resources. Theory of History. Methodology.
1
Professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), doutor pela Universidade Federal
Fluminense (UFF).
408 Cad. Pesq. Cdhis, Uberlândia, v.25, n.2, jul./dez. 2012
Considerações iniciais
O presente artigo pretende abor-
dar algumas questões primordiais
para a prática historiográfica, mais
especificamente aquelas que se re-
ferem ao tratamento das fontes his-
tóricas. Como relacionar fontes e
problemas? Que questões e dilemas
historiográficos surgem a partir da
delimitação de um tema, da especi-
ficação de um problema, da formula-
ção de hipóteses, quando se trata de
constituir o corpus documental que
dará suporte empírico à pesquisa his-
tórica? Quais os cuidados a serem to-
mados na própria constituição de um
corpus documental em termos de ho-
mogeneidade, pertinência, represen-
tatividade em relação ao problema e
ao tema estudado? Qual a relação en-
tre os problemas que podem ser pen-
sados a partir de uma fonte e o “lugar”
que a produz como texto, documento
ou objeto material? Questões como
estas, e ainda outras, fazem parte de
há muito do universo de preocupa-
ções dos historiadores. Sobre elas – e
mais especificamente sobre a necessi-
dade de identificação de um “lugar de
produção” das fontes históricas (para
aqui retomar a célebre expressão de
Michel de Certeau), refletiremos nas
próximas linhas.
Michel de Certeau e a reflexão
sobre o lugar de produção da
historiografia
A primeira reflexão mais sistemáti-
ca sobre o conceito de “lugar de produ-
ção” na historiografia foi desenvolvida
por Michel de Certeau em um texto de
1974 que se tornou célebre: “A operação
historiográfica”2
. A percepção de que o
historiador escreve de um lugar social,
de que na operação historiográfica ele
escreve a partir de um ponto de vista,
atravessado por subjetividades e inscri-
ções sociais várias, já vinha naturalmen-
te sendo elaborada pelos historicistas
mais atuantes da segunda metade do sé-
culo XIX, tais como o historiador Gustav
Droysen3
e o filósofo Wilhelm Dilthey4
,
entre outros. Historiadores oitocentistas
como Gervinus, em uma obra de 1837
intitulada “Fundamentos da Teoria da
História”5
, já discorre detidamente sobre
o que é o fazer histórico e sobre o fato de
que o historiador desenvolve esta ativi-
dade a partir de uma posição específica
e de uma inscrição em uma sociedade e,
com relação à questão que lhe era mais
cara, de um certo lugar nacional. Essa
percepção de que o historiador escreve
de um lugar, aliás, foi uma pedra de to-
2
CERTEAU, Michel de. “A operação historiográ-
fica”, in A escrita da História. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 1988. p.16-48 [original:
1974].
3
DROYSEN, J. Gustav. Manual de teoria da Histó-
ria. Petrópolis: Vozes, 2009 [original: 1868].
4
DILTHEY, Wilhelm. A construção do mundo
histórico nas Ciências Humanas. São Paulo:
UNESP, 2010.
5
GERVINUS, Georg. Fundamentos de teoria de
História. Petrópolis: Editora Vozes, 2010.
Cad. Pesq. Cdhis, Uberlândia, v.25, n.2, jul./dez. 2012 409
que importante no desenvolvimento do
historicismo, que já vinha contrastando
com os historiadores positivistas do sé-
culo XIX em seu reconhecimento de que
qualquer texto parte de um lugar e de um
ponto de vista. Esta consciência históri-
ca prossegue de maneira cada vez mais
afirmativa através do século XX, com
autores como Marc Bloch6
, Lucien Feb-
vre7
e inúmeros historiadores ligados a
movimentos como o dos Annales ou do
Presentismo norte-americano e também
a perspectivas como a do Materialismo
Histórico ou da hermenêutica alemã8
.
De todo modo, pode-se dizer que, em seu
texto de 1974, Michel de Certeau encon-
trou a palavra certa para desdobrar uma
arguta reflexão sobre o fazer historiográ-
fico. “Lugar de Produção” foi a expressão
que Certeau celebrizou para expressar a
idéia de que o historiador, em sua práti-
ca e operação historiográfica, escreve ele
mesmo a partir de um lugar, de uma ins-
crição em uma sociedade e em uma co-
munidade historiográfica atualizada pela
sua própria época, de um enredamento
que o situa em uma instituição (univer-
sitária, por exemplo), de uma teia de
intertextualidades que o influenciam de
múltiplas maneiras. O historiador, ho-
mem de seu tempo, acompanha os ditos
6
BLOCH, Marc. Apologia da História. Rio de Ja-
neiro: Jorge Zahar, 2001 [original publicado:
1949, póstumo] [original de produção do texto:
1941-1942].
7
FEBVRE, Lucien. Combats pour l’histoire. Paris:
A. Colin, 1953.
8
Entre estes últimos, podemos lembrar o conjunto
de reflexões de Gadamer sobre a História. GADA-
MER, Hans-Georg. A consciência histórica. Rio
de Janeiro: FGV, 1998 [original: 1996].
e enfrenta os interditos proporcionados
por este lugar, que se instala ademais
em uma complexa estrutura de poder9
.
O seu trabalho torna-se possível neste
“lugar de produção” específico, que pre-
cisa ser adequadamente compreendido,
para cada caso, quando se trata de com-
preender a historiografia ou um produto
historiográfico. O próprio leitor ou be-
neficiário do produto historiográfico, ele
mesmo mergulhado em suas circunstân-
cias e perfeitamente inscrito em uma so-
ciedade e no próprio lugar que torna pos-
sível as suas condições de leitura e a sua
atividade como leitor, também interfere,
à sua maneira, neste lugar de produção
que demarca as condições de trabalho do
historiador10
.
Neste texto, estaremos direcionan-
do o conceito de “lugar de produção”
para um outro âmbito, também perce-
bido por Certeau e muito antes dele por
uma grande tradição que remonta aos
historicistas do século XIX, passando
depois por diversos setores da historio-
9
Assim se expressa Michel de Certeau no início da
primeira sessão de se seu artigo: “Toda pesquisa
histórica é articulada a partir de um lugar de pro-
dução sócio-econômico, político e cultural. Im-
plica um meio de elaboração circunscrito por de-
terminações próprias: uma profissão liberal, um
posto de estudo ou de ensino, uma categoria de
letrados, etc. Encontra-se, portanto, submetido a
opressões, ligada a privilégios, enraizada em uma
particularidade. É em função desse lugar que se
instauram os métodos, que se precisa uma topo-
grafia de interesses, que se organizam os dossiers
e as indagações relativas aos documentos” (CER-
TEAU, op.cit., p.18).
10
Sobre estes aspectos, são fundamentais as refle-
xões desenvolvidas por Paul Ricoeur no primei-
ro volume de sua obra Tempo e narrativa (RI-
COEUR, Paul. Tempo e narrativa. Vol.1: a intriga
e a narrativa histórica. São Paulo: Martins Fontes,
2010).
410 Cad. Pesq. Cdhis, Uberlândia, v.25, n.2, jul./dez. 2012
grafia do século XX. A nossa intenção
será aplicar o conceito de “lugar de pro-
dução” aos textos que o historiador cons-
titui como fontes históricas. É claro que a
percepção dos historiadores de que o seu
próprio trabalho também se escreve em
um lugar complexo – social, institucio-
nal, cultural, político, intertextual, epis-
temológico – e que precisa ser conside-
rado quando estes mesmos historiadores
tomam consciência das especificidades
de suas próprias práticas, constitui de
fato a questão crucial que logrou situar a
historiografia moderna em um novo pa-
tamar de autoconsciência. Mas este não
será o tema do presente artigo, que busca
mais especificamente desenvolver uma
reflexão sobre o tratamento das fontes
históricas. Destarte, uma reflexão inicial
sobre esta questão mostra-se imprescin-
dível.
Pensadores como Certeau, e mais
tarde Jorn Rüsen11
, foram fundamentais
para o aprimoramento da clarificação de
que, nas diversas operações que consti-
tuem a sua prática, o historiador é atra-
vessado por intersubjetividades várias,
e também por condições específicas que
definem o seu lugar social, institucional,
e mais propriamente historiográfico. As-
sim, apenas para dar um exemplo que
11
(1) RUSEN, Jörn. Razão histórica – Teoria da
História I: os fundamentos da ciência histórica.
Brasília: UNB, 2007a. (2) RUSEN, Jörn. História
viva – Teoria da História II: os princípios da
pesquisa histórica. Brasília: UNB, 2007b. (3) RU-
SEN, Jörn. Reconstrução do passado – Teoria da
História III: formas e funções do conhecimento
histórico. Brasília: UNB, 2007c. (4) RUSEN, Jörn.
“Partidarismo e objetividade – as potencialidades
racionais da ciência da história” In Razão Históri-
ca. Brasília: UNB, 2001 [original: 1983].
não será objeto deste artigo, a própria
escolha do tema de pesquisa, e a possibi-
lidade de construir problemas mais sin-
gulares a partir deste tema de pesquisa,
constitui-se para o historiador uma ope-
ração que deve ser compreendida a par-
tir deste lugar complexo. A reflexão sobre
esta questão nos levaria longe, e remete-
ria também a autores como Max Weber
(1904), entre vários outros12
.
De igual maneira, o discurso produ-
zido pelo historiador, com todas as suas
especificidades e modos de expressão, é
ainda indelevelmente ligado ao lugar de
onde fala o historiador, à sociedade em
que ele se inscreve, à instituição à qual
se vincula, aos diálogos que estabelece
com seus pares e, por vezes, a pressões
diversas advindas da comunidade de
historiadores das quais não necessaria-
mente cada historiador se apercebe. Tal
como observa Certeau em “a operação
historiográfica”, “meu dialeto [do histo-
riador] demonstra minha ligação com
um certo lugar”13
. O que se diz, e como
se diz, relacionam-se naturalmente a
este lugar, da mesma forma como se
inscrevem em um lugar os modos a par-
tir dos quais se estabelece um objeto de
pesquisa e se viabiliza uma prática a ela
relacionada. A operação historiográfica
como um todo, enfim, “refere-se à com-
binação de um lugar social e de práticas
científicas”14
, e foi sobre todas as impli-
12
WEBER, Max. A objetividade do conhecimento
nas Ciências Sociais. São Paulo: Ática, 2006 [ori-
ginal: 1904].
13
CERTEAU, op.cit, p.16
14
CERTEAU, op.cit, p.18.
Cad. Pesq. Cdhis, Uberlândia, v.25, n.2, jul./dez. 2012 411
cações de cada uma destas instâncias
– lugar social e prática científica – que
Certeau se dispôs a discorrer no ensaio a
partir do qual se afirmou definitivamente
o conceito de “lugar de produção”. A par-
tir daqui, refletiremos, ao recorrer a este
conceito, sobre uma questão específica
no interior da operação historiográfica,
que é a da percepção de que os textos que
os historiadores tomam para fontes his-
tóricas também foram produzidos, em
sua época, a parir de um lugar que pre-
cisa ser compreendido e decifrado pelo
historiador15
.
O problema histórico e a escolha
da documentação adequada
Vamos prosseguir, nesta reflexão
sobre o fazer historiográfico, de um pon-
to mais avançado na instituição do pro-
cesso de pesquisa histórica. Suponha-
mos que o assunto ou mesmo o Tema de
nossa pesquisa, bem como o seu recorte
espacial e cronológico, já estão devida-
mente delimitados (o que, tal como já se
mencionou, constitui uma operação que
também se associa ao próprio “lugar de
produção” no qual se insere o historia-
dor). Cabe agora um passo decisivo para
o estabelecimento das condições iniciais
do trabalho historiográfico. É preciso de-
terminar com clareza e precisão o “uni-
verso documental” de nossa pesquisa.
É sobre este momento, primordial para
15
O nosso objetivo, deste modo, será estabelecer,
a partir daqui, algumas considerações de cunho
metodológico que se referem à análise de fontes
históricas.
a prática historiográfica, mas que natu-
ralmente é posterior, na concepção his-
toriográfica moderna, à instituição de
um problema histórico, que refletiremos
neste artigo.
A Fonte Histórica, como se sabe, é o
elemento que assegura uma base científi-
ca à História; ou, caso se queira evitar a
interminável polêmica sobre a “cientifici-
dade da História”, o que dá legitimidade
ao discurso do historiador. É um daque-
les elementos que vai produzir a distin-
ção entre a História e o relato de ficção16
.
Qualquer afirmação do historiador deve
ser proposta a partir de uma base docu-
mental; da mesma forma que as hipóte-
ses por ele levantadas devem ser com-
provadas ou admitidas como aceitáveis
a partir do seu trabalho com as fontes17
.
Daí decorre que a escolha do uni-
verso documental deve estar intima-
mente ligada às hipóteses de trabalho,
ao “problema” levantado, aos objetivos
da pesquisa. Tudo isto, naturalmente,
está associado ao “lugar de produção” no
16
Isto é, referimo-nos aqui, mais especificamente,
à tradição historiográfica que se desenvolveu na
civilização ocidental cristã. Deve ficar bem enten-
dido que há casos de outras civilizações que de-
senvolveram um “fazer histórico” que prescinde
do documento.
17
Não nos referimos, naturalmente, à “literatura
histórica” oferecida ao público sem maiores pre-
tensões científicas ou acadêmicas. A exigência de
uma “base documental” é mormente uma exigên-
cia de historiadores para com historiadores, e que
parte também de um público mais especializado.
Em vista do público a que se destina, ou dos hori-
zontes editoriais que norteiam o produto final do
discurso historiográfico (por exemplo: um livro),
pode se dar também que não haja uma citação do-
cumental, o que não quer dizer que o historiador
não tenha construído o seu trabalho a partir de
documentos históricos.
412 Cad. Pesq. Cdhis, Uberlândia, v.25, n.2, jul./dez. 2012
qual se inscreve o próprio historiador,
mas não é desta questão tão importante
quanto específica que trataremos agora.
Queremos chamar atenção para o fato de
que cada pesquisa em especial vai permi-
tir determinadas alternativas de “univer-
sos documentais” (alternativas que, ob-
viamente, serão objetos de uma escolha,
elas mesmas interferidas pelo próprio
lugar de produção do historiador). O
fato de que cada pesquisa em especial vai
possibilitar ao historiador fazer suas es-
colhas diante de determinadas alternati-
vas de “universos documentais” constitui
o mais íntimo sentido da prédica de que
sempre se deve submeter um determina-
do conjunto documental a uma “análise
de adequação”, com vistas a verificar se
as fontes propostas realmente estarão
sintonizadas com o problema histórico
proposto.
É verdade que pode se dar, em al-
guns casos, que o universo documental já
esteja determinado a priori pelo próprio
objetivo da pesquisa definida de ante-
mão pelo historiador ou pelas exigências
de seu ofício no seio de uma instituição
que o convocou para um trabalho espe-
cífico. Digamos, por exemplo, que uma
instituição nos encomendou uma inves-
tigação sobre “os programas de todos os
partidos políticos oficiais desde o início
da República”, ou então sobre a “corres-
pondência entre Getúlio Vargas e seus
aliados políticos”. No primeiro caso, nos-
so universo de fontes já está previamente
definido. O próprio objeto da pesquisa já
determina, a princípio, a base documen-
tal. Meu primeiro passo será percorrer
os arquivos em busca dos programas dos
partidos políticos oficiais desde o início
da República. É claro que, dependendo
do tipo de análise a que nos propuser-
mos empreender, poderemos cotejar
estas fontes com outras. Por exemplo, se
quisermos investigar até que ponto estes
programas foram cumpridos na prática
política e social, poderemos cotejá-los
com notícias de periódicos de cada épo-
ca, estatísticas ou registros diversos. Mas
isto já será uma outra etapa.
No segundo caso, o nosso universo
documental também aparece previa-
mente delimitado – a saber: a corres-
pondência particular de Getúlio Vargas.
Mas caberá antes, é preciso notar, definir
quem iremos considerar como “os alia-
dos políticos de Getúlio Vargas”. Esta
definição já imporá, ela mesma, uma de-
limitação dentro daquele universo maior
que fora previamente determinado pe-
los objetivos da pesquisa encomendada.
Afinal de contas, será preciso extrair da
“massa documental” as cartas dirigidas
aos “aliados políticos” de Vargas, sepa-
rando-as das cartas dirigidas aos adver-
sários políticos ou às pessoas comuns.
Decidir quem era um “aliado político de
Vargas”: isto é, em última instância, uma
decisão do historiador – e na verdade a
sua primeira interferência no universo
documental.
Cad. Pesq. Cdhis, Uberlândia, v.25, n.2, jul./dez. 2012 413
Há ainda casos em que o objeto de
investigação é já um documento em si
mesmo. Por exemplo, um historiador
pode se propor a investigar certos “as-
pectos da sátira renascentista à literatura
cavaleiresca a partir do Dom Quixote de
La Mancha”18
. Neste caso, o documen-
to também já se encontra previamente
delimitado. O que não impede que de-
limitações ou ampliações posteriores
sejam efetuadas, conforme uma maior
especificação sofrida pelo problema. Se
tomamos por objeto não o “Dom Qui-
xote” na sua totalidade, mas a questão
da “presença de provérbios populares”
naquela obra, torna-se imprescindível
cotejá-la também com a tradição oral.
Ou talvez nos interessem apenas as
partes da obra em que se verifiquem
diálogos entre o fidalgo e seu escudeiro
Sancho Pança, este último represen-
tando a tradição popular.
Mas na maior parte das vezes o
historiador parte mesmo de um pro-
blema histórico, mais amplo ou mais
específico, sem que este determine
necessariamente o tipo de documento
que poderá embasar o seu trabalho.
Abrir-se-ão aqui algumas escolhas, e,
para orientá-las, a “crítica de adequa-
ção” será particularmente importante.
Por exemplo, suponhamos que o pro-
blema é investigar “a qualidade de vida
18
SAAVEDRA, Miguel de Cervantes. El ingenio-
so hidalgo Don Quixote de La Mancha. Madrid:
1605.
da população negra durante o Brasil
Colonial”. Que tipos de fontes nos per-
mitirão uma aproximação do proble-
ma? Documentos de compra e venda
relativos ao tráfico de escravos? No-
tícias de periódicos? Registros carto-
riais de nascimentos e mortes? Fontes
iconográficas que deixem transparecer
algum tipo de informação sobre a vida
cotidiana da população negra? Relatos
de militantes abolicionistas? Cantigas
legadas pelos próprios negros à tradi-
ção oral? Todos estes caminhos, e mui-
tos outros, se abrem ao historiador.
É preciso, nestes casos, proceder à
constituição de um corpus documental
adequado (Quadro 1). O corpus docu-
mental pode ser definido como o con-
junto de fontes que serão submetidas
à análise do historiador com vistas a
lhe fornecer evidências, informações
e materiais passíveis de interpretação
historiográfica. Sua constituição não
é gratuita: implica em escolhas e sele-
ções que deverão atender a determina-
das regras e critérios19
.
19
BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. Lisboa:
Edições 70, 1991, p.97.
414 Cad. Pesq. Cdhis, Uberlândia, v.25, n.2, jul./dez. 2012
Quadro 1. A constituição do corpus documental
Cad. Pesq. Cdhis, Uberlândia, v.25, n.2, jul./dez. 2012 415
Em primeiro lugar, deve-se atender
ao critério mais óbvio da pertinência. O
documento selecionado deve ser adequa-
do ao objetivo da análise. Se queremos
compreender o “pensamento nazista” a
partir de suas motivações internas, pou-
co nos adiantará proceder a um levanta-
mento exaustivo dos editoriais antifas-
cistas do Partido Comunista Alemão. Da
mesma forma, se pretendemos investigar
a tortura e as infrações aos direitos hu-
manos durante a ditadura brasileira de
1964, não conseguiremos obter muitas
informações a partir de periódicos com-
prometidos com a difusão de uma boa
imagem do regime militar junto à popu-
lação mais ampla. Tal tipo de documento
somente será útil para investigar ques-
tões relativas à “violência simbólica”20
,
ao controle direto ou indireto dos gran-
des meios de imprensa durante o regime
ou ao receio dos jornalistas em se com-
prometerem. Se quisermos informações
relativas à prática de tortura teremos de
buscá-las em outro tipo de documenta-
ção, como depoimentos de vítimas da
tortura e de dissidentes do regime mili-
tar, registros de desaparecidos políticos,
arquivos secretos do SNI, ou quaisquer
outros que permitam ao historiador mais
do que uma aproximação ingênua do
problema.
Outro problema a ser considerado
é o da homogeneidade do corpus docu-
mental. A documentação deve ser produ-
20
BOURDIEU, Pierre e PASSERON, J.C. La repro-
duction. Eléments pour une théorie du système
d’enseignement. Paris: Minuit, 1970.
zida ou agrupada conforme critérios de
identidade e de similaridade. Por exem-
plo, se pretendemos fundamentar nosso
trabalho em entrevistas, é de fundamen-
tal importância que estas tenham sido
obtidas por intermédio de técnicas idên-
ticas, além de terem sido realizadas por
indivíduos semelhantes21
. Uma entrevis-
ta obtida por mecanismos de constrangi-
mento ou de coação não pode ocupar o
mesmo setor do corpus documental que
uma entrevista colhida informalmente,
ou sem a consciência do entrevistado
de que o seu depoimento iria posterior-
mente ser registrado. Da mesma forma,
entrevistadores com diferentes níveis de
persuasão não podem produzir entrevis-
tas homogêneas.
Em muitos casos, o corpus deve es-
tar comprometido com a idéia de totali-
dade. Melhor dizendo, ele não pode con-
ter “lacunas” derivadas da relação entre
o historiador e seu documento, como a
dificuldade de acesso, a falta de ânimo
em empreender uma tradução difícil, ou
a pouca capacidade para decifrar uma
caligrafia menos transparente. As únicas
lacunas admissíveis são as que nos foram
legadas pela própria História. Uma vez
definida a série documental, não cabe ao
historiador ocultar um documento ape-
nas porque ele contradiz a hipótese que
pretende demonstrar, ou porque ele difi-
culta o andamento de suas investigações.
Em contrapartida, o corpus do-
cumental pode ser constituído a partir
do critério de representatividade. Isto
21
BARDIN, op.cit, p.98.
416 Cad. Pesq. Cdhis, Uberlândia, v.25, n.2, jul./dez. 2012
é, a análise pode ser efetuada em uma
amostra, desde que o material a isto se
preste22
. Se a amostra for uma parte re-
presentativa do universo inicial, os re-
sultados para ela obtidos poderão ser
generalizados ao todo. Por exemplo: co-
locamos como problema a identificação
das principais características estéticas da
pintura renascentista, para que depois se
possa proceder ao relacionamento da-
quelas com a sociedade do seu tempo.
Seria praticamente impossível, ou des-
necessariamente exaustivo, proceder à
coleta de todos os documentos pictóricos
da época, o que vale dizer, de todas as
obras pintadas pela totalidade dos pin-
tores renascentistas. Então procedemos
à constituição de uma amostragem: re-
colhendo duzentas obras significativas,
verificamos se certas características pre-
dominam no conjunto, de maneira que
possam ser generalizadas como aspectos
comuns a toda a produção renascentista.
A questão é: que obras deveremos
tomar para compor este conjunto repre-
sentativo? O procedimento que oferece
menos riscos é selecionar várias obras
de diversos autores. Se nos ativéssemos
à produção de um ou dois pintores, cor-
reríamos o risco de tomar certas caracte-
rísticas estéticas individuais como carac-
terísticas estéticas da sua época. O risco
ainda seria maior se cometêssemos a im-
prudência de selecionar pintores menos
representativos da estética do seu tempo,
como por exemplo Hieronymus Bosch
(c.1450-c.1516) e Pieter Bruegel, o Velho
22
BARDIN, op.cit, p.97.
(1525-1569), cada qual tendo desenvol-
vido um estilo surpreendentemente sin-
gular em meio ao modelo hegemônico da
pintura renascentista. Um Rafael (1483-
1520), por outro lado, é um artista muito
mais representativo do padrão de exce-
lência renascentista, assim como Botti-
celli, Leonardo da Vinci ou Miguel Ânge-
lo. Assim que – se pretendemos abarcar
todo o período renascentista – a inclusão
na amostragem de pintores diversifica-
dos, bem distribuídos ao longo de toda a
duração considerada, e bem espalhados
ao longo de todo o recorte europeu, nos
dará uma margem muito menor de erro.
Da mesma forma, se pretendemos levan-
tar algo como a “mentalidade” de um ofi-
cial da GESTAPO no tempo da Segunda
Guerra, é desnecessário investigar a tota-
lidade dos oficiais nazistas. Mas convém
investigar o padrão de comportamento
não de um único homem, e sim de um
número significativo deles.
O que define se uma determinada
amostragem é adequada ou não é o pro-
blema que temos em vista. Um balde de
água do mar é péssimo para dar conta
do rastreamento de toda a fauna mari-
nha, já que, com muita sorte, só teríamos
capturado um único peixe. E, no entan-
to, uma simples gota d’água é excelente
para dar conta da diversidade de micro-
organismos presentes no oceano. Tentar
estudar o oceano através de uma gota
d’água ... Essa foi, aliás, a proposta de Le
Roy Ladurie em seu famoso “Montaillou,
uma vila occitânica”23
. Montaillou era
23
LADURIE, Le Roy. Montaillou, uma aldeia occi-
tânica. Lisboa: Edições 70, 1990.
Cad. Pesq. Cdhis, Uberlândia, v.25, n.2, jul./dez. 2012 417
uma aldeia de camponeses do sudoeste
da França, em que a heresia cátara teve
influência considerável em princípios do
século XIV. Vinte e cinco dos heréticos
locais (10% da população) foram proces-
sados e punidos pela Inquisição24
. Os re-
gistros daqueles interrogatórios consti-
tuíram precisamente a base documental
de Le Roy Ladurie, que tal como observa
Peter Burke em seu ensaio sobre a Esco-
la dos Annales (1990), tratou-os como
se fossem gravações de um conjunto de
entrevistas. Reordenando a informação
fornecida pelos suspeitos aos inquisido-
res, Ladurie reconstituiu tanto a cultura
material como a mentalidade dos alde-
ões. Um pequeno conjunto de depoi-
mentos, homogêneo no que se refere à
sua produção, e representativo no que se
refere aos aspectos que Ladurie preten-
deu estudar, permitiu-lhe reconstituir
algo do que foi a aldeia inteira. E, mais
do que isto, a reconstituição dos aspec-
tos da vida cotidiana daquela aldeia lhe
possibilitou atingir não a história de uma
aldeia particular, mas o retrato de uma
sociedade mais ampla, que os aldeãos
representavam, embora dentro de sua
singularidade25
.
É verdade que certos aspectos do
tratamento dado por Ladurie às suas
fontes foram criticados – sobretudo a
sua afirmação de que se tratava de “tes-
temunhos sem intermediários, que nos
24
BURKE, Peter. A escola dos Annales — 1929 -
1989: a Revolução Francesa da Historiografia.
São Paulo: UNESP, 1991, p.96.
25
BURKE, op.cit., p.96.
trazem o camponês sobre si mesmo”26
.
Tal como observa Peter Burke, “os alde-
ões depunham em occitanês e seus tes-
temunhos eram escritos em latim. Não
era uma conversa espontânea sobre si
mesmos, mas respostas a questões sob a
ameaça de torturas”. “Os historiadores”,
acrescenta, “não podem permitir-se es-
quecer esses intermediários entre si e os
homens e mulheres que estudam”27
.
Em todo o caso, “Montaillou” per-
manece como um exemplo magistral de
como um historiador pode se aventurar
a reconstituir toda uma sociedade a par-
tir de um corpus documental perfeita-
mente adequado ao seu problema. Como
ilustração final, registramos um trecho
da obra de Le Roy Ladurie. Nele o his-
toriador revela toda a sua capacidade de
extrair, de um simples fragmento docu-
mental, informações que vão desde a cul-
tura material da aldeia de Montaillou até
os modos de pensar e de sentir de seus
habitantes, passando pelas convenções
associadas às relações de parentesco:
“Um dia [conta Guillemette Clergue,
cujo marido é violento] eu precisava de
pedir emprestados alguns pentes para
pentear o canhâmo e fui, para esse efei-
to, a casa de meu pai. E, quando aí che-
guei, encontrei o meu irmão que tirava
o esterco de casa. E perguntei ao meu
irmão:
— Onde é que está a senhora minha
mãe?
— E que lhe quereis? replicou ele.
— Quero alguns pentes, disse eu.
26
LADURIE, 1990, p.9.
27
BURKE, op.cit., p.97.
418 Cad. Pesq. Cdhis, Uberlândia, v.25, n.2, jul./dez. 2012
— A nossa mãe não está aqui, concluiu
o meu irmão. Foi à água. Só voltará da-
qui a um bom bocado.
Não acreditei no meu irmão e tentei en-
trar em casa. Então, o meu irmão pôs o
braço defronte da porta e impediu-me
de entrar (I, 337).
Comentário de Ladurie: “Texto no-
tável! A porta é estreita; foi barrada por
um simples braço de homem: a porta
cheira a esterco; Alazais Rives, a mãe,
é aguadeira da domus do seu homem,
como todas as outras. Isto não impe-
de que esta mamã muito vulgar tenha
o direito ao título de Senhora (“minha
senhora”!) por parte de sua filha Guille-
mette Clergue. Esta família é, por outro
lado, um ninho de escorpiões; os laços
são no entanto ritualizados. O irmão tra-
ta por vós a irmã, o que não o impede de
ser brutal para com ela.”28
.
A identificação do lugar de
produção da fonte histórica
Um dos principais procedimentos
para a análise do documento, como tão
bem assinalou Jacques Le Goff em seu
artigo “Documento/Monumento”29
, é
a desconstrução da monumentalidade
nele implícita – uma monumentalidade
que nos chega da própria época de pro-
dução do próprio documento. Boa parte
dos documentos produzidos intencional-
mente, com uma finalidade (ou mes-
28
LADURIE, 1990, p.252.
29
LE GOFF, Jacques. « Documento / Monumento »
In LE GOFF, Jacques. História e memória. Cam-
pinas: Unicamp, 1990. p.547.
mo sem uma intencionalidade cons-
ciente), são também “monumentos”:
foram construídos para transmitir
uma determinada imagem social,
para atender a determinados interes-
ses sociais ou políticos, para impor
uma certa direção ao olhar. O docu-
mento que hoje o historiador examina
como fonte para o seu estudo histó-
rico, um dia foi monumento através
do qual aqueles que o escreveram ou
produziram procuraram impressio-
nar, manipular, convencer, mover,
comover outros homens de sua pró-
pria época (ou mesmo as gerações fu-
turas). Esta intencionalidade de agir
sobre o outro através do documento
como se este fosse um monumento,
pode ser intencional em diversos ní-
veis, mas também é possível acom-
panhar Le Goff quando este menciona
uma “intencionalidade inconsciente”30
.
É preciso então compreender, ou mes-
mo desconstruir passo a passo, essa
dimensão monumental que se inscreve
no documento – esta dimensão atra-
vés da qual os homens de uma época
falam conscientemente ou inconscien-
temente aos seus contemporâneos (e,
consequentemente, falam também aos
historiadores). O primeiro passo, por-
tanto, é a identificação de um lugar de
Produção relacionado à fonte histórica
– um contexto complexo que produz o
documento em sua monumentalidade,
e que cabe ao historiador decifrar, um
30
LE GOFF, op.cit., p.547.
Cad. Pesq. Cdhis, Uberlândia, v.25, n.2, jul./dez. 2012 419
pouco à maneira do psicanalista que
preside à decifração de seu paciente31
.
Deve-se lembrar, antes de tudo, que
a Contextualização constitui um aspec-
to fundamental para a compreensão da
fonte histórica. Tanto quanto possível, é
necessário levantar a ‘história da fonte,
enquanto texto’, sendo também útil le-
vantar a ‘história da fonte, enquanto do-
cumento material’ (se for o caso). Diga-
-se de passagem, para o caso das fontes
de arquivo, mas também de outros tipos,
vale lembrar as palavras de Marc Bloch:
“Não obstante o que parecem pensar os
principiantes, os documentos não apa-
recem, aqui e ali, pelo efeito de qualquer
imperscrutável desígnio dos deuses. A
sua presença ou a sua ausência nos fun-
dos dos arquivos, numa biblioteca, num
terreno, dependem de causas humanas
que não escapam de forma alguma à
análise, e os problemas postos pela sua
transmissão, longe de serem apenas
exercícios de técnicos, tocam, eles pró-
prios, no mais íntimo da vida do passa-
do, pois o que assim se encontra posto
em jogo é nada menos que a passagem
da recordação através das gerações”32
A estas palavras Jacques Le Goff e
Pierre Toubert acrescentam algo, na re-
visão da noção de documento histórico
proposta no 100° Congresso Nacional
31
Mais adiante, Le Goff acrescenta: “O documento
é monumento. Resulta do esforço de sociedades
históricas para impor ao futuro – voluntaria ou
involuntariamente – determinada imagem de si
próprias. No limite, não existe documento-ver-
dade. Todo documento é mentira, Cabe ao histo-
riador não fazer o papel de ingênuo” (LE GOFF,
1990, p.548).
32
BLOCH, op.cit, p.29-30.
das Sociedades de Cultura Francesa, re-
alizado em 1975:
“O documento não é inócuo. É antes
de mais nada o resultado de uma mon-
tagem, consciente ou inconsciente, da
história, da época, da sociedade que o
produziram, mas também das épocas
sucessivas durante as quais continuou a
viver, talvez esquecido, durante as quais
continuou a ser manipulado, ainda que
pelo silêncio”33
.
Já com relação à história da fonte en-
quanto texto produzido em determinada
época, esta estende-se até o momento em
que esta fonte foi produzida, isto é, até o
momento que corresponde ao seu contex-
to mais imediato. Para compreender este
contexto em todas as suas implicações,
partiremos da noção de que todo texto,
seja qual ele for, tem um emissor (aquele
que produz o texto), um objeto (a men-
sagem que é transmitida) e um receptor
(aquele a quem a mensagem se destina)34
.
Este triângulo, aparentemente tão
simples, traz em si complexidades que
desde logo ficarão claras. Apenas para co-
meçar, lembremos que o emissor de um
discurso nunca é somente o seu autor no-
minal, mas também a sociedade na qual
ele se inscreve, a sua posição social, os
constrangimentos aos quais ele está sub-
metido, e tantas outras coisas que fazem
do autor nominal apenas a ponta de um
imenso iceberg. Chamaremos a este com-
plexo conjunto que se esconde por trás do
autor de um texto de “lugar de produção”.
33
LE GOFF, op.cit., p.547.
34
BARDIN, op.cit., p.170.
420 Cad. Pesq. Cdhis, Uberlândia, v.25, n.2, jul./dez. 2012
A época
Definiremos o “lugar de produção”
de um texto a partir de um grande con-
junto de coordenadas que principia com
a sua própria época. Às vezes é possível
identificar certo conjunto de caracterís-
ticas que abarca sociedades diversifica-
das em um determinado período: por
exemplo, o mundo feudal em boa parte
ocidente europeu medieval, a cultura re-
nascentista no mesmo recorte espacial
no período seguinte. Assim, certas carac-
terísticas mais amplas – produtos da in-
teração e do diálogo entre várias culturas
e sociedades – habilitam a falar em uma
“sociedade feudal” ou em um “homem
renascentista”, antes de aprofundar o
olhar em direção ao feudalismo francês,
ao feudalismo ibérico, ao renascimento
italiano ou à cultura renascentista dos
Países Baixos. Se pretendo, por exemplo,
estudar a França ou a Alemanha da vi-
rada da década de 40, antes de me deter
em cada estudo de caso devo considerar
uma situação mais ampla: uma Europa
convulsionada pela 2ª Grande Guerra,
na medida em que este conflito interfe-
riu em cada um dos países europeus. Ou
seja, uma sociedade dificilmente está iso-
lada de outras, e por vezes há situações
estruturais e conjunturais que as abar-
cam.
É claro que esta coordenada mais
ampla, a coordenada da época, requer
muitos cuidados por parte de um histo-
riador. Deve-se sempre relativizar con-
ceitos generalizadores como “o homem
medieval”, “o homem renascentista”, “a
Europa da 2ª Guerra”. São expressões
que têm sua validade para determinadas
questões, mas não para todas – já que
rigorosamente são construções arbitrá-
rias do historiador, ainda que úteis ou
inevitáveis. É conhecida a querela em
torno do conceito de “mentalidade cole-
tiva”. Até que ponto é possível falar em
um “homem medieval”, enquanto uma
designação que dê conta de seus modos
de pensar e de sentir, de suas visões de
mundo predominantes, de seu conjun-
to de valores? Até que ponto é legítimo
saltar por sobre as especificidades re-
gionais, ou ignorar as nuanças internas
ao ocidente europeu medieval? Não há
uma resposta definitiva a estas ques-
tões. Na verdade, a aplicabilidade da-
quelas expressões abrangentes depende
do próprio objeto de minha pesquisa,
do problema que tenho em vista, das
hipóteses que orientam minha reflexão
historiográfica. Se a época é o primeiro
interferente a ser considerado na deter-
minação do “lugar de produção” de um
texto, decorre daí a necessidade de o his-
toriador estabelecer com toda a precisão
possível a data (e o lugar geográfico) do
documento. Boa parte dos documentos
textuais já se apresentam ao historiador
previamente datados, enquanto em ou-
tros há que se proceder a esta datação, ou
corrigir a data que uma primeira crítica
externa colocou em dúvida.
Outro aspecto relativo ao proble-
ma da identificação e caracterização
Cad. Pesq. Cdhis, Uberlândia, v.25, n.2, jul./dez. 2012 421
da época em que foi produzido o docu-
mento histórico, é que nem todo o texto
tem apenas um só lugar de produção em
termos cronológicos. Por vezes há um
imbricado de épocas e autores que atu-
aram na produção do texto definitivo.
Tomaremos como exemplo significativo
o conjunto das diversas narrativas bíbli-
cas. Textos como o Samuel ou o Reis I e
II apresentam, além de seu autor princi-
pal – que por sinal já construiu sua nar-
rativa baseando-se em documentos mais
antigos – mais dois ou três autores pos-
teriores e outros tantos compiladores.
Desta forma, trata-se de um discurso que
sofreu alterações e interpolações. Assim
sendo, um historiador não pode se pôr a
refletir seriamente sobre uma narrativa
bíblica sem indagar pelos seus lugares de
produção do discurso, caso contrário sua
leitura será pouco menos ingênua que a
de um fiel devoto que se ponha a meditar
sobre o texto sagrado em uma manhã de
culto dominical.
Um exemplo prático poderá ilus-
trar o problema. O livro Samuel, que nos
fala dos reis Saul e Davi, tem por objeto
o período anterior ao do livro seguinte
– Reis – que conta a história a partir de
970 a.c. com Salomão e seus sucessores.
A certa altura da narrativa sobre Samuel
encontramos a seguinte profecia sobre
Salomão, que é posta na boca do profeta:
“É desta forma que o rei vos governa-
rá: tomará os vossos filhos e os porá
nas suas carroças, e fará deles moços
de cavalos, e correrão adiante dos seus
coches, e os constituirá seus tribunos, e
seus centuriões, e lavradores dos seus
campos, e segadores de suas meses, e
fabricantes de suas armas e carroças. E
fará de vossas filhas suas perfumadeiras,
e cozinheiras, e padeiras. Tomará tam-
bém o melhor dos vossos campos, e das
vossas vinhas, e dos vossos olivais, e dá-
-los-á aos seus servos. E também tomará
o dízimo dos vossos trigos, e do rendi-
mento das vinhas, para ter o que dar aos
seus eunucos e servos. Tomará também
os vossos servos e servas e os melhores
jovens, e os jumentos, e os empregará no
seu trabalho. Tomará também o dízimo
dos vossos rebanhos, e vós sereis seus
servos” (I Samuel VIII, 11-17)
Eis aqui uma profecia em que o
profeta Samuel parece antecipar ad-
miravelmente algumas medidas que
de fato se verificariam no governo de
Salomão, setenta anos depois, como
o alistamento militar compulsório, o
trabalho forçado nas grandes obras, e
a tributação excessiva. Contudo, alguns
estudiosos têm poucas dúvidas em
atribuir a profecia a uma interpolação
de um dos dois autores posteriores do
livro de Samuel, talvez aquele que es-
creveu já de depois do exílio babilôni-
co, cerca de quatrocentos anos depois
do primeiro autor do livro. Neste caso,
o trecho deixa de ser profecia para se
tornar uma crítica à instituição da re-
aleza, produzida depois de uma longa
sucessão de fracassos que culminariam
como saque de Jerusalém em 587 a.C.
422 Cad. Pesq. Cdhis, Uberlândia, v.25, n.2, jul./dez. 2012
Quadro 2: A posição social do autor ou do emissor do discurso
POSIÇÃOSOCIAL
ou‘PerfilSocial’
(doEmissor
oudo
AutordoDiscurso)
CLASSESOCIAL
CATEGORIASOCIAL
(dentrodaclasse)
FAMÍLIA
ou
LINHAGEM
POSIÇÃOFAMILAR
(PosiçãoPatrimonial,
ramofamiliar,etc...)
STATUSSOCIAL
SITUAÇÃOECONÔMICA
CATEGORIA
PROFISSIONAL
Posiçãona
CategoriaProfissional
PerfilCultural
1
2
3
4
5
6
7
8
9
Cad. Pesq. Cdhis, Uberlândia, v.25, n.2, jul./dez. 2012 423
A sociedade, a instituição, o lugar
teórico, a posição social
A época é apenas uma primeira luz
geral, por assim dizer, que se espalha
pelo texto historicamente produzido por
um autor. Para além dela, o autor e seu
texto também estão inscritos em uma so-
ciedade, uma instituição, um lugar meto-
dológico, estético, filosófico (Quadro 2).
Em outras palavras, há grandes linhas
que interagem nas condições de sua pro-
dução textual e na constituição de seu
universo mental. O “homem medieval”
é uma construção útil de pensamento,
mas que se dissipa no momento em que
dirigimos o olhar para as especificidades
regionais e para as estruturas de “curta
duração” que se inscrevem na “longa du-
ração medieval”. Assim que, a “sociedade
medieval ibérica” irá diferir em diversos
aspectos da “sociedade medieval fran-
cesa”. Ou que, dentro da idéia de uma
“sociedade medieval ibérica”, Portugal
se distinguirá de Castela. Ou ainda: será
possível em um momento posterior de
aprofundamento identificar as distinções
fundamentais entre o Portugal do século
XIII e o Portugal do século XIV; se qui-
séssemos, entre a região da Beira e a re-
gião do Minho.
Mais ainda, uma determinada so-
ciedade comporta uma multiplicidade de
ambientes internos. Podemos por exem-
plo refletir sobre as distinções entre o
meio rural e o meio urbano, ou entre a
corte régia e as cortes senhoriais da Fran-
ça do Norte. O lugar de um autor está não
apenas dentro de uma sociedade histori-
camente localizada, mas também dentro
de um ambiente social que caberá ao
historiador definir a partir do exame das
muitas coordenadas que o determinam.
É diferente escrever de uma universida-
de medieval, da corte de um monarca
centralizador, de uma corte senhorial, da
instituição eclesiástica, ou da masmorra.
Todos estes ambientes se inserem a prin-
cípio dentro de uma sociedade medieval
mais ampla, mas começam a se opor no
momento seguinte da investigação histo-
riográfica.
Da mesma forma, um mosteiro be-
neditino defende uma determinada posi-
ção dentro da instituição eclesiástica que
é radicalmente distinta da posição defen-
dida pela abadia cisterciense. E dentro
de cada abadia ou mosteiro, deveríamos
em um segundo momento isolar a posi-
ção institucional do monge comum e do
Abade. Além disto, um autor participa de
um determinado circuito de posições es-
téticas, filosóficas ou metodológicas que
contrasta, por ventura, com as de um
contemporâneo pertencente a uma ou-
tra corrente de pensamento. Assim que,
dentro do pensamento iluminista fran-
cês do século XVIII, iremos encontrar
subcorrentes várias, umas defendendo
um maior ou menor grau de empirismo
dentro da investigação científica, outras
com uma maior influência do racionalis-
mo cartesiano; umas inteiramente mate-
rialistas, outras deístas; e, dentro deste
último grupo, umas deístas clericais e
outras deístas explicitamente anticleri-
cais. Em Voltaire temos uma clara pri-
mazia do empirismo, enquanto que em
424 Cad. Pesq. Cdhis, Uberlândia, v.25, n.2, jul./dez. 2012
Montesquieu já identificamos uma maior
esforço de síntese entre o empirismo e o
racionalismo cartesiano; nos materialis-
tas empíricos como Condillac o ateísmo
é explícito, ao passo que Voltaire já ex-
pressa algo como um deísmo anticlerical.
Para além disto, deveríamos iden-
tificar a “posição de classe” de cada um
destes iluministas franceses; distinguir
por exemplo o “barão” Montesquieu do
Voltaire “descendente da pequena no-
breza” ou do Diderot, filho de um simples
cuteleiro. E fazer isto não meramente
para acrescentar um dado bibliográfico,
mas para entender estas “posições so-
ciais” como fatores interferentes na pro-
dução do discurso de cada um dos seus
autores. A “posição social” não deve ser
compreendida ingenuamente, como um
dado isolado e absoluto que aprisiona o
autor dentro de um determinado ponto
da hierarquia social. É preciso pôr o ex-
trato social a dialogar com os objetivos
do autor quanto à sua inserção na hie-
rarquia social. Ele pode ser conformado
com seu extrato social, ou crítico com
relação a ele; neste último caso, pode ter
desenvolvido ao longo de sua vida deter-
minadas pretensões de inserção em um
ambiente social que a princípio lhe foi
vedado, ou pode engajar-se em uma re-
volução.
A classe ou segmento social é ape-
nas uma categoria generalizante, que o
historiador deve utilizar ou criticar con-
forme as suas próprias necessidades.
Um nobre do final da Idade Média, por
exemplo, deve ser avaliado não apenas a
partir do extrato a que pertence (subca-
tegorias dentro do estamento “nobreza”),
mas também de sua “posição econômica”
(havia nobres abastados e nobres empo-
brecidos), de sua “posição linhagística”
(havia linhagens de alta a baixa estirpe),
de sua “posição dentro da linhagem” (um
homem podia pertencer a uma linhagem
por linha bastarda), de sua posição den-
tro do universo familiar (ser um primo-
gênito em certas sociedades medievais
era radicalmente diferente de ser um “fi-
lho segundo”, já que era o primeiro que
recebia a herança). É todo este conjunto
de coordenadas sociais a que chamare-
mos a “posição social” de um indivíduo.
Tudo o que foi dito aqui com rela-
ção à identificação do autor de um texto
é imediatamente aplicável também para
os personagens que aparecem no texto
deste autor. Não devemos aceitar neces-
sariamente as opiniões de um autor para
com os homens que toma com objeto
de sua reflexão (o que Voltaire pensa de
Rousseau, por exemplo). Antes, devemos
proceder ao nosso próprio levantamen-
to — se possível utilizando outras fontes
— para depois pôr em diálogo a perso-
nagem que construímos e a personagem
que foi construída pelo autor.
Textos que interferem no texto
Não apenas a época, a sociedade e
a posição do autor interagem no “lugar
de produção de um texto”, mas também
“outros textos”, uns utilizados conscien-
temente pelo autor, outros atuando sem
a sua perfeita compreensão disto. Cha-
maremos a este fenômeno de “intertex-
Cad. Pesq. Cdhis, Uberlândia, v.25, n.2, jul./dez. 2012 425
tualidade” e o discutiremos posterior-
mente. Intertextualidade é o diálogo, ou
a relação dialógica, que se estabelece en-
tre vários textos. O “lugar de produção”
de um texto é também formatado pelo
intercurso de outros textos.
Voltaremos ao exemplo das narrati-
vas bíblicas. Tomemos o livro Reis I
e II. À parte a já mencionada consta-
tação de que algumas destas narrati-
vas bíblicas possuem diversos autores
– uns interpolando novos trechos de
discurso naqueles que já haviam sido
produzidos por autores anteriores,
outros empreendendo modificações
mais ou menos substanciais – consi-
deraremos ainda que alguns daqueles
relatos foram produzidos a partir de
fontes pré-existentes. Consideremos
os documentos anteriores, crônicas
perdidas, dos quais se valeu o pri-
meiro redator do livro de Reis. São
mencionados explicitamente no livro,
quase como um historiador que cita
suas fontes, alguns desses livros per-
didos: o Livro dos Atos de Salomão
(1Rs 11,4l), possivelmente escrito du-
rante o reinado de Salomão entre 970
e 931 a.c., o livro dos Anais dos Reis
de Israel35
e o livro dos Anais dos Reis
de Judá36
, posterior ao cisma que em
931 dividiu os reinos do norte e do
sul. Outras fontes não mencionadas
também são perceptíveis, como as do
35
citado dezoito vezes, entre 1Rs 14, 19 e 1Rs 15, 31.
36
citado quinze vezes entre 1Rs 14, 29 e 2Rs 24, 25.
ciclo de Elias e do ciclo de Isaías, pos-
sivelmente escritas não mais no am-
biente das cortes mas dos profetas37
.
Esta imensa variedade de “textos
por trás do texto” pode nos dar uma
idéia do material a partir da qual o
primeiro redator escreveu o livro dos
Reis. Ela nos coloca diretamente dian-
te do problema de que nenhum autor
escreve um texto a partir do nada.
Freqüentemente ele trava diálogos
com textos anteriores: ou de maneira
explícita – como foi o caso que aca-
bamos de discutir – ou de maneira
implícita, por vezes até sem o próprio
autor se dar conta disto. Um homem,
já se disse, “é muito mais filho de seu
tempo do que de seus próprios pais”,
e neste sentido está sempre em per-
manente diálogo com sua época. Mas
uma época também está em perma-
nente diálogo com as suas anteriores,
e isto também se inscreve no diálogo
intertextual de um autor.
É somente depois de examinar
estes autores ocultos que se inscre-
vem nos autores principais – sobre-
tudo no caso de obras de pretensões
historiográficas – e as demais épo-
cas que se insinuam por debaixo
da sua época, que podemos refletir
sobre o autor ou autores explíci-
tos. No caso do primeiro e princi-
pal redator de Reis, para continuar
o nosso exemplo, assinalamos que
ele escreve contemporaneamente à
37
DELORME, J. Introduction à la Bible. Paris: Des-
clée, 1969, p.445.
426 Cad. Pesq. Cdhis, Uberlândia, v.25, n.2, jul./dez. 2012
Reforma Deuteronomista de Josias
em 631 a.c., provavelmente de um
meio sacerdotal38
. A reforma deute-
ronomista apresenta como dois aspectos
fundamentais o rigor quanto às questões
da unicidade de culto e da unicidade do
lugar do culto. Precisamente, a luz ge-
ral que atravessa o livro de Reis é esta:
a sucessiva avaliação de todos os reis, de
Salomão ao exílio, conforme o grau com
que eles se afastam ou se aproximam
destes dois preceitos fundamentais. Ou
seja, um rei é tanto pior quanto mais fa-
cilmente permite a pluralidade de cultos
ou o enaltecimento de outros lugares de
culto que não Jerusalém. Desta forma, a
referência padrão é o rei Davi, unificador
do culto e conquistador de Jerusalém, e
o antimodelo é Jerobão, que mais permi-
tiu a pluralidade de cultos e incentivou a
diversidade de lugares santos39
. Portanto,
o que faz o primeiro redator de Reis é se
apropriar de toda uma série de textos an-
teriores e produzir deles uma nova leitu-
ra, consoante os seus próprios interesses
(de sua época, sociedade, instituição). O
seu novo texto é gerado a partir do diálo-
go entre o momento em que ele mesmo
se inscreve e aquela série de textos ante-
riores. E a contribuição final a este diá-
logo é acrescentada pelos dois redatores
posteriores do livro, um durante e outro
38
Em que pese uma grande controvérsia a respeito,
baseamo-nos nas conclusões da maior parte dos
autores modernos, entre os quais: DE VAUX, R.
Les Livres de Rois. Paris: 1958; PFEIFFER, R.
H. Introduction to the Old Testament. Londres:
Harper & Brothers, 1941; e SNAITH, N. H. Old
Testament. Oxford: T & T Clark, 1951.
39
BALLARINI, T. Introdução à Bíblia. Petrópolis:
Vozes, 1976. v. II/2, p.169.
depois do exílio babilônico, que já refor-
mulam a primeira redação em função da
catástrofe de 586 a.c..
Completamos, assim, um rastrea-
mento dos diversos fatores que fundam
o lugar de produção de um discurso:
Temporalidade, Sociedade e situação
do autor no que se refere às posições so-
cial, institucional, estética, metodológica
– além de toda uma intertextualidade
que circunda o autor e seu texto. Tudo
isto posto em uma relação interativa que
cabe ao historiador decifrar e interpretar
à luz das circunstâncias de produção do
discurso.
Ultrapassando a superfície das
fontes
Em certo trecho de seu ensaio Como
se Escreve a História, publicado em 1971,
Paul Veyne registra um conselho que de-
veria ser recorrente para o aprendizado
da prática historiográfica: Não se pode
contentar com as opiniões e interpreta-
ções – a mesmo com as escolhas de con-
teúdo – que se dão no interior do grupo
no qual o fenômeno estudado ocorre40
. Se
todas as etapas e dimensões da operação
historiográfica são atravessadas por sub-
jetividades e intersubjetividades que en-
volvem o objeto histórico e o sujeito que
produz o conhecimento historiográfico,
esta é a ingenuidade mais irredutível que
não se torna mais aceitável nem mesmo
pelo mais positivista dos historiadores:
40
VEYNE, Paul. Como se escreve a História. Brasí-
lia: UNB, 1982 [original: 1971], p.105.
Cad. Pesq. Cdhis, Uberlândia, v.25, n.2, jul./dez. 2012 427
há que se ultrapassar a superfície das
fontes, este lugar no qual, ainda mais do
que qualquer outro, a imersão dos ho-
mens em sua própria época torna-se ex-
plícita. Poucos pecados são tão rejeitados
para um historiador como o de reduzir-
-se não-criticamente à opinião que fa-
ziam de si mesmos os próprios homens
de uma época ou de um contexto históri-
co. Estas opiniões devem ser tratadas an-
tes de tudo como materiais, como acon-
tecimentos a serem analisados.
Carlo Ginzburg, sempre um mes-
tre no tratamento de fontes históricas,
estabelece em um livro recente uma
interessante analogia entre “O Juiz e o
Historiador”, sendo este também o tí-
tulo de seu ensaio. Se em outras obras
Ginzburg comparara o historiador ao
detetive criminal, para chamar atenção
para o “paradigma indiciário” aplicado
ao tratamento das fontes, e em uma se-
gunda obra evocara a analogia entre as
figuras do Inquisidor, do Antropólogo e
do Historiador – agora com vistas a es-
clarecer aspectos relacionados à análise
de fontes dialógicas – em “O Juiz e o
Historiador” Ginzburg pretende reforçar
a necessidade historiográfica de buscar
confrontações externas às fontes (por
exemplo, através da comparação de uma
fonte com outras, ou do seu exame con-
tra o fundo de outras séries de dados e
evidências). É neste sentido que o micro-
-historiador italiano evoca a imagem do
juiz, e não certamente no sentido que
estava por trás das assertivas proferidas
por Marc Bloch em sua Apologia da His-
tória, postumamente publicada, sobre a
necessidade “não julgar”, mas sim “com-
preender”.
Se o juiz é aquele que profere ve-
redictos, condenando e absolvendo – e
este gesto está certamente vedado ao his-
toriador, como tão bem ressaltou Marc
Bloch41
– por outro lado o juiz também
é aquele que confronta depoimentos,
que os contrasta, que os põe a se ilumi-
narem uns aos outros, que os denuncia
como perspectivas pessoais com vistas
a construir uma perspectiva mais plena,
que é a do juiz, mas também a do histo-
riador. O confronto entre fontes, ou mes-
mo entre um ponto do discurso e outro
ponto que o contradiz, seja explícita ou
implicitamente, faz parte certamente
do mais simples repertório de ações do
historiador diante da documentação que
sua problemática levou a interrogar. Si-
tuar a fonte em uma rede intertextual ou
contextual equivale a nelas introduzir
uma profundidade não apenas útil, mas
necessária ao historiador.
Considerações finais
Considerar as fontes históricas
em relação ao lugar onde foram produ-
zidos, ou ao seu “lugar de produção”,
é uma questão fulcral para o trabalho
do historiador. Esse lugar, como se viu
neste artigo, é atravessado por questões
diversas – que vão da inscrição em uma
sociedade e em um tempo à rede de in-
tertextualidades que afetou a produção
41
BLOCH, Marc. Apologia da História. Rio de Ja-
neiro: Jorge Zahar, 2001, p.125.
428 Cad. Pesq. Cdhis, Uberlândia, v.25, n.2, jul./dez. 2012
do discurso veiculado pelas fontes, en-
tre outras questões que também foram
consideradas. Outrossim, é claro que o
texto que o historiador produz pode ser
ele mesmo considerado como fonte para
um outro tipo de análise, e aqui adentra-
ríamos este campo da teoria da história
que se convencionou chamar de historio-
grafia – no sentido de que se empreende
aqui uma análise do próprio trabalho do
historiador.
O historiador, acima de tudo, é ele
mesmo histórico, e, portanto, está igual-
mente sujeito a uma inscrição no seu
próprio “lugar de produção”. Conforme
pontuamos no início deste artigo, esta
questão, igualmente primordial, remete-
ria a uma outra ordem de considerações,
que não foi o objetivo mais específico
deste artigo, embora a tenhamos pontua-
do em certo momento. Entender o “lugar
de produção”, enfim, mostra-se impres-
cindível tanto para a prática histórica
como para a prática historiográfica – esta
última compreendida como o âmbito no
qual se estabelece uma reflexão sobre os
modos como se desenvolve a operação
historiográfica e sobre o próprio texto
que se apresenta como produto elabora-
do pelo historiador.
Referências bibliográficas
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trópolis: Vozes, 1976. v. II/2.
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– Teoria da História III: formas e fun-
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cimento nas Ciências Sociais. São Paulo:
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  • 1. Cad. Pesq. Cdhis, Uberlândia, v.25, n.2, jul./dez. 2012 407 A fonte histórica e seu lugar de produção José D’Assunção Barros 1 Resumo: Este artigo busca desenvolver algumas considerações relacionadas à metodo- logia de tratamento de ‘fontes históricas’. Após algumas considerações relacionadas à es- colha e constituição de fontes históricas, é discutida uma questão mais específica: o lugar de produção de um texto tomado como fonte histórica. As questões tratadas neste artigo referem-se mais especificamente aos textos autorais. Palavras-chave: Fontes históricas. Teoria da História. Metodologia. Abstract: This article aims to develop some considerations related to the methodology for treatment of historical resources. After some considerations about the choice and cons- titution of the historical resources, it is discussed a specific question: the production place of a text constitute as an historical resource. The questions treated in this article refer most specifically to the authorial texts. Keywords: Historical resources. Theory of History. Methodology. 1 Professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), doutor pela Universidade Federal Fluminense (UFF).
  • 2. 408 Cad. Pesq. Cdhis, Uberlândia, v.25, n.2, jul./dez. 2012 Considerações iniciais O presente artigo pretende abor- dar algumas questões primordiais para a prática historiográfica, mais especificamente aquelas que se re- ferem ao tratamento das fontes his- tóricas. Como relacionar fontes e problemas? Que questões e dilemas historiográficos surgem a partir da delimitação de um tema, da especi- ficação de um problema, da formula- ção de hipóteses, quando se trata de constituir o corpus documental que dará suporte empírico à pesquisa his- tórica? Quais os cuidados a serem to- mados na própria constituição de um corpus documental em termos de ho- mogeneidade, pertinência, represen- tatividade em relação ao problema e ao tema estudado? Qual a relação en- tre os problemas que podem ser pen- sados a partir de uma fonte e o “lugar” que a produz como texto, documento ou objeto material? Questões como estas, e ainda outras, fazem parte de há muito do universo de preocupa- ções dos historiadores. Sobre elas – e mais especificamente sobre a necessi- dade de identificação de um “lugar de produção” das fontes históricas (para aqui retomar a célebre expressão de Michel de Certeau), refletiremos nas próximas linhas. Michel de Certeau e a reflexão sobre o lugar de produção da historiografia A primeira reflexão mais sistemáti- ca sobre o conceito de “lugar de produ- ção” na historiografia foi desenvolvida por Michel de Certeau em um texto de 1974 que se tornou célebre: “A operação historiográfica”2 . A percepção de que o historiador escreve de um lugar social, de que na operação historiográfica ele escreve a partir de um ponto de vista, atravessado por subjetividades e inscri- ções sociais várias, já vinha naturalmen- te sendo elaborada pelos historicistas mais atuantes da segunda metade do sé- culo XIX, tais como o historiador Gustav Droysen3 e o filósofo Wilhelm Dilthey4 , entre outros. Historiadores oitocentistas como Gervinus, em uma obra de 1837 intitulada “Fundamentos da Teoria da História”5 , já discorre detidamente sobre o que é o fazer histórico e sobre o fato de que o historiador desenvolve esta ativi- dade a partir de uma posição específica e de uma inscrição em uma sociedade e, com relação à questão que lhe era mais cara, de um certo lugar nacional. Essa percepção de que o historiador escreve de um lugar, aliás, foi uma pedra de to- 2 CERTEAU, Michel de. “A operação historiográ- fica”, in A escrita da História. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1988. p.16-48 [original: 1974]. 3 DROYSEN, J. Gustav. Manual de teoria da Histó- ria. Petrópolis: Vozes, 2009 [original: 1868]. 4 DILTHEY, Wilhelm. A construção do mundo histórico nas Ciências Humanas. São Paulo: UNESP, 2010. 5 GERVINUS, Georg. Fundamentos de teoria de História. Petrópolis: Editora Vozes, 2010.
  • 3. Cad. Pesq. Cdhis, Uberlândia, v.25, n.2, jul./dez. 2012 409 que importante no desenvolvimento do historicismo, que já vinha contrastando com os historiadores positivistas do sé- culo XIX em seu reconhecimento de que qualquer texto parte de um lugar e de um ponto de vista. Esta consciência históri- ca prossegue de maneira cada vez mais afirmativa através do século XX, com autores como Marc Bloch6 , Lucien Feb- vre7 e inúmeros historiadores ligados a movimentos como o dos Annales ou do Presentismo norte-americano e também a perspectivas como a do Materialismo Histórico ou da hermenêutica alemã8 . De todo modo, pode-se dizer que, em seu texto de 1974, Michel de Certeau encon- trou a palavra certa para desdobrar uma arguta reflexão sobre o fazer historiográ- fico. “Lugar de Produção” foi a expressão que Certeau celebrizou para expressar a idéia de que o historiador, em sua práti- ca e operação historiográfica, escreve ele mesmo a partir de um lugar, de uma ins- crição em uma sociedade e em uma co- munidade historiográfica atualizada pela sua própria época, de um enredamento que o situa em uma instituição (univer- sitária, por exemplo), de uma teia de intertextualidades que o influenciam de múltiplas maneiras. O historiador, ho- mem de seu tempo, acompanha os ditos 6 BLOCH, Marc. Apologia da História. Rio de Ja- neiro: Jorge Zahar, 2001 [original publicado: 1949, póstumo] [original de produção do texto: 1941-1942]. 7 FEBVRE, Lucien. Combats pour l’histoire. Paris: A. Colin, 1953. 8 Entre estes últimos, podemos lembrar o conjunto de reflexões de Gadamer sobre a História. GADA- MER, Hans-Georg. A consciência histórica. Rio de Janeiro: FGV, 1998 [original: 1996]. e enfrenta os interditos proporcionados por este lugar, que se instala ademais em uma complexa estrutura de poder9 . O seu trabalho torna-se possível neste “lugar de produção” específico, que pre- cisa ser adequadamente compreendido, para cada caso, quando se trata de com- preender a historiografia ou um produto historiográfico. O próprio leitor ou be- neficiário do produto historiográfico, ele mesmo mergulhado em suas circunstân- cias e perfeitamente inscrito em uma so- ciedade e no próprio lugar que torna pos- sível as suas condições de leitura e a sua atividade como leitor, também interfere, à sua maneira, neste lugar de produção que demarca as condições de trabalho do historiador10 . Neste texto, estaremos direcionan- do o conceito de “lugar de produção” para um outro âmbito, também perce- bido por Certeau e muito antes dele por uma grande tradição que remonta aos historicistas do século XIX, passando depois por diversos setores da historio- 9 Assim se expressa Michel de Certeau no início da primeira sessão de se seu artigo: “Toda pesquisa histórica é articulada a partir de um lugar de pro- dução sócio-econômico, político e cultural. Im- plica um meio de elaboração circunscrito por de- terminações próprias: uma profissão liberal, um posto de estudo ou de ensino, uma categoria de letrados, etc. Encontra-se, portanto, submetido a opressões, ligada a privilégios, enraizada em uma particularidade. É em função desse lugar que se instauram os métodos, que se precisa uma topo- grafia de interesses, que se organizam os dossiers e as indagações relativas aos documentos” (CER- TEAU, op.cit., p.18). 10 Sobre estes aspectos, são fundamentais as refle- xões desenvolvidas por Paul Ricoeur no primei- ro volume de sua obra Tempo e narrativa (RI- COEUR, Paul. Tempo e narrativa. Vol.1: a intriga e a narrativa histórica. São Paulo: Martins Fontes, 2010).
  • 4. 410 Cad. Pesq. Cdhis, Uberlândia, v.25, n.2, jul./dez. 2012 grafia do século XX. A nossa intenção será aplicar o conceito de “lugar de pro- dução” aos textos que o historiador cons- titui como fontes históricas. É claro que a percepção dos historiadores de que o seu próprio trabalho também se escreve em um lugar complexo – social, institucio- nal, cultural, político, intertextual, epis- temológico – e que precisa ser conside- rado quando estes mesmos historiadores tomam consciência das especificidades de suas próprias práticas, constitui de fato a questão crucial que logrou situar a historiografia moderna em um novo pa- tamar de autoconsciência. Mas este não será o tema do presente artigo, que busca mais especificamente desenvolver uma reflexão sobre o tratamento das fontes históricas. Destarte, uma reflexão inicial sobre esta questão mostra-se imprescin- dível. Pensadores como Certeau, e mais tarde Jorn Rüsen11 , foram fundamentais para o aprimoramento da clarificação de que, nas diversas operações que consti- tuem a sua prática, o historiador é atra- vessado por intersubjetividades várias, e também por condições específicas que definem o seu lugar social, institucional, e mais propriamente historiográfico. As- sim, apenas para dar um exemplo que 11 (1) RUSEN, Jörn. Razão histórica – Teoria da História I: os fundamentos da ciência histórica. Brasília: UNB, 2007a. (2) RUSEN, Jörn. História viva – Teoria da História II: os princípios da pesquisa histórica. Brasília: UNB, 2007b. (3) RU- SEN, Jörn. Reconstrução do passado – Teoria da História III: formas e funções do conhecimento histórico. Brasília: UNB, 2007c. (4) RUSEN, Jörn. “Partidarismo e objetividade – as potencialidades racionais da ciência da história” In Razão Históri- ca. Brasília: UNB, 2001 [original: 1983]. não será objeto deste artigo, a própria escolha do tema de pesquisa, e a possibi- lidade de construir problemas mais sin- gulares a partir deste tema de pesquisa, constitui-se para o historiador uma ope- ração que deve ser compreendida a par- tir deste lugar complexo. A reflexão sobre esta questão nos levaria longe, e remete- ria também a autores como Max Weber (1904), entre vários outros12 . De igual maneira, o discurso produ- zido pelo historiador, com todas as suas especificidades e modos de expressão, é ainda indelevelmente ligado ao lugar de onde fala o historiador, à sociedade em que ele se inscreve, à instituição à qual se vincula, aos diálogos que estabelece com seus pares e, por vezes, a pressões diversas advindas da comunidade de historiadores das quais não necessaria- mente cada historiador se apercebe. Tal como observa Certeau em “a operação historiográfica”, “meu dialeto [do histo- riador] demonstra minha ligação com um certo lugar”13 . O que se diz, e como se diz, relacionam-se naturalmente a este lugar, da mesma forma como se inscrevem em um lugar os modos a par- tir dos quais se estabelece um objeto de pesquisa e se viabiliza uma prática a ela relacionada. A operação historiográfica como um todo, enfim, “refere-se à com- binação de um lugar social e de práticas científicas”14 , e foi sobre todas as impli- 12 WEBER, Max. A objetividade do conhecimento nas Ciências Sociais. São Paulo: Ática, 2006 [ori- ginal: 1904]. 13 CERTEAU, op.cit, p.16 14 CERTEAU, op.cit, p.18.
  • 5. Cad. Pesq. Cdhis, Uberlândia, v.25, n.2, jul./dez. 2012 411 cações de cada uma destas instâncias – lugar social e prática científica – que Certeau se dispôs a discorrer no ensaio a partir do qual se afirmou definitivamente o conceito de “lugar de produção”. A par- tir daqui, refletiremos, ao recorrer a este conceito, sobre uma questão específica no interior da operação historiográfica, que é a da percepção de que os textos que os historiadores tomam para fontes his- tóricas também foram produzidos, em sua época, a parir de um lugar que pre- cisa ser compreendido e decifrado pelo historiador15 . O problema histórico e a escolha da documentação adequada Vamos prosseguir, nesta reflexão sobre o fazer historiográfico, de um pon- to mais avançado na instituição do pro- cesso de pesquisa histórica. Suponha- mos que o assunto ou mesmo o Tema de nossa pesquisa, bem como o seu recorte espacial e cronológico, já estão devida- mente delimitados (o que, tal como já se mencionou, constitui uma operação que também se associa ao próprio “lugar de produção” no qual se insere o historia- dor). Cabe agora um passo decisivo para o estabelecimento das condições iniciais do trabalho historiográfico. É preciso de- terminar com clareza e precisão o “uni- verso documental” de nossa pesquisa. É sobre este momento, primordial para 15 O nosso objetivo, deste modo, será estabelecer, a partir daqui, algumas considerações de cunho metodológico que se referem à análise de fontes históricas. a prática historiográfica, mas que natu- ralmente é posterior, na concepção his- toriográfica moderna, à instituição de um problema histórico, que refletiremos neste artigo. A Fonte Histórica, como se sabe, é o elemento que assegura uma base científi- ca à História; ou, caso se queira evitar a interminável polêmica sobre a “cientifici- dade da História”, o que dá legitimidade ao discurso do historiador. É um daque- les elementos que vai produzir a distin- ção entre a História e o relato de ficção16 . Qualquer afirmação do historiador deve ser proposta a partir de uma base docu- mental; da mesma forma que as hipóte- ses por ele levantadas devem ser com- provadas ou admitidas como aceitáveis a partir do seu trabalho com as fontes17 . Daí decorre que a escolha do uni- verso documental deve estar intima- mente ligada às hipóteses de trabalho, ao “problema” levantado, aos objetivos da pesquisa. Tudo isto, naturalmente, está associado ao “lugar de produção” no 16 Isto é, referimo-nos aqui, mais especificamente, à tradição historiográfica que se desenvolveu na civilização ocidental cristã. Deve ficar bem enten- dido que há casos de outras civilizações que de- senvolveram um “fazer histórico” que prescinde do documento. 17 Não nos referimos, naturalmente, à “literatura histórica” oferecida ao público sem maiores pre- tensões científicas ou acadêmicas. A exigência de uma “base documental” é mormente uma exigên- cia de historiadores para com historiadores, e que parte também de um público mais especializado. Em vista do público a que se destina, ou dos hori- zontes editoriais que norteiam o produto final do discurso historiográfico (por exemplo: um livro), pode se dar também que não haja uma citação do- cumental, o que não quer dizer que o historiador não tenha construído o seu trabalho a partir de documentos históricos.
  • 6. 412 Cad. Pesq. Cdhis, Uberlândia, v.25, n.2, jul./dez. 2012 qual se inscreve o próprio historiador, mas não é desta questão tão importante quanto específica que trataremos agora. Queremos chamar atenção para o fato de que cada pesquisa em especial vai permi- tir determinadas alternativas de “univer- sos documentais” (alternativas que, ob- viamente, serão objetos de uma escolha, elas mesmas interferidas pelo próprio lugar de produção do historiador). O fato de que cada pesquisa em especial vai possibilitar ao historiador fazer suas es- colhas diante de determinadas alternati- vas de “universos documentais” constitui o mais íntimo sentido da prédica de que sempre se deve submeter um determina- do conjunto documental a uma “análise de adequação”, com vistas a verificar se as fontes propostas realmente estarão sintonizadas com o problema histórico proposto. É verdade que pode se dar, em al- guns casos, que o universo documental já esteja determinado a priori pelo próprio objetivo da pesquisa definida de ante- mão pelo historiador ou pelas exigências de seu ofício no seio de uma instituição que o convocou para um trabalho espe- cífico. Digamos, por exemplo, que uma instituição nos encomendou uma inves- tigação sobre “os programas de todos os partidos políticos oficiais desde o início da República”, ou então sobre a “corres- pondência entre Getúlio Vargas e seus aliados políticos”. No primeiro caso, nos- so universo de fontes já está previamente definido. O próprio objeto da pesquisa já determina, a princípio, a base documen- tal. Meu primeiro passo será percorrer os arquivos em busca dos programas dos partidos políticos oficiais desde o início da República. É claro que, dependendo do tipo de análise a que nos propuser- mos empreender, poderemos cotejar estas fontes com outras. Por exemplo, se quisermos investigar até que ponto estes programas foram cumpridos na prática política e social, poderemos cotejá-los com notícias de periódicos de cada épo- ca, estatísticas ou registros diversos. Mas isto já será uma outra etapa. No segundo caso, o nosso universo documental também aparece previa- mente delimitado – a saber: a corres- pondência particular de Getúlio Vargas. Mas caberá antes, é preciso notar, definir quem iremos considerar como “os alia- dos políticos de Getúlio Vargas”. Esta definição já imporá, ela mesma, uma de- limitação dentro daquele universo maior que fora previamente determinado pe- los objetivos da pesquisa encomendada. Afinal de contas, será preciso extrair da “massa documental” as cartas dirigidas aos “aliados políticos” de Vargas, sepa- rando-as das cartas dirigidas aos adver- sários políticos ou às pessoas comuns. Decidir quem era um “aliado político de Vargas”: isto é, em última instância, uma decisão do historiador – e na verdade a sua primeira interferência no universo documental.
  • 7. Cad. Pesq. Cdhis, Uberlândia, v.25, n.2, jul./dez. 2012 413 Há ainda casos em que o objeto de investigação é já um documento em si mesmo. Por exemplo, um historiador pode se propor a investigar certos “as- pectos da sátira renascentista à literatura cavaleiresca a partir do Dom Quixote de La Mancha”18 . Neste caso, o documen- to também já se encontra previamente delimitado. O que não impede que de- limitações ou ampliações posteriores sejam efetuadas, conforme uma maior especificação sofrida pelo problema. Se tomamos por objeto não o “Dom Qui- xote” na sua totalidade, mas a questão da “presença de provérbios populares” naquela obra, torna-se imprescindível cotejá-la também com a tradição oral. Ou talvez nos interessem apenas as partes da obra em que se verifiquem diálogos entre o fidalgo e seu escudeiro Sancho Pança, este último represen- tando a tradição popular. Mas na maior parte das vezes o historiador parte mesmo de um pro- blema histórico, mais amplo ou mais específico, sem que este determine necessariamente o tipo de documento que poderá embasar o seu trabalho. Abrir-se-ão aqui algumas escolhas, e, para orientá-las, a “crítica de adequa- ção” será particularmente importante. Por exemplo, suponhamos que o pro- blema é investigar “a qualidade de vida 18 SAAVEDRA, Miguel de Cervantes. El ingenio- so hidalgo Don Quixote de La Mancha. Madrid: 1605. da população negra durante o Brasil Colonial”. Que tipos de fontes nos per- mitirão uma aproximação do proble- ma? Documentos de compra e venda relativos ao tráfico de escravos? No- tícias de periódicos? Registros carto- riais de nascimentos e mortes? Fontes iconográficas que deixem transparecer algum tipo de informação sobre a vida cotidiana da população negra? Relatos de militantes abolicionistas? Cantigas legadas pelos próprios negros à tradi- ção oral? Todos estes caminhos, e mui- tos outros, se abrem ao historiador. É preciso, nestes casos, proceder à constituição de um corpus documental adequado (Quadro 1). O corpus docu- mental pode ser definido como o con- junto de fontes que serão submetidas à análise do historiador com vistas a lhe fornecer evidências, informações e materiais passíveis de interpretação historiográfica. Sua constituição não é gratuita: implica em escolhas e sele- ções que deverão atender a determina- das regras e critérios19 . 19 BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 1991, p.97.
  • 8. 414 Cad. Pesq. Cdhis, Uberlândia, v.25, n.2, jul./dez. 2012 Quadro 1. A constituição do corpus documental
  • 9. Cad. Pesq. Cdhis, Uberlândia, v.25, n.2, jul./dez. 2012 415 Em primeiro lugar, deve-se atender ao critério mais óbvio da pertinência. O documento selecionado deve ser adequa- do ao objetivo da análise. Se queremos compreender o “pensamento nazista” a partir de suas motivações internas, pou- co nos adiantará proceder a um levanta- mento exaustivo dos editoriais antifas- cistas do Partido Comunista Alemão. Da mesma forma, se pretendemos investigar a tortura e as infrações aos direitos hu- manos durante a ditadura brasileira de 1964, não conseguiremos obter muitas informações a partir de periódicos com- prometidos com a difusão de uma boa imagem do regime militar junto à popu- lação mais ampla. Tal tipo de documento somente será útil para investigar ques- tões relativas à “violência simbólica”20 , ao controle direto ou indireto dos gran- des meios de imprensa durante o regime ou ao receio dos jornalistas em se com- prometerem. Se quisermos informações relativas à prática de tortura teremos de buscá-las em outro tipo de documenta- ção, como depoimentos de vítimas da tortura e de dissidentes do regime mili- tar, registros de desaparecidos políticos, arquivos secretos do SNI, ou quaisquer outros que permitam ao historiador mais do que uma aproximação ingênua do problema. Outro problema a ser considerado é o da homogeneidade do corpus docu- mental. A documentação deve ser produ- 20 BOURDIEU, Pierre e PASSERON, J.C. La repro- duction. Eléments pour une théorie du système d’enseignement. Paris: Minuit, 1970. zida ou agrupada conforme critérios de identidade e de similaridade. Por exem- plo, se pretendemos fundamentar nosso trabalho em entrevistas, é de fundamen- tal importância que estas tenham sido obtidas por intermédio de técnicas idên- ticas, além de terem sido realizadas por indivíduos semelhantes21 . Uma entrevis- ta obtida por mecanismos de constrangi- mento ou de coação não pode ocupar o mesmo setor do corpus documental que uma entrevista colhida informalmente, ou sem a consciência do entrevistado de que o seu depoimento iria posterior- mente ser registrado. Da mesma forma, entrevistadores com diferentes níveis de persuasão não podem produzir entrevis- tas homogêneas. Em muitos casos, o corpus deve es- tar comprometido com a idéia de totali- dade. Melhor dizendo, ele não pode con- ter “lacunas” derivadas da relação entre o historiador e seu documento, como a dificuldade de acesso, a falta de ânimo em empreender uma tradução difícil, ou a pouca capacidade para decifrar uma caligrafia menos transparente. As únicas lacunas admissíveis são as que nos foram legadas pela própria História. Uma vez definida a série documental, não cabe ao historiador ocultar um documento ape- nas porque ele contradiz a hipótese que pretende demonstrar, ou porque ele difi- culta o andamento de suas investigações. Em contrapartida, o corpus do- cumental pode ser constituído a partir do critério de representatividade. Isto 21 BARDIN, op.cit, p.98.
  • 10. 416 Cad. Pesq. Cdhis, Uberlândia, v.25, n.2, jul./dez. 2012 é, a análise pode ser efetuada em uma amostra, desde que o material a isto se preste22 . Se a amostra for uma parte re- presentativa do universo inicial, os re- sultados para ela obtidos poderão ser generalizados ao todo. Por exemplo: co- locamos como problema a identificação das principais características estéticas da pintura renascentista, para que depois se possa proceder ao relacionamento da- quelas com a sociedade do seu tempo. Seria praticamente impossível, ou des- necessariamente exaustivo, proceder à coleta de todos os documentos pictóricos da época, o que vale dizer, de todas as obras pintadas pela totalidade dos pin- tores renascentistas. Então procedemos à constituição de uma amostragem: re- colhendo duzentas obras significativas, verificamos se certas características pre- dominam no conjunto, de maneira que possam ser generalizadas como aspectos comuns a toda a produção renascentista. A questão é: que obras deveremos tomar para compor este conjunto repre- sentativo? O procedimento que oferece menos riscos é selecionar várias obras de diversos autores. Se nos ativéssemos à produção de um ou dois pintores, cor- reríamos o risco de tomar certas caracte- rísticas estéticas individuais como carac- terísticas estéticas da sua época. O risco ainda seria maior se cometêssemos a im- prudência de selecionar pintores menos representativos da estética do seu tempo, como por exemplo Hieronymus Bosch (c.1450-c.1516) e Pieter Bruegel, o Velho 22 BARDIN, op.cit, p.97. (1525-1569), cada qual tendo desenvol- vido um estilo surpreendentemente sin- gular em meio ao modelo hegemônico da pintura renascentista. Um Rafael (1483- 1520), por outro lado, é um artista muito mais representativo do padrão de exce- lência renascentista, assim como Botti- celli, Leonardo da Vinci ou Miguel Ânge- lo. Assim que – se pretendemos abarcar todo o período renascentista – a inclusão na amostragem de pintores diversifica- dos, bem distribuídos ao longo de toda a duração considerada, e bem espalhados ao longo de todo o recorte europeu, nos dará uma margem muito menor de erro. Da mesma forma, se pretendemos levan- tar algo como a “mentalidade” de um ofi- cial da GESTAPO no tempo da Segunda Guerra, é desnecessário investigar a tota- lidade dos oficiais nazistas. Mas convém investigar o padrão de comportamento não de um único homem, e sim de um número significativo deles. O que define se uma determinada amostragem é adequada ou não é o pro- blema que temos em vista. Um balde de água do mar é péssimo para dar conta do rastreamento de toda a fauna mari- nha, já que, com muita sorte, só teríamos capturado um único peixe. E, no entan- to, uma simples gota d’água é excelente para dar conta da diversidade de micro- organismos presentes no oceano. Tentar estudar o oceano através de uma gota d’água ... Essa foi, aliás, a proposta de Le Roy Ladurie em seu famoso “Montaillou, uma vila occitânica”23 . Montaillou era 23 LADURIE, Le Roy. Montaillou, uma aldeia occi- tânica. Lisboa: Edições 70, 1990.
  • 11. Cad. Pesq. Cdhis, Uberlândia, v.25, n.2, jul./dez. 2012 417 uma aldeia de camponeses do sudoeste da França, em que a heresia cátara teve influência considerável em princípios do século XIV. Vinte e cinco dos heréticos locais (10% da população) foram proces- sados e punidos pela Inquisição24 . Os re- gistros daqueles interrogatórios consti- tuíram precisamente a base documental de Le Roy Ladurie, que tal como observa Peter Burke em seu ensaio sobre a Esco- la dos Annales (1990), tratou-os como se fossem gravações de um conjunto de entrevistas. Reordenando a informação fornecida pelos suspeitos aos inquisido- res, Ladurie reconstituiu tanto a cultura material como a mentalidade dos alde- ões. Um pequeno conjunto de depoi- mentos, homogêneo no que se refere à sua produção, e representativo no que se refere aos aspectos que Ladurie preten- deu estudar, permitiu-lhe reconstituir algo do que foi a aldeia inteira. E, mais do que isto, a reconstituição dos aspec- tos da vida cotidiana daquela aldeia lhe possibilitou atingir não a história de uma aldeia particular, mas o retrato de uma sociedade mais ampla, que os aldeãos representavam, embora dentro de sua singularidade25 . É verdade que certos aspectos do tratamento dado por Ladurie às suas fontes foram criticados – sobretudo a sua afirmação de que se tratava de “tes- temunhos sem intermediários, que nos 24 BURKE, Peter. A escola dos Annales — 1929 - 1989: a Revolução Francesa da Historiografia. São Paulo: UNESP, 1991, p.96. 25 BURKE, op.cit., p.96. trazem o camponês sobre si mesmo”26 . Tal como observa Peter Burke, “os alde- ões depunham em occitanês e seus tes- temunhos eram escritos em latim. Não era uma conversa espontânea sobre si mesmos, mas respostas a questões sob a ameaça de torturas”. “Os historiadores”, acrescenta, “não podem permitir-se es- quecer esses intermediários entre si e os homens e mulheres que estudam”27 . Em todo o caso, “Montaillou” per- manece como um exemplo magistral de como um historiador pode se aventurar a reconstituir toda uma sociedade a par- tir de um corpus documental perfeita- mente adequado ao seu problema. Como ilustração final, registramos um trecho da obra de Le Roy Ladurie. Nele o his- toriador revela toda a sua capacidade de extrair, de um simples fragmento docu- mental, informações que vão desde a cul- tura material da aldeia de Montaillou até os modos de pensar e de sentir de seus habitantes, passando pelas convenções associadas às relações de parentesco: “Um dia [conta Guillemette Clergue, cujo marido é violento] eu precisava de pedir emprestados alguns pentes para pentear o canhâmo e fui, para esse efei- to, a casa de meu pai. E, quando aí che- guei, encontrei o meu irmão que tirava o esterco de casa. E perguntei ao meu irmão: — Onde é que está a senhora minha mãe? — E que lhe quereis? replicou ele. — Quero alguns pentes, disse eu. 26 LADURIE, 1990, p.9. 27 BURKE, op.cit., p.97.
  • 12. 418 Cad. Pesq. Cdhis, Uberlândia, v.25, n.2, jul./dez. 2012 — A nossa mãe não está aqui, concluiu o meu irmão. Foi à água. Só voltará da- qui a um bom bocado. Não acreditei no meu irmão e tentei en- trar em casa. Então, o meu irmão pôs o braço defronte da porta e impediu-me de entrar (I, 337). Comentário de Ladurie: “Texto no- tável! A porta é estreita; foi barrada por um simples braço de homem: a porta cheira a esterco; Alazais Rives, a mãe, é aguadeira da domus do seu homem, como todas as outras. Isto não impe- de que esta mamã muito vulgar tenha o direito ao título de Senhora (“minha senhora”!) por parte de sua filha Guille- mette Clergue. Esta família é, por outro lado, um ninho de escorpiões; os laços são no entanto ritualizados. O irmão tra- ta por vós a irmã, o que não o impede de ser brutal para com ela.”28 . A identificação do lugar de produção da fonte histórica Um dos principais procedimentos para a análise do documento, como tão bem assinalou Jacques Le Goff em seu artigo “Documento/Monumento”29 , é a desconstrução da monumentalidade nele implícita – uma monumentalidade que nos chega da própria época de pro- dução do próprio documento. Boa parte dos documentos produzidos intencional- mente, com uma finalidade (ou mes- 28 LADURIE, 1990, p.252. 29 LE GOFF, Jacques. « Documento / Monumento » In LE GOFF, Jacques. História e memória. Cam- pinas: Unicamp, 1990. p.547. mo sem uma intencionalidade cons- ciente), são também “monumentos”: foram construídos para transmitir uma determinada imagem social, para atender a determinados interes- ses sociais ou políticos, para impor uma certa direção ao olhar. O docu- mento que hoje o historiador examina como fonte para o seu estudo histó- rico, um dia foi monumento através do qual aqueles que o escreveram ou produziram procuraram impressio- nar, manipular, convencer, mover, comover outros homens de sua pró- pria época (ou mesmo as gerações fu- turas). Esta intencionalidade de agir sobre o outro através do documento como se este fosse um monumento, pode ser intencional em diversos ní- veis, mas também é possível acom- panhar Le Goff quando este menciona uma “intencionalidade inconsciente”30 . É preciso então compreender, ou mes- mo desconstruir passo a passo, essa dimensão monumental que se inscreve no documento – esta dimensão atra- vés da qual os homens de uma época falam conscientemente ou inconscien- temente aos seus contemporâneos (e, consequentemente, falam também aos historiadores). O primeiro passo, por- tanto, é a identificação de um lugar de Produção relacionado à fonte histórica – um contexto complexo que produz o documento em sua monumentalidade, e que cabe ao historiador decifrar, um 30 LE GOFF, op.cit., p.547.
  • 13. Cad. Pesq. Cdhis, Uberlândia, v.25, n.2, jul./dez. 2012 419 pouco à maneira do psicanalista que preside à decifração de seu paciente31 . Deve-se lembrar, antes de tudo, que a Contextualização constitui um aspec- to fundamental para a compreensão da fonte histórica. Tanto quanto possível, é necessário levantar a ‘história da fonte, enquanto texto’, sendo também útil le- vantar a ‘história da fonte, enquanto do- cumento material’ (se for o caso). Diga- -se de passagem, para o caso das fontes de arquivo, mas também de outros tipos, vale lembrar as palavras de Marc Bloch: “Não obstante o que parecem pensar os principiantes, os documentos não apa- recem, aqui e ali, pelo efeito de qualquer imperscrutável desígnio dos deuses. A sua presença ou a sua ausência nos fun- dos dos arquivos, numa biblioteca, num terreno, dependem de causas humanas que não escapam de forma alguma à análise, e os problemas postos pela sua transmissão, longe de serem apenas exercícios de técnicos, tocam, eles pró- prios, no mais íntimo da vida do passa- do, pois o que assim se encontra posto em jogo é nada menos que a passagem da recordação através das gerações”32 A estas palavras Jacques Le Goff e Pierre Toubert acrescentam algo, na re- visão da noção de documento histórico proposta no 100° Congresso Nacional 31 Mais adiante, Le Goff acrescenta: “O documento é monumento. Resulta do esforço de sociedades históricas para impor ao futuro – voluntaria ou involuntariamente – determinada imagem de si próprias. No limite, não existe documento-ver- dade. Todo documento é mentira, Cabe ao histo- riador não fazer o papel de ingênuo” (LE GOFF, 1990, p.548). 32 BLOCH, op.cit, p.29-30. das Sociedades de Cultura Francesa, re- alizado em 1975: “O documento não é inócuo. É antes de mais nada o resultado de uma mon- tagem, consciente ou inconsciente, da história, da época, da sociedade que o produziram, mas também das épocas sucessivas durante as quais continuou a viver, talvez esquecido, durante as quais continuou a ser manipulado, ainda que pelo silêncio”33 . Já com relação à história da fonte en- quanto texto produzido em determinada época, esta estende-se até o momento em que esta fonte foi produzida, isto é, até o momento que corresponde ao seu contex- to mais imediato. Para compreender este contexto em todas as suas implicações, partiremos da noção de que todo texto, seja qual ele for, tem um emissor (aquele que produz o texto), um objeto (a men- sagem que é transmitida) e um receptor (aquele a quem a mensagem se destina)34 . Este triângulo, aparentemente tão simples, traz em si complexidades que desde logo ficarão claras. Apenas para co- meçar, lembremos que o emissor de um discurso nunca é somente o seu autor no- minal, mas também a sociedade na qual ele se inscreve, a sua posição social, os constrangimentos aos quais ele está sub- metido, e tantas outras coisas que fazem do autor nominal apenas a ponta de um imenso iceberg. Chamaremos a este com- plexo conjunto que se esconde por trás do autor de um texto de “lugar de produção”. 33 LE GOFF, op.cit., p.547. 34 BARDIN, op.cit., p.170.
  • 14. 420 Cad. Pesq. Cdhis, Uberlândia, v.25, n.2, jul./dez. 2012 A época Definiremos o “lugar de produção” de um texto a partir de um grande con- junto de coordenadas que principia com a sua própria época. Às vezes é possível identificar certo conjunto de caracterís- ticas que abarca sociedades diversifica- das em um determinado período: por exemplo, o mundo feudal em boa parte ocidente europeu medieval, a cultura re- nascentista no mesmo recorte espacial no período seguinte. Assim, certas carac- terísticas mais amplas – produtos da in- teração e do diálogo entre várias culturas e sociedades – habilitam a falar em uma “sociedade feudal” ou em um “homem renascentista”, antes de aprofundar o olhar em direção ao feudalismo francês, ao feudalismo ibérico, ao renascimento italiano ou à cultura renascentista dos Países Baixos. Se pretendo, por exemplo, estudar a França ou a Alemanha da vi- rada da década de 40, antes de me deter em cada estudo de caso devo considerar uma situação mais ampla: uma Europa convulsionada pela 2ª Grande Guerra, na medida em que este conflito interfe- riu em cada um dos países europeus. Ou seja, uma sociedade dificilmente está iso- lada de outras, e por vezes há situações estruturais e conjunturais que as abar- cam. É claro que esta coordenada mais ampla, a coordenada da época, requer muitos cuidados por parte de um histo- riador. Deve-se sempre relativizar con- ceitos generalizadores como “o homem medieval”, “o homem renascentista”, “a Europa da 2ª Guerra”. São expressões que têm sua validade para determinadas questões, mas não para todas – já que rigorosamente são construções arbitrá- rias do historiador, ainda que úteis ou inevitáveis. É conhecida a querela em torno do conceito de “mentalidade cole- tiva”. Até que ponto é possível falar em um “homem medieval”, enquanto uma designação que dê conta de seus modos de pensar e de sentir, de suas visões de mundo predominantes, de seu conjun- to de valores? Até que ponto é legítimo saltar por sobre as especificidades re- gionais, ou ignorar as nuanças internas ao ocidente europeu medieval? Não há uma resposta definitiva a estas ques- tões. Na verdade, a aplicabilidade da- quelas expressões abrangentes depende do próprio objeto de minha pesquisa, do problema que tenho em vista, das hipóteses que orientam minha reflexão historiográfica. Se a época é o primeiro interferente a ser considerado na deter- minação do “lugar de produção” de um texto, decorre daí a necessidade de o his- toriador estabelecer com toda a precisão possível a data (e o lugar geográfico) do documento. Boa parte dos documentos textuais já se apresentam ao historiador previamente datados, enquanto em ou- tros há que se proceder a esta datação, ou corrigir a data que uma primeira crítica externa colocou em dúvida. Outro aspecto relativo ao proble- ma da identificação e caracterização
  • 15. Cad. Pesq. Cdhis, Uberlândia, v.25, n.2, jul./dez. 2012 421 da época em que foi produzido o docu- mento histórico, é que nem todo o texto tem apenas um só lugar de produção em termos cronológicos. Por vezes há um imbricado de épocas e autores que atu- aram na produção do texto definitivo. Tomaremos como exemplo significativo o conjunto das diversas narrativas bíbli- cas. Textos como o Samuel ou o Reis I e II apresentam, além de seu autor princi- pal – que por sinal já construiu sua nar- rativa baseando-se em documentos mais antigos – mais dois ou três autores pos- teriores e outros tantos compiladores. Desta forma, trata-se de um discurso que sofreu alterações e interpolações. Assim sendo, um historiador não pode se pôr a refletir seriamente sobre uma narrativa bíblica sem indagar pelos seus lugares de produção do discurso, caso contrário sua leitura será pouco menos ingênua que a de um fiel devoto que se ponha a meditar sobre o texto sagrado em uma manhã de culto dominical. Um exemplo prático poderá ilus- trar o problema. O livro Samuel, que nos fala dos reis Saul e Davi, tem por objeto o período anterior ao do livro seguinte – Reis – que conta a história a partir de 970 a.c. com Salomão e seus sucessores. A certa altura da narrativa sobre Samuel encontramos a seguinte profecia sobre Salomão, que é posta na boca do profeta: “É desta forma que o rei vos governa- rá: tomará os vossos filhos e os porá nas suas carroças, e fará deles moços de cavalos, e correrão adiante dos seus coches, e os constituirá seus tribunos, e seus centuriões, e lavradores dos seus campos, e segadores de suas meses, e fabricantes de suas armas e carroças. E fará de vossas filhas suas perfumadeiras, e cozinheiras, e padeiras. Tomará tam- bém o melhor dos vossos campos, e das vossas vinhas, e dos vossos olivais, e dá- -los-á aos seus servos. E também tomará o dízimo dos vossos trigos, e do rendi- mento das vinhas, para ter o que dar aos seus eunucos e servos. Tomará também os vossos servos e servas e os melhores jovens, e os jumentos, e os empregará no seu trabalho. Tomará também o dízimo dos vossos rebanhos, e vós sereis seus servos” (I Samuel VIII, 11-17) Eis aqui uma profecia em que o profeta Samuel parece antecipar ad- miravelmente algumas medidas que de fato se verificariam no governo de Salomão, setenta anos depois, como o alistamento militar compulsório, o trabalho forçado nas grandes obras, e a tributação excessiva. Contudo, alguns estudiosos têm poucas dúvidas em atribuir a profecia a uma interpolação de um dos dois autores posteriores do livro de Samuel, talvez aquele que es- creveu já de depois do exílio babilôni- co, cerca de quatrocentos anos depois do primeiro autor do livro. Neste caso, o trecho deixa de ser profecia para se tornar uma crítica à instituição da re- aleza, produzida depois de uma longa sucessão de fracassos que culminariam como saque de Jerusalém em 587 a.C.
  • 16. 422 Cad. Pesq. Cdhis, Uberlândia, v.25, n.2, jul./dez. 2012 Quadro 2: A posição social do autor ou do emissor do discurso POSIÇÃOSOCIAL ou‘PerfilSocial’ (doEmissor oudo AutordoDiscurso) CLASSESOCIAL CATEGORIASOCIAL (dentrodaclasse) FAMÍLIA ou LINHAGEM POSIÇÃOFAMILAR (PosiçãoPatrimonial, ramofamiliar,etc...) STATUSSOCIAL SITUAÇÃOECONÔMICA CATEGORIA PROFISSIONAL Posiçãona CategoriaProfissional PerfilCultural 1 2 3 4 5 6 7 8 9
  • 17. Cad. Pesq. Cdhis, Uberlândia, v.25, n.2, jul./dez. 2012 423 A sociedade, a instituição, o lugar teórico, a posição social A época é apenas uma primeira luz geral, por assim dizer, que se espalha pelo texto historicamente produzido por um autor. Para além dela, o autor e seu texto também estão inscritos em uma so- ciedade, uma instituição, um lugar meto- dológico, estético, filosófico (Quadro 2). Em outras palavras, há grandes linhas que interagem nas condições de sua pro- dução textual e na constituição de seu universo mental. O “homem medieval” é uma construção útil de pensamento, mas que se dissipa no momento em que dirigimos o olhar para as especificidades regionais e para as estruturas de “curta duração” que se inscrevem na “longa du- ração medieval”. Assim que, a “sociedade medieval ibérica” irá diferir em diversos aspectos da “sociedade medieval fran- cesa”. Ou que, dentro da idéia de uma “sociedade medieval ibérica”, Portugal se distinguirá de Castela. Ou ainda: será possível em um momento posterior de aprofundamento identificar as distinções fundamentais entre o Portugal do século XIII e o Portugal do século XIV; se qui- séssemos, entre a região da Beira e a re- gião do Minho. Mais ainda, uma determinada so- ciedade comporta uma multiplicidade de ambientes internos. Podemos por exem- plo refletir sobre as distinções entre o meio rural e o meio urbano, ou entre a corte régia e as cortes senhoriais da Fran- ça do Norte. O lugar de um autor está não apenas dentro de uma sociedade histori- camente localizada, mas também dentro de um ambiente social que caberá ao historiador definir a partir do exame das muitas coordenadas que o determinam. É diferente escrever de uma universida- de medieval, da corte de um monarca centralizador, de uma corte senhorial, da instituição eclesiástica, ou da masmorra. Todos estes ambientes se inserem a prin- cípio dentro de uma sociedade medieval mais ampla, mas começam a se opor no momento seguinte da investigação histo- riográfica. Da mesma forma, um mosteiro be- neditino defende uma determinada posi- ção dentro da instituição eclesiástica que é radicalmente distinta da posição defen- dida pela abadia cisterciense. E dentro de cada abadia ou mosteiro, deveríamos em um segundo momento isolar a posi- ção institucional do monge comum e do Abade. Além disto, um autor participa de um determinado circuito de posições es- téticas, filosóficas ou metodológicas que contrasta, por ventura, com as de um contemporâneo pertencente a uma ou- tra corrente de pensamento. Assim que, dentro do pensamento iluminista fran- cês do século XVIII, iremos encontrar subcorrentes várias, umas defendendo um maior ou menor grau de empirismo dentro da investigação científica, outras com uma maior influência do racionalis- mo cartesiano; umas inteiramente mate- rialistas, outras deístas; e, dentro deste último grupo, umas deístas clericais e outras deístas explicitamente anticleri- cais. Em Voltaire temos uma clara pri- mazia do empirismo, enquanto que em
  • 18. 424 Cad. Pesq. Cdhis, Uberlândia, v.25, n.2, jul./dez. 2012 Montesquieu já identificamos uma maior esforço de síntese entre o empirismo e o racionalismo cartesiano; nos materialis- tas empíricos como Condillac o ateísmo é explícito, ao passo que Voltaire já ex- pressa algo como um deísmo anticlerical. Para além disto, deveríamos iden- tificar a “posição de classe” de cada um destes iluministas franceses; distinguir por exemplo o “barão” Montesquieu do Voltaire “descendente da pequena no- breza” ou do Diderot, filho de um simples cuteleiro. E fazer isto não meramente para acrescentar um dado bibliográfico, mas para entender estas “posições so- ciais” como fatores interferentes na pro- dução do discurso de cada um dos seus autores. A “posição social” não deve ser compreendida ingenuamente, como um dado isolado e absoluto que aprisiona o autor dentro de um determinado ponto da hierarquia social. É preciso pôr o ex- trato social a dialogar com os objetivos do autor quanto à sua inserção na hie- rarquia social. Ele pode ser conformado com seu extrato social, ou crítico com relação a ele; neste último caso, pode ter desenvolvido ao longo de sua vida deter- minadas pretensões de inserção em um ambiente social que a princípio lhe foi vedado, ou pode engajar-se em uma re- volução. A classe ou segmento social é ape- nas uma categoria generalizante, que o historiador deve utilizar ou criticar con- forme as suas próprias necessidades. Um nobre do final da Idade Média, por exemplo, deve ser avaliado não apenas a partir do extrato a que pertence (subca- tegorias dentro do estamento “nobreza”), mas também de sua “posição econômica” (havia nobres abastados e nobres empo- brecidos), de sua “posição linhagística” (havia linhagens de alta a baixa estirpe), de sua “posição dentro da linhagem” (um homem podia pertencer a uma linhagem por linha bastarda), de sua posição den- tro do universo familiar (ser um primo- gênito em certas sociedades medievais era radicalmente diferente de ser um “fi- lho segundo”, já que era o primeiro que recebia a herança). É todo este conjunto de coordenadas sociais a que chamare- mos a “posição social” de um indivíduo. Tudo o que foi dito aqui com rela- ção à identificação do autor de um texto é imediatamente aplicável também para os personagens que aparecem no texto deste autor. Não devemos aceitar neces- sariamente as opiniões de um autor para com os homens que toma com objeto de sua reflexão (o que Voltaire pensa de Rousseau, por exemplo). Antes, devemos proceder ao nosso próprio levantamen- to — se possível utilizando outras fontes — para depois pôr em diálogo a perso- nagem que construímos e a personagem que foi construída pelo autor. Textos que interferem no texto Não apenas a época, a sociedade e a posição do autor interagem no “lugar de produção de um texto”, mas também “outros textos”, uns utilizados conscien- temente pelo autor, outros atuando sem a sua perfeita compreensão disto. Cha- maremos a este fenômeno de “intertex-
  • 19. Cad. Pesq. Cdhis, Uberlândia, v.25, n.2, jul./dez. 2012 425 tualidade” e o discutiremos posterior- mente. Intertextualidade é o diálogo, ou a relação dialógica, que se estabelece en- tre vários textos. O “lugar de produção” de um texto é também formatado pelo intercurso de outros textos. Voltaremos ao exemplo das narrati- vas bíblicas. Tomemos o livro Reis I e II. À parte a já mencionada consta- tação de que algumas destas narrati- vas bíblicas possuem diversos autores – uns interpolando novos trechos de discurso naqueles que já haviam sido produzidos por autores anteriores, outros empreendendo modificações mais ou menos substanciais – consi- deraremos ainda que alguns daqueles relatos foram produzidos a partir de fontes pré-existentes. Consideremos os documentos anteriores, crônicas perdidas, dos quais se valeu o pri- meiro redator do livro de Reis. São mencionados explicitamente no livro, quase como um historiador que cita suas fontes, alguns desses livros per- didos: o Livro dos Atos de Salomão (1Rs 11,4l), possivelmente escrito du- rante o reinado de Salomão entre 970 e 931 a.c., o livro dos Anais dos Reis de Israel35 e o livro dos Anais dos Reis de Judá36 , posterior ao cisma que em 931 dividiu os reinos do norte e do sul. Outras fontes não mencionadas também são perceptíveis, como as do 35 citado dezoito vezes, entre 1Rs 14, 19 e 1Rs 15, 31. 36 citado quinze vezes entre 1Rs 14, 29 e 2Rs 24, 25. ciclo de Elias e do ciclo de Isaías, pos- sivelmente escritas não mais no am- biente das cortes mas dos profetas37 . Esta imensa variedade de “textos por trás do texto” pode nos dar uma idéia do material a partir da qual o primeiro redator escreveu o livro dos Reis. Ela nos coloca diretamente dian- te do problema de que nenhum autor escreve um texto a partir do nada. Freqüentemente ele trava diálogos com textos anteriores: ou de maneira explícita – como foi o caso que aca- bamos de discutir – ou de maneira implícita, por vezes até sem o próprio autor se dar conta disto. Um homem, já se disse, “é muito mais filho de seu tempo do que de seus próprios pais”, e neste sentido está sempre em per- manente diálogo com sua época. Mas uma época também está em perma- nente diálogo com as suas anteriores, e isto também se inscreve no diálogo intertextual de um autor. É somente depois de examinar estes autores ocultos que se inscre- vem nos autores principais – sobre- tudo no caso de obras de pretensões historiográficas – e as demais épo- cas que se insinuam por debaixo da sua época, que podemos refletir sobre o autor ou autores explíci- tos. No caso do primeiro e princi- pal redator de Reis, para continuar o nosso exemplo, assinalamos que ele escreve contemporaneamente à 37 DELORME, J. Introduction à la Bible. Paris: Des- clée, 1969, p.445.
  • 20. 426 Cad. Pesq. Cdhis, Uberlândia, v.25, n.2, jul./dez. 2012 Reforma Deuteronomista de Josias em 631 a.c., provavelmente de um meio sacerdotal38 . A reforma deute- ronomista apresenta como dois aspectos fundamentais o rigor quanto às questões da unicidade de culto e da unicidade do lugar do culto. Precisamente, a luz ge- ral que atravessa o livro de Reis é esta: a sucessiva avaliação de todos os reis, de Salomão ao exílio, conforme o grau com que eles se afastam ou se aproximam destes dois preceitos fundamentais. Ou seja, um rei é tanto pior quanto mais fa- cilmente permite a pluralidade de cultos ou o enaltecimento de outros lugares de culto que não Jerusalém. Desta forma, a referência padrão é o rei Davi, unificador do culto e conquistador de Jerusalém, e o antimodelo é Jerobão, que mais permi- tiu a pluralidade de cultos e incentivou a diversidade de lugares santos39 . Portanto, o que faz o primeiro redator de Reis é se apropriar de toda uma série de textos an- teriores e produzir deles uma nova leitu- ra, consoante os seus próprios interesses (de sua época, sociedade, instituição). O seu novo texto é gerado a partir do diálo- go entre o momento em que ele mesmo se inscreve e aquela série de textos ante- riores. E a contribuição final a este diá- logo é acrescentada pelos dois redatores posteriores do livro, um durante e outro 38 Em que pese uma grande controvérsia a respeito, baseamo-nos nas conclusões da maior parte dos autores modernos, entre os quais: DE VAUX, R. Les Livres de Rois. Paris: 1958; PFEIFFER, R. H. Introduction to the Old Testament. Londres: Harper & Brothers, 1941; e SNAITH, N. H. Old Testament. Oxford: T & T Clark, 1951. 39 BALLARINI, T. Introdução à Bíblia. Petrópolis: Vozes, 1976. v. II/2, p.169. depois do exílio babilônico, que já refor- mulam a primeira redação em função da catástrofe de 586 a.c.. Completamos, assim, um rastrea- mento dos diversos fatores que fundam o lugar de produção de um discurso: Temporalidade, Sociedade e situação do autor no que se refere às posições so- cial, institucional, estética, metodológica – além de toda uma intertextualidade que circunda o autor e seu texto. Tudo isto posto em uma relação interativa que cabe ao historiador decifrar e interpretar à luz das circunstâncias de produção do discurso. Ultrapassando a superfície das fontes Em certo trecho de seu ensaio Como se Escreve a História, publicado em 1971, Paul Veyne registra um conselho que de- veria ser recorrente para o aprendizado da prática historiográfica: Não se pode contentar com as opiniões e interpreta- ções – a mesmo com as escolhas de con- teúdo – que se dão no interior do grupo no qual o fenômeno estudado ocorre40 . Se todas as etapas e dimensões da operação historiográfica são atravessadas por sub- jetividades e intersubjetividades que en- volvem o objeto histórico e o sujeito que produz o conhecimento historiográfico, esta é a ingenuidade mais irredutível que não se torna mais aceitável nem mesmo pelo mais positivista dos historiadores: 40 VEYNE, Paul. Como se escreve a História. Brasí- lia: UNB, 1982 [original: 1971], p.105.
  • 21. Cad. Pesq. Cdhis, Uberlândia, v.25, n.2, jul./dez. 2012 427 há que se ultrapassar a superfície das fontes, este lugar no qual, ainda mais do que qualquer outro, a imersão dos ho- mens em sua própria época torna-se ex- plícita. Poucos pecados são tão rejeitados para um historiador como o de reduzir- -se não-criticamente à opinião que fa- ziam de si mesmos os próprios homens de uma época ou de um contexto históri- co. Estas opiniões devem ser tratadas an- tes de tudo como materiais, como acon- tecimentos a serem analisados. Carlo Ginzburg, sempre um mes- tre no tratamento de fontes históricas, estabelece em um livro recente uma interessante analogia entre “O Juiz e o Historiador”, sendo este também o tí- tulo de seu ensaio. Se em outras obras Ginzburg comparara o historiador ao detetive criminal, para chamar atenção para o “paradigma indiciário” aplicado ao tratamento das fontes, e em uma se- gunda obra evocara a analogia entre as figuras do Inquisidor, do Antropólogo e do Historiador – agora com vistas a es- clarecer aspectos relacionados à análise de fontes dialógicas – em “O Juiz e o Historiador” Ginzburg pretende reforçar a necessidade historiográfica de buscar confrontações externas às fontes (por exemplo, através da comparação de uma fonte com outras, ou do seu exame con- tra o fundo de outras séries de dados e evidências). É neste sentido que o micro- -historiador italiano evoca a imagem do juiz, e não certamente no sentido que estava por trás das assertivas proferidas por Marc Bloch em sua Apologia da His- tória, postumamente publicada, sobre a necessidade “não julgar”, mas sim “com- preender”. Se o juiz é aquele que profere ve- redictos, condenando e absolvendo – e este gesto está certamente vedado ao his- toriador, como tão bem ressaltou Marc Bloch41 – por outro lado o juiz também é aquele que confronta depoimentos, que os contrasta, que os põe a se ilumi- narem uns aos outros, que os denuncia como perspectivas pessoais com vistas a construir uma perspectiva mais plena, que é a do juiz, mas também a do histo- riador. O confronto entre fontes, ou mes- mo entre um ponto do discurso e outro ponto que o contradiz, seja explícita ou implicitamente, faz parte certamente do mais simples repertório de ações do historiador diante da documentação que sua problemática levou a interrogar. Si- tuar a fonte em uma rede intertextual ou contextual equivale a nelas introduzir uma profundidade não apenas útil, mas necessária ao historiador. Considerações finais Considerar as fontes históricas em relação ao lugar onde foram produ- zidos, ou ao seu “lugar de produção”, é uma questão fulcral para o trabalho do historiador. Esse lugar, como se viu neste artigo, é atravessado por questões diversas – que vão da inscrição em uma sociedade e em um tempo à rede de in- tertextualidades que afetou a produção 41 BLOCH, Marc. Apologia da História. Rio de Ja- neiro: Jorge Zahar, 2001, p.125.
  • 22. 428 Cad. Pesq. Cdhis, Uberlândia, v.25, n.2, jul./dez. 2012 do discurso veiculado pelas fontes, en- tre outras questões que também foram consideradas. Outrossim, é claro que o texto que o historiador produz pode ser ele mesmo considerado como fonte para um outro tipo de análise, e aqui adentra- ríamos este campo da teoria da história que se convencionou chamar de historio- grafia – no sentido de que se empreende aqui uma análise do próprio trabalho do historiador. O historiador, acima de tudo, é ele mesmo histórico, e, portanto, está igual- mente sujeito a uma inscrição no seu próprio “lugar de produção”. Conforme pontuamos no início deste artigo, esta questão, igualmente primordial, remete- ria a uma outra ordem de considerações, que não foi o objetivo mais específico deste artigo, embora a tenhamos pontua- do em certo momento. Entender o “lugar de produção”, enfim, mostra-se impres- cindível tanto para a prática histórica como para a prática historiográfica – esta última compreendida como o âmbito no qual se estabelece uma reflexão sobre os modos como se desenvolve a operação historiográfica e sobre o próprio texto que se apresenta como produto elabora- do pelo historiador. Referências bibliográficas BALLARINI, T. Introdução à Bíblia. Pe- trópolis: Vozes, 1976. v. II/2. BARDIN, Laurence. Análise de conteú- do. Lisboa: Edições 70, 1991. BLOCH, Marc. Apologia da História. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001 [origi- nal publicado: 1949, póstumo] [original da produção do texto: 1941-1942]. BOURDIEU, Pierre e PASSERON, J.C. La reproduction. Eléments pour une théorie du système d’enseignement. Pa- ris: Minuit, 1970. BURKE, Peter. A escola dos Annales –1929-1989: a Revolução Francesa da Historiografia. São Paulo: UNESP, 1991. CERTEAU, Michel de. “A operação histo- riográfica”, in: A escrita da História. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982. p.16-48 [original: 1974]. DELORME, J. Introduction à la Bible. Paris: Desclée, 1969. DILTHEY, Wilhelm. A construção do mundo histórico nas Ciências Humanas. São Paulo: UNESP, 2010. DE VAUX, R. Les livres de rois. Paris: 1958. DROYSEN, J. Gustav. Manual de teo- ria da História. Petrópolis: Vozes, 2009 [original: 1868].
  • 23. Cad. Pesq. Cdhis, Uberlândia, v.25, n.2, jul./dez. 2012 429 FEBVRE, Lucien. Combats pour l’his- toire. Paris: A. Colin, 1953. GADAMER, Hans-Georg. A consciên- cia histórica. Rio de Janeiro: FGV, 1998 [original: 1996. GINZBURG, Carlo. Il giudice e lo storico – considerazioni in margine al proces- so Sofri. Milano: Universale Economica Feltrinelli, 1991. LE GOFF, Jacques. « Documento / Monumento ». In: Ruggiero Romano (org.) Enciclopédia Einaudi – História e memória. Porto: Imprensa Nacional, 1984. p.95-106 [também incluído em LE GOFF, Jacques. História e memória. Campinas: Unicamp, 1990. p.535-549). LADURIE, Le Roy. Montaillou, uma aldeia occitânica. Lisboa: Edições 70, 1990. PFEIFFER, R. H. Introduction to the Old Testament. Londres: Harper & Brothers, 1941. RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa. Vol.1: a intriga e a narrativa histórica. São Paulo: Martins Fontes, 2010. RUSEN, Jörn. Razão histórica – Teoria da História I: os fundamentos da ciên- cia histórica. Brasília: UNB, 2007a. RUSEN, Jörn. História viva – Teoria da História II: os princípios da pesquisa histórica. Brasília: UNB, 2007b. RUSEN, Jörn. Reconstrução do passado – Teoria da História III: formas e fun- ções do conhecimento histórico. Brasília: UNB, 2007c. RUSEN, Jörn. “Partidarismo e objetivi- dade – as potencialidades racionais da ciência da história”. In: Razão histórica. Brasília: UNB, 2001 [original: 1983]. SAAVEDRA, Miguel de Cervantes. El ingenioso hidalgo Don Quixote de La Mancha. Madrid: 1605. SNAITH, N. H. Old Testament. Oxford: T & T Clark, 1951. VEYNE, Paul. Como se escreve a Histó- ria. Brasília: UNB, 1982 [original: 1971]. WEBER, Max. A objetividade do conhe- cimento nas Ciências Sociais. São Paulo: Ática, 2006 [original: 1904].