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Coletivo de Galochas
Piratas de Galochas na Luz
Reflexões sobre o processo
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Piratas de Galochas na Luz
Reflexões sobre o processo
Programa de Valorização de Iniciativas Culturais VAI
2º semestre / 2012
Índice
Introdução......................................................................................................................... 3
Pedro Paulo Rosa
Ficção, realidade e calejamento........................................................................................ 4
Daniel Lopes
O lugar de onde se vê ....................................................................................................... 7
Nina Nussenzweig Hotimsky
Jogo e improviso:
um olhar do ator sobre o processo.................................................................................. 12
Ighor Walace
A Luz, os Piratas e seu público...................................................................................... 15
Pedro Paulo Rosa
Hierofania na Helvétia:
Princípios do mascaramento no espetáculo Piratas de Galochas ................................... 21
Laís Trovarelli
Processo de criação Corporal ......................................................................................... 25
Felipe Bitencourt
A criação da voz do ator no espaço público:
Origem no corpo, projeção no espaço ............................................................................ 29
Gabriel Hernandes
Operacionalização da prática:
Iluminação e Sonoplastia................................................................................................ 40
Cauê Martins
Teatro de Invasão e Ocupação:
Espaço, suas determinações e sua potência criativa....................................................... 43
Rafael Presto
Referências ..................................................................................................................... 55
3
Piratas de Galochas na Luz
Reflexões sobre o processo
Programa de Valorização de Iniciativas Culturais VAI
2º semestre / 2012
Introdução
Reflexões acerca da criação teatral “Piratas de Galochas” nas ruas do bairro da
Luz, São Paulo.
Pedro Paulo Rosa
Após realizar a temporada da peça Piratas de Galochas nas ruas do bairro da
Luz, o Coletivo de Galochas teve como proposta debruçar-se sobre seu fazer teatral, de
modo a refletir teoricamente a partir do processo vivenciado. Durante quatro meses (de
maio à agosto) o Coletivo realizou ensaios semanais no bairro da Luz, a fim de re-criar
o espetáculo Piratas de Galochas. A peça foi originalmente criada em 2011, fruto de
um processo colaborativo realizado nos prédios da Ocupação Prestes Maia, um conjunto
de prédios que, anteriormente abandonados, foram ocupados pelo Movimento dos Sem
Teto do Centro (MSTC) e servia de moradia para mais de 380 famílias. Concomitante à
criação da peça, o Coletivo de
Galochas participou da criação de
um Núcleo Cultural na Prestes
Maia, e foi lá que a peça Piratas de
Galochas teve sua primeira
temporada, em novembro de 2011.
Em 2012, o grupo teve
anseios por experimentar essa peça
em outros espaços, e escolheu as
ruas da Luz, região estigmatizada como Cracolândia. A proposta era deixar o prédio da
Ocupação e ocupar as próprias ruas da cidade. Apesar de já ter uma dramaturgia e
montagem bem definidas, ao chegar às ruas o grupo percebeu a necessidade de re-criar
a peça, a partir desse novo espaço.
Depois de quatro meses de ensaio, Piratas de Galochas estreou na Luz, ficando
em cartaz de início de setembro até meados de outubro. Passada a vivência, cada um
dos integrantes do grupo escolheu um ponto do processo a ser debatido, elaborando uma
breve reflexão escrita sobre o assunto. Aqui, temos a compilação desses textos, escritos
pelos participantes do Coletivo de Galochas.
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Piratas de Galochas na Luz
Reflexões sobre o processo
Programa de Valorização de Iniciativas Culturais VAI
2º semestre / 2012
Ficção, realidade e calejamento
Daniel Lopes
Antes de qualquer coisa a dor - sinto uma profunda e inexplicável. Tentando
refletir sobre o processo de ator com a adaptação do espetáculo Piratas de Galochas no
bairro da Luz, sinto o peso de todo o processo de criação, cujo gozo é proporcional.
Ao idealizar o projeto, que posteriormente foi contemplado pelo Programa de
Valorização de Iniciativas Culturais (VAI) da Prefeitura de São Paulo, queríamos
continuar a pesquisar através da re-significação do espaço, discutir temas como a
especulação imobiliária e a gentrificação do centro.
Em nossa primeira montagem dentro da ocupação de sem-teto Prestes Maia,
percebemos a potência do jogo da pirataria como matéria ficcional e a realidade dos
ocupantes, interpondo nossa dramaturgia à corrosidade do espaço.
A adaptação seguiu os mesmos preceitos, mas ingenuamente acreditávamos que
o mais difícil já estava feito. Ao depararmos com nosso novo “espaço cênico”
percebemos que as questões abordadas dentro da ocupação não dariam conta da
complexidade do bairro.
Analisando a adaptação, o que mais me marcou foi a diferença entre a situação
da ocupação e a das ruas do bairro. Dentro da Ocupação, apesar de sempre estar em
conato com o lado mais podre da gentrificação e da desvalorização do ser humano,
estávamos embotados por um sentimento de luta; por nossos direitos, contra a violência
vivida todos os dias pelas famílias ocupantes.
Quando iniciamos nosso processo nas ruas o que vimos era violência também,
mas ela estava materializada de uma forma muito mais desanimadora; a violência da
polícia quanto aos usuários de crack, pessoas em situação de rua, moradores de pensões
temendo perder seus lares, crianças e nenhuma luta aparente, sem perspectivas de
mudança. Isso destrói qualquer um, até mesmo o mais bravo dos piratas, mesmo
pensando ter velejado todos os mares e enfrentado todos os monstros. Alí estava um
oponente invisível, inominável, encontramos apenas uma pista para o tal, o Projeto
Nova Luz, projeto urbanístico que pretende operar grandes mudanças na região
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Piratas de Galochas na Luz
Reflexões sobre o processo
Programa de Valorização de Iniciativas Culturais VAI
2º semestre / 2012
estigmatizada de Cracolândia pela prefeitura, a partir de uma perigosa lei de Concessão
Urbanística, sem nenhum diálogo com moradores, desapropriando para valorizar as
propriedades no mercado imobiliário.
Por que todas essas questões são invisíveis, mesmo que a mídia trate sempre da
Cracolândia? Por que agora sinto esse incomodo e ódio que antes era apenas um
pequeno mal-estar?
Na peça sou o capitão dos piratas, e assim como meu patético pirata me encontro
perdido, à deriva com muitas questões e nenhum mapa do tesouro.
Na rua a possibilidade de nossa ficção tornar-se apenas fantasia, uma brincadeira
de criança, perante a constante intervenção dispersiva da realidade é ainda maior. O que
podemos fazer? O que um grupo de
artistas está fazendo em um local
como aquele? Muitas dúvidas
tumultuavam nossos ensaios e
apresentações.
Em uma de nossas
apresentações um senhor transtornado
exclamou: “Eles (apontando para
usuários de crack que estavam
amontoados na calçada, próximos a nossa cena) Não precisam de fantasia, eles precisam
de ajuda.”. Esse senhor nos acertou em cheio, conversamos muito sobre o assunto. De
início defendi que não estávamos lá para ajudar, não era essa a nossa intenção, mas essa
parece ser uma solução fácil para o problema. Não queremos transformar os problemas
daqueles sujeitos em espetáculo, assim como vemos diariamente na televisão. Então
qual é a importância da poética do pirata?
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Piratas de Galochas na Luz
Reflexões sobre o processo
Programa de Valorização de Iniciativas Culturais VAI
2º semestre / 2012
Pensando em todas essas questões e tantas outras que viriam, decidi me preparar
fisicamente para o trabalho na rua, que convenhamos exige um esforço hercúleo tanto
do ator quanto do público. Pretendendo ganhar condicionamento físico, comecei a
treinar Muay Thai em 2012. Diferentemente de todas outras artes marciais, esta luta de
origem tailandesa usa as canelas ao invés dos pés para executar os chutes e as defesas
também, o que é muito dolorido. Com o tempo a dor diminui, devido ao trabalho de
calejamento e também pelo fato de nos
acostumarmos com a mesma.
Como ator, associo todas as
experiências cotidianas ao meu fazer artístico.
Assim, penso que o teatro funciona de forma
oposta ao calejamento executado nas artes
marciais. Nossos piratas descobrem feridas da
cidade e as abrem, mesmo que comicamente,
uma piada indigesta, e é por isso que se torna
uma experiência tão intensa.
Dentro da cidade o normal é o total
calejamento, fazemos isso como uma defesa
inconsciente, uma forma de convivermos com
tanta violência sem prejudicar nossas vidas,
mas essa defesa é extremamente perigosa. Sem
perceber que somos violentados e que o ser humano está em último lugar nas políticas
públicas, deixamos também de nos revoltar. A mídia nos mostra a violência, mas ela usa
do artifício sensacionalista e a transforma em um produto que compramos para
sentirmo-nos mais humanos, essa sensibilização nunca é associada às suas causas, quase
sempre é apenas mais uma forma de calejamento alienador.
O teatro é nossa forma de ter uma experiência compartilhada com o público.
Através da ficção tentamos interagir com a realidade, participar e transformá-la
Agradeço a todos meus companheiros de barco, ao público, as crianças que
acompanharam todo o processo, que enfrentaram todas as dificuldades da rua; a
fragilidade de nosso trabalho perante a tudo, a insuficiência de nossas vozes, ao frio,
chuva, e principalmente ao desgaste emocional. Vocês abriram uma ferida em mim.
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Piratas de Galochas na Luz
Reflexões sobre o processo
Programa de Valorização de Iniciativas Culturais VAI
2º semestre / 2012
O lugar de onde se vê
Nina Nussenzweig Hotimsky
[Teatro, da palavra grega Theatron: lugar de onde se vê.]
I.
Praça Júlio Prestes, Helvetia, Dino Bueno: lugares que estiveram em evidência
desde Janeiro de 2012. Operação policial, manifestações da sociedade civil organizada,
cobertura intensa da mídia. Segundo semestre de 2012: o que um grupo de teatro vai
fazer por ali?
A exposição ou o ocultamento de situações sociais não são fortuitos, são opções
que servem a determinados interesses. O Estado moderno faz viver ou deixa morrer.
Rubens Adorno1
, etnógrafo que estudou o bairro da Luz, fala da invisibilidade de
populações como um dispositivo para deixar morrer. Certas pessoas morrem enquanto
não falo sobre elas.
Talvez por isso o acúmulo de usuários de crack em determinados pontos da
cidade incomode tanto; é mais difícil ignorar as pessoas quando elas se reúnem em um
mesmo tempo-espaço. Diz Henrique Carneiro que “o crack é a faceta visível da
miséria”. Visível, mas silenciada por longos períodos. O bairro da Luz sofreu uma
operação policial intensa em 2008, andou um tempo em banho-maria, e voltou a
estourar (com armas e noticiários) em 2012...
Qual o motivo de olharmos a Luz? Existe um novo projeto para o bairro, a
chamada “Nova Luz”, amparada por um projeto de Concessão Urbanística. Para que
Parcerias Público Privadas funcionem, é preciso atrair investimentos para a região – e os
investidores precisam de garantias. Foi criado o termo Cracolândia: é preciso
estigmatizar os bairros do centro para então “revitalizá-los”. Comprar a preço de
1
Fala realizada no seminário “A cracolândia muito além do crack”. Faculdade de Saúde Pública da USP,
28 a 30/05/2012.
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Piratas de Galochas na Luz
Reflexões sobre o processo
Programa de Valorização de Iniciativas Culturais VAI
2º semestre / 2012
Cracolândia, vender a preço de Nova Luz2
. Desenhar simbolicamente a Cracolândia
exige alarde, espetacularização.
Falamos sobre fluxos populacionais e urbanísticos e sua ligação com a
circulação de discursos. As pessoas, a cidade, e o campo simbólico. Esconder ou dar a
ver, tornar invisível ou visível, objetificar ou espetacularizar? Resta fazer a passagem –
o que a mídia e a polícia agiram na Luz, e o que os artistas teatrais foram fazer ali no
segundo semestre de 2012.
Uma coisa é ensaiar; quando ensaio estou desarmada. No período de criação da
peça, o Coletivo de Galochas acostumou- se a viver ao menos uma intervenção por dia.
Ao menos uma pessoa pertencente ao bairro fazia questão de tornar-se visível.
Uma senhora me beija: “você parece tanto a minha filha de dezesseis anos!
Olha, tá vendo as três estrelas? (Aponta para o céu, volta para a terra). Você vai me
ajudar?”.
Um palhaço profissional latino-americano escuta o ator falar em liberdade, entra
em cena e pergunta: “O que es Libertad?”.
Hernandez, clarinetista bêbado (mas “sem preconceito com outras drogas”) vê os
atores em roda e impõe-se cenicamente: “Isso é algo, isso é algo! Eu, vocês, esse
círculo, a iluminação. Deus não é lógico, porque a vida não é lógica. Deus é para ser
sentido. A vida também é improviso”.
Uma senhora atravessa o aquecimento corporal gritando suas bravatas: “Cêis
moram com a mãe! Paga um cursinho da Poli pra mim! O saber pesa, né?”. Respondo
aflita que ela tem razão de estar brava. “Você não é psicóloga!”. Um ator pondera:
“Você já chegou atacando...”. Ela responde: “A melhor defesa é o ataque”. Luta de
classes, pois é. Os atores do Coletivo de Galochas se assemelham em algo com os
futuros moradores da Nova Luz, com os espectadores da Sala São Paulo, com as
pessoas que passam com medo por aquelas ruas. “Vocês estão fugindo, estão fugindo!”,
gritava a senhora ao final. Não, senhora, precisamos mesmo ensaiar a próxima cena na
próxima esquina.
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Frase de Mariana Fix, urbanista, no debate: “Cracolândia”. Faculdade de Sociologia e Política de São
Paulo, 15/06/2012.
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Piratas de Galochas na Luz
Reflexões sobre o processo
Programa de Valorização de Iniciativas Culturais VAI
2º semestre / 2012
Anedota última: o homem que senta na roda de conversa tendo na boca um
cigarro ao contrário. Ele responde, “Eu sei, eu sei. Vocês não têm noção de onde eu
estou. (Respira fundo em sua brisa). Aqui é a Cracolândia, porra!”.
Período de ensaios. A cidade nos atravessa, e atravessa a dramaturgia.
II.
É a Luz, é A pé,
É o Oceano e é o Barco.
Outra coisa é apresentar. Paramentada por uma barba, maquiagem, figurino, luz,
sonoplastia: o que faço nas ruas da Luz? O que se torna aquele lugar? Oceano e bairro
em concessão urbanística. É preciso jogar com os colegas atores, e é preciso jogar com
a platéia - sem esquecer
quem já estava ali antes de
chegarmos...
Parte de “quem já
estava ali” são os
moradores das pensões
próximas. Famílias,
trabalhadores, imigrantes,
ciganos e crianças. Pessoas
que receiam ter de se
mudar, caso a transformação em “Nova Luz” faça o aluguel subir muito. Os adultos
nem sempre saem de suas casas, mas elegem uma ou outra cena para assistir de suas
janelas. As crianças entram de cabeça na peça, a nova brincadeira nas noites de final de
semana.
Mas há quem “já estava ali” como bode expiatório. Quem vivia a sua festa até a
polícia chegar. Quem veio provocar ao longo dos ensaios. Aqueles que apanharam,
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Piratas de Galochas na Luz
Reflexões sobre o processo
Programa de Valorização de Iniciativas Culturais VAI
2º semestre / 2012
aqueles de quem a mídia tanto falou, aqueles que acostumaram-se a ver passar pessoas
com medo. Qual era a relação deles com a peça?
Um teatro na rua não pode obrigar ninguém a ter interesse. Alguns usuários de
crack tinham prazer em assistir a peça, mas muitos deles não se mobilizavam para tanto.
Essa é uma opção que não cabe criticar. O grupo pode é se perguntar: até que ponto a
peça convidava esses espectadores?
Além de possíveis espectadores, os usuários de crack tornavam-se elemento de
leitura da peça. Espectadores que vinham de fora passavam seus olhares pelas pessoas
nas calçadas, e essa visão necessariamente integrava a sua experiência ao assistir
“Piratas de Galochas”. Estar em cena na rua faz perceber como a cidade é mais
interessante que o ator. Não cabe competir, é preciso lidar com o que a rua oferece
(grande desafio para atores tão jovens!). O que a peça fez dos usuários de crack?
Duas foram as preocupações:
1. Não quero torná-los invisíveis.
Moradores de São Paulo estão acostumados a “não ver” a miséria.
Para quê montar uma peça na tão alardeada Cracolândia se pretendo tocar a todo
custo a fábula dos Piratas? Qual o peso simbólico de uma cena atravessada por um
carroceiro, se o ator o ignora?
2. Não quero a visibilidade espetacularizada.
A peça é um passeio pelo centro. Ela pôde permitir que alguns espectadores de
classe média olhassem ao vivo o que a televisão retratou. Pisar a Helvetia com a Dino
Bueno. Não ter tanto medo.
As câmeras televisivas captaram os usuários do crack como bodes expiatórios.
Como os espectadores de “Piratas de Galochas” (espectadores intencionais, vindos de
outras regiões da cidade para assistir a peça) captaram quem estava diante deles?
III.
Desenvolvidas algumas das preocupações e contradições, um apontamento final.
Nos últimos finais de semana da temporada, a região da Luz foi pesadamente
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Piratas de Galochas na Luz
Reflexões sobre o processo
Programa de Valorização de Iniciativas Culturais VAI
2º semestre / 2012
“higienizada”. A operação policial se intensificou – quem sabe, por conta do segundo
turno das eleições municipais.
Subitamente, as esquinas barulhentas silenciaram, e as calçadas lotadas se
esvaziaram. Que “paz”. “”Paz””. “””Paz”””.
Uma batida policial violenta em frente à última cena fez lembrar o custo da
aparente limpeza. Impossível saber quantos espectadores perceberam essa outra cena.
Como atriz, preferia as contradições da rua lotada ao silêncio cruel do
higienismo.
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Piratas de Galochas na Luz
Reflexões sobre o processo
Programa de Valorização de Iniciativas Culturais VAI
2º semestre / 2012
Jogo e improviso: um olhar do ator sobre o processo
Ighor Wallace
Cracolândia é o nome pelo qual é conhecida uma região do bairro da Luz na cidade de
São Paulo, situada próxima a uma grande estação metro-ferroviária. Incrustrado neste espaço
de grande circulação urbana existe uma área expressiva aonde drogas são comercializadas e
consumidas abertamente. Uma vida marginal - hoje sob intensa vigilância, que varia da total
passividade à agressividade ostensiva - mas que é ambiente comum de trabalhadores, crianças,
empreendedores...
O Coletivo de Galochas, carregando consigo a experiência do trabalho de um ano na
Ocupação Prestes Maia, escolheu adaptar o espetáculo Piratas de Galochas para o contexto da
Cracolândia, remontando à pesquisa de teatro na rua realizada no primeiro trabalho do
coletivo.
No início do processo realizávamos treinamentos corporais dentro da Estação da Luz e
suas imediações, assim como improvisos onde as peculiaridades dos espaços eram os maiores
provocadores e nossa principal função era jogar com o entorno. Pouco a pouco fomos nos
aproximando da praça Prestes Maia, em frente à Sala São Paulo - uma luxuosa casa de
concertos e eventos - e desta Cracolândia em questão (posto que a terminologia tornou-se um
conceito que se espalhou pela cidade com o aumento do policiamento naquela região
específica), intensificando os treinamentos, nos preocupando mais com a preparação vocal e
definindo cada cena do novo espetáculo em seu respectivo espaço de representação.
Não havia um dia sequer em que não fossemos abordados por alguém durante os
ensaios. Esses encontros fortuitos que algumas vezes nos tocaram profundamente eram com
pessoas dos mais variados tipos. O comunista inconformado, a prostituta, o senhor que cresceu
e viveu sempre ali, o bêbado chato, o compositor boêmio, o nóia, o palhaço argentino, a mãe
adolescente, o empreendedor, as crianças... Claro que era muito importante seguir adiante e
continuar o trabalho de montagem da peça, mas essas interrupções eram momentos
preciosíssimos. Cada uma daquelas individualidades exigindo atenção, ansiando por se
comunicar e evitando que a miséria os despersonificassem, nos desestabilizava em algum
nível. Fazia com que ponderássemos o nosso trabalho, descobrindo novos caminhos.
Não que essa condição de luta seja exclusividade dos que estão a margem da sociedade.
Manter a individualidade também é uma batalha para todos que se colocam em posição de
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Piratas de Galochas na Luz
Reflexões sobre o processo
Programa de Valorização de Iniciativas Culturais VAI
2º semestre / 2012
mercadoria, ao empregar sua força de trabalho. Era natural que para nós, ao trabalhar no
campo das artes cênicas e colocando nosso próprio corpo como parte da obra, o temor de nos
tornarmos mera mercadoria fosse recorrente. Insistimos, portanto, em estabelecer um diálogo
mais próximo com os moradores e comerciantes da região. Isto ajudou muito no sentido de
fazer com que se estabelecesse um vínculo entre o Coletivo e o cotidiano daquele bairro, e
assim a construção do espetáculo se tornasse um acontecimento pertencente a todos nalguma
medida. Angariávamos também estofo para os improvisos de cena que dariam liga entre uma
nova linha dramatúrgica que não se desconectasse completamente da original e a temática
provocada pela vivência da organização social da Luz.
Sentimos logo a necessidade de estabelecer
certos parâmetros de permeabilidade à interferência do
público. Era notório que seríamos abordados também
durante as apresentações e estávamos conscientes de
que a peça que construíamos tinha como alvo, além de
nossos convidados, aquele público específico de
moradores que seria barrado de qualquer sala de
espetáculos e, portanto, não está acostumado com todo
o código de postura do teatro tradicional. Mais do que
isso, nos encontrávamos em um território aonde o
trato social estava completamente deslocado.
Todos estamos presos à condição de ator, sem
distinção. O homem é um ser social e a capacidade de
se comunicar é imprescindível. Geralmente um emprego pede um figurino apropriado ou
paramentos próprios. Lidamos o tempo todo com a construção e interpretação simbólica. Fora
isso seguimos uma conduta que o corpo da sociedade espera de nós. Tudo isso nos desloca de
nosso verdadeiro eu - somos uma construção da qual nem sempre tomamos parte. Por isso foi
relativamente simples estabelecer um contato pacífico com a ronda policial (que se tornou um
símbolo da coroa britânica em cena), com os proprietários de pensão e comércio (que cederam
espaços de representação e contrarregragem), com os espaços culturais e instituições do
entorno.
Lidar com as crianças e os embriagados era um grande desafio. Estes partilhavam da
mesma parcela de liberdade para fugir de determinadas regras sociais que nós. A maior parte
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Piratas de Galochas na Luz
Reflexões sobre o processo
Programa de Valorização de Iniciativas Culturais VAI
2º semestre / 2012
dos adultos parava para julgar se o que fazíamos era bom ou não e, quando gostavam, alguns
agiam como as crianças: queriam entrar em jogo e entravam, mesmo sem autorização!
O conceito de jogo, tão inerente ao Teatro nas línguas francesa e inglesa, fica camuflado
na nomenclatura do acontecimento cênico em português. Isso não quer dizer que jogo e
improviso sejam a mesma coisa. Quando assistimos a uma peça com quarta parede, o jogo se
dá somente entre os atores e já está previamente combinado - a brincadeira consiste em fazer o
combinado valer. Quando o seu público exige ser colocado em ação passa a ser
responsabilidade nossa fazê-lo e queríamos que a montagem permitisse isso, ainda que
impelindo-os a refletir sobre o que estavam acompanhando, somente.
Também existiam aqueles interessados apenas em atrapalhar e fazer pouco de nosso
trabalho, que deflagravam uma espécie de existência para o desdém. Quando lidávamos com
esse tipo de situação optávamos por suspender o trabalho momentaneamente e pedir para que
se retirassem, e se não dava certo nós é que nos afastávamos. Seria no mínimo injusto e
prepotente tratar da mesma forma aqueles que se colocavam genuinamente em ação, e para
atender essa demanda era necessária constante prontidão e escuta por parte dos
atores/criadores. Isso quer dizer que nada pode ser ignorado, toda provocação gerando um
retorno vigoroso, tornando em estético o inesperado.
Por isso o intérprete realiza uma função múltipla. Ao mesmo tempo em que age
ativamente no dar a ver de sua personagem, permanece permeável às alterações do entorno.
Esta é uma constante no jogo de cena entre atores de todo tipo de teatro, mas quando estamos
lidando com o improviso, torna-se essencial, pois inclui-se a plateia e o momento presente se
transforma em amparo e guia de nossa arte.
O ato de criar em ação opera de forma diferente no corpo de cada um. Em geral
tentávamos não quebrar a personagem que interpretávamos a não ser que corrêssemos risco.
Muitas vezes chegar neste estado de prontidão nos incita a criar o tempo todo e então é preciso
diminuir, daí a necessidade de equilíbrio com a escuta, pois a compreensão da fábula e dos
dilemas morais apresentados ainda é um valor muito caro ao Coletivo. É também comum que
o ator se prenda à criação verbal e abandone o corpo construído para sua figura, fragilizando o
potencial energético de sua interpretação.
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Piratas de Galochas na Luz
Reflexões sobre o processo
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2º semestre / 2012
A Luz, os Piratas e seu público
Pedro Paulo Rosa
“O teatro de rua instala-se no espaço público, e se constitui como
surpreendente acontecimento artístico. Este acontecimento provoca ruptura
na funcionalidade espacial cotidiana, modifica o repertório de usos do
espaço. Em virtude disso, o público do teatro de rua é fundamentalmente um
público acidental, que presencia o espetáculo porque se encontra casualmente
com este acontecimento. Por princípio, a relação do público com o espetáculo
da rua, está condicionada pela surpresa e alteração das expectativas ou até
mesmo pela inversão desta quanto ao uso da rua. Há grande quota de acaso
neste encontro e isso contribui de forma significativa para a construção de
sentidos do espetáculo.”3
Como vemos na citação acima, para André Carreira a característica primeira do
público do teatro da rua é o acaso, o público acidental, alguém que não pretendia assistir
a uma peça, mas encontrou uma na rua. Encontrou e, ao invés de simplesmente
continuar passando (como muitos fazem), por algum motivo parou, constituindo-se
assim como público.
Como Piratas de Galochas foi um espetáculo realizado em via pública, pelas
ruas do bairro da Luz em São Paulo, seria lógico concluir, de acordo com Carreira, que
seu público seria, principalmente, acidental. O espetáculo começaria e o público viria ao
longo, passante e fragmentado. Porém, a expectativa do grupo com relação ao público
não era essa, ou pelo menos não apenas essa. Que os passantes acabassem por
integrarem-se ao grupo e acompanhassem a peça, isso era previsto, mas havia uma
expectativa de atrair um público intencional, de chegar à Praça Julio Prestes às 20h, em
frente à Sala São Paulo, e encontrar um grupo de pessoas aguardando pelo início da
peça. Quando não havia um número grande de pessoas à espera dos atores, estes não
deixavam de sentir uma leve frustração: ora, mas, se era uma peça da rua, por que os
artistas queriam tanto esse público do teatro?
Quando Piratas de Galochas foi criado, em 2011, na Ocupação Prestes Maia, a
peça acontecia dentro do prédio ocupado e todo seu público era intencional. O espaço
era alternativo, pois não se tratava de um edifício teatral, e não havia palco tradicional.
Os espectadores, depois de subirem nove andares de escada, passando pela porta das
casas dos moradores, chegavam ao local do espetáculo, onde sentavam-se em
banquinhos de papelão e eram convidados a se mover pelo espaço durante a peça. Para
3
CARREIRA, André, Teatro de Rua: (Brasil e Argentina nos anos 1960): uma paixão no asfalto, São
Paulo: Aderaldo & Rothchild Editores LTDA, 2007.
16
Piratas de Galochas na Luz
Reflexões sobre o processo
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2º semestre / 2012
os moradores, fazia parte da experiência vivenciar uma peça de teatro dentro de suas
casas, ou seja, no prédio onde eles moravam. Para aqueles que vinham de fora, fazia
parte da experiência entrar em uma Ocupação de moradia e “visitar a casa de alguém”.
Mas, ainda assim, o público era formado por pessoas que, tendo conhecimento sobre a
existência da peça, escolhiam sair de suas casas (seja essa casa no oitavo andar da
Ocupação ou no bairro de Higienópolis), deslocarem-se até o nono andar da Ocupação
Prestes Maia e lá compartilhar o acontecimento teatral. Era um público intencional,
pessoas que se propuseram a ir ao teatro, apesar de não irem à um edifício teatral.
Ao levar a peça para as ruas da Luz o processo de divulgação da peça e a
expectativa de atrair um público intencional continuaram. Aqui visitar a chamada
Cracolândia fazia parte da experiência proposta pelo Coletivo de Galochas para um
público de teatro –que provavelmente não freqüentaria (ou muitas vezes nem conheceria
pessoalmente) essa região da cidade.
Podemos dizer que a vontade de ter um público intencional vem do desejo de
propor uma experiência, e mais que isso, um contraste de experiências, uma ruptura (ou
pelo menos uma micro-fissura) em um fluxo já estabelecido para aquele espaço. Ao
convidarmos freqüentadores de teatro para assistirem a um espetáculo nas ruas da Luz
não estamos apenas convidando-os para uma peça de rua – estamos chamando essas
pessoas para as ruas da Cracolândia, convocando-as a estarem presentes fisicamente
nesse espaço. A partir dessa presença física a peça percorre o espaço, interfere sobre e
interage com ele, criando relações com os fluxos urbanos existentes naquela região, e o
público é convidado, a partir dessa vivência, a criar sua própria experiência com relação
àquele espaço, ser atravessado pelo espaço e tudo que ele contém: os atores (pelo menos
durante aquelas duas horas), moradores, cracômanos, policiais, crianças, donos de bares,
moradores das ruas.
O desejo de atrair um público intencional não anula nem diminui, de maneira
alguma, a importância e a necessidade de um público acidental. Não é justo, tampouco
preciso, generalizar o perfil dos dois tipos de público em questão (intencional e
acidental), mas vale apontar que era comum que o primeiro fosse composto, muitas
vezes, por pessoas que conheciam o Coletivo de Galochas e seu trabalho, ou que tinham
algum tipo de contato com algum integrante do grupo. Muitos deles tinham pouca
familiaridade com aquela região da cidade, e podemos dizer que tinham como principal
17
Piratas de Galochas na Luz
Reflexões sobre o processo
Programa de Valorização de Iniciativas Culturais VAI
2º semestre / 2012
referência daquele espaço a imagem espetacularizada de Cracolândia, difundida pela
mídia, fazendo daquelas ruas uma região desconhecida, mas de certo muito perigosa. Já
o segundo contava com os freqüentadores da região, nesse caso moradores de casas,
pensões e cortiços, transeuntes, usuários de drogas, policiais, crianças, moradores de
rua, donos de botecos. Estes sim, estavam passando pelas ruas quando encontraram um
peça de teatro. Alguns paravam para olhar e continuavam até o fim. Outros “passavam
batido”. Alguns espiavam pela janela de casa a
cena que acontecia ali em frente, mas nem
sempre desciam para virar a esquina e
acompanhar a próxima.
A composição desses dois públicos,
colocados lado a lado devido a um
acontecimento artístico, torna-se potente quanto
proposição de experiência. Possibilitar um
público-mosaico, que venha de regiões diferentes
da cidade (e do país), de opiniões e escolhas
políticas diferentes, de escolaridades diferentes
mas, principalmente, de classes sociais
diferentes. Colocar essas pessoas frente a frente,
mediadas por uma peça, de mondo que elas compartilhem uma mesma experiência,
criem e modifiquem sua relação com aquele espaço, e com as relações sociais que ele
representa na construção urbana atual.
Se as ruas são públicas, por que não podemos estar todos nelas?
Alguns passantes, freqüentadores do bairro, ao se deparar com a peça olhavam,
curiosos. Acompanhavam por um tempo e depois seguiam seu caminho. Alguns
assistiam um pedaço e voltavam no dia seguinte para acompanhar a peça desde o início
– aqui, o público acidental de ontem é o público intencional de hoje. Conforme os
ensaios e as apresentações foram se tornando recorrentes, a peça passou a fazer parte da
dinâmica de funcionamento daquelas ruas. Moradores que passavam reconheciam os
atores como tais, eram familiares com a realização daquela peça – inclusive alguns
nunca assistiram à peça inteira, mas sabiam que ela acontecia ali. Depois de um tempo,
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Piratas de Galochas na Luz
Reflexões sobre o processo
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não era mais surpresa encontrar um pirata bebendo e cantando pela rua, no meio do
caminho de casa.
Dentre os espectadores acidentais que se tornavam público voluntário, não
podemos deixar de mencionar as crianças. Assim que a peça estreou, logo teve um
grande número de crianças no público. Moradoras da região, por vezes acompanhavam
partes do ensaio, e com o início das apresentações, passaram a ser freqüentadoras
assíduas. Uma criança assistia uma cena em um dia, no outro, vinha assistir a peça
inteira, no terceiro trazia um amigo e no dia seguinte, os pais. Muitas das crianças
tornaram-se um público cativo – estavam presentes praticamente todos os dias,
esperavam pela peça,
ansiavam pelas piadas, já
sabiam onde posicionar-se
para ver melhor cada cena,
ficavam decepcionadas
quando a peça era cancelada
devido à chuva. As crianças
foram, sem dúvida, uma dos
pontos mais fortes de
ligação do Piratas de Galochas com os moradores da região, pois elas passaram a trazer
seus pais para acompanhar a peça. Todas as crianças da região da Rua Helvetia e da
Alameda Dino Bueno conheciam e acompanhavam a peça e seus pais comentavam com
o grupo o quanto não agüentavam mais ver seus filhos brincando de piratas, ou, em
outro caso, a menininha que quis comprar um par de galochas para assistir à peça.
Apesar de conhecer já a história e os personagens, os pequenos não se cansavam de
acompanhar os atores, dia após dia.
Piratas de Galochas nunca pretendeu ser um peça infantil, mas é inegável que
havia algo naquela montagem que cativava as crianças. Talvez os personagens, piratas
caricatos, talvez o humor, talvez o ócio das crianças ao brincar na rua, ou talvez uma
combinação disso tudo, uma espécie de “estar no lugar certo na hora certa”. Porém, ao
mesmo tempo que a peça era apreciada por crianças de todas as idades, havia algo de
indigesto nela. Por diversas vezes, espectadores intencionais começavam a assistir a
peça mas a abandonavam no meio. Às vezes vinham justificar, seja se manifestando
pela internet ou conversando com algum integrante do Galochas. Foi recorrente a
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Piratas de Galochas na Luz
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menção à um incômodo, à uma sensação de desconforto extremo, que fizesse a pessoa
querer se retirar daquela situação. Ora, o que uma comédia sobre piratas, muitas vezes
assistida por crianças, pode der de tão intragável?
Refletindo, pudemos perceber que o incômodo tinha uma localização temporal e,
mais importante, geográfica na peça. O espetáculo começava em frente à Sala São
Paulo, passeava pela Praça Júlio Prestes e seguia a Alameda Cleveland, entrava na Rua
Helvétia, depois virava à esquerda na Alameda Dino Bueno e caminhava novamente até
a Praça Julio Prestes. O primeiro trecho da peça, na Praça Júlio Prestes, era bem
recebido, o público ia se aquecendo e tornando-se mais caloroso durante o decorrer da
cena. Porém, quando os atores dobravam a esquina da Alameda Cleveland e entravam
na Rua Helvétia, algo acontecia. Era a “esquina fatídica”. Alí, algo acontecia que causa
incômodo. Coincidentemente ou não (acredito muito que não), era nessa região que
havia uma maior concentração de usuários de crack e moradores de rua. A cena
acontecia em meio a eles. Muitas vezes, os cracômanos eram mais interessantes que
qualquer pirata. Estar na Cracolândia tornava-se mais forte que estar assistindo uma
peça, em uma instância coletiva. Para alguns, era incômodo demais, preferiam ir
embora.
Alguns desses espectadores comentaram que o desejo de partir vinha de uma
sensação de invasão, de desrespeito para com aqueles que já estavam ali, e não de medo
ou incômodo. Não posso deixar de pensar que tal constatação é uma desculpa, ainda
acredito que o que faz as pessoas abandonarem um navio é o mal-estar, um incômodo.
De qualquer maneira, apesar dos “desertores”, a peça costumava ter mais
espectadores ao final do que no início de cada apresentação – algo esperado para uma
peça na rua. Apesar de ter críticas e abandonos, havia também espectadores
absolutamente imersos na experiência proposta.
Independentemente de receber críticas e elogios, o que vale frisar com relação à
Piratas de Galochas na Luz é que algo acontecia com as pessoas que estavam ali, que
se propunham a vivenciar aquilo. Seja algo positivo ou negativo, mas algo se passava –
creio que seja seguro dizer que poucos espectadores passavam impunes. Podiam odiar a
peça, podiam amar, podiam analisar a estrutura cênica, admirar (ou condenar) a
coragem-quase-estúpida dos jovens atores, mas algo a dizer a respeito dos Piratas,
teriam, pois eram atravessados por ela, de alguma maneira. A esse atravessamento,
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Piratas de Galochas na Luz
Reflexões sobre o processo
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chamamos de experiência – um espaço em que o homem efetivamente vivencia algo, é
atravessado e, portanto transformado de alguma maneira, ainda que sutilmente. Um
espaço onde podemos deixar de lado nosso calejamento cotidiano para, de fato, ver,
sentir, pensar e ser nossa cidade, pelo menos por um instante.
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Hierofania na Helvétia: Princípios do mascaramento no espetáculo Piratas de
Galochas na Luz
Laís Trovarelli
A prática dos Piratas de Galochas sempre partiu da invasão e ocupação artística
do espaço. A partir da construção da primeira versão do espetáculo, quando ainda
ocupávamos o nono andar da Ocupação Prestes Maia, chegamos a uma estrutura
maleável da peça capaz de nos conferir o tamanho adequado a qualquer lugar que
pisássemos. Entretanto, a estrutura dramatúrgica segura e conhecida foi o elemento
propulsor para o que viria a ser, acredito, a base para que pudéssemos transpassar as
regras que nós mesmos havíamos traçado. O esmiuçar das especificidades físicas e
simbólicas de um espaço determinado nos deu ferramentas para o alcance da
universalidade, que aqui tratarei especialmente no que tange ao trabalho de ator. Assim
como as atrizes do coro, que concretamente valiam-se de máscaras de látex idênticas, os
atores da tripulação também passavam por um processo de mascaramento – ainda que
com outras especificidades. A máscara é aquilo que revela através do ocultamento. Ao
vesti-la, o ator se veste internamente de precisão, racionalidade e distância. É como se
fosse capaz de revestir-se de quilômetros.
A idéia era ocupar as ruas da chamada Cracolândia. Antes de ancorarmos,
entretanto, era preciso tatear. Foi perceptível, logo que chegamos, que a roupagem de
artistas e estudantes era demasiado estrangeira. Ainda em primeiros encontros, fizemo-
nos os duplos necessários. Saímos em trio para coletar pistas do novo território,
absorver o lugar. O gatilho era tocar todas as campainhas e ao sermos atendidos
inventar alguma desculpa que nos permitisse desenvolver as descobertas, e se possível
entrarmos nas casas, no íntimo daqueles que vivem expostos nos jornais
sensacionalistas. Como se vestidos de estudantes de arquitetura, de pesquisadores do
censo, de curiosos. Por dentro, distância.
Chegado o período do levantamento das cenas no novo espaço, era também hora
de reaquecer os corpos. O treinamento de quedas, que havia se feito rotina desde o
início do Piratas, sempre trouxe imensas contribuições ao preparo corporal e ao
detalhamento da composição das personagens. O treinamento nos norteava fisicamente,
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nos puxava a um registro interpretativo grande, violento, grotesco. E não foi diferente
nas ruas da Luz. O mascaramento físico das personagens foi sendo recuperado, mas
mesmo em seu nível máximo parecia engolido pela cidade. Era preciso fazer-se maior
que o Gigante da Praça Julio Prestes, talvez maior que a Sala São Paulo, para não
sermos engolidos pelos discretos e os nem tanto transeuntes e moradores daquele bairro.
Ao contrário do que se possa acreditar através da mídia, não se trata de um bairro
despovoado: pulsa.
Durante os nossos encontros, as interferências eram uma constante. Haviam as
agressivas, as interessadas, as vazias, as carentes, as chorosas, as ininteligíveis.
Recebíamos, todas, tentando filtrar e
absorver aquilo que pudesse se converter em
material. Entretanto, chegado o momento
em que tínhamos desenhada a nova versão
da peça, não podíamos parar. Tampouco
ignorar as interferências. Era dado que
havíamos optado por um espaço público, e
ignorar a vida daquele espaço seria uma
enorme perda. Foi preciso, então, que
aprendêssemos a acessar um estado de jogo
com o imprevisto. Não era novidade que
precisássemos vez ou outra lidar em cena
com algo que saísse diferente do planejado,
mas desta vez as intempéries eram maiores e
mais capazes de desestabilizar o rumo da
peça. Era preciso mais - mais sintonia com os demais atores, mais relação física e
simbólica com o espaço, mas principalmente, mais apropriação do ator sobre o
mascaramento da sua personagem/figura.
Quando se trabalha com a máscara da maneira convencional, o distanciamento
(por parte do ator) é claro à medida em que o centro da persona representada (rosto) está
tão distante do próprio centro que chega a não mais fazer parte do próprio corpo – é
externo. O princípio do duplo do ator pode ser exemplificado em um paralelo com o
trabalho com títeres: enquanto boneco-vivo (fisicalizador da ação), o ator deve estar
ciente de cada movimento que realiza, controlando o tônus, o ritmo, a respiração, a
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Piratas de Galochas na Luz
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amplitude dos movimentos e todos os outros aspectos da ação física. Enquanto
manipulador, o ator deve ser capaz de distanciar-se para observar e captar a fisicalização
daquilo que deseja representar – ou narrar. É preciso ativar uma escuta corporal e dar
vazão às reações, ao mesmo tempo em que é preciso raciocinar e ser capaz de perceber
o que é e o que não é pertinente ao corpo que se deseja construir. Trata-se de um estado
extra-cotidiano, implacável, que não deixa dúvidas quanto à justeza ou não de cada
ação.
Para a construção dos corpos das personagens, no início da pesquisa do
espetáculo Piratas de Galochas, valemo-nos de muitos exercícios de composição
corporal – proposição de postura, das mãos, do
eixo, dos quadris, dos joelhos, etc. Entenda-se
aqui este processo de composição como análogo à
confecção de uma máscara. Diante, então, das
proposições físicas (no caso da máscara
convencional, o desenho - expressões, linhas
faciais, etc.), o ator opta e desenvolve os
componentes mais sutis daquela figura. Assim
fizemos e quando chegamos às ruas da Luz as
personagens já tinham corpo, voz e jeito. Naquele
espaço, cada personagem era um nariz de clown:
a máscara que podia nos dar voz frente à uma
intervenção externa. Um ser de outra realidade e
que exige outro nível de comunicação, não mais um(a) artista que representa
exatamente o que é.
Claro que o entendimento corpóreo desse estado de jogo foi gradual. Durante os
ensaios, os imprevistos eram contornados de diversas maneiras, inclusive através da
interrupção das cenas. Entretanto, quando começamos a apresentar a peça efetivamente,
essa possibilidade inexistia. Se antes os transeuntes e moradores vinham a nós pelos
mais diversos motivos, mas principalmente estabelecendo contato através da conversa,
quando estreamos a situação mudou. Sejam pelas figuras e figurinos extravagantes,
sejam pelos equipamentos de iluminação e sonoplastia, seja pela movimentação do
público (quase sempre numeroso), fato é que as interferências externas cresceram. De
início, talvez pela ânsia de fazer o espetáculo exatamente como o planejado, era comum
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Piratas de Galochas na Luz
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que ignorássemos uma réplica inesperada de um morador de rua ou mesmo a passagem
de um ônibus barulhento que não permitia que o público ouvisse alguma fala. E foi em
crescente que a escuta interna e externa do grupo aumentou: em um segundo momento,
alguns de nós interagiam com determinado fato, outros ignoravam; ou todos
interagíamos com uma situação e ignorávamos uma outra mais complicada. Em um
terceiro momento, entretanto, o domínio das personagens/figuras nos permitiu um
estado apurado de escuta e reação imediata – dois princípios fundamentais da máscara.
Saímos pelas ruas da Cracolândia tendo em nós pouco menos que um nariz de
clown. Mascarados de idéias, de tensões corporais calculadas. Máscara como escudo.
Uma defesa burlesca, mas capaz de reverter uma força no sentido de uma ação
determinada. Um equilíbrio dinâmico entre o inesperado e o pressuposto - e a aceitação
de um caminhar grotesco na contramão da altivez de quem sabe pra onde vai.
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Piratas de Galochas: Processo de criação Corporal
Felipe Bitencourt
I . Ocupação Prestes Maia – primeira criação corporal
Quando penso em procedimentos de preparo corporal, não percebo estes
somente como uma espécie de preparo físico, mas, também, como elaboração de um
corpo específico para cada ator e a junção destes corpos visando uma assinatura do
coletivo.
Acredito que nosso processo de trabalho físico, assim como todo o nosso
trabalho, sempre foi colaborativo. Temos idéias individuais, claro, mas que juntas
acabaram por compor esta palheta que temos agora. Para a criação do trabalho de corpo
fomos inspirados por vários campos artísticos, não somente cênicos, mas também pelas
Artes Visuais, o Cinema, Seriados e, até mesmo, Animações. Como alguns (de tantos)
exemplos, poderia citar, no campo das Artes Plásticas, a artista Marina Abramovic, –
performer e artista visual que tinha o limite físico como base de suas pesquisas e
apresentações. No âmbito do teatro, o grupo Cena 11, que trabalha com quedas e
encenações performáticas, testando o limite entre “cena” e “performance”. Nos
Seriados, o grupo Monty Python, - criadores e intérpretes da série cômica Monty
Python's Flying Circus. E por, fim, no cinema, também tivemos como referência (quase
inevitável, por ser parte tão forte do imaginário coletivo contemporâneo de “pirata”) os
filmes Piratas do Caribe.
No início, não saberíamos ao certo o resultado que teríamos, porém, sabíamos
que, de alguma forma, viria das necessidade deste espetáculo, um espetáculo
diferenciado, fruto do que o assunto “pirata” pode surtir.
Como uma de nossas primeiras pesquisas, em 2011, trabalhamos com exercícios
de aquecimento, alongamento e, principalmente, com quedas. Para tal, tínhamos o
grupo Cena 11, citado acima, como guia para o entendimento desta prática. A proposta
é a de aprender a elaborar quedas livres no chão, sem nenhum resquício de defesa, sem
se machucar. Este já foi o início de um formato corporal que o grupo começou a
adquirir. Acabou sendo, também, um pequeno início de uma futura pesquisa em nossos
figurinos: as quedas nos exigiam certas proteções como cotoveleiras e joelheiras, que
acabaram incorporadas ao nosso figurino final.
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Piratas de Galochas na Luz
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Por meio do treinamento de quedas, há essa altura do processo já havia uma raiz
de união, uma pauta comum de movimentações e objetos, um vocabulário corporal para
todos os atores. Neste momento também já tinhamos um certo trabalho textual sobre a
dramaturgia. Havia, agora, a necessidade de começar a estabelecer, dentro deste
universo criado, qual o caráter individual que cada personagem teria. Como cada um
anda, como cada um fala, como cada um interage com os outros e com o público.
Começamos, então, a desenvolver workshops experimentais. O interessante
destes workshops é que eles permitiram uma exploração do corpo de cada um consigo
mesmo e com o espaço: muitos acabavam saindo da nossa sala de ensaio caminhando
para lugares externos como locais descampados, gramados e estacionamentos. Uma
destas propostas era a de
cada ator trazer, para o
próximo ensaio, alguma
imagem alegórica do
universo dos piratas. Então,
no caso, não consistia em
trabalhar uma cena ou um
monólogo em si, mas a de
criar uma figura mítica,
pessoal e iconográfica. Um ator virou de gente para um estranho bicho acorrentado,
uma atriz virou um ser isolado em um banheiro público com diversas moedas grudadas
em seu corpo enquanto estas caiam com sua respiração, outra colocou uma barba
postiça e virou mulher-homem, e por aí vai.
Observando agora todos estes passos que demos no início do processo, me
parece claro que este espetáculo é claramente uma junção de todos estes procedimentos.
Ainda assim, em meados de 2011 nossos corpos ainda estavam confinados no espaço de
uma sala, de modo que a expansão espacial que os corpos tomavam ainda possuía esta
limitação espacial.
Embora já estivéssemos ensaiando pelos andares da Ocupação Prestes Maia,
uma vez por semana ensaiávamos nas salas de aula do departamento de artes cênicas da
USP, o CAC, e era lá, nesse “espaço seguro”, que realizávamos a pesquisa corporal. No
espaço universitário, além de nós, muitos outros coletivos estavam ali também, cada
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qual com suas pesquisas. Porém, com o desenvolvimento do processo, sentimos cada
vez mais necessidade de abraçar o espaço alternativo de uma vez por todas, e abandonar
o conforto das salas de ensaio. Quando passamos a realizar todo nosso trabalho corporal
no prédio de ocupação localizado na Prestes Maia, no bairro da Luz, conseguimos
desenhar com mais precisão vários fatores , o principal deles sendo, talvez, a nossa
relação social com os moradores, já então observadores, e, de certa forma, o público
prévio que teríamos.
Na Prestes Maia, estávamos fora daquele espaço confinado. Agora, todos nossos
exercícios e cenas já começavam a criar relação com outros corpos, definindo conceitos
para a peça e afunilando a criação de nossos personagens. Não trabalhamos com uma
trajetória rápida ou simples, mas sim um processo que criou um corpo único, um corpo
do Coletivo de Galochas.
II. Piratas na Luz
Ao chegar às ruas da Luz, em 2012, retomamos nossos exercícios de
alongamento, aquecimento e quedas citados no início desta fala. Continuamos, agora já
treinados e aprimorando técnicas, nosso trabalho físico na região da Luz. Percebemos
que sempre estávamos lidando com lugares de passagem: mesmo não sendo locais
especificamente cênicos, (sem um palco ou um aviso prévio de espetáculo aos
moradores e transeuntes do local, por exemplo) parece que a ação de nossos corpos
estabeleceram uma comunicação e um acordo: uma rua, que era somente um local de
travessias, se transformou em lugar de espetáculo. Em dado horário e dia, as crianças,
moradores e transeuntes viam assistir nossa apresentação. Repetitivamente.
Afirmo isto desde nossos ensaios e treinamentos, e não somente com nossa peça
finalizada. Então começamos a ensaiar, caíamos no chão no meio da rua. O chão já não
era mais seguro, o espaço não era seguro e, também, não conhecíamos – até então –
aquele público que ali se aglomerava.
Parece que nossos corpos cênicos ganham força quando há platéia. Eles se
esforçam, se jogam mais além, se transformam em máquinas quase indestrutíveis.
Tínhamos público sempre. Não sei bem ao certo se esse foi o caso de todos nós termos
nos adaptado a um chão tão duro, concreto e desconfortável. Mas sei que, sem dúvida,
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Piratas de Galochas na Luz
Reflexões sobre o processo
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foi um dos fatores que nos impulsionou. Platéia gera compromisso. E o corpo cênico
sempre responde.
III. Relações de Comportamento
Ao trabalhar com espaços alternativos, sair do edifício teatral e interagir com os
fluxos da cidade, acabamos por ocupar locais já ocupados. Logo, ali já existem suas
próprias hierarquias, colocações sócias, funções... enfim. Uma sociedade local com sua
organização. Então, como poderíamos nos dar ao direito de tamanha invasão? Isto se
apresentou com um novo olhar sobre a sociedade construída em um local. Quando
convidávamos e recebíamos público, tínhamos ali o que podemos chamar de uma certa
“elite” em um local não comum. Mas parece que a relação hierárquica entre corpos se
invertia. Esse público convidado recebia, da população local, falas e cenas antecipadas
às nossas ações, pois já haviam decorado nosso trajeto e manifestações. Uma forma de
deixar claro que eram bem familiares com o que era apresentado. Assim, quem tem o
maior poder de visualização e compreensão? Quem apreende o conteúdo do que é dito?
Seria o convidado que descobre terras novas, ou aquele que ali mora e se identifica com
o que lhe é apresentado?
Quedas no chão e ensaios abertos. Me impressiona como algo tão absurdo – à
primeira vista – possa virar algo tradicional, mesmo que sempre sendo quase o mesmo
procedimento, e que é continuamente acompanhado. Obtivemos “fãs”.
Percebemos que um mesmo discurso, inevitavelmente, modifica um espaço e
suas relações pessoais. Modifica seu tempo, sua percepção e valor visual. Me recordo
que, em um dado momento, uma moradora de uma das casas do ambiente nos disse algo
assim: “Não deixem de apresentar o trabalho de vocês, mesmo sem público, porque nós
assistimos da janela”. Coisas como esta nos propulsionam, incentivam e locomovem a
continuar nosso trabalho e pesquisa.
Deixamos na mão do outro possíveis críticas, ganhos ou perdas do que
apresentamos. Afinal, fazemos teatro. Sem relações sócias, não há comunicação
tampouco manifestações artísticas. Queremos trocas e comunicações. Creio que
conseguimos.
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Piratas de Galochas na Luz
Reflexões sobre o processo
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A criação da voz do ator no espaço público:
Origem no corpo, projeção no espaço
Gabriel Hernandes
I. Introdução
Esse relatório tem como objetivo fazer um registro do processo de treinamento
de voz com os atores do Coletivo de Galochas para a apresentação da peça Piratas de
Galochas na Luz, encenada nos espaços entre a Praça Júlio Mesquita e Rua Dino Bueno.
Relatarei alguns aspectos que chamaram a minha atenção nesse processo que fiz parte
como ator e treinador de voz.
Após pesquisas, em vão, atrás de alguma bibliografia ou registro que me
ajudasse a criar um treinamento de voz para teatro em espaço público da cidade de São
Paulo, resolvi experimentar uma metodologia própria que levaria em consideração a
minha experiência pessoal de voz como ator, exercícios aprendidos no curso de Artes
Cênicas e auxílio do Prof. Zebba Dal Farra (CAC/ECA/USP). Iniciei essa metodologia
com a idéia de que deveríamos estudar a criação da voz individual e dividi esse trabalho
em dois eixos: corpo e espaço. Estudaríamos em cada um desses eixos onde e como
essa voz pode ser criada e, com base nesse conhecimento, como projetá-la.
II. Prática
1. Corpo
Cada corpo é único e a sua forma de desenvolvimento reflete o desenvolvimento
de uma vida, suas conseqüências e traumas psicológicos, físicos e genéticos. Com esse
entendimento, escolhi trabalhar a origem da voz a partir da musculatura corporal em
busca de uma voz “neutra” e mais livre o possível de traumas que possam silenciá-la.
Primeiramente fizemos um reconhecimento das principais partes responsáveis pela
criação da voz, partindo de uma postura neutra, verificando como a postura óssea e a
musculatura auxiliam na descoberta dessa postura. Depois fizemos estudo aprofundado
de cada parte do rosto, relaxando a musculatura responsável pela emissão da fala nesse
local: toda a musculatura do rosto, interior e exterior das bochechas, língua, palato,
assoalho e céu da boca, lábios. Dessa forma acabamos por criar um aquecimento que se
construiu a cada encontro com as novas descobertas de voz encontradas nesse
treinamento.
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Piratas de Galochas na Luz
Reflexões sobre o processo
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Começamos então o estudo de uma respiração toráxica para a criação da voz a
partir do corpo. Primeiro a percepção do movimento de costelas e diafragma nos
estágios separados da respiração, inspiração e expiração. Reconhecendo as costelas,
massageando-as e, com uma mão em cada conjunto de costelas experimentamos a
emissão do som das vogais na ordem da mais fechada para a mais aberta: I-E-É-A-Ó-O-
U. O foco deveria estar na relação entre o movimento de abertura e fechamento que a
musculatura intercostal propõe ao inspirar/expirar e o ar que entra, naturalmente pela
diferença de pressão no interior e exterior do corpo, e é empurrado para fora, para assim
começar a emissão de uma voz. Em seguida treinamos a ativação do abdômen para a
sustentação da nova postura descoberta. Após a experimentação individual propus que
se dividissem em duplas e realizassem o seguinte exercício:
Exercício nº1
Vibrando no outro
I. Duplas: colocar mão e/ou ouvido da dupla durante a emissão do
som.
II. Sentir qual parte do corpo vibra mais em cada vogal.
III. Sentir qual parte do corpo vibra mais, de modo geral.
VI. Tentar descobrir o movimento do som através da vibração no
corpo da dupla ao fazer a seqüência i-e-é-a-ó-o-u.
V. Explorar as intensidades de emissão dessa(s) voga(l)(is).
VI. Comentar exploração e inverter função das duplas.
Depois desse exercício com o foco nas musculaturas intercostais para a
realização da respiração toráxica, orientei a todos os atores que ficassem atentos a esse
movimento daquele instante em diante, até o final do processo de ensaios, sempre que
fossem emitir a voz.
Tendo experimentado um processo de criação da voz a partir da estrutura do
corpo individual começamos a estudar a projeção dessa voz: orientei que primeiro
estimulassem o bocejo algumas vezes, espreguiçassem, e percebessem como a estrutura
do corpo se comporta nesse movimento. Depois, instruí para que escolhessem uma fala
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Piratas de Galochas na Luz
Reflexões sobre o processo
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do seu personagem e a emitissem em forma de bocejo, organizando a estrutura corporal
da mesma forma percebida anteriormente. Então fizemos o seguinte exercício coletivo:
Exercício nº 2
Telefone sem fio
I. Um ator emite um som de vogal continuamente a partir do
bocejo. Outro ator se distancia até que consiga ouvir
minimamente aquele som projetado pelo primeiro. O próximo
ator realiza o mesmo procedimento do último até que todos os
atores ficassem espalhados pela Praça Júlio Prestes na distância
máxima que as suas vozes poderiam alcançar o próximo.
II. O primeiro ator fala uma frase, criada aleatoriamente, a partir
do bocejo, para o próximo, que deverá repeti-la para o ator
seguinte.
III. O último ator deve repetir o que ouviu para o primeiro.
IV. O grupo se reúne novamente e o primeiro diz o que ouviu do
último ator e qual era a frase original.
A partir de observações realizadas nesse exercício percebi que o trabalho da
projeção deveria ser aprofundado na idéia de projetar a voz para alguém, ter uma pessoa
em determinada distância para recebê-la e estimular a sua projeção. Elaborei, então o
próximo exercício, em duplas:
Exercício nº 3
Imitando o som do outro
I. Duplas.
II. Escolher um texto do seu personagem, falar com as intenções,
mas com a voz natural do ator.
III. Esse ator vai abraçar levemente (sem fazer peso, sem apertar
nada, apenas para estimular a movimentação muscular) o parceiro
de dupla pelas costas.
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Piratas de Galochas na Luz
Reflexões sobre o processo
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IV. O parceiro, abraçado, vai utilizar do corpo do outro para
respirar e falar o texto, com projeção. Quem está abraçando deve
respirar junto e falar o texto ainda em voz natural. Repetir esse
procedimento quantas vezes for necessário.
V. O texto volta para a boca original e deve ser experimentado
com o que foi sentido do corpo do outro.
VI. Sem mudar o mecanismo de emissão desse texto o
companheiro que está assistindo deve ficar no lugar no espaço
onde o texto deve chegar (e aumentar essa distância: perto, médio
e longe; frente, lado e costas).
VII. Inverter as funções nas duplas.
Após a prática em duplas propus outro exercício com o mesmo objetivo de
trabalho de projeção da voz, individualmente, na tentativa de que houvesse um
aprofundamento maior:
Exercício nº 4
Projetando
I. Encontrar, a partir dos comentários do exercício anterior, o
lugar do seu corpo onde a vibração é mais intensa.
II. Imaginar uma bolinha no meio de um fio, você está segurando
essa bolinha pelas extremidades desse fio e a bolinha é esse foco,
esse lugar que mais vibra na emissão da voz.
III. Movimentar a bolinha, dentro do corpo, para baixo e para
cima, emitindo o som.
IV. Movimentar a bolinha, externa ao corpo, para baixo e para
cima, emitindo o som.
Durante a conversa pós-treinamento de voz alguns atores relataram dificuldade
na realização desse exercício, entre eles as atrizes, as mesmas que vinham comentando
algumas dificuldades de projetar a voz. Para o próximo treinamento então planejei
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Piratas de Galochas na Luz
Reflexões sobre o processo
Programa de Valorização de Iniciativas Culturais VAI
2º semestre / 2012
trabalhar com perturbações que tirassem o corpo do ator de um lugar confortável na
hora de emitir a sua voz, pensando que deveríamos tentar escapar a voz de suas tensões,
todas aquelas conseqüências e traumas responsáveis pela formação do corpo individual.
Exercício nº 5
Jogo do Busnardo
Ações:
1. falar “Busnardo” → vendar e caminhar falando texto
previamente escolhido.
2. desmaiar → o grupo ergue o corpo do ator com este falando um
texto seu previamente escolhido.
3. separar-se do coro → o ator deveria voltar ao coro, que criará
resistência corporal para aceitá-lo novamente, empurrando-o e
falando texto previamente escolhido.
* todas as falas serão realizadas com a dinâmica da respiração
toráxica.
I. O grupo todo deve caminhar junto e vagarosamente pelo espaço
da Praça Júlio Prestes.
II. Cada um do coro deve estar falando uma seqüência de texto
previamente escolhida em intensidade mais baixa a possível.
III. Ator e, conseqüentemente, coro realizam uma das 3 ações
descritas acima.
Após a realização desse exercício conversamos sobre o desenvolvimento da voz
junto ao desenvolvimento do corpo e o lugar de cada um no grupo. Percebemos que
muitas pessoas não eram ouvidas ou percebidas quando realizavam uma das três ações e
algumas identificações sobre voz dentro do coletivo, iniciativa, traumas de
desenvolvimento corporal e o lugar de onde sai a voz de cada um.
2. Espaço
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Piratas de Galochas na Luz
Reflexões sobre o processo
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O segundo eixo de criação de uma voz começou com o reconhecimento do
espaço. Nos reunimos na praça adjacente a Praça Júlio Prestes, de espaço menor, menor
circulação de pessoas porém maior circulação de carros. Pedi aos atores que
caminhassem por todo espaço da praça e sempre que ouvissem um som tentassem
segui-lo e imitá-lo com a voz. Todos os sons eram válidos: aviões, trens chegando e
partindo da estação logo ao lado, sirenes de polícia, música, voz e passos dos outros
atores. Deveriam seguir o som até não ouvi-lo mais, dentro dos limites daquela praça.
Para estudarmos a voz partindo do reconhecimento do espaço seria necessário tomá-lo
em presença coletiva, a partir do trabalho individual adquirido por cada um no eixo
anterior (do corpo), para que pudéssemos explorar a projeção da voz entre as
imprevistas estruturas físicas e sonoras do espaço público da cidade.
O próximo jogo tinha como objetivo a criação de um barco, necessário para a
encenação da peça. Esse barco seria criado através dos sons suscitados por uma
embarcação pirata. Então propus um exercício anterior como preparatório para em
seguida criarmos o barco da tripulação dos Piratas de Galochas.
Exercício nº 6
Super-carro-trem
I. Todo o grupo em coro colocando sua voz em fryin'.
II. Coletivamente ir acelerando o fryin' até o surgimento da voz.
III. À medida que a intensidade da voz vai aumentando o coro
começa a caminhar e conforme essa voz vai ganhando corpo a
caminhada aumenta até a corrida.
IV. A intensidade da voz vai, aos poucos, diminuindo junto com
a velocidade de movimentação do coro.
V. Caminhar na direção linear reta sempre, virar apenas em face a
obstáculos.
Exercício nº 7
Navio-coro
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Piratas de Galochas na Luz
Reflexões sobre o processo
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1. Funções no barco:
Remar
Orientar: expandir, juntar, virar, parar
Frear
I. Em coro cada um deve assumir uma função do barco.
II. Cada função deve ter um som criado intuitivamente e
executado sempre que for realizada a devida função
III. O navio-coro deverá navegar pelo espaço realizando as
funções descritas.
Começamos a realizar práticas vocais que envolvessem elementos individuais
(voz partindo do seu corpo a partir da respiração toráxica) e coletivos para superar os
obstáculos do espaço público (a escuta como principal ferramenta para essa superação).
Como auxiliar na projeção trabalhamos também com o conceito de palavra cantada, um
estudo do movimento da voz (prosódia) durante toda a extensão de uma fala, e que
auxiliaria também na emissão das falas com as vozes dos respectivos personagens em
vez da voz natural-cotidiana do ator. Pedi que os atores dessem suas falas cantando, em
forma de música de livre improvisação melódica.
Exercício nº 8
Palavra cantada
I. Duplas.
II. Cada ator escolhe uma fala de seu personagem e a canta para a
sua dupla.
III. A dupla se distancia na extensão da largura de uma rua (cada
um em um lado da rua).
IV. O primeiro deve cantar a sua fala ao próximo que só vai
prosseguir com o exercício se tiver escutado detalhadamente tudo
o que foi dito. Em caso negativo o primeiro deve repetir a fala
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Piratas de Galochas na Luz
Reflexões sobre o processo
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cantada.
V. O próximo canta a sua fala para o primeiro da próxima dupla.
VI. A dinâmica segue assim até todos terem participado.
Executamos esse exercício com a intenção do bocejo, proporcionando algumas
descobertas e comentários de evolução por parte dos atores. Em seguida revisamos os
nossos aprendizados nos dois eixos de treinamento vocal para que aprendêssemos a
cantar uma música (criada por mim, tema dos Piratas de Galochas na Luz, em anexo).
Para isso separei o grupo em naipes de graves e agudos e criei linhas melódicas para
cada naipe. Integramos a execução dessa música também ao nosso aquecimento de voz
pré-ensaios e pré-apresentações.
III. Conclusão
É possível, sim, a projeção da voz no espaço público. Após três meses de curto
processo de treinamento de voz acredito que deve ser dado o devido cuidado para não
se cair em uma tradicional rotina chata de aquecimento e treinamento de voz. Muitas
vezes a treinamos como cumprimento ritualístico de ensaio ou apresentação e, por conta
desse comodismo, não há aparente evolução nas chamadas técnicas de voz que
aprendemos, por parecerem sempre como “mais do mesmo”, uma repetição enfadonha.
Não há outra maneira de treinar a voz senão partindo do treinamento do corpo,
exercícios básicos de foco nos órgãos responsáveis pela emissão e pela exploração
consciente do lugar do corpo individual e do espaço através do corpo coletivo, lugares
esses onde a voz é criada.
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Piratas de Galochas na Luz
Reflexões sobre o processo
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OS PIRATAS DO KUTTEL DADDEL DU
Tom: C
' ' ' ' ' ' ' '
Intro: F C F G C
C G F C
Nós somos os piratas do Kuttel Daddel Du
F C D7 G
Nós vamos saqueando pelos mares da Luz
C G F C
Nós somos violentos, matamos sem razão
F C F G C
O serviço é completo, cabeça, pé e mão.
C G F C
Nós somos os piratas, piratas bem legais!
F
Nós vamos entrar
C
Sem nos importar
D7 G
O quanto dinheiro nós vamos levar
F
Não fique nervoso
C
Se não for gostoso
F G C
Furamos seu olho e roubamos um bar!
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Piratas de Galochas na Luz
Reflexões sobre o processo
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OS PIRATAS DO KUTTEL DADDEL DU
1ª VOZ
SOL DÓ SOL DÓ MI SOL SOL SOL LÁ SOL LÁ DÓ SOL
Nós so - mos os pi – ra - tas do Ku - ttel Da - ddel Du
SOL LÁ DÓ SI LÁ SOL MI MI FÁ RÉ MI FÁ SOL
Nós va - mos sa - que - an - do pe - los ma - res da Luz
SOL DÓ SOL DÓ MI SOL SOL SOL LÁ SOL LÁ DÓ SOL
Nós so - mos vi – o - len - tos, ma - ta - mos sem ra - zão
SOL LÁ DÓ SI LÁ SOL MI MI FÁ MI FÁ RÉ DÓ
O ser - vi - çoé com - ple - to, ca - be - ça, pé e mão.
SOL DÓ SOL DÓ MI SOL SOL SOL LÁ SOL LÁ DÓ SOL
Nós so - mos os pi - ra - tas, pi - ra - tas bem le - gais!
LÁ LÁ LÁ LÁ LÁ
Nós va - mos en - trar
LÁ SOL SOL SOL SOL
Sem nos im - por - tar
RÉ RÉ RÉ RÉ MI MI FÁ SOL SOL SOL SOL
O quan - to di - nhei - ro nós va - mos le - var
LÁ LÁ LÁ LÁ LÁ LÁ
Não fi - que ner - vo - so
LÁ SOL SOL SOL SOL SOL
Se não for gos - to - so
RÉ MI RÉ MI FÁ MI RÉ FÁ MI RÉ DÓ
Fu - ra - mos seu o - lhoe rou - ba - mos um bar!
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2ª VOZ
SOL DÓ DÓ DÓ DÓ SI SI SI DÓ DÓ SI LÁ SOL
Nós so - mos os pi – ra - tas do Ku - ttel Da - ddel Du
SÓL MI MI MI MI RÉ SI DÓ RÉ DÓ SI DÓ RÉ
Nós va - mos sa - que - an - do pe - los ma - res da Luz
SOL DÓ DÓ DÓ DÓ SI SI SI DÓ DÓ SI LÁ SOL
Nós so - mos vi – o - len - tos, ma - ta - mos sem ra - zão
SÓL MI MI MI MI RÉ SI SOL LÁ FÁ SI SOL DÓ
O ser - vi - çoé com - ple - to, ca - be - ça, pé e mão.
SOL DÓ DÓ DÓ DÓ SI SI SI DÓ DÓ SI LÁ SOL
Nós so - mos os pi - ra - tas, pi - ra - tas bem le - gais!
MI MI MI MI MI
Nós va - mos en - trar
MI RÉ RÉ RÉ RÉ
Sem nos im - por - tar
SI SI SI SI DÓ DÓ DÓ RÉ RÉ RÉ RÉ
O quan - to di - nhei - ro nós va - mos le - var
MI MI MI MI MI MI
Não fi - que ner - vo - so
MI RÉ RÉ RÉ RÉ RÉ
Se não for gos - to - so
SOL LÁ SOL LÁ SI LÁ SI DÓ DÓ DÓ DÓ
Fu - ra - mos seu o - lhoe rou - ba - mos um bar!
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Piratas de Galochas na Luz
Reflexões sobre o processo
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Operacionalização da prática: Iluminação e Sonoplastia
Cauê Martins
Para entender como foi o processo de iluminação e sonoplastia do Piratas de
Galochas pelas ruas da Luz, na sua idealização e prática, temos que levar em conta o
espaço com o qual estávamos lidando e a trajetória dos atores.
O primeiro passo foi pensar em como transportar ou prender as caixas de som,
microfones, o projetor e os refletores de iluminação e sonoplastia. Necessitávamos de
algo móvel, que facilitasse o transporte de todos os equipamentos. O segundo foi
elaborar como ligar esses equipamentos sem que necessitasse-mos puxar fios de energia
dos locais da região. Essa foi uma de nossas maiores preocupações.
I. Parte Técnica
1 Estrutural
O Carinho industrial foi a solução para o transporte de todos os equipamentos.
Incorporamos nele uma estrutura de madeira, onde nosso sistema elétrico era todo
ligado, além disso, ele
continha uma barra que
suportava dois refletores,
que era de onde uma parte
da iluminação era disparada.
O carrinho também
acomodava a caixa de som,
de onde toda trilha sonora
era disparada. Além de
acomodar os equipamentos,
também era de fundamental importância ter espaço no carrinho para guardar os diversos
acessórios de figurino e contra-regragem.
Uma bateria de caminhão 12V, ligada a um inversor de corrente para 110V com
capacidade de 2000watts de potencia foi a nossa fonte de energia para suportar os
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Piratas de Galochas na Luz
Reflexões sobre o processo
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equipamentos do espetáculo.A bateria, assim como o inversor, também ficavam
alojados no carrinho, na base da estrutura de madeira descrita acima.
A caixa de som foi colocada estrategicamente no carrinho, para possibilitar a
manipulação das musicas, e para que ficasse direcionada para o publico.
2 Iluminação
Os refletores foram pensados em questão de economia de energia, já que
estávamos lidando com uma fonte não fixa de energia, que era a bateria de caminhão.
Outra questão foi a de ter como modificar a iluminação de uma forma rápida, durante a
peça, pois não teríamos tempo de trocar gelatinas. Para isso tínhamos 4 refletores Par
Led, e uma mesa controladora
DMX de Luz. Os quatro
refletores tinham que ficar
plugados um no outro, pois o
sinal é lançado da mesa, e isso
nos exigia ter toda uma
movimentação certeira dos
refletores, de uma cena para a
outra. Também for utilizamos set-
ligths de lâmpada incandescente e de lâmpada Led.
Em alguns momentos nos utilizamos dos prédios e construções edificadas para
suporte de imagens, lançadas por um projetor de dentro do carrinho. O desafio descobrir
em quais suportes projetar sem que perdesse muita luz pelas interferências da rua.
O conceito aplicado para as escolhas de luz era criar um contraste entre a cena e o
espaço. Em diversos momentos os piratas eram iluminados pela luz natural do
ambiente, e os refletores eram utilizados para iluminar o próprio espaço, que era assim
valorizado com as cores.
3 Sonoplastia
A Sonoplastia tem um papel muito importante para a peça, em diversos momentos
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Piratas de Galochas na Luz
Reflexões sobre o processo
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de transição, planos de fundo para as cenas, trilha para brigas, alem de criar tensão em
momentos específicos da peça. As músicas utilizadas eram emitidas diretamente da
caixa de som ativa. Outra forma utilizada de musica e trilhas era o acordeão que uma
das atrizes tocava durante a peça. Além disso, tínhamos cenas em que todos os atores
cantarolavam, e para isso foram necessários diversos exercícios de canto. Alem desses
efeitos, também foram utilizados mega-fones para projetar a voz de cenas que não se
conseguiam ouvir.
43
Piratas de Galochas na Luz
Reflexões sobre o processo
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Teatro de Invasão e Ocupação:
Espaço, suas determinações e sua potência criativa
Rafael Presto
“Não confundir a cidade com o discurso que a descreve,
ainda que haja uma relação entre eles”
Ítalo Calvino, As Cidade Invisíveis
Este artigo tem o intuito de debater o processo de ressignificação do espaço
público através da invasão e ocupação teatral do ambiente urbano, partindo da análise
do processo de construção do espetáculo Piratas de Galochas na Luz, ação empreendida
pelo Coletivo de Galochas no bairro da Luz.
O trabalho desde o início era apoiado no conceito de invasão teatral4
. Essa
invasão parte da compreensão do espaço como uma somatória de fluxos. Os fluxos
caracterizam um lugar, são aquilo que o tornam singular, diferente de tantos outros. São
as linhas que ditam as formas de uso social do espaço e também o que define nossa
percepção cultural. São determinações de naturezas diversas.
A primeira determinação que podemos pensar é a do espaço físico tomado em
suas dimensões estruturais – muros, calçadas, bancos, paredes, portas, pilares, colunas.
A arquitetura de um lugar define muito dele.
Mas o que permanentemente anima esse espaço físico, o que define seus fluxos,
são as rotinas de uso que as pessoas estabelecem nele. São elas que demarcam uma
espécie de lógica do espaço, responsável pela forma como apreendemos o território da
urbe em nosso dia-a-dia.
Existe um projeto por detrás do espaço, herdamos suas características nas rotinas
de uso que estabelecemos com ele. No entanto, não vivemos o projeto do mundo,
vivemos seu cotidiano concreto: ao mesmo tempo que o espaço nos determina, o
transformamos o tempo todo, em um permanente processo de rupturas e suturas
dialéticas de determinações e criações.
Esta é a abordagem que toma o espaço enquanto ambiente, uma organização que
parte de um projeto mas necessariamente o transforma dando-lhe características
4
CARREIRA, André. ‘Teatro de Invasão: redefinindo a ordem da cidade’ in LIMA, Evelyn Furquim
Werneck. Espaço e Teatro: do edifício teatral a cidade como palco. Rio de Janeiro: 7Letras, 2008.
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Piratas de Galochas na Luz
Reflexões sobre o processo
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singulares, fruto dos deslocamentos culturais e de comportamentos. O ambiente está em
constante transformação, sua dinâmica interna imprime mudanças o tempo inteiro.
A invasão teatral praticada pelo Coletivo de Galochas parte de um jogo com os
fluxos de um determinado ambiente. Através da ação teatral o grupo busca alterar as
rotinas de uso especificas de um determinado espaço, ressignificando-as. Assim, o
ambiente onde a ação teatral acontece não é tomado como suporte, mas antes como
dramaturgia, potência criativa. A ideia é produzir, por meio de uma intervenção cênica,
rupturas e reordenamentos temporários nas rotinas que constituem o espaço. Tomar o
ambiente enquanto objeto cultural, uma narrativa que define o que somos, para então
interferir nele.
A invasão teatral é, por princípio, uma ação política. Seu foco está em atritar os
fluxos do espaço gerando
possibilidades inusitadas de
uso, possibilidades essas para
além dos regimes de produção
daquele ambiente. Busca o
rompimento momentâneo das
categorias; é uma fala de
resistência que ocupa o espaço.
É uma interferência na lógica
da cidade, uma intromissão ao uso cotidiano do espaço. (André Carreira, 2008).
Para praticar este teatro, é preciso repensar o instrumental de trabalho do ator.
Este deve partir de um principio de porosidade e adaptabilidade absoluta. Enquanto joga
com determinado ambiente, o ator precisa estar aberto para perceber e incorporar em
sua ação teatral todos os elementos únicos que a fricção com o espaço oferece. Buscar
estes pontos de intersecção passa a ser o ponto principal do trabalho do ator, que parte
de uma interpretação permanentemente criativa, fundamentalmente improvisacional.
A rotina de invasões constantes faz com que a prática teatral, pouco a pouco, se
introduza nos fluxos do ambiente, alterando as possibilidades de uso do espaço de
maneira mais perene. A capacidade de intervenção teatral se amplia, passa a figurar
como um dos elementos que constitui aquele cotidiano. Momento de maturação nas
relações estruturais, simbólicas e de convivência entre prática estética e zona ocupada: o
que era invasão torna-se ocupação.
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Piratas de Galochas na Luz
Reflexões sobre o processo
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As invasões teatrais realizadas servem de instrumento de investigação do espaço.
Neste segundo momento, de ocupação, temos a reflexão do material cênico produzido
pelas invasões teatrais. O intuito é constituir, partindo de um repertório de experiências
concretas, uma ação teatral mais complexa, mais profundamente entrelaçada entre os
muitos fluxos que definem o ambiente. No trabalho do Coletivo de Galochas, a fronteira
entre esses dois momentos, invasão e ocupação, é demarcada pela finalização da
dramaturgia do espetáculo, construída ao longo das muitas ações de tomada do espaço.
O espetáculo, portanto, torna-se indissociável do espaço que ocupa.
Antecedentes: Da Ocupação Prestes Maia as ruas da Luz
Esse conceito de invasão e ocupação teatral foi praticado pelo Coletivo de
Galochas, inicialmente, dentro de uma Ocupação de Moradia. Durante um ano, em
parceria com o MSTC – Movimento Sem Teto do Centro, o grupo trabalhou dentro da
Ocupação Prestes Maia, maior ocupação vertical da América Latina, casa retomada de
mais de 360 famílias. Lá o Coletivo participou de mutirões de limpeza, assembleias,
atos públicos, da ocupação de outro imóvel. Os ensaios do espetáculo transcorriam em
paralelo com toda essa movimentação, acontecendo cada dia em um andar diferente dos
dois prédios do imóvel.
Todo esse processo desembocou na consolidação do Núcleo Cultural Prestes
Maia, atrelado à finalização do espetáculo Piratas de Galochas. A peça, finalmente
ancorada no nono andar de um dos prédios, era uma comédia sobre piratas que
ocupavam uma ilha sem função social. A construção da dramaturgia do espetáculo
partiu do atrito do universo da pirataria clássica com o cotidiano da ocupação, cotidiano
experienciado pelo grupo através da convivência cotidiana e de muitas invasões teatrais.
Durante esse processo, por estar ao lado dos ocupantes, o grupo acompanhou
diversas intempéries políticas externas, como as constantes ordens de despejo e os
discursos midiáticos estigmatizantes. Mas o cotidiano de ensaios, a produção teatral
específica lá dentro, não era marcada por fortes atritos. A relação dos teatristas com o
espaço era pacífica e acordada, tinham a segurança de estar em um ambiente privado
onde tudo partia de uma construção em conjunto com o Movimento de Moradia. Um
jogo cordial com os fluxos de uma organização social. A dramaturgia do espetáculo
buscava um atrito com o imaginário e ideologia dos ocupantes, mas posicionada: o
Coletivo de Galochas, afinal, lutava politicamente ao lado dos moradores.
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Piratas de Galochas na Luz
Reflexões sobre o processo
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Dentro das lutas políticas do movimento de moradia, um projeto figura como um
dos grandes vilões: o Projeto Nova Luz. Atualmente a Ocupação Mauá, também tocada
pelo MSTC, corre risco de despejo por conta deste projeto – as ocupações são
consideradas, pela especulação imobiliária, como elementos que desvalorizam um
bairro. Pretendendo uma ampliação nas ações e debates empreendidos em torno da
produção do espaço, o Coletivo de Galochas decidiu por zarpar com seu barco para
aportá-lo nas ruas da Luz. Foi esta a vontade inicial para realização da 2ª temporada do
espetáculo, agora chamado Piratas de Galochas na Luz – invadir a cidade.
Conjuntura da Nova Luz: Cidade do espetáculo e a especulação imobiliária.
A ida ao espaço público catapultou o debate em torno do espaço para uma
estrutura macro. Deixávamos o apoio a um polo de resistência da guerra imobiliária,
que era a Ocupação, para embarcar em seu aspecto mais amplo: a organização estrutural
da cidade. O que antes atuava na esfera das intempéries, aquilo que enfrentávamos
enquanto parceiros do Movimento de Ocupação, passou a figurar como um dos pilares
na pesquisa do Coletivo de Galochas – os agentes políticos que gerem a ampla
organização do espaço.
O projeto contemporâneo de produção da cidade vem, sistematicamente,
desinvestindo o espaço público de suas possiblidades de encontro e experiência – as
ruas e praças cada vez mais se projetam como imensos corredores de passagem, lugares
não relacionais5
de trânsito das pessoas entre um compromisso e outro.
Não por acaso o desinvestimento: naufragados os espaços coletivos, restam as
ilhas de consumo. Nunca a organização do ambiente urbano respondeu tanto a um
discurso ordenador do fluxo do capital. Este fluxo se traduz como prática no espaço,
esvaziando-o de suas possibilidades mais autônomas que emergem das dinâmicas
socioculturais – uma cidade cartão-postal, reflexo de uma miragem de fundamentos
financeiros.
Essa espetacularização do espaço 6
esvazia-o de suas possibilidades mais
autônomas, fazendo com que sua organização aponte um uso mercantil, em consonância
com as faces mais globais da economia atual. A espetacularização é um jogo simbólico
em que determinada imagem de cidade adere ao espaço, através da definição a priori, ou
da sugestão, de figuras estruturais ou conjunturais.
5
AUGÉ, Marc. Não Lugares. Campinas/SP: Papirus, 1994.
6
DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.
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A especulação imobiliária responde pela principal parcela deste projeto
contemporâneo de produção espetacular do espaço, uma verdadeira máquina de
crescimento urbano operando a todo vapor. Por um lado surgem modelos de disciplinas
urbanísticas como a cidade-histórica; cidade-museu; cidade universitária; capital da
cultura; cidade do futuro. Por outro, inauguram-se modelos fechados de cidade, imóveis
de uma arquitetura neutra e empresarial, capazes de abarcar multinacionais e grandes
negócios; sua principal característica é a liquidez – um dinamismo estrutural que
abarque a velocidade dos negócios atuais.
Este princípio espetacular que perpassa a cidade restringe a capacidade de
elaboração de experiências do cidadão que a habita cotidianamente. A cidade espetáculo
atua de maneira inversamente proporcional a experiência urbana efetiva. Tira do
ambiente sua capacidade de historização.
O principio que movimenta a especulação é simples. Primeiro são realizadas
ações de deterioração em um determinado espaço. Em seguida, tem-se inicio as práticas
de revitalização. Em cada um desses passos, o mercado atua em parceria com o poder
público – sem ele, nada seria possível. O investimento em determinadas zonas da
cidade, ou o desinvestimento, sempre responde a determinados interesses. Para a criação
de zonas de valor imobiliário é preciso que haja uma aliança entre setores privados e o
Estado.
Falando especificamente de São Paulo7
, a reformulação e espetacularização do
espaço começa na década de 60 com a construção da Avenida Paulista, projeto com
pretensões de fundar um novo centro financeiro para a cidade. Na década seguinte
acompanhamos a ampliação dessa área empresarial para Avenida Berrini; mais tarde,
nas décadas de 80 e 90, surgem os grandes investimentos da região da Faria Lima.
Como último vetor de valorização imobiliária da região sudoeste da cidade, no fim dos
anos 90 e na primeira década do século XXI, temos a expansão para região da Marginal
Pinheiros – o vetor acabou, bateu no rio.
Com a impossibilidade de continuar se embrenhando na região sudoeste da
cidade, parte da estratégia atual da máquina imobiliária reside no retorno das ações
empresariais ao centro histórico, que, não por acaso, tem parte de seu território passando
por um longo processo de desinvestimento do poder público. O Projeto Nova Luz nasce
dessa conjuntura.
7
FIX, Mariana. São Paulo cidade global: fundamentos financeiros de uma miragem. São Paulo:
Boitempo, 2007.
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Piratas de Galochas na Luz
Reflexões sobre o processo
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O Coletivo de Galochas, portanto, definiu como espaço de sua próxima ação o
local alvo desse megaprojeto urbanístico, uma zona da cidade que figura como símbolo
máximo do desinteresse e ineficiência do poder público, um espaço estigmatizado, e por
isso passível de sofrer uma ação imobiliária tão ostensiva como o Nova Luz. O grupo
pretendia realizar sua próxima ação de invasão e ocupação teatral na região conhecida
pelo taxativo nome de Cracolândia.
Cracolândia: O peso concreto de uma construção simbólica
Já faz quase um ano que, não por acaso, esta região central do bairro da Luz
explodiu nos holofotes da mídia. Em janeiro de 2012 a Polícia Militar deu início a
autodenominada Operação Sufoco. Os crackeiros, como são comumente chamados,
eram o foco e a justificativa da operação; seu
primeiro ato, bombas de gás lacrimogêneo,
cassetetes e balas de borracha para dispersá-
los.
Aos usuários de crack moradores de
rua era imposta uma rotina de circulação
permanente (sempre obrigados a caminhar de
onde estivessem parados), de enquadros
constantes e agressões gratuitas. As
autoridades alegavam ter empregado uma
estratégia de "dor e sofrimento" para conter o
avanço da dependência de crack: “Não
vamos dar sossego para eles. Quero deixar
bem claro: a Cracolândia em São Paulo
acabou!", declarou na época a secretária de
Justiça de São Paulo, Eloisa de Sousa
Arruda.8
A violência desmedida da Polícia despertou a atenção da mídia. O bairro ganhou
destaque, os órgãos da Defensoria Pública e da Assistência Social protestaram, teóricos
e acadêmicos organizaram fóruns de debates, a discussão em torno das substâncias
8
Entrevista publicada no Jornal Folha de São Paulo, Cotidiano, dia 27 de Janeiro de 2012.
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidiano/22438-a-cracolandia-ja-acabou-diz-secretaria-da-
justica.shtml - acessado em 24/11/2012.
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Piratas de Galochas na Luz
Reflexões sobre o processo
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2º semestre / 2012
psicoativas voltou à pauta do dia. O poder público, duramente cobrado. Muito
aconteceu, hoje o debate está mais encaminhado, medidas foram aprovadas na justiça e
a onda de violência com os usuários moradores de rua diminuiu.
No entanto, usando a lógica de desvalorização/revitalização, tendo como
justificativa o debate em torno do crack, o projeto urbanístico Nova Luz corre para ser
iniciado. Com intuito de ‘revitalizar’ esta parte da cidade, o projeto prevê a
desapropriação de determinados imóveis para negociá-los com potenciais investidores;
o mecanismo utilizado nessa operação chama-se concessão urbanística, mecanismo
aprovado em lei na gestão do Prefeito Gilberto Kassab.
Esta Lei de Concessão Urbanística9
funciona através da fórmula mágica da
parceria. Concretamente cria a figura do concessionário, um ‘parceiro’ privado que
ganha o ‘direito’ de explorar essa região da cidade. O poder público, então, avança
sobre o espaço privado desapropriando imóveis dentro de zonas de desvalorização – a
gigantesca parte desses imóveis pertencem a populações de baixo poder aquisitivo. A
composição da região chamada de Cracolândia, a principal zona de desvalorização
imobiliária de São Paulo, é feita de pensões e hotéis simples, ocupações de moradia,
ciganos e moradores tradicionais. Não, nem só de crackeiros é composta a região da
Luz.
A ação do poder público em parceria com a especulação imobiliária para
‘revitalizar’ o bairro da Luz, tendo como justificativa os usuários de crack – eis o centro
em debate nas ações de invasão e ocupação teatral que o Coletivo de Galochas
desempenhou no bairro.
O interessante é perceber que o argumento de fundo, a justificativa para as ações
de revitalização, é a imagem constituída em torno do usuário de crack – verdadeiro bode
expiatório para crise de civilização que vivemos. Crackeiro é um termo em que
mercadoria e pessoa ficam nivelados. O espetáculo atua de forma concreta. É um ato
simbólico de efeitos devastadores nomear um bairro de Cracôlandia – o nome é usado
pelo poder público.
É uma categoria de acusação útil, permite comprar os imóveis do bairro a preço
de Cracolândia para vendê-los a preço de Nova Luz. É uma guerra simbólica, onde a
imagem de um bairro se sobrepõe às possibilidades de seu cotidiano concreto.
9
Lei nº 14.918 aprovada em 07/05/2009.
http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/desenvolvimento_urbano/legislacao/index.php?p=1382
– acessado em 24/11/2012.
50
Piratas de Galochas na Luz
Reflexões sobre o processo
Programa de Valorização de Iniciativas Culturais VAI
2º semestre / 2012
A tentativa do Coletivo de Galochas era construir pelo bairro uma possibilidade
de experiência e construção simbólica diferente daquela arregimentada pelos discursos
midiáticos, pela especulação imobiliária e pelo descaso/violência de parte do poder
público.
Cidade ocupada: o cotidiano de ensaios nas ruas da Luz
O Coletivo de Galochas tinha muitos pontos de apoio para o começo do
trabalho. O cotidiano de ensaios na ocupação armou o grupo quanto ao debate do
projeto Nova Luz, apoiado na maquina de crescimento imobiliário. O grupo também
estudou o conceito da cidade espetacularizada, esse processo de empobrecimento da
possibilidade de experiência no espaço da cidade.
Mas o mais importante de
tudo, o grupo partia da adaptação de
um espetáculo pronto, Piratas de
Galochas – sua dramaturgia, a
construção de suas personagens, uma
linguagem apontada, o ritmo das
cenas. A peça, embora tivesse de ser
profundamente reformulada, era o
principal ponto de apoio de todo
trabalho, o lugar de articulação de
todos esses assuntos, a ferramenta fundamental para maior parte das invasões teatrais
realizadas pelo grupo.
A idéia era remontar a peça em um formato de passeio – a encenação caminharia
junto com os espectadores pelo espaço público, calçadas, praças e ruas, percorrendo um
circuito de cenas. O espetáculo, agora chamado Piratas de Galochas na Luz, partia do
projeto de se construir como passeio teatral pelo entorno da Praça Julio Prestes, da Rua
Helvetia, Rua Dino Bueno, Alameda Cleveland.
No primeiro momento, o Coletivo de Galochas realizou ações de investigação e
vivência com o ambiente da Luz. Nos primeiros ensaios o grupo caminhou
coletivamente por todas as ruas do bairro, mapeando em experiência o espaço. Decorar
seus cruzamentos e nomes, observar e escutar tudo, descobrir seus segredos.
51
Piratas de Galochas na Luz
Reflexões sobre o processo
Programa de Valorização de Iniciativas Culturais VAI
2º semestre / 2012
Compreender os muitos fluxos que tecem a dinâmica daquele ambiente, uma mistura
intensa de agentes sociais. Muitas conversas pelo caminho.
A desigualdade é um elemento fundamental na produção da cidade
contemporânea. Essa foi a primeira evidência notada pelo Coletivo. Conviviam, num
espaço muito próximo, a suntuosa Sala São Paulo e os agrupamentos de usuários de
crack.
A segunda coisa que chamou a atenção do grupo foi o grande número de
instituições recentes na região. Como resposta aos acontecimentos do começo do ano,
depois da dura cobrança de alguns setores mobilizados da sociedade civil, o poder
público instalou uma constelação de aparelhos no bairro. Em um espaço bem próximo
estão um SASF – Serviço de Assistência Social a Família; um CAT – Centro de Apoio
ao Trabalhador; um EcoPonto; e a Tenda Mauá, um espaço de vivência para crianças e
adolescentes em situação de rua.
O clima pacificado fechava as percepções do passeio: muito policiamento na
rua, sempre com alguma autoridade vigiando a caminhada do grupo, ao mesmo tempo
que montavam-se as Cracolândias, escambos a céu aberto que tem como principal
instrumento de troca a compra e consumo de crack.
De tempos em tempos os usuários eram dispersados pela polícia. Os policiais
não precisavam nem descer da viatura – um som com a sirene servia de ordem para a
dispersão desses grandes grupos, que montavam outra zona de escambo em algum lugar
próximo. O Coletivo de Galochas não sofreu violência por nenhuma das partes, nem da
polícia, nem dos usuários de crack.
Terminado esses encontros de caminhada livre, continuando esse momento de
percepção do espaço, vieram as derivas10
. A deriva é um jogo com a cidade que
funciona a partir de dispositivos. Esses dispositivos são criados para que o jogador
vivencie o entorno de maneira inusitada. O dispositivo pode ter qualquer natureza, a
única regra é segui-lo veementemente.
Assim, o Coletivo se dividiu em trios, cada um criava as regras de seu
dispositivo – qual mecanismo ditaria a relação deles com aquela parte da cidade no
tempo de sua deriva. Exemplos: tocar todas as campainhas com o intuito de conhecer a
casa das pessoas; oferecer ajuda para quem estiver saindo do supermercado cheio de
sacolas; seguir qualquer transeunte de camisa listrada que cruzar o caminho do grupo.
10
DEBORD, Guy. Teoria da Deriva. In JACQUES. Paola Berenstein (org.) Apologia da Deriva. Escritos
Situacionistas sobre a cidade. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2003
Piratas de galochas   compilação teórica (1)
Piratas de galochas   compilação teórica (1)
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  • 1. Coletivo de Galochas Piratas de Galochas na Luz Reflexões sobre o processo
  • 2. 2 Piratas de Galochas na Luz Reflexões sobre o processo Programa de Valorização de Iniciativas Culturais VAI 2º semestre / 2012 Índice Introdução......................................................................................................................... 3 Pedro Paulo Rosa Ficção, realidade e calejamento........................................................................................ 4 Daniel Lopes O lugar de onde se vê ....................................................................................................... 7 Nina Nussenzweig Hotimsky Jogo e improviso: um olhar do ator sobre o processo.................................................................................. 12 Ighor Walace A Luz, os Piratas e seu público...................................................................................... 15 Pedro Paulo Rosa Hierofania na Helvétia: Princípios do mascaramento no espetáculo Piratas de Galochas ................................... 21 Laís Trovarelli Processo de criação Corporal ......................................................................................... 25 Felipe Bitencourt A criação da voz do ator no espaço público: Origem no corpo, projeção no espaço ............................................................................ 29 Gabriel Hernandes Operacionalização da prática: Iluminação e Sonoplastia................................................................................................ 40 Cauê Martins Teatro de Invasão e Ocupação: Espaço, suas determinações e sua potência criativa....................................................... 43 Rafael Presto Referências ..................................................................................................................... 55
  • 3. 3 Piratas de Galochas na Luz Reflexões sobre o processo Programa de Valorização de Iniciativas Culturais VAI 2º semestre / 2012 Introdução Reflexões acerca da criação teatral “Piratas de Galochas” nas ruas do bairro da Luz, São Paulo. Pedro Paulo Rosa Após realizar a temporada da peça Piratas de Galochas nas ruas do bairro da Luz, o Coletivo de Galochas teve como proposta debruçar-se sobre seu fazer teatral, de modo a refletir teoricamente a partir do processo vivenciado. Durante quatro meses (de maio à agosto) o Coletivo realizou ensaios semanais no bairro da Luz, a fim de re-criar o espetáculo Piratas de Galochas. A peça foi originalmente criada em 2011, fruto de um processo colaborativo realizado nos prédios da Ocupação Prestes Maia, um conjunto de prédios que, anteriormente abandonados, foram ocupados pelo Movimento dos Sem Teto do Centro (MSTC) e servia de moradia para mais de 380 famílias. Concomitante à criação da peça, o Coletivo de Galochas participou da criação de um Núcleo Cultural na Prestes Maia, e foi lá que a peça Piratas de Galochas teve sua primeira temporada, em novembro de 2011. Em 2012, o grupo teve anseios por experimentar essa peça em outros espaços, e escolheu as ruas da Luz, região estigmatizada como Cracolândia. A proposta era deixar o prédio da Ocupação e ocupar as próprias ruas da cidade. Apesar de já ter uma dramaturgia e montagem bem definidas, ao chegar às ruas o grupo percebeu a necessidade de re-criar a peça, a partir desse novo espaço. Depois de quatro meses de ensaio, Piratas de Galochas estreou na Luz, ficando em cartaz de início de setembro até meados de outubro. Passada a vivência, cada um dos integrantes do grupo escolheu um ponto do processo a ser debatido, elaborando uma breve reflexão escrita sobre o assunto. Aqui, temos a compilação desses textos, escritos pelos participantes do Coletivo de Galochas.
  • 4. 4 Piratas de Galochas na Luz Reflexões sobre o processo Programa de Valorização de Iniciativas Culturais VAI 2º semestre / 2012 Ficção, realidade e calejamento Daniel Lopes Antes de qualquer coisa a dor - sinto uma profunda e inexplicável. Tentando refletir sobre o processo de ator com a adaptação do espetáculo Piratas de Galochas no bairro da Luz, sinto o peso de todo o processo de criação, cujo gozo é proporcional. Ao idealizar o projeto, que posteriormente foi contemplado pelo Programa de Valorização de Iniciativas Culturais (VAI) da Prefeitura de São Paulo, queríamos continuar a pesquisar através da re-significação do espaço, discutir temas como a especulação imobiliária e a gentrificação do centro. Em nossa primeira montagem dentro da ocupação de sem-teto Prestes Maia, percebemos a potência do jogo da pirataria como matéria ficcional e a realidade dos ocupantes, interpondo nossa dramaturgia à corrosidade do espaço. A adaptação seguiu os mesmos preceitos, mas ingenuamente acreditávamos que o mais difícil já estava feito. Ao depararmos com nosso novo “espaço cênico” percebemos que as questões abordadas dentro da ocupação não dariam conta da complexidade do bairro. Analisando a adaptação, o que mais me marcou foi a diferença entre a situação da ocupação e a das ruas do bairro. Dentro da Ocupação, apesar de sempre estar em conato com o lado mais podre da gentrificação e da desvalorização do ser humano, estávamos embotados por um sentimento de luta; por nossos direitos, contra a violência vivida todos os dias pelas famílias ocupantes. Quando iniciamos nosso processo nas ruas o que vimos era violência também, mas ela estava materializada de uma forma muito mais desanimadora; a violência da polícia quanto aos usuários de crack, pessoas em situação de rua, moradores de pensões temendo perder seus lares, crianças e nenhuma luta aparente, sem perspectivas de mudança. Isso destrói qualquer um, até mesmo o mais bravo dos piratas, mesmo pensando ter velejado todos os mares e enfrentado todos os monstros. Alí estava um oponente invisível, inominável, encontramos apenas uma pista para o tal, o Projeto Nova Luz, projeto urbanístico que pretende operar grandes mudanças na região
  • 5. 5 Piratas de Galochas na Luz Reflexões sobre o processo Programa de Valorização de Iniciativas Culturais VAI 2º semestre / 2012 estigmatizada de Cracolândia pela prefeitura, a partir de uma perigosa lei de Concessão Urbanística, sem nenhum diálogo com moradores, desapropriando para valorizar as propriedades no mercado imobiliário. Por que todas essas questões são invisíveis, mesmo que a mídia trate sempre da Cracolândia? Por que agora sinto esse incomodo e ódio que antes era apenas um pequeno mal-estar? Na peça sou o capitão dos piratas, e assim como meu patético pirata me encontro perdido, à deriva com muitas questões e nenhum mapa do tesouro. Na rua a possibilidade de nossa ficção tornar-se apenas fantasia, uma brincadeira de criança, perante a constante intervenção dispersiva da realidade é ainda maior. O que podemos fazer? O que um grupo de artistas está fazendo em um local como aquele? Muitas dúvidas tumultuavam nossos ensaios e apresentações. Em uma de nossas apresentações um senhor transtornado exclamou: “Eles (apontando para usuários de crack que estavam amontoados na calçada, próximos a nossa cena) Não precisam de fantasia, eles precisam de ajuda.”. Esse senhor nos acertou em cheio, conversamos muito sobre o assunto. De início defendi que não estávamos lá para ajudar, não era essa a nossa intenção, mas essa parece ser uma solução fácil para o problema. Não queremos transformar os problemas daqueles sujeitos em espetáculo, assim como vemos diariamente na televisão. Então qual é a importância da poética do pirata?
  • 6. 6 Piratas de Galochas na Luz Reflexões sobre o processo Programa de Valorização de Iniciativas Culturais VAI 2º semestre / 2012 Pensando em todas essas questões e tantas outras que viriam, decidi me preparar fisicamente para o trabalho na rua, que convenhamos exige um esforço hercúleo tanto do ator quanto do público. Pretendendo ganhar condicionamento físico, comecei a treinar Muay Thai em 2012. Diferentemente de todas outras artes marciais, esta luta de origem tailandesa usa as canelas ao invés dos pés para executar os chutes e as defesas também, o que é muito dolorido. Com o tempo a dor diminui, devido ao trabalho de calejamento e também pelo fato de nos acostumarmos com a mesma. Como ator, associo todas as experiências cotidianas ao meu fazer artístico. Assim, penso que o teatro funciona de forma oposta ao calejamento executado nas artes marciais. Nossos piratas descobrem feridas da cidade e as abrem, mesmo que comicamente, uma piada indigesta, e é por isso que se torna uma experiência tão intensa. Dentro da cidade o normal é o total calejamento, fazemos isso como uma defesa inconsciente, uma forma de convivermos com tanta violência sem prejudicar nossas vidas, mas essa defesa é extremamente perigosa. Sem perceber que somos violentados e que o ser humano está em último lugar nas políticas públicas, deixamos também de nos revoltar. A mídia nos mostra a violência, mas ela usa do artifício sensacionalista e a transforma em um produto que compramos para sentirmo-nos mais humanos, essa sensibilização nunca é associada às suas causas, quase sempre é apenas mais uma forma de calejamento alienador. O teatro é nossa forma de ter uma experiência compartilhada com o público. Através da ficção tentamos interagir com a realidade, participar e transformá-la Agradeço a todos meus companheiros de barco, ao público, as crianças que acompanharam todo o processo, que enfrentaram todas as dificuldades da rua; a fragilidade de nosso trabalho perante a tudo, a insuficiência de nossas vozes, ao frio, chuva, e principalmente ao desgaste emocional. Vocês abriram uma ferida em mim.
  • 7. 7 Piratas de Galochas na Luz Reflexões sobre o processo Programa de Valorização de Iniciativas Culturais VAI 2º semestre / 2012 O lugar de onde se vê Nina Nussenzweig Hotimsky [Teatro, da palavra grega Theatron: lugar de onde se vê.] I. Praça Júlio Prestes, Helvetia, Dino Bueno: lugares que estiveram em evidência desde Janeiro de 2012. Operação policial, manifestações da sociedade civil organizada, cobertura intensa da mídia. Segundo semestre de 2012: o que um grupo de teatro vai fazer por ali? A exposição ou o ocultamento de situações sociais não são fortuitos, são opções que servem a determinados interesses. O Estado moderno faz viver ou deixa morrer. Rubens Adorno1 , etnógrafo que estudou o bairro da Luz, fala da invisibilidade de populações como um dispositivo para deixar morrer. Certas pessoas morrem enquanto não falo sobre elas. Talvez por isso o acúmulo de usuários de crack em determinados pontos da cidade incomode tanto; é mais difícil ignorar as pessoas quando elas se reúnem em um mesmo tempo-espaço. Diz Henrique Carneiro que “o crack é a faceta visível da miséria”. Visível, mas silenciada por longos períodos. O bairro da Luz sofreu uma operação policial intensa em 2008, andou um tempo em banho-maria, e voltou a estourar (com armas e noticiários) em 2012... Qual o motivo de olharmos a Luz? Existe um novo projeto para o bairro, a chamada “Nova Luz”, amparada por um projeto de Concessão Urbanística. Para que Parcerias Público Privadas funcionem, é preciso atrair investimentos para a região – e os investidores precisam de garantias. Foi criado o termo Cracolândia: é preciso estigmatizar os bairros do centro para então “revitalizá-los”. Comprar a preço de 1 Fala realizada no seminário “A cracolândia muito além do crack”. Faculdade de Saúde Pública da USP, 28 a 30/05/2012.
  • 8. 8 Piratas de Galochas na Luz Reflexões sobre o processo Programa de Valorização de Iniciativas Culturais VAI 2º semestre / 2012 Cracolândia, vender a preço de Nova Luz2 . Desenhar simbolicamente a Cracolândia exige alarde, espetacularização. Falamos sobre fluxos populacionais e urbanísticos e sua ligação com a circulação de discursos. As pessoas, a cidade, e o campo simbólico. Esconder ou dar a ver, tornar invisível ou visível, objetificar ou espetacularizar? Resta fazer a passagem – o que a mídia e a polícia agiram na Luz, e o que os artistas teatrais foram fazer ali no segundo semestre de 2012. Uma coisa é ensaiar; quando ensaio estou desarmada. No período de criação da peça, o Coletivo de Galochas acostumou- se a viver ao menos uma intervenção por dia. Ao menos uma pessoa pertencente ao bairro fazia questão de tornar-se visível. Uma senhora me beija: “você parece tanto a minha filha de dezesseis anos! Olha, tá vendo as três estrelas? (Aponta para o céu, volta para a terra). Você vai me ajudar?”. Um palhaço profissional latino-americano escuta o ator falar em liberdade, entra em cena e pergunta: “O que es Libertad?”. Hernandez, clarinetista bêbado (mas “sem preconceito com outras drogas”) vê os atores em roda e impõe-se cenicamente: “Isso é algo, isso é algo! Eu, vocês, esse círculo, a iluminação. Deus não é lógico, porque a vida não é lógica. Deus é para ser sentido. A vida também é improviso”. Uma senhora atravessa o aquecimento corporal gritando suas bravatas: “Cêis moram com a mãe! Paga um cursinho da Poli pra mim! O saber pesa, né?”. Respondo aflita que ela tem razão de estar brava. “Você não é psicóloga!”. Um ator pondera: “Você já chegou atacando...”. Ela responde: “A melhor defesa é o ataque”. Luta de classes, pois é. Os atores do Coletivo de Galochas se assemelham em algo com os futuros moradores da Nova Luz, com os espectadores da Sala São Paulo, com as pessoas que passam com medo por aquelas ruas. “Vocês estão fugindo, estão fugindo!”, gritava a senhora ao final. Não, senhora, precisamos mesmo ensaiar a próxima cena na próxima esquina. 2 Frase de Mariana Fix, urbanista, no debate: “Cracolândia”. Faculdade de Sociologia e Política de São Paulo, 15/06/2012.
  • 9. 9 Piratas de Galochas na Luz Reflexões sobre o processo Programa de Valorização de Iniciativas Culturais VAI 2º semestre / 2012 Anedota última: o homem que senta na roda de conversa tendo na boca um cigarro ao contrário. Ele responde, “Eu sei, eu sei. Vocês não têm noção de onde eu estou. (Respira fundo em sua brisa). Aqui é a Cracolândia, porra!”. Período de ensaios. A cidade nos atravessa, e atravessa a dramaturgia. II. É a Luz, é A pé, É o Oceano e é o Barco. Outra coisa é apresentar. Paramentada por uma barba, maquiagem, figurino, luz, sonoplastia: o que faço nas ruas da Luz? O que se torna aquele lugar? Oceano e bairro em concessão urbanística. É preciso jogar com os colegas atores, e é preciso jogar com a platéia - sem esquecer quem já estava ali antes de chegarmos... Parte de “quem já estava ali” são os moradores das pensões próximas. Famílias, trabalhadores, imigrantes, ciganos e crianças. Pessoas que receiam ter de se mudar, caso a transformação em “Nova Luz” faça o aluguel subir muito. Os adultos nem sempre saem de suas casas, mas elegem uma ou outra cena para assistir de suas janelas. As crianças entram de cabeça na peça, a nova brincadeira nas noites de final de semana. Mas há quem “já estava ali” como bode expiatório. Quem vivia a sua festa até a polícia chegar. Quem veio provocar ao longo dos ensaios. Aqueles que apanharam,
  • 10. 10 Piratas de Galochas na Luz Reflexões sobre o processo Programa de Valorização de Iniciativas Culturais VAI 2º semestre / 2012 aqueles de quem a mídia tanto falou, aqueles que acostumaram-se a ver passar pessoas com medo. Qual era a relação deles com a peça? Um teatro na rua não pode obrigar ninguém a ter interesse. Alguns usuários de crack tinham prazer em assistir a peça, mas muitos deles não se mobilizavam para tanto. Essa é uma opção que não cabe criticar. O grupo pode é se perguntar: até que ponto a peça convidava esses espectadores? Além de possíveis espectadores, os usuários de crack tornavam-se elemento de leitura da peça. Espectadores que vinham de fora passavam seus olhares pelas pessoas nas calçadas, e essa visão necessariamente integrava a sua experiência ao assistir “Piratas de Galochas”. Estar em cena na rua faz perceber como a cidade é mais interessante que o ator. Não cabe competir, é preciso lidar com o que a rua oferece (grande desafio para atores tão jovens!). O que a peça fez dos usuários de crack? Duas foram as preocupações: 1. Não quero torná-los invisíveis. Moradores de São Paulo estão acostumados a “não ver” a miséria. Para quê montar uma peça na tão alardeada Cracolândia se pretendo tocar a todo custo a fábula dos Piratas? Qual o peso simbólico de uma cena atravessada por um carroceiro, se o ator o ignora? 2. Não quero a visibilidade espetacularizada. A peça é um passeio pelo centro. Ela pôde permitir que alguns espectadores de classe média olhassem ao vivo o que a televisão retratou. Pisar a Helvetia com a Dino Bueno. Não ter tanto medo. As câmeras televisivas captaram os usuários do crack como bodes expiatórios. Como os espectadores de “Piratas de Galochas” (espectadores intencionais, vindos de outras regiões da cidade para assistir a peça) captaram quem estava diante deles? III. Desenvolvidas algumas das preocupações e contradições, um apontamento final. Nos últimos finais de semana da temporada, a região da Luz foi pesadamente
  • 11. 11 Piratas de Galochas na Luz Reflexões sobre o processo Programa de Valorização de Iniciativas Culturais VAI 2º semestre / 2012 “higienizada”. A operação policial se intensificou – quem sabe, por conta do segundo turno das eleições municipais. Subitamente, as esquinas barulhentas silenciaram, e as calçadas lotadas se esvaziaram. Que “paz”. “”Paz””. “””Paz”””. Uma batida policial violenta em frente à última cena fez lembrar o custo da aparente limpeza. Impossível saber quantos espectadores perceberam essa outra cena. Como atriz, preferia as contradições da rua lotada ao silêncio cruel do higienismo.
  • 12. 12 Piratas de Galochas na Luz Reflexões sobre o processo Programa de Valorização de Iniciativas Culturais VAI 2º semestre / 2012 Jogo e improviso: um olhar do ator sobre o processo Ighor Wallace Cracolândia é o nome pelo qual é conhecida uma região do bairro da Luz na cidade de São Paulo, situada próxima a uma grande estação metro-ferroviária. Incrustrado neste espaço de grande circulação urbana existe uma área expressiva aonde drogas são comercializadas e consumidas abertamente. Uma vida marginal - hoje sob intensa vigilância, que varia da total passividade à agressividade ostensiva - mas que é ambiente comum de trabalhadores, crianças, empreendedores... O Coletivo de Galochas, carregando consigo a experiência do trabalho de um ano na Ocupação Prestes Maia, escolheu adaptar o espetáculo Piratas de Galochas para o contexto da Cracolândia, remontando à pesquisa de teatro na rua realizada no primeiro trabalho do coletivo. No início do processo realizávamos treinamentos corporais dentro da Estação da Luz e suas imediações, assim como improvisos onde as peculiaridades dos espaços eram os maiores provocadores e nossa principal função era jogar com o entorno. Pouco a pouco fomos nos aproximando da praça Prestes Maia, em frente à Sala São Paulo - uma luxuosa casa de concertos e eventos - e desta Cracolândia em questão (posto que a terminologia tornou-se um conceito que se espalhou pela cidade com o aumento do policiamento naquela região específica), intensificando os treinamentos, nos preocupando mais com a preparação vocal e definindo cada cena do novo espetáculo em seu respectivo espaço de representação. Não havia um dia sequer em que não fossemos abordados por alguém durante os ensaios. Esses encontros fortuitos que algumas vezes nos tocaram profundamente eram com pessoas dos mais variados tipos. O comunista inconformado, a prostituta, o senhor que cresceu e viveu sempre ali, o bêbado chato, o compositor boêmio, o nóia, o palhaço argentino, a mãe adolescente, o empreendedor, as crianças... Claro que era muito importante seguir adiante e continuar o trabalho de montagem da peça, mas essas interrupções eram momentos preciosíssimos. Cada uma daquelas individualidades exigindo atenção, ansiando por se comunicar e evitando que a miséria os despersonificassem, nos desestabilizava em algum nível. Fazia com que ponderássemos o nosso trabalho, descobrindo novos caminhos. Não que essa condição de luta seja exclusividade dos que estão a margem da sociedade. Manter a individualidade também é uma batalha para todos que se colocam em posição de
  • 13. 13 Piratas de Galochas na Luz Reflexões sobre o processo Programa de Valorização de Iniciativas Culturais VAI 2º semestre / 2012 mercadoria, ao empregar sua força de trabalho. Era natural que para nós, ao trabalhar no campo das artes cênicas e colocando nosso próprio corpo como parte da obra, o temor de nos tornarmos mera mercadoria fosse recorrente. Insistimos, portanto, em estabelecer um diálogo mais próximo com os moradores e comerciantes da região. Isto ajudou muito no sentido de fazer com que se estabelecesse um vínculo entre o Coletivo e o cotidiano daquele bairro, e assim a construção do espetáculo se tornasse um acontecimento pertencente a todos nalguma medida. Angariávamos também estofo para os improvisos de cena que dariam liga entre uma nova linha dramatúrgica que não se desconectasse completamente da original e a temática provocada pela vivência da organização social da Luz. Sentimos logo a necessidade de estabelecer certos parâmetros de permeabilidade à interferência do público. Era notório que seríamos abordados também durante as apresentações e estávamos conscientes de que a peça que construíamos tinha como alvo, além de nossos convidados, aquele público específico de moradores que seria barrado de qualquer sala de espetáculos e, portanto, não está acostumado com todo o código de postura do teatro tradicional. Mais do que isso, nos encontrávamos em um território aonde o trato social estava completamente deslocado. Todos estamos presos à condição de ator, sem distinção. O homem é um ser social e a capacidade de se comunicar é imprescindível. Geralmente um emprego pede um figurino apropriado ou paramentos próprios. Lidamos o tempo todo com a construção e interpretação simbólica. Fora isso seguimos uma conduta que o corpo da sociedade espera de nós. Tudo isso nos desloca de nosso verdadeiro eu - somos uma construção da qual nem sempre tomamos parte. Por isso foi relativamente simples estabelecer um contato pacífico com a ronda policial (que se tornou um símbolo da coroa britânica em cena), com os proprietários de pensão e comércio (que cederam espaços de representação e contrarregragem), com os espaços culturais e instituições do entorno. Lidar com as crianças e os embriagados era um grande desafio. Estes partilhavam da mesma parcela de liberdade para fugir de determinadas regras sociais que nós. A maior parte
  • 14. 14 Piratas de Galochas na Luz Reflexões sobre o processo Programa de Valorização de Iniciativas Culturais VAI 2º semestre / 2012 dos adultos parava para julgar se o que fazíamos era bom ou não e, quando gostavam, alguns agiam como as crianças: queriam entrar em jogo e entravam, mesmo sem autorização! O conceito de jogo, tão inerente ao Teatro nas línguas francesa e inglesa, fica camuflado na nomenclatura do acontecimento cênico em português. Isso não quer dizer que jogo e improviso sejam a mesma coisa. Quando assistimos a uma peça com quarta parede, o jogo se dá somente entre os atores e já está previamente combinado - a brincadeira consiste em fazer o combinado valer. Quando o seu público exige ser colocado em ação passa a ser responsabilidade nossa fazê-lo e queríamos que a montagem permitisse isso, ainda que impelindo-os a refletir sobre o que estavam acompanhando, somente. Também existiam aqueles interessados apenas em atrapalhar e fazer pouco de nosso trabalho, que deflagravam uma espécie de existência para o desdém. Quando lidávamos com esse tipo de situação optávamos por suspender o trabalho momentaneamente e pedir para que se retirassem, e se não dava certo nós é que nos afastávamos. Seria no mínimo injusto e prepotente tratar da mesma forma aqueles que se colocavam genuinamente em ação, e para atender essa demanda era necessária constante prontidão e escuta por parte dos atores/criadores. Isso quer dizer que nada pode ser ignorado, toda provocação gerando um retorno vigoroso, tornando em estético o inesperado. Por isso o intérprete realiza uma função múltipla. Ao mesmo tempo em que age ativamente no dar a ver de sua personagem, permanece permeável às alterações do entorno. Esta é uma constante no jogo de cena entre atores de todo tipo de teatro, mas quando estamos lidando com o improviso, torna-se essencial, pois inclui-se a plateia e o momento presente se transforma em amparo e guia de nossa arte. O ato de criar em ação opera de forma diferente no corpo de cada um. Em geral tentávamos não quebrar a personagem que interpretávamos a não ser que corrêssemos risco. Muitas vezes chegar neste estado de prontidão nos incita a criar o tempo todo e então é preciso diminuir, daí a necessidade de equilíbrio com a escuta, pois a compreensão da fábula e dos dilemas morais apresentados ainda é um valor muito caro ao Coletivo. É também comum que o ator se prenda à criação verbal e abandone o corpo construído para sua figura, fragilizando o potencial energético de sua interpretação.
  • 15. 15 Piratas de Galochas na Luz Reflexões sobre o processo Programa de Valorização de Iniciativas Culturais VAI 2º semestre / 2012 A Luz, os Piratas e seu público Pedro Paulo Rosa “O teatro de rua instala-se no espaço público, e se constitui como surpreendente acontecimento artístico. Este acontecimento provoca ruptura na funcionalidade espacial cotidiana, modifica o repertório de usos do espaço. Em virtude disso, o público do teatro de rua é fundamentalmente um público acidental, que presencia o espetáculo porque se encontra casualmente com este acontecimento. Por princípio, a relação do público com o espetáculo da rua, está condicionada pela surpresa e alteração das expectativas ou até mesmo pela inversão desta quanto ao uso da rua. Há grande quota de acaso neste encontro e isso contribui de forma significativa para a construção de sentidos do espetáculo.”3 Como vemos na citação acima, para André Carreira a característica primeira do público do teatro da rua é o acaso, o público acidental, alguém que não pretendia assistir a uma peça, mas encontrou uma na rua. Encontrou e, ao invés de simplesmente continuar passando (como muitos fazem), por algum motivo parou, constituindo-se assim como público. Como Piratas de Galochas foi um espetáculo realizado em via pública, pelas ruas do bairro da Luz em São Paulo, seria lógico concluir, de acordo com Carreira, que seu público seria, principalmente, acidental. O espetáculo começaria e o público viria ao longo, passante e fragmentado. Porém, a expectativa do grupo com relação ao público não era essa, ou pelo menos não apenas essa. Que os passantes acabassem por integrarem-se ao grupo e acompanhassem a peça, isso era previsto, mas havia uma expectativa de atrair um público intencional, de chegar à Praça Julio Prestes às 20h, em frente à Sala São Paulo, e encontrar um grupo de pessoas aguardando pelo início da peça. Quando não havia um número grande de pessoas à espera dos atores, estes não deixavam de sentir uma leve frustração: ora, mas, se era uma peça da rua, por que os artistas queriam tanto esse público do teatro? Quando Piratas de Galochas foi criado, em 2011, na Ocupação Prestes Maia, a peça acontecia dentro do prédio ocupado e todo seu público era intencional. O espaço era alternativo, pois não se tratava de um edifício teatral, e não havia palco tradicional. Os espectadores, depois de subirem nove andares de escada, passando pela porta das casas dos moradores, chegavam ao local do espetáculo, onde sentavam-se em banquinhos de papelão e eram convidados a se mover pelo espaço durante a peça. Para 3 CARREIRA, André, Teatro de Rua: (Brasil e Argentina nos anos 1960): uma paixão no asfalto, São Paulo: Aderaldo & Rothchild Editores LTDA, 2007.
  • 16. 16 Piratas de Galochas na Luz Reflexões sobre o processo Programa de Valorização de Iniciativas Culturais VAI 2º semestre / 2012 os moradores, fazia parte da experiência vivenciar uma peça de teatro dentro de suas casas, ou seja, no prédio onde eles moravam. Para aqueles que vinham de fora, fazia parte da experiência entrar em uma Ocupação de moradia e “visitar a casa de alguém”. Mas, ainda assim, o público era formado por pessoas que, tendo conhecimento sobre a existência da peça, escolhiam sair de suas casas (seja essa casa no oitavo andar da Ocupação ou no bairro de Higienópolis), deslocarem-se até o nono andar da Ocupação Prestes Maia e lá compartilhar o acontecimento teatral. Era um público intencional, pessoas que se propuseram a ir ao teatro, apesar de não irem à um edifício teatral. Ao levar a peça para as ruas da Luz o processo de divulgação da peça e a expectativa de atrair um público intencional continuaram. Aqui visitar a chamada Cracolândia fazia parte da experiência proposta pelo Coletivo de Galochas para um público de teatro –que provavelmente não freqüentaria (ou muitas vezes nem conheceria pessoalmente) essa região da cidade. Podemos dizer que a vontade de ter um público intencional vem do desejo de propor uma experiência, e mais que isso, um contraste de experiências, uma ruptura (ou pelo menos uma micro-fissura) em um fluxo já estabelecido para aquele espaço. Ao convidarmos freqüentadores de teatro para assistirem a um espetáculo nas ruas da Luz não estamos apenas convidando-os para uma peça de rua – estamos chamando essas pessoas para as ruas da Cracolândia, convocando-as a estarem presentes fisicamente nesse espaço. A partir dessa presença física a peça percorre o espaço, interfere sobre e interage com ele, criando relações com os fluxos urbanos existentes naquela região, e o público é convidado, a partir dessa vivência, a criar sua própria experiência com relação àquele espaço, ser atravessado pelo espaço e tudo que ele contém: os atores (pelo menos durante aquelas duas horas), moradores, cracômanos, policiais, crianças, donos de bares, moradores das ruas. O desejo de atrair um público intencional não anula nem diminui, de maneira alguma, a importância e a necessidade de um público acidental. Não é justo, tampouco preciso, generalizar o perfil dos dois tipos de público em questão (intencional e acidental), mas vale apontar que era comum que o primeiro fosse composto, muitas vezes, por pessoas que conheciam o Coletivo de Galochas e seu trabalho, ou que tinham algum tipo de contato com algum integrante do grupo. Muitos deles tinham pouca familiaridade com aquela região da cidade, e podemos dizer que tinham como principal
  • 17. 17 Piratas de Galochas na Luz Reflexões sobre o processo Programa de Valorização de Iniciativas Culturais VAI 2º semestre / 2012 referência daquele espaço a imagem espetacularizada de Cracolândia, difundida pela mídia, fazendo daquelas ruas uma região desconhecida, mas de certo muito perigosa. Já o segundo contava com os freqüentadores da região, nesse caso moradores de casas, pensões e cortiços, transeuntes, usuários de drogas, policiais, crianças, moradores de rua, donos de botecos. Estes sim, estavam passando pelas ruas quando encontraram um peça de teatro. Alguns paravam para olhar e continuavam até o fim. Outros “passavam batido”. Alguns espiavam pela janela de casa a cena que acontecia ali em frente, mas nem sempre desciam para virar a esquina e acompanhar a próxima. A composição desses dois públicos, colocados lado a lado devido a um acontecimento artístico, torna-se potente quanto proposição de experiência. Possibilitar um público-mosaico, que venha de regiões diferentes da cidade (e do país), de opiniões e escolhas políticas diferentes, de escolaridades diferentes mas, principalmente, de classes sociais diferentes. Colocar essas pessoas frente a frente, mediadas por uma peça, de mondo que elas compartilhem uma mesma experiência, criem e modifiquem sua relação com aquele espaço, e com as relações sociais que ele representa na construção urbana atual. Se as ruas são públicas, por que não podemos estar todos nelas? Alguns passantes, freqüentadores do bairro, ao se deparar com a peça olhavam, curiosos. Acompanhavam por um tempo e depois seguiam seu caminho. Alguns assistiam um pedaço e voltavam no dia seguinte para acompanhar a peça desde o início – aqui, o público acidental de ontem é o público intencional de hoje. Conforme os ensaios e as apresentações foram se tornando recorrentes, a peça passou a fazer parte da dinâmica de funcionamento daquelas ruas. Moradores que passavam reconheciam os atores como tais, eram familiares com a realização daquela peça – inclusive alguns nunca assistiram à peça inteira, mas sabiam que ela acontecia ali. Depois de um tempo,
  • 18. 18 Piratas de Galochas na Luz Reflexões sobre o processo Programa de Valorização de Iniciativas Culturais VAI 2º semestre / 2012 não era mais surpresa encontrar um pirata bebendo e cantando pela rua, no meio do caminho de casa. Dentre os espectadores acidentais que se tornavam público voluntário, não podemos deixar de mencionar as crianças. Assim que a peça estreou, logo teve um grande número de crianças no público. Moradoras da região, por vezes acompanhavam partes do ensaio, e com o início das apresentações, passaram a ser freqüentadoras assíduas. Uma criança assistia uma cena em um dia, no outro, vinha assistir a peça inteira, no terceiro trazia um amigo e no dia seguinte, os pais. Muitas das crianças tornaram-se um público cativo – estavam presentes praticamente todos os dias, esperavam pela peça, ansiavam pelas piadas, já sabiam onde posicionar-se para ver melhor cada cena, ficavam decepcionadas quando a peça era cancelada devido à chuva. As crianças foram, sem dúvida, uma dos pontos mais fortes de ligação do Piratas de Galochas com os moradores da região, pois elas passaram a trazer seus pais para acompanhar a peça. Todas as crianças da região da Rua Helvetia e da Alameda Dino Bueno conheciam e acompanhavam a peça e seus pais comentavam com o grupo o quanto não agüentavam mais ver seus filhos brincando de piratas, ou, em outro caso, a menininha que quis comprar um par de galochas para assistir à peça. Apesar de conhecer já a história e os personagens, os pequenos não se cansavam de acompanhar os atores, dia após dia. Piratas de Galochas nunca pretendeu ser um peça infantil, mas é inegável que havia algo naquela montagem que cativava as crianças. Talvez os personagens, piratas caricatos, talvez o humor, talvez o ócio das crianças ao brincar na rua, ou talvez uma combinação disso tudo, uma espécie de “estar no lugar certo na hora certa”. Porém, ao mesmo tempo que a peça era apreciada por crianças de todas as idades, havia algo de indigesto nela. Por diversas vezes, espectadores intencionais começavam a assistir a peça mas a abandonavam no meio. Às vezes vinham justificar, seja se manifestando pela internet ou conversando com algum integrante do Galochas. Foi recorrente a
  • 19. 19 Piratas de Galochas na Luz Reflexões sobre o processo Programa de Valorização de Iniciativas Culturais VAI 2º semestre / 2012 menção à um incômodo, à uma sensação de desconforto extremo, que fizesse a pessoa querer se retirar daquela situação. Ora, o que uma comédia sobre piratas, muitas vezes assistida por crianças, pode der de tão intragável? Refletindo, pudemos perceber que o incômodo tinha uma localização temporal e, mais importante, geográfica na peça. O espetáculo começava em frente à Sala São Paulo, passeava pela Praça Júlio Prestes e seguia a Alameda Cleveland, entrava na Rua Helvétia, depois virava à esquerda na Alameda Dino Bueno e caminhava novamente até a Praça Julio Prestes. O primeiro trecho da peça, na Praça Júlio Prestes, era bem recebido, o público ia se aquecendo e tornando-se mais caloroso durante o decorrer da cena. Porém, quando os atores dobravam a esquina da Alameda Cleveland e entravam na Rua Helvétia, algo acontecia. Era a “esquina fatídica”. Alí, algo acontecia que causa incômodo. Coincidentemente ou não (acredito muito que não), era nessa região que havia uma maior concentração de usuários de crack e moradores de rua. A cena acontecia em meio a eles. Muitas vezes, os cracômanos eram mais interessantes que qualquer pirata. Estar na Cracolândia tornava-se mais forte que estar assistindo uma peça, em uma instância coletiva. Para alguns, era incômodo demais, preferiam ir embora. Alguns desses espectadores comentaram que o desejo de partir vinha de uma sensação de invasão, de desrespeito para com aqueles que já estavam ali, e não de medo ou incômodo. Não posso deixar de pensar que tal constatação é uma desculpa, ainda acredito que o que faz as pessoas abandonarem um navio é o mal-estar, um incômodo. De qualquer maneira, apesar dos “desertores”, a peça costumava ter mais espectadores ao final do que no início de cada apresentação – algo esperado para uma peça na rua. Apesar de ter críticas e abandonos, havia também espectadores absolutamente imersos na experiência proposta. Independentemente de receber críticas e elogios, o que vale frisar com relação à Piratas de Galochas na Luz é que algo acontecia com as pessoas que estavam ali, que se propunham a vivenciar aquilo. Seja algo positivo ou negativo, mas algo se passava – creio que seja seguro dizer que poucos espectadores passavam impunes. Podiam odiar a peça, podiam amar, podiam analisar a estrutura cênica, admirar (ou condenar) a coragem-quase-estúpida dos jovens atores, mas algo a dizer a respeito dos Piratas, teriam, pois eram atravessados por ela, de alguma maneira. A esse atravessamento,
  • 20. 20 Piratas de Galochas na Luz Reflexões sobre o processo Programa de Valorização de Iniciativas Culturais VAI 2º semestre / 2012 chamamos de experiência – um espaço em que o homem efetivamente vivencia algo, é atravessado e, portanto transformado de alguma maneira, ainda que sutilmente. Um espaço onde podemos deixar de lado nosso calejamento cotidiano para, de fato, ver, sentir, pensar e ser nossa cidade, pelo menos por um instante.
  • 21. 21 Piratas de Galochas na Luz Reflexões sobre o processo Programa de Valorização de Iniciativas Culturais VAI 2º semestre / 2012 Hierofania na Helvétia: Princípios do mascaramento no espetáculo Piratas de Galochas na Luz Laís Trovarelli A prática dos Piratas de Galochas sempre partiu da invasão e ocupação artística do espaço. A partir da construção da primeira versão do espetáculo, quando ainda ocupávamos o nono andar da Ocupação Prestes Maia, chegamos a uma estrutura maleável da peça capaz de nos conferir o tamanho adequado a qualquer lugar que pisássemos. Entretanto, a estrutura dramatúrgica segura e conhecida foi o elemento propulsor para o que viria a ser, acredito, a base para que pudéssemos transpassar as regras que nós mesmos havíamos traçado. O esmiuçar das especificidades físicas e simbólicas de um espaço determinado nos deu ferramentas para o alcance da universalidade, que aqui tratarei especialmente no que tange ao trabalho de ator. Assim como as atrizes do coro, que concretamente valiam-se de máscaras de látex idênticas, os atores da tripulação também passavam por um processo de mascaramento – ainda que com outras especificidades. A máscara é aquilo que revela através do ocultamento. Ao vesti-la, o ator se veste internamente de precisão, racionalidade e distância. É como se fosse capaz de revestir-se de quilômetros. A idéia era ocupar as ruas da chamada Cracolândia. Antes de ancorarmos, entretanto, era preciso tatear. Foi perceptível, logo que chegamos, que a roupagem de artistas e estudantes era demasiado estrangeira. Ainda em primeiros encontros, fizemo- nos os duplos necessários. Saímos em trio para coletar pistas do novo território, absorver o lugar. O gatilho era tocar todas as campainhas e ao sermos atendidos inventar alguma desculpa que nos permitisse desenvolver as descobertas, e se possível entrarmos nas casas, no íntimo daqueles que vivem expostos nos jornais sensacionalistas. Como se vestidos de estudantes de arquitetura, de pesquisadores do censo, de curiosos. Por dentro, distância. Chegado o período do levantamento das cenas no novo espaço, era também hora de reaquecer os corpos. O treinamento de quedas, que havia se feito rotina desde o início do Piratas, sempre trouxe imensas contribuições ao preparo corporal e ao detalhamento da composição das personagens. O treinamento nos norteava fisicamente,
  • 22. 22 Piratas de Galochas na Luz Reflexões sobre o processo Programa de Valorização de Iniciativas Culturais VAI 2º semestre / 2012 nos puxava a um registro interpretativo grande, violento, grotesco. E não foi diferente nas ruas da Luz. O mascaramento físico das personagens foi sendo recuperado, mas mesmo em seu nível máximo parecia engolido pela cidade. Era preciso fazer-se maior que o Gigante da Praça Julio Prestes, talvez maior que a Sala São Paulo, para não sermos engolidos pelos discretos e os nem tanto transeuntes e moradores daquele bairro. Ao contrário do que se possa acreditar através da mídia, não se trata de um bairro despovoado: pulsa. Durante os nossos encontros, as interferências eram uma constante. Haviam as agressivas, as interessadas, as vazias, as carentes, as chorosas, as ininteligíveis. Recebíamos, todas, tentando filtrar e absorver aquilo que pudesse se converter em material. Entretanto, chegado o momento em que tínhamos desenhada a nova versão da peça, não podíamos parar. Tampouco ignorar as interferências. Era dado que havíamos optado por um espaço público, e ignorar a vida daquele espaço seria uma enorme perda. Foi preciso, então, que aprendêssemos a acessar um estado de jogo com o imprevisto. Não era novidade que precisássemos vez ou outra lidar em cena com algo que saísse diferente do planejado, mas desta vez as intempéries eram maiores e mais capazes de desestabilizar o rumo da peça. Era preciso mais - mais sintonia com os demais atores, mais relação física e simbólica com o espaço, mas principalmente, mais apropriação do ator sobre o mascaramento da sua personagem/figura. Quando se trabalha com a máscara da maneira convencional, o distanciamento (por parte do ator) é claro à medida em que o centro da persona representada (rosto) está tão distante do próprio centro que chega a não mais fazer parte do próprio corpo – é externo. O princípio do duplo do ator pode ser exemplificado em um paralelo com o trabalho com títeres: enquanto boneco-vivo (fisicalizador da ação), o ator deve estar ciente de cada movimento que realiza, controlando o tônus, o ritmo, a respiração, a
  • 23. 23 Piratas de Galochas na Luz Reflexões sobre o processo Programa de Valorização de Iniciativas Culturais VAI 2º semestre / 2012 amplitude dos movimentos e todos os outros aspectos da ação física. Enquanto manipulador, o ator deve ser capaz de distanciar-se para observar e captar a fisicalização daquilo que deseja representar – ou narrar. É preciso ativar uma escuta corporal e dar vazão às reações, ao mesmo tempo em que é preciso raciocinar e ser capaz de perceber o que é e o que não é pertinente ao corpo que se deseja construir. Trata-se de um estado extra-cotidiano, implacável, que não deixa dúvidas quanto à justeza ou não de cada ação. Para a construção dos corpos das personagens, no início da pesquisa do espetáculo Piratas de Galochas, valemo-nos de muitos exercícios de composição corporal – proposição de postura, das mãos, do eixo, dos quadris, dos joelhos, etc. Entenda-se aqui este processo de composição como análogo à confecção de uma máscara. Diante, então, das proposições físicas (no caso da máscara convencional, o desenho - expressões, linhas faciais, etc.), o ator opta e desenvolve os componentes mais sutis daquela figura. Assim fizemos e quando chegamos às ruas da Luz as personagens já tinham corpo, voz e jeito. Naquele espaço, cada personagem era um nariz de clown: a máscara que podia nos dar voz frente à uma intervenção externa. Um ser de outra realidade e que exige outro nível de comunicação, não mais um(a) artista que representa exatamente o que é. Claro que o entendimento corpóreo desse estado de jogo foi gradual. Durante os ensaios, os imprevistos eram contornados de diversas maneiras, inclusive através da interrupção das cenas. Entretanto, quando começamos a apresentar a peça efetivamente, essa possibilidade inexistia. Se antes os transeuntes e moradores vinham a nós pelos mais diversos motivos, mas principalmente estabelecendo contato através da conversa, quando estreamos a situação mudou. Sejam pelas figuras e figurinos extravagantes, sejam pelos equipamentos de iluminação e sonoplastia, seja pela movimentação do público (quase sempre numeroso), fato é que as interferências externas cresceram. De início, talvez pela ânsia de fazer o espetáculo exatamente como o planejado, era comum
  • 24. 24 Piratas de Galochas na Luz Reflexões sobre o processo Programa de Valorização de Iniciativas Culturais VAI 2º semestre / 2012 que ignorássemos uma réplica inesperada de um morador de rua ou mesmo a passagem de um ônibus barulhento que não permitia que o público ouvisse alguma fala. E foi em crescente que a escuta interna e externa do grupo aumentou: em um segundo momento, alguns de nós interagiam com determinado fato, outros ignoravam; ou todos interagíamos com uma situação e ignorávamos uma outra mais complicada. Em um terceiro momento, entretanto, o domínio das personagens/figuras nos permitiu um estado apurado de escuta e reação imediata – dois princípios fundamentais da máscara. Saímos pelas ruas da Cracolândia tendo em nós pouco menos que um nariz de clown. Mascarados de idéias, de tensões corporais calculadas. Máscara como escudo. Uma defesa burlesca, mas capaz de reverter uma força no sentido de uma ação determinada. Um equilíbrio dinâmico entre o inesperado e o pressuposto - e a aceitação de um caminhar grotesco na contramão da altivez de quem sabe pra onde vai.
  • 25. 25 Piratas de Galochas na Luz Reflexões sobre o processo Programa de Valorização de Iniciativas Culturais VAI 2º semestre / 2012 Piratas de Galochas: Processo de criação Corporal Felipe Bitencourt I . Ocupação Prestes Maia – primeira criação corporal Quando penso em procedimentos de preparo corporal, não percebo estes somente como uma espécie de preparo físico, mas, também, como elaboração de um corpo específico para cada ator e a junção destes corpos visando uma assinatura do coletivo. Acredito que nosso processo de trabalho físico, assim como todo o nosso trabalho, sempre foi colaborativo. Temos idéias individuais, claro, mas que juntas acabaram por compor esta palheta que temos agora. Para a criação do trabalho de corpo fomos inspirados por vários campos artísticos, não somente cênicos, mas também pelas Artes Visuais, o Cinema, Seriados e, até mesmo, Animações. Como alguns (de tantos) exemplos, poderia citar, no campo das Artes Plásticas, a artista Marina Abramovic, – performer e artista visual que tinha o limite físico como base de suas pesquisas e apresentações. No âmbito do teatro, o grupo Cena 11, que trabalha com quedas e encenações performáticas, testando o limite entre “cena” e “performance”. Nos Seriados, o grupo Monty Python, - criadores e intérpretes da série cômica Monty Python's Flying Circus. E por, fim, no cinema, também tivemos como referência (quase inevitável, por ser parte tão forte do imaginário coletivo contemporâneo de “pirata”) os filmes Piratas do Caribe. No início, não saberíamos ao certo o resultado que teríamos, porém, sabíamos que, de alguma forma, viria das necessidade deste espetáculo, um espetáculo diferenciado, fruto do que o assunto “pirata” pode surtir. Como uma de nossas primeiras pesquisas, em 2011, trabalhamos com exercícios de aquecimento, alongamento e, principalmente, com quedas. Para tal, tínhamos o grupo Cena 11, citado acima, como guia para o entendimento desta prática. A proposta é a de aprender a elaborar quedas livres no chão, sem nenhum resquício de defesa, sem se machucar. Este já foi o início de um formato corporal que o grupo começou a adquirir. Acabou sendo, também, um pequeno início de uma futura pesquisa em nossos figurinos: as quedas nos exigiam certas proteções como cotoveleiras e joelheiras, que acabaram incorporadas ao nosso figurino final.
  • 26. 26 Piratas de Galochas na Luz Reflexões sobre o processo Programa de Valorização de Iniciativas Culturais VAI 2º semestre / 2012 Por meio do treinamento de quedas, há essa altura do processo já havia uma raiz de união, uma pauta comum de movimentações e objetos, um vocabulário corporal para todos os atores. Neste momento também já tinhamos um certo trabalho textual sobre a dramaturgia. Havia, agora, a necessidade de começar a estabelecer, dentro deste universo criado, qual o caráter individual que cada personagem teria. Como cada um anda, como cada um fala, como cada um interage com os outros e com o público. Começamos, então, a desenvolver workshops experimentais. O interessante destes workshops é que eles permitiram uma exploração do corpo de cada um consigo mesmo e com o espaço: muitos acabavam saindo da nossa sala de ensaio caminhando para lugares externos como locais descampados, gramados e estacionamentos. Uma destas propostas era a de cada ator trazer, para o próximo ensaio, alguma imagem alegórica do universo dos piratas. Então, no caso, não consistia em trabalhar uma cena ou um monólogo em si, mas a de criar uma figura mítica, pessoal e iconográfica. Um ator virou de gente para um estranho bicho acorrentado, uma atriz virou um ser isolado em um banheiro público com diversas moedas grudadas em seu corpo enquanto estas caiam com sua respiração, outra colocou uma barba postiça e virou mulher-homem, e por aí vai. Observando agora todos estes passos que demos no início do processo, me parece claro que este espetáculo é claramente uma junção de todos estes procedimentos. Ainda assim, em meados de 2011 nossos corpos ainda estavam confinados no espaço de uma sala, de modo que a expansão espacial que os corpos tomavam ainda possuía esta limitação espacial. Embora já estivéssemos ensaiando pelos andares da Ocupação Prestes Maia, uma vez por semana ensaiávamos nas salas de aula do departamento de artes cênicas da USP, o CAC, e era lá, nesse “espaço seguro”, que realizávamos a pesquisa corporal. No espaço universitário, além de nós, muitos outros coletivos estavam ali também, cada
  • 27. 27 Piratas de Galochas na Luz Reflexões sobre o processo Programa de Valorização de Iniciativas Culturais VAI 2º semestre / 2012 qual com suas pesquisas. Porém, com o desenvolvimento do processo, sentimos cada vez mais necessidade de abraçar o espaço alternativo de uma vez por todas, e abandonar o conforto das salas de ensaio. Quando passamos a realizar todo nosso trabalho corporal no prédio de ocupação localizado na Prestes Maia, no bairro da Luz, conseguimos desenhar com mais precisão vários fatores , o principal deles sendo, talvez, a nossa relação social com os moradores, já então observadores, e, de certa forma, o público prévio que teríamos. Na Prestes Maia, estávamos fora daquele espaço confinado. Agora, todos nossos exercícios e cenas já começavam a criar relação com outros corpos, definindo conceitos para a peça e afunilando a criação de nossos personagens. Não trabalhamos com uma trajetória rápida ou simples, mas sim um processo que criou um corpo único, um corpo do Coletivo de Galochas. II. Piratas na Luz Ao chegar às ruas da Luz, em 2012, retomamos nossos exercícios de alongamento, aquecimento e quedas citados no início desta fala. Continuamos, agora já treinados e aprimorando técnicas, nosso trabalho físico na região da Luz. Percebemos que sempre estávamos lidando com lugares de passagem: mesmo não sendo locais especificamente cênicos, (sem um palco ou um aviso prévio de espetáculo aos moradores e transeuntes do local, por exemplo) parece que a ação de nossos corpos estabeleceram uma comunicação e um acordo: uma rua, que era somente um local de travessias, se transformou em lugar de espetáculo. Em dado horário e dia, as crianças, moradores e transeuntes viam assistir nossa apresentação. Repetitivamente. Afirmo isto desde nossos ensaios e treinamentos, e não somente com nossa peça finalizada. Então começamos a ensaiar, caíamos no chão no meio da rua. O chão já não era mais seguro, o espaço não era seguro e, também, não conhecíamos – até então – aquele público que ali se aglomerava. Parece que nossos corpos cênicos ganham força quando há platéia. Eles se esforçam, se jogam mais além, se transformam em máquinas quase indestrutíveis. Tínhamos público sempre. Não sei bem ao certo se esse foi o caso de todos nós termos nos adaptado a um chão tão duro, concreto e desconfortável. Mas sei que, sem dúvida,
  • 28. 28 Piratas de Galochas na Luz Reflexões sobre o processo Programa de Valorização de Iniciativas Culturais VAI 2º semestre / 2012 foi um dos fatores que nos impulsionou. Platéia gera compromisso. E o corpo cênico sempre responde. III. Relações de Comportamento Ao trabalhar com espaços alternativos, sair do edifício teatral e interagir com os fluxos da cidade, acabamos por ocupar locais já ocupados. Logo, ali já existem suas próprias hierarquias, colocações sócias, funções... enfim. Uma sociedade local com sua organização. Então, como poderíamos nos dar ao direito de tamanha invasão? Isto se apresentou com um novo olhar sobre a sociedade construída em um local. Quando convidávamos e recebíamos público, tínhamos ali o que podemos chamar de uma certa “elite” em um local não comum. Mas parece que a relação hierárquica entre corpos se invertia. Esse público convidado recebia, da população local, falas e cenas antecipadas às nossas ações, pois já haviam decorado nosso trajeto e manifestações. Uma forma de deixar claro que eram bem familiares com o que era apresentado. Assim, quem tem o maior poder de visualização e compreensão? Quem apreende o conteúdo do que é dito? Seria o convidado que descobre terras novas, ou aquele que ali mora e se identifica com o que lhe é apresentado? Quedas no chão e ensaios abertos. Me impressiona como algo tão absurdo – à primeira vista – possa virar algo tradicional, mesmo que sempre sendo quase o mesmo procedimento, e que é continuamente acompanhado. Obtivemos “fãs”. Percebemos que um mesmo discurso, inevitavelmente, modifica um espaço e suas relações pessoais. Modifica seu tempo, sua percepção e valor visual. Me recordo que, em um dado momento, uma moradora de uma das casas do ambiente nos disse algo assim: “Não deixem de apresentar o trabalho de vocês, mesmo sem público, porque nós assistimos da janela”. Coisas como esta nos propulsionam, incentivam e locomovem a continuar nosso trabalho e pesquisa. Deixamos na mão do outro possíveis críticas, ganhos ou perdas do que apresentamos. Afinal, fazemos teatro. Sem relações sócias, não há comunicação tampouco manifestações artísticas. Queremos trocas e comunicações. Creio que conseguimos.
  • 29. 29 Piratas de Galochas na Luz Reflexões sobre o processo Programa de Valorização de Iniciativas Culturais VAI 2º semestre / 2012 A criação da voz do ator no espaço público: Origem no corpo, projeção no espaço Gabriel Hernandes I. Introdução Esse relatório tem como objetivo fazer um registro do processo de treinamento de voz com os atores do Coletivo de Galochas para a apresentação da peça Piratas de Galochas na Luz, encenada nos espaços entre a Praça Júlio Mesquita e Rua Dino Bueno. Relatarei alguns aspectos que chamaram a minha atenção nesse processo que fiz parte como ator e treinador de voz. Após pesquisas, em vão, atrás de alguma bibliografia ou registro que me ajudasse a criar um treinamento de voz para teatro em espaço público da cidade de São Paulo, resolvi experimentar uma metodologia própria que levaria em consideração a minha experiência pessoal de voz como ator, exercícios aprendidos no curso de Artes Cênicas e auxílio do Prof. Zebba Dal Farra (CAC/ECA/USP). Iniciei essa metodologia com a idéia de que deveríamos estudar a criação da voz individual e dividi esse trabalho em dois eixos: corpo e espaço. Estudaríamos em cada um desses eixos onde e como essa voz pode ser criada e, com base nesse conhecimento, como projetá-la. II. Prática 1. Corpo Cada corpo é único e a sua forma de desenvolvimento reflete o desenvolvimento de uma vida, suas conseqüências e traumas psicológicos, físicos e genéticos. Com esse entendimento, escolhi trabalhar a origem da voz a partir da musculatura corporal em busca de uma voz “neutra” e mais livre o possível de traumas que possam silenciá-la. Primeiramente fizemos um reconhecimento das principais partes responsáveis pela criação da voz, partindo de uma postura neutra, verificando como a postura óssea e a musculatura auxiliam na descoberta dessa postura. Depois fizemos estudo aprofundado de cada parte do rosto, relaxando a musculatura responsável pela emissão da fala nesse local: toda a musculatura do rosto, interior e exterior das bochechas, língua, palato, assoalho e céu da boca, lábios. Dessa forma acabamos por criar um aquecimento que se construiu a cada encontro com as novas descobertas de voz encontradas nesse treinamento.
  • 30. 30 Piratas de Galochas na Luz Reflexões sobre o processo Programa de Valorização de Iniciativas Culturais VAI 2º semestre / 2012 Começamos então o estudo de uma respiração toráxica para a criação da voz a partir do corpo. Primeiro a percepção do movimento de costelas e diafragma nos estágios separados da respiração, inspiração e expiração. Reconhecendo as costelas, massageando-as e, com uma mão em cada conjunto de costelas experimentamos a emissão do som das vogais na ordem da mais fechada para a mais aberta: I-E-É-A-Ó-O- U. O foco deveria estar na relação entre o movimento de abertura e fechamento que a musculatura intercostal propõe ao inspirar/expirar e o ar que entra, naturalmente pela diferença de pressão no interior e exterior do corpo, e é empurrado para fora, para assim começar a emissão de uma voz. Em seguida treinamos a ativação do abdômen para a sustentação da nova postura descoberta. Após a experimentação individual propus que se dividissem em duplas e realizassem o seguinte exercício: Exercício nº1 Vibrando no outro I. Duplas: colocar mão e/ou ouvido da dupla durante a emissão do som. II. Sentir qual parte do corpo vibra mais em cada vogal. III. Sentir qual parte do corpo vibra mais, de modo geral. VI. Tentar descobrir o movimento do som através da vibração no corpo da dupla ao fazer a seqüência i-e-é-a-ó-o-u. V. Explorar as intensidades de emissão dessa(s) voga(l)(is). VI. Comentar exploração e inverter função das duplas. Depois desse exercício com o foco nas musculaturas intercostais para a realização da respiração toráxica, orientei a todos os atores que ficassem atentos a esse movimento daquele instante em diante, até o final do processo de ensaios, sempre que fossem emitir a voz. Tendo experimentado um processo de criação da voz a partir da estrutura do corpo individual começamos a estudar a projeção dessa voz: orientei que primeiro estimulassem o bocejo algumas vezes, espreguiçassem, e percebessem como a estrutura do corpo se comporta nesse movimento. Depois, instruí para que escolhessem uma fala
  • 31. 31 Piratas de Galochas na Luz Reflexões sobre o processo Programa de Valorização de Iniciativas Culturais VAI 2º semestre / 2012 do seu personagem e a emitissem em forma de bocejo, organizando a estrutura corporal da mesma forma percebida anteriormente. Então fizemos o seguinte exercício coletivo: Exercício nº 2 Telefone sem fio I. Um ator emite um som de vogal continuamente a partir do bocejo. Outro ator se distancia até que consiga ouvir minimamente aquele som projetado pelo primeiro. O próximo ator realiza o mesmo procedimento do último até que todos os atores ficassem espalhados pela Praça Júlio Prestes na distância máxima que as suas vozes poderiam alcançar o próximo. II. O primeiro ator fala uma frase, criada aleatoriamente, a partir do bocejo, para o próximo, que deverá repeti-la para o ator seguinte. III. O último ator deve repetir o que ouviu para o primeiro. IV. O grupo se reúne novamente e o primeiro diz o que ouviu do último ator e qual era a frase original. A partir de observações realizadas nesse exercício percebi que o trabalho da projeção deveria ser aprofundado na idéia de projetar a voz para alguém, ter uma pessoa em determinada distância para recebê-la e estimular a sua projeção. Elaborei, então o próximo exercício, em duplas: Exercício nº 3 Imitando o som do outro I. Duplas. II. Escolher um texto do seu personagem, falar com as intenções, mas com a voz natural do ator. III. Esse ator vai abraçar levemente (sem fazer peso, sem apertar nada, apenas para estimular a movimentação muscular) o parceiro de dupla pelas costas.
  • 32. 32 Piratas de Galochas na Luz Reflexões sobre o processo Programa de Valorização de Iniciativas Culturais VAI 2º semestre / 2012 IV. O parceiro, abraçado, vai utilizar do corpo do outro para respirar e falar o texto, com projeção. Quem está abraçando deve respirar junto e falar o texto ainda em voz natural. Repetir esse procedimento quantas vezes for necessário. V. O texto volta para a boca original e deve ser experimentado com o que foi sentido do corpo do outro. VI. Sem mudar o mecanismo de emissão desse texto o companheiro que está assistindo deve ficar no lugar no espaço onde o texto deve chegar (e aumentar essa distância: perto, médio e longe; frente, lado e costas). VII. Inverter as funções nas duplas. Após a prática em duplas propus outro exercício com o mesmo objetivo de trabalho de projeção da voz, individualmente, na tentativa de que houvesse um aprofundamento maior: Exercício nº 4 Projetando I. Encontrar, a partir dos comentários do exercício anterior, o lugar do seu corpo onde a vibração é mais intensa. II. Imaginar uma bolinha no meio de um fio, você está segurando essa bolinha pelas extremidades desse fio e a bolinha é esse foco, esse lugar que mais vibra na emissão da voz. III. Movimentar a bolinha, dentro do corpo, para baixo e para cima, emitindo o som. IV. Movimentar a bolinha, externa ao corpo, para baixo e para cima, emitindo o som. Durante a conversa pós-treinamento de voz alguns atores relataram dificuldade na realização desse exercício, entre eles as atrizes, as mesmas que vinham comentando algumas dificuldades de projetar a voz. Para o próximo treinamento então planejei
  • 33. 33 Piratas de Galochas na Luz Reflexões sobre o processo Programa de Valorização de Iniciativas Culturais VAI 2º semestre / 2012 trabalhar com perturbações que tirassem o corpo do ator de um lugar confortável na hora de emitir a sua voz, pensando que deveríamos tentar escapar a voz de suas tensões, todas aquelas conseqüências e traumas responsáveis pela formação do corpo individual. Exercício nº 5 Jogo do Busnardo Ações: 1. falar “Busnardo” → vendar e caminhar falando texto previamente escolhido. 2. desmaiar → o grupo ergue o corpo do ator com este falando um texto seu previamente escolhido. 3. separar-se do coro → o ator deveria voltar ao coro, que criará resistência corporal para aceitá-lo novamente, empurrando-o e falando texto previamente escolhido. * todas as falas serão realizadas com a dinâmica da respiração toráxica. I. O grupo todo deve caminhar junto e vagarosamente pelo espaço da Praça Júlio Prestes. II. Cada um do coro deve estar falando uma seqüência de texto previamente escolhida em intensidade mais baixa a possível. III. Ator e, conseqüentemente, coro realizam uma das 3 ações descritas acima. Após a realização desse exercício conversamos sobre o desenvolvimento da voz junto ao desenvolvimento do corpo e o lugar de cada um no grupo. Percebemos que muitas pessoas não eram ouvidas ou percebidas quando realizavam uma das três ações e algumas identificações sobre voz dentro do coletivo, iniciativa, traumas de desenvolvimento corporal e o lugar de onde sai a voz de cada um. 2. Espaço
  • 34. 34 Piratas de Galochas na Luz Reflexões sobre o processo Programa de Valorização de Iniciativas Culturais VAI 2º semestre / 2012 O segundo eixo de criação de uma voz começou com o reconhecimento do espaço. Nos reunimos na praça adjacente a Praça Júlio Prestes, de espaço menor, menor circulação de pessoas porém maior circulação de carros. Pedi aos atores que caminhassem por todo espaço da praça e sempre que ouvissem um som tentassem segui-lo e imitá-lo com a voz. Todos os sons eram válidos: aviões, trens chegando e partindo da estação logo ao lado, sirenes de polícia, música, voz e passos dos outros atores. Deveriam seguir o som até não ouvi-lo mais, dentro dos limites daquela praça. Para estudarmos a voz partindo do reconhecimento do espaço seria necessário tomá-lo em presença coletiva, a partir do trabalho individual adquirido por cada um no eixo anterior (do corpo), para que pudéssemos explorar a projeção da voz entre as imprevistas estruturas físicas e sonoras do espaço público da cidade. O próximo jogo tinha como objetivo a criação de um barco, necessário para a encenação da peça. Esse barco seria criado através dos sons suscitados por uma embarcação pirata. Então propus um exercício anterior como preparatório para em seguida criarmos o barco da tripulação dos Piratas de Galochas. Exercício nº 6 Super-carro-trem I. Todo o grupo em coro colocando sua voz em fryin'. II. Coletivamente ir acelerando o fryin' até o surgimento da voz. III. À medida que a intensidade da voz vai aumentando o coro começa a caminhar e conforme essa voz vai ganhando corpo a caminhada aumenta até a corrida. IV. A intensidade da voz vai, aos poucos, diminuindo junto com a velocidade de movimentação do coro. V. Caminhar na direção linear reta sempre, virar apenas em face a obstáculos. Exercício nº 7 Navio-coro
  • 35. 35 Piratas de Galochas na Luz Reflexões sobre o processo Programa de Valorização de Iniciativas Culturais VAI 2º semestre / 2012 1. Funções no barco: Remar Orientar: expandir, juntar, virar, parar Frear I. Em coro cada um deve assumir uma função do barco. II. Cada função deve ter um som criado intuitivamente e executado sempre que for realizada a devida função III. O navio-coro deverá navegar pelo espaço realizando as funções descritas. Começamos a realizar práticas vocais que envolvessem elementos individuais (voz partindo do seu corpo a partir da respiração toráxica) e coletivos para superar os obstáculos do espaço público (a escuta como principal ferramenta para essa superação). Como auxiliar na projeção trabalhamos também com o conceito de palavra cantada, um estudo do movimento da voz (prosódia) durante toda a extensão de uma fala, e que auxiliaria também na emissão das falas com as vozes dos respectivos personagens em vez da voz natural-cotidiana do ator. Pedi que os atores dessem suas falas cantando, em forma de música de livre improvisação melódica. Exercício nº 8 Palavra cantada I. Duplas. II. Cada ator escolhe uma fala de seu personagem e a canta para a sua dupla. III. A dupla se distancia na extensão da largura de uma rua (cada um em um lado da rua). IV. O primeiro deve cantar a sua fala ao próximo que só vai prosseguir com o exercício se tiver escutado detalhadamente tudo o que foi dito. Em caso negativo o primeiro deve repetir a fala
  • 36. 36 Piratas de Galochas na Luz Reflexões sobre o processo Programa de Valorização de Iniciativas Culturais VAI 2º semestre / 2012 cantada. V. O próximo canta a sua fala para o primeiro da próxima dupla. VI. A dinâmica segue assim até todos terem participado. Executamos esse exercício com a intenção do bocejo, proporcionando algumas descobertas e comentários de evolução por parte dos atores. Em seguida revisamos os nossos aprendizados nos dois eixos de treinamento vocal para que aprendêssemos a cantar uma música (criada por mim, tema dos Piratas de Galochas na Luz, em anexo). Para isso separei o grupo em naipes de graves e agudos e criei linhas melódicas para cada naipe. Integramos a execução dessa música também ao nosso aquecimento de voz pré-ensaios e pré-apresentações. III. Conclusão É possível, sim, a projeção da voz no espaço público. Após três meses de curto processo de treinamento de voz acredito que deve ser dado o devido cuidado para não se cair em uma tradicional rotina chata de aquecimento e treinamento de voz. Muitas vezes a treinamos como cumprimento ritualístico de ensaio ou apresentação e, por conta desse comodismo, não há aparente evolução nas chamadas técnicas de voz que aprendemos, por parecerem sempre como “mais do mesmo”, uma repetição enfadonha. Não há outra maneira de treinar a voz senão partindo do treinamento do corpo, exercícios básicos de foco nos órgãos responsáveis pela emissão e pela exploração consciente do lugar do corpo individual e do espaço através do corpo coletivo, lugares esses onde a voz é criada.
  • 37. 37 Piratas de Galochas na Luz Reflexões sobre o processo Programa de Valorização de Iniciativas Culturais VAI 2º semestre / 2012 OS PIRATAS DO KUTTEL DADDEL DU Tom: C ' ' ' ' ' ' ' ' Intro: F C F G C C G F C Nós somos os piratas do Kuttel Daddel Du F C D7 G Nós vamos saqueando pelos mares da Luz C G F C Nós somos violentos, matamos sem razão F C F G C O serviço é completo, cabeça, pé e mão. C G F C Nós somos os piratas, piratas bem legais! F Nós vamos entrar C Sem nos importar D7 G O quanto dinheiro nós vamos levar F Não fique nervoso C Se não for gostoso F G C Furamos seu olho e roubamos um bar!
  • 38. 38 Piratas de Galochas na Luz Reflexões sobre o processo Programa de Valorização de Iniciativas Culturais VAI 2º semestre / 2012 OS PIRATAS DO KUTTEL DADDEL DU 1ª VOZ SOL DÓ SOL DÓ MI SOL SOL SOL LÁ SOL LÁ DÓ SOL Nós so - mos os pi – ra - tas do Ku - ttel Da - ddel Du SOL LÁ DÓ SI LÁ SOL MI MI FÁ RÉ MI FÁ SOL Nós va - mos sa - que - an - do pe - los ma - res da Luz SOL DÓ SOL DÓ MI SOL SOL SOL LÁ SOL LÁ DÓ SOL Nós so - mos vi – o - len - tos, ma - ta - mos sem ra - zão SOL LÁ DÓ SI LÁ SOL MI MI FÁ MI FÁ RÉ DÓ O ser - vi - çoé com - ple - to, ca - be - ça, pé e mão. SOL DÓ SOL DÓ MI SOL SOL SOL LÁ SOL LÁ DÓ SOL Nós so - mos os pi - ra - tas, pi - ra - tas bem le - gais! LÁ LÁ LÁ LÁ LÁ Nós va - mos en - trar LÁ SOL SOL SOL SOL Sem nos im - por - tar RÉ RÉ RÉ RÉ MI MI FÁ SOL SOL SOL SOL O quan - to di - nhei - ro nós va - mos le - var LÁ LÁ LÁ LÁ LÁ LÁ Não fi - que ner - vo - so LÁ SOL SOL SOL SOL SOL Se não for gos - to - so RÉ MI RÉ MI FÁ MI RÉ FÁ MI RÉ DÓ Fu - ra - mos seu o - lhoe rou - ba - mos um bar!
  • 39. 39 Piratas de Galochas na Luz Reflexões sobre o processo Programa de Valorização de Iniciativas Culturais VAI 2º semestre / 2012 2ª VOZ SOL DÓ DÓ DÓ DÓ SI SI SI DÓ DÓ SI LÁ SOL Nós so - mos os pi – ra - tas do Ku - ttel Da - ddel Du SÓL MI MI MI MI RÉ SI DÓ RÉ DÓ SI DÓ RÉ Nós va - mos sa - que - an - do pe - los ma - res da Luz SOL DÓ DÓ DÓ DÓ SI SI SI DÓ DÓ SI LÁ SOL Nós so - mos vi – o - len - tos, ma - ta - mos sem ra - zão SÓL MI MI MI MI RÉ SI SOL LÁ FÁ SI SOL DÓ O ser - vi - çoé com - ple - to, ca - be - ça, pé e mão. SOL DÓ DÓ DÓ DÓ SI SI SI DÓ DÓ SI LÁ SOL Nós so - mos os pi - ra - tas, pi - ra - tas bem le - gais! MI MI MI MI MI Nós va - mos en - trar MI RÉ RÉ RÉ RÉ Sem nos im - por - tar SI SI SI SI DÓ DÓ DÓ RÉ RÉ RÉ RÉ O quan - to di - nhei - ro nós va - mos le - var MI MI MI MI MI MI Não fi - que ner - vo - so MI RÉ RÉ RÉ RÉ RÉ Se não for gos - to - so SOL LÁ SOL LÁ SI LÁ SI DÓ DÓ DÓ DÓ Fu - ra - mos seu o - lhoe rou - ba - mos um bar!
  • 40. 40 Piratas de Galochas na Luz Reflexões sobre o processo Programa de Valorização de Iniciativas Culturais VAI 2º semestre / 2012 Operacionalização da prática: Iluminação e Sonoplastia Cauê Martins Para entender como foi o processo de iluminação e sonoplastia do Piratas de Galochas pelas ruas da Luz, na sua idealização e prática, temos que levar em conta o espaço com o qual estávamos lidando e a trajetória dos atores. O primeiro passo foi pensar em como transportar ou prender as caixas de som, microfones, o projetor e os refletores de iluminação e sonoplastia. Necessitávamos de algo móvel, que facilitasse o transporte de todos os equipamentos. O segundo foi elaborar como ligar esses equipamentos sem que necessitasse-mos puxar fios de energia dos locais da região. Essa foi uma de nossas maiores preocupações. I. Parte Técnica 1 Estrutural O Carinho industrial foi a solução para o transporte de todos os equipamentos. Incorporamos nele uma estrutura de madeira, onde nosso sistema elétrico era todo ligado, além disso, ele continha uma barra que suportava dois refletores, que era de onde uma parte da iluminação era disparada. O carrinho também acomodava a caixa de som, de onde toda trilha sonora era disparada. Além de acomodar os equipamentos, também era de fundamental importância ter espaço no carrinho para guardar os diversos acessórios de figurino e contra-regragem. Uma bateria de caminhão 12V, ligada a um inversor de corrente para 110V com capacidade de 2000watts de potencia foi a nossa fonte de energia para suportar os
  • 41. 41 Piratas de Galochas na Luz Reflexões sobre o processo Programa de Valorização de Iniciativas Culturais VAI 2º semestre / 2012 equipamentos do espetáculo.A bateria, assim como o inversor, também ficavam alojados no carrinho, na base da estrutura de madeira descrita acima. A caixa de som foi colocada estrategicamente no carrinho, para possibilitar a manipulação das musicas, e para que ficasse direcionada para o publico. 2 Iluminação Os refletores foram pensados em questão de economia de energia, já que estávamos lidando com uma fonte não fixa de energia, que era a bateria de caminhão. Outra questão foi a de ter como modificar a iluminação de uma forma rápida, durante a peça, pois não teríamos tempo de trocar gelatinas. Para isso tínhamos 4 refletores Par Led, e uma mesa controladora DMX de Luz. Os quatro refletores tinham que ficar plugados um no outro, pois o sinal é lançado da mesa, e isso nos exigia ter toda uma movimentação certeira dos refletores, de uma cena para a outra. Também for utilizamos set- ligths de lâmpada incandescente e de lâmpada Led. Em alguns momentos nos utilizamos dos prédios e construções edificadas para suporte de imagens, lançadas por um projetor de dentro do carrinho. O desafio descobrir em quais suportes projetar sem que perdesse muita luz pelas interferências da rua. O conceito aplicado para as escolhas de luz era criar um contraste entre a cena e o espaço. Em diversos momentos os piratas eram iluminados pela luz natural do ambiente, e os refletores eram utilizados para iluminar o próprio espaço, que era assim valorizado com as cores. 3 Sonoplastia A Sonoplastia tem um papel muito importante para a peça, em diversos momentos
  • 42. 42 Piratas de Galochas na Luz Reflexões sobre o processo Programa de Valorização de Iniciativas Culturais VAI 2º semestre / 2012 de transição, planos de fundo para as cenas, trilha para brigas, alem de criar tensão em momentos específicos da peça. As músicas utilizadas eram emitidas diretamente da caixa de som ativa. Outra forma utilizada de musica e trilhas era o acordeão que uma das atrizes tocava durante a peça. Além disso, tínhamos cenas em que todos os atores cantarolavam, e para isso foram necessários diversos exercícios de canto. Alem desses efeitos, também foram utilizados mega-fones para projetar a voz de cenas que não se conseguiam ouvir.
  • 43. 43 Piratas de Galochas na Luz Reflexões sobre o processo Programa de Valorização de Iniciativas Culturais VAI 2º semestre / 2012 Teatro de Invasão e Ocupação: Espaço, suas determinações e sua potência criativa Rafael Presto “Não confundir a cidade com o discurso que a descreve, ainda que haja uma relação entre eles” Ítalo Calvino, As Cidade Invisíveis Este artigo tem o intuito de debater o processo de ressignificação do espaço público através da invasão e ocupação teatral do ambiente urbano, partindo da análise do processo de construção do espetáculo Piratas de Galochas na Luz, ação empreendida pelo Coletivo de Galochas no bairro da Luz. O trabalho desde o início era apoiado no conceito de invasão teatral4 . Essa invasão parte da compreensão do espaço como uma somatória de fluxos. Os fluxos caracterizam um lugar, são aquilo que o tornam singular, diferente de tantos outros. São as linhas que ditam as formas de uso social do espaço e também o que define nossa percepção cultural. São determinações de naturezas diversas. A primeira determinação que podemos pensar é a do espaço físico tomado em suas dimensões estruturais – muros, calçadas, bancos, paredes, portas, pilares, colunas. A arquitetura de um lugar define muito dele. Mas o que permanentemente anima esse espaço físico, o que define seus fluxos, são as rotinas de uso que as pessoas estabelecem nele. São elas que demarcam uma espécie de lógica do espaço, responsável pela forma como apreendemos o território da urbe em nosso dia-a-dia. Existe um projeto por detrás do espaço, herdamos suas características nas rotinas de uso que estabelecemos com ele. No entanto, não vivemos o projeto do mundo, vivemos seu cotidiano concreto: ao mesmo tempo que o espaço nos determina, o transformamos o tempo todo, em um permanente processo de rupturas e suturas dialéticas de determinações e criações. Esta é a abordagem que toma o espaço enquanto ambiente, uma organização que parte de um projeto mas necessariamente o transforma dando-lhe características 4 CARREIRA, André. ‘Teatro de Invasão: redefinindo a ordem da cidade’ in LIMA, Evelyn Furquim Werneck. Espaço e Teatro: do edifício teatral a cidade como palco. Rio de Janeiro: 7Letras, 2008.
  • 44. 44 Piratas de Galochas na Luz Reflexões sobre o processo Programa de Valorização de Iniciativas Culturais VAI 2º semestre / 2012 singulares, fruto dos deslocamentos culturais e de comportamentos. O ambiente está em constante transformação, sua dinâmica interna imprime mudanças o tempo inteiro. A invasão teatral praticada pelo Coletivo de Galochas parte de um jogo com os fluxos de um determinado ambiente. Através da ação teatral o grupo busca alterar as rotinas de uso especificas de um determinado espaço, ressignificando-as. Assim, o ambiente onde a ação teatral acontece não é tomado como suporte, mas antes como dramaturgia, potência criativa. A ideia é produzir, por meio de uma intervenção cênica, rupturas e reordenamentos temporários nas rotinas que constituem o espaço. Tomar o ambiente enquanto objeto cultural, uma narrativa que define o que somos, para então interferir nele. A invasão teatral é, por princípio, uma ação política. Seu foco está em atritar os fluxos do espaço gerando possibilidades inusitadas de uso, possibilidades essas para além dos regimes de produção daquele ambiente. Busca o rompimento momentâneo das categorias; é uma fala de resistência que ocupa o espaço. É uma interferência na lógica da cidade, uma intromissão ao uso cotidiano do espaço. (André Carreira, 2008). Para praticar este teatro, é preciso repensar o instrumental de trabalho do ator. Este deve partir de um principio de porosidade e adaptabilidade absoluta. Enquanto joga com determinado ambiente, o ator precisa estar aberto para perceber e incorporar em sua ação teatral todos os elementos únicos que a fricção com o espaço oferece. Buscar estes pontos de intersecção passa a ser o ponto principal do trabalho do ator, que parte de uma interpretação permanentemente criativa, fundamentalmente improvisacional. A rotina de invasões constantes faz com que a prática teatral, pouco a pouco, se introduza nos fluxos do ambiente, alterando as possibilidades de uso do espaço de maneira mais perene. A capacidade de intervenção teatral se amplia, passa a figurar como um dos elementos que constitui aquele cotidiano. Momento de maturação nas relações estruturais, simbólicas e de convivência entre prática estética e zona ocupada: o que era invasão torna-se ocupação.
  • 45. 45 Piratas de Galochas na Luz Reflexões sobre o processo Programa de Valorização de Iniciativas Culturais VAI 2º semestre / 2012 As invasões teatrais realizadas servem de instrumento de investigação do espaço. Neste segundo momento, de ocupação, temos a reflexão do material cênico produzido pelas invasões teatrais. O intuito é constituir, partindo de um repertório de experiências concretas, uma ação teatral mais complexa, mais profundamente entrelaçada entre os muitos fluxos que definem o ambiente. No trabalho do Coletivo de Galochas, a fronteira entre esses dois momentos, invasão e ocupação, é demarcada pela finalização da dramaturgia do espetáculo, construída ao longo das muitas ações de tomada do espaço. O espetáculo, portanto, torna-se indissociável do espaço que ocupa. Antecedentes: Da Ocupação Prestes Maia as ruas da Luz Esse conceito de invasão e ocupação teatral foi praticado pelo Coletivo de Galochas, inicialmente, dentro de uma Ocupação de Moradia. Durante um ano, em parceria com o MSTC – Movimento Sem Teto do Centro, o grupo trabalhou dentro da Ocupação Prestes Maia, maior ocupação vertical da América Latina, casa retomada de mais de 360 famílias. Lá o Coletivo participou de mutirões de limpeza, assembleias, atos públicos, da ocupação de outro imóvel. Os ensaios do espetáculo transcorriam em paralelo com toda essa movimentação, acontecendo cada dia em um andar diferente dos dois prédios do imóvel. Todo esse processo desembocou na consolidação do Núcleo Cultural Prestes Maia, atrelado à finalização do espetáculo Piratas de Galochas. A peça, finalmente ancorada no nono andar de um dos prédios, era uma comédia sobre piratas que ocupavam uma ilha sem função social. A construção da dramaturgia do espetáculo partiu do atrito do universo da pirataria clássica com o cotidiano da ocupação, cotidiano experienciado pelo grupo através da convivência cotidiana e de muitas invasões teatrais. Durante esse processo, por estar ao lado dos ocupantes, o grupo acompanhou diversas intempéries políticas externas, como as constantes ordens de despejo e os discursos midiáticos estigmatizantes. Mas o cotidiano de ensaios, a produção teatral específica lá dentro, não era marcada por fortes atritos. A relação dos teatristas com o espaço era pacífica e acordada, tinham a segurança de estar em um ambiente privado onde tudo partia de uma construção em conjunto com o Movimento de Moradia. Um jogo cordial com os fluxos de uma organização social. A dramaturgia do espetáculo buscava um atrito com o imaginário e ideologia dos ocupantes, mas posicionada: o Coletivo de Galochas, afinal, lutava politicamente ao lado dos moradores.
  • 46. 46 Piratas de Galochas na Luz Reflexões sobre o processo Programa de Valorização de Iniciativas Culturais VAI 2º semestre / 2012 Dentro das lutas políticas do movimento de moradia, um projeto figura como um dos grandes vilões: o Projeto Nova Luz. Atualmente a Ocupação Mauá, também tocada pelo MSTC, corre risco de despejo por conta deste projeto – as ocupações são consideradas, pela especulação imobiliária, como elementos que desvalorizam um bairro. Pretendendo uma ampliação nas ações e debates empreendidos em torno da produção do espaço, o Coletivo de Galochas decidiu por zarpar com seu barco para aportá-lo nas ruas da Luz. Foi esta a vontade inicial para realização da 2ª temporada do espetáculo, agora chamado Piratas de Galochas na Luz – invadir a cidade. Conjuntura da Nova Luz: Cidade do espetáculo e a especulação imobiliária. A ida ao espaço público catapultou o debate em torno do espaço para uma estrutura macro. Deixávamos o apoio a um polo de resistência da guerra imobiliária, que era a Ocupação, para embarcar em seu aspecto mais amplo: a organização estrutural da cidade. O que antes atuava na esfera das intempéries, aquilo que enfrentávamos enquanto parceiros do Movimento de Ocupação, passou a figurar como um dos pilares na pesquisa do Coletivo de Galochas – os agentes políticos que gerem a ampla organização do espaço. O projeto contemporâneo de produção da cidade vem, sistematicamente, desinvestindo o espaço público de suas possiblidades de encontro e experiência – as ruas e praças cada vez mais se projetam como imensos corredores de passagem, lugares não relacionais5 de trânsito das pessoas entre um compromisso e outro. Não por acaso o desinvestimento: naufragados os espaços coletivos, restam as ilhas de consumo. Nunca a organização do ambiente urbano respondeu tanto a um discurso ordenador do fluxo do capital. Este fluxo se traduz como prática no espaço, esvaziando-o de suas possibilidades mais autônomas que emergem das dinâmicas socioculturais – uma cidade cartão-postal, reflexo de uma miragem de fundamentos financeiros. Essa espetacularização do espaço 6 esvazia-o de suas possibilidades mais autônomas, fazendo com que sua organização aponte um uso mercantil, em consonância com as faces mais globais da economia atual. A espetacularização é um jogo simbólico em que determinada imagem de cidade adere ao espaço, através da definição a priori, ou da sugestão, de figuras estruturais ou conjunturais. 5 AUGÉ, Marc. Não Lugares. Campinas/SP: Papirus, 1994. 6 DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.
  • 47. 47 Piratas de Galochas na Luz Reflexões sobre o processo Programa de Valorização de Iniciativas Culturais VAI 2º semestre / 2012 A especulação imobiliária responde pela principal parcela deste projeto contemporâneo de produção espetacular do espaço, uma verdadeira máquina de crescimento urbano operando a todo vapor. Por um lado surgem modelos de disciplinas urbanísticas como a cidade-histórica; cidade-museu; cidade universitária; capital da cultura; cidade do futuro. Por outro, inauguram-se modelos fechados de cidade, imóveis de uma arquitetura neutra e empresarial, capazes de abarcar multinacionais e grandes negócios; sua principal característica é a liquidez – um dinamismo estrutural que abarque a velocidade dos negócios atuais. Este princípio espetacular que perpassa a cidade restringe a capacidade de elaboração de experiências do cidadão que a habita cotidianamente. A cidade espetáculo atua de maneira inversamente proporcional a experiência urbana efetiva. Tira do ambiente sua capacidade de historização. O principio que movimenta a especulação é simples. Primeiro são realizadas ações de deterioração em um determinado espaço. Em seguida, tem-se inicio as práticas de revitalização. Em cada um desses passos, o mercado atua em parceria com o poder público – sem ele, nada seria possível. O investimento em determinadas zonas da cidade, ou o desinvestimento, sempre responde a determinados interesses. Para a criação de zonas de valor imobiliário é preciso que haja uma aliança entre setores privados e o Estado. Falando especificamente de São Paulo7 , a reformulação e espetacularização do espaço começa na década de 60 com a construção da Avenida Paulista, projeto com pretensões de fundar um novo centro financeiro para a cidade. Na década seguinte acompanhamos a ampliação dessa área empresarial para Avenida Berrini; mais tarde, nas décadas de 80 e 90, surgem os grandes investimentos da região da Faria Lima. Como último vetor de valorização imobiliária da região sudoeste da cidade, no fim dos anos 90 e na primeira década do século XXI, temos a expansão para região da Marginal Pinheiros – o vetor acabou, bateu no rio. Com a impossibilidade de continuar se embrenhando na região sudoeste da cidade, parte da estratégia atual da máquina imobiliária reside no retorno das ações empresariais ao centro histórico, que, não por acaso, tem parte de seu território passando por um longo processo de desinvestimento do poder público. O Projeto Nova Luz nasce dessa conjuntura. 7 FIX, Mariana. São Paulo cidade global: fundamentos financeiros de uma miragem. São Paulo: Boitempo, 2007.
  • 48. 48 Piratas de Galochas na Luz Reflexões sobre o processo Programa de Valorização de Iniciativas Culturais VAI 2º semestre / 2012 O Coletivo de Galochas, portanto, definiu como espaço de sua próxima ação o local alvo desse megaprojeto urbanístico, uma zona da cidade que figura como símbolo máximo do desinteresse e ineficiência do poder público, um espaço estigmatizado, e por isso passível de sofrer uma ação imobiliária tão ostensiva como o Nova Luz. O grupo pretendia realizar sua próxima ação de invasão e ocupação teatral na região conhecida pelo taxativo nome de Cracolândia. Cracolândia: O peso concreto de uma construção simbólica Já faz quase um ano que, não por acaso, esta região central do bairro da Luz explodiu nos holofotes da mídia. Em janeiro de 2012 a Polícia Militar deu início a autodenominada Operação Sufoco. Os crackeiros, como são comumente chamados, eram o foco e a justificativa da operação; seu primeiro ato, bombas de gás lacrimogêneo, cassetetes e balas de borracha para dispersá- los. Aos usuários de crack moradores de rua era imposta uma rotina de circulação permanente (sempre obrigados a caminhar de onde estivessem parados), de enquadros constantes e agressões gratuitas. As autoridades alegavam ter empregado uma estratégia de "dor e sofrimento" para conter o avanço da dependência de crack: “Não vamos dar sossego para eles. Quero deixar bem claro: a Cracolândia em São Paulo acabou!", declarou na época a secretária de Justiça de São Paulo, Eloisa de Sousa Arruda.8 A violência desmedida da Polícia despertou a atenção da mídia. O bairro ganhou destaque, os órgãos da Defensoria Pública e da Assistência Social protestaram, teóricos e acadêmicos organizaram fóruns de debates, a discussão em torno das substâncias 8 Entrevista publicada no Jornal Folha de São Paulo, Cotidiano, dia 27 de Janeiro de 2012. http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidiano/22438-a-cracolandia-ja-acabou-diz-secretaria-da- justica.shtml - acessado em 24/11/2012.
  • 49. 49 Piratas de Galochas na Luz Reflexões sobre o processo Programa de Valorização de Iniciativas Culturais VAI 2º semestre / 2012 psicoativas voltou à pauta do dia. O poder público, duramente cobrado. Muito aconteceu, hoje o debate está mais encaminhado, medidas foram aprovadas na justiça e a onda de violência com os usuários moradores de rua diminuiu. No entanto, usando a lógica de desvalorização/revitalização, tendo como justificativa o debate em torno do crack, o projeto urbanístico Nova Luz corre para ser iniciado. Com intuito de ‘revitalizar’ esta parte da cidade, o projeto prevê a desapropriação de determinados imóveis para negociá-los com potenciais investidores; o mecanismo utilizado nessa operação chama-se concessão urbanística, mecanismo aprovado em lei na gestão do Prefeito Gilberto Kassab. Esta Lei de Concessão Urbanística9 funciona através da fórmula mágica da parceria. Concretamente cria a figura do concessionário, um ‘parceiro’ privado que ganha o ‘direito’ de explorar essa região da cidade. O poder público, então, avança sobre o espaço privado desapropriando imóveis dentro de zonas de desvalorização – a gigantesca parte desses imóveis pertencem a populações de baixo poder aquisitivo. A composição da região chamada de Cracolândia, a principal zona de desvalorização imobiliária de São Paulo, é feita de pensões e hotéis simples, ocupações de moradia, ciganos e moradores tradicionais. Não, nem só de crackeiros é composta a região da Luz. A ação do poder público em parceria com a especulação imobiliária para ‘revitalizar’ o bairro da Luz, tendo como justificativa os usuários de crack – eis o centro em debate nas ações de invasão e ocupação teatral que o Coletivo de Galochas desempenhou no bairro. O interessante é perceber que o argumento de fundo, a justificativa para as ações de revitalização, é a imagem constituída em torno do usuário de crack – verdadeiro bode expiatório para crise de civilização que vivemos. Crackeiro é um termo em que mercadoria e pessoa ficam nivelados. O espetáculo atua de forma concreta. É um ato simbólico de efeitos devastadores nomear um bairro de Cracôlandia – o nome é usado pelo poder público. É uma categoria de acusação útil, permite comprar os imóveis do bairro a preço de Cracolândia para vendê-los a preço de Nova Luz. É uma guerra simbólica, onde a imagem de um bairro se sobrepõe às possibilidades de seu cotidiano concreto. 9 Lei nº 14.918 aprovada em 07/05/2009. http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/desenvolvimento_urbano/legislacao/index.php?p=1382 – acessado em 24/11/2012.
  • 50. 50 Piratas de Galochas na Luz Reflexões sobre o processo Programa de Valorização de Iniciativas Culturais VAI 2º semestre / 2012 A tentativa do Coletivo de Galochas era construir pelo bairro uma possibilidade de experiência e construção simbólica diferente daquela arregimentada pelos discursos midiáticos, pela especulação imobiliária e pelo descaso/violência de parte do poder público. Cidade ocupada: o cotidiano de ensaios nas ruas da Luz O Coletivo de Galochas tinha muitos pontos de apoio para o começo do trabalho. O cotidiano de ensaios na ocupação armou o grupo quanto ao debate do projeto Nova Luz, apoiado na maquina de crescimento imobiliário. O grupo também estudou o conceito da cidade espetacularizada, esse processo de empobrecimento da possibilidade de experiência no espaço da cidade. Mas o mais importante de tudo, o grupo partia da adaptação de um espetáculo pronto, Piratas de Galochas – sua dramaturgia, a construção de suas personagens, uma linguagem apontada, o ritmo das cenas. A peça, embora tivesse de ser profundamente reformulada, era o principal ponto de apoio de todo trabalho, o lugar de articulação de todos esses assuntos, a ferramenta fundamental para maior parte das invasões teatrais realizadas pelo grupo. A idéia era remontar a peça em um formato de passeio – a encenação caminharia junto com os espectadores pelo espaço público, calçadas, praças e ruas, percorrendo um circuito de cenas. O espetáculo, agora chamado Piratas de Galochas na Luz, partia do projeto de se construir como passeio teatral pelo entorno da Praça Julio Prestes, da Rua Helvetia, Rua Dino Bueno, Alameda Cleveland. No primeiro momento, o Coletivo de Galochas realizou ações de investigação e vivência com o ambiente da Luz. Nos primeiros ensaios o grupo caminhou coletivamente por todas as ruas do bairro, mapeando em experiência o espaço. Decorar seus cruzamentos e nomes, observar e escutar tudo, descobrir seus segredos.
  • 51. 51 Piratas de Galochas na Luz Reflexões sobre o processo Programa de Valorização de Iniciativas Culturais VAI 2º semestre / 2012 Compreender os muitos fluxos que tecem a dinâmica daquele ambiente, uma mistura intensa de agentes sociais. Muitas conversas pelo caminho. A desigualdade é um elemento fundamental na produção da cidade contemporânea. Essa foi a primeira evidência notada pelo Coletivo. Conviviam, num espaço muito próximo, a suntuosa Sala São Paulo e os agrupamentos de usuários de crack. A segunda coisa que chamou a atenção do grupo foi o grande número de instituições recentes na região. Como resposta aos acontecimentos do começo do ano, depois da dura cobrança de alguns setores mobilizados da sociedade civil, o poder público instalou uma constelação de aparelhos no bairro. Em um espaço bem próximo estão um SASF – Serviço de Assistência Social a Família; um CAT – Centro de Apoio ao Trabalhador; um EcoPonto; e a Tenda Mauá, um espaço de vivência para crianças e adolescentes em situação de rua. O clima pacificado fechava as percepções do passeio: muito policiamento na rua, sempre com alguma autoridade vigiando a caminhada do grupo, ao mesmo tempo que montavam-se as Cracolândias, escambos a céu aberto que tem como principal instrumento de troca a compra e consumo de crack. De tempos em tempos os usuários eram dispersados pela polícia. Os policiais não precisavam nem descer da viatura – um som com a sirene servia de ordem para a dispersão desses grandes grupos, que montavam outra zona de escambo em algum lugar próximo. O Coletivo de Galochas não sofreu violência por nenhuma das partes, nem da polícia, nem dos usuários de crack. Terminado esses encontros de caminhada livre, continuando esse momento de percepção do espaço, vieram as derivas10 . A deriva é um jogo com a cidade que funciona a partir de dispositivos. Esses dispositivos são criados para que o jogador vivencie o entorno de maneira inusitada. O dispositivo pode ter qualquer natureza, a única regra é segui-lo veementemente. Assim, o Coletivo se dividiu em trios, cada um criava as regras de seu dispositivo – qual mecanismo ditaria a relação deles com aquela parte da cidade no tempo de sua deriva. Exemplos: tocar todas as campainhas com o intuito de conhecer a casa das pessoas; oferecer ajuda para quem estiver saindo do supermercado cheio de sacolas; seguir qualquer transeunte de camisa listrada que cruzar o caminho do grupo. 10 DEBORD, Guy. Teoria da Deriva. In JACQUES. Paola Berenstein (org.) Apologia da Deriva. Escritos Situacionistas sobre a cidade. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2003