O mar nao ta pra peixe. Conflitos socio-ambientais na Baixada Santista. Parte02
Relatorio de impacto ambiental na aldeia Guarani do Rio Branco
1. Coletivo Alternativa Verde CAVE
RELATÓRIO ETNOLÓGICO A RESPEITO DE IMPACTO
DA MINERAÇÃO DE CASCALHO NA ÁREA DO
ALDEAMENTO GUARANI DO RIO BRANCO
As comunidades tradicionais têm como base de organização
uma estreita relação com o ambiente, esta relação é
principalmente não predatória, e baseada na
sustentabilidade (no sentido mais profundo desta palavra);
ou seja, as relações sócio-culturais, ou mesmo a
sobrevivência física do grupo, depende de sua capacidade de
se relacionar equilibradamente com o ambiente, deste
retirar o que é necessário e ao mesmo tempo preservar o seu
território.
A nossa sociedade não possui uma visão, um parâmetro, do
que é o mundo indígena, pois o nosso paradigma de
existência, é mediado apenas pela idéia de lucro, o qual
vem gerando uma profunda crise ecológica mundial. Nossos
modelos de produção se baseiam principalmente numa forma de
exploração, visando o interesse do mercado; isto é, um
único produto explorado até a exaustão e em um determinado
território (monoculturas, lavra de minérios, etc),
favorecendo uma forma de vida individualista e consumista.
Em contraposição, a produção tradicional sempre visará
a sobrevivência do grupo e a preservação de sua área. Pois
utilizará um território maior, onde vários produtos serão
utilizados de forma sazonal e em rodízio, por exemplo: um
determinado território fornecerá a caça, o outro a
horticultura, o outro ainda a coleta, nunca até a exaustão,
pois há uma grande preocupação nesta visão de mundo
indígena, no equilíbrio de todas as partes do território e
da relação deste com a comunidade, temos então um método
coerente na utilização dos recursos naturais, baseado num
conhecimento milenar da observação dos fenômenos naturais
e, portanto, científico.
Nos causa estranheza como em um momento da história da
humanidade em que o discurso da sustentabilidade, e do
respeito ao conhecimento tradicional se torna ponta de
lança do conceito de modernidade, nossos órgãos públicos
vão à contramão disto tudo, autorizando empreendimentos
altamente impactantes, como o que está ocorrendo nos
arredores do Parque Estadual da Serra do Mar e na área de
entorno do aldeamento indígena Guarani do Rio Branco em
Itanhaém, aonde milhares de toneladas de cascalho vem sendo
2. retiradas das margens do Rio Branco, desde 1999, graças a
uma licença nº-821.504/1999 cedida pelo DNPM – Departamento
Nacional de Produção Mineral, 2. º Distrito/SP.
Tal autorização fere duplamente as nossas maiores
riquezas, ou seja, a diversidade biológica e cultural, e, é
se contrapondo a tal empreendimento e a irresponsabilidade,
que significam autorizações cedidas, sabe-se lá por quais
critérios, que escrevemos o presente texto, todos os
argumentos utilizados acima tem por fundamento trabalhos
desenvolvidos por muitos etnólogos, inclusive na própria
comunidade do Rio Branco, uma das poucas áreas ainda
preservadas da Serra do Mar, justamente pela permanência da
população guarani em tal região, que está sendo
profundamente atingida por este empreendimento.
Os Guaranis compõe uma etnia indígena, que por muito
tempo ocupou uma vasta área da mata Atlântica, e, é parte
de sua vivência cultural a perambulação e a reciprocidade,
ou seja, em suas caminhadas os Guaranis vivenciam sua
relação sócio-cultural e de sobrevivência, em uma troca
igualitária com o seu território. É exatamente esta
perambulação, que permite a preservação das áreas em que
estes se encontram. Caminhando os guaranis plantam, caçam,
pescam e protegem o seu território, é por isto mesmo, e não
por nenhuma coincidência, que este povo se encontra nas
últimas áreas preservadas da Mata Atlântica. Onde há
populações tradicionais, há maior chance de haver Mata
preservada, a não ser que os “civilizados” interfiram.
Após 500 anos de contato e de massacre desta população
e ainda, de uma destruição sem precedentes da Mata
Atlântica, este povo viu seu espaço cada vez ser mais
reduzido. Atualmente pouquíssimos aldeamentos possuem uma
área possível de perambulação. O aldeamento do Rio Branco é
um destes.
A preservação da área do Rio Branco e de seu entorno é,
portanto, imprescindível para a sobrevivência da população
Guarani e daquele território da Mata Atlântica.
O empreendedor usa como argumento em sua defesa que a
lavra de cascalho ocorre fora da área do aldeamento
guarani. Nós, enquanto etnólogos visitamos, a pedido do
Coletivo Alternativa Verde (CAVE), a área em que ocorre a
lavra e foi constatado que ela se encontra a menos de 50
metros do aldeamento, ou seja, ela fere o Código Florestal
que prevê uma área de 8 km entorno de áreas indígenas e
parques Estaduais onde é proibido atividades impactantes. A
própria Lei reconhece a importância da área de entorno,
3. visto que esta se encontra dentro dos limites de
perambulação deste povo, e a importância desta área na
manutenção do próprio Parque.
Além disso, foram encontrados vários sinais de extração
de cascalho dentro do próprio território do aldeamento
indígena, o que foi confirmado por Alcides o atual Cacique
do aldeamento.
Em resposta a um Laudo antropológico feito pela Funai o
advogado do empreendedor ignora todos os argumentos
utilizados pela antropóloga e afirma que estes argumentos
carecem de comprovação científica.
Todos os argumentos colocados pela antropóloga em seu
laudo são perfeitamente científicos, e nós constatamos o
que esta em tal Laudo, o que carece de argumento científico
é a afirmação do advogado que numa clara demonstração de
total ignorância a respeito das relações sócio-biológica-
culturais entre meio e homem, tenta fazer com que
acreditemos que uma lavra com licença para retirar 60 mil
toneladas de cascalho por ano, durante 10 anos, ou seja:
600 mil toneladas de cascalho, de um leito de rio, apenas a
50 metros de uma área de preservação permanente não causam
impactos.
Tal empreendimento é sim, tremendamente impactante,
causa impacto social do contato constante a que esta
expondo os guarani, na medida em que seus trabalhadores e
máquinas interferem no cotidiano desta população, causa
impacto ambiental, assoreando o Rio e alterando o seu
leito, impacto cultural quando os guaranis já não conseguem
mais pedra em seu território para produzir suas machadinhas
e outros artesanatos, vendo parte de seu território
ocupado, se sentem lesados, e por último e não menos grave,
interfere na sua nutrição já tão carente de proteínas,
visto que não conseguem pescar como antes.
A Ciência atual nos fala hoje de uma visão sistêmica,
ou seja, todas as coisas estão interligadas, assim
funcionam os sistemas que compõem determinado ambiente, por
isto toda ação humana é impactante. As ações mais
exploratórias são mais destruidoras.
Tirar toneladas de pedra do leito de um rio deve ser
com certeza classificada como ação exploratória e que visa
apenas uma coisa: o lucro e não a preservação da área que
explora.
Mais uma vez a Serra do Mar e a população guarani sofre
com o avanço da “civilização”, com seus valores e
4. interesses economicistas, e mais uma vez os nossos órgãos
públicos são coniventes, seja licenciando a Lavra como o
fez o DNPM – Departamento Nacional de Produção Mineral, a
CETESB - companhia tecnológica de Saneamento Básico, o DAEE
- Departamento de Águas e Energia Elétrica ou por uma
atitude tímida de não denunciar publicamente e fazer ações
mais determinadas, como deveria ter feito a Funai, que se
limitou apenas a uma representação no Ministério Público.
Por isto mesmo, no nosso entender se faz necessário a
imediata suspensão da licença de lavra do Rio Branco, por
isto ser ilegal e pelo imenso impacto sócio-cultural-
ambiental, que ela representa.
Faz-se, também, necessária uma ampliação da área
demarcada da reserva, garantindo assim, aos guaranis um
aumento de seu território e a preservação de seus valores
sócio-culturais.
Vendo pegadas de capivara em uma das margens já quase
sem cascalho, o cacique Alcides não se surpreende:
"Mesmo com toda essa devastação, ela ainda vem
beber aqui. Todo mundo depende do rio - nós, a
mata e os bichos-, assim como o rio depende de
todos. Preservamos isso aqui pensando na reserva
inteira, e mais ainda, nas outras aldeias e nas
cidades cuja vida é abastecida pelo rio Branco e
pela mata em torno dele”
O cacique Alcides nos faz refletir: ‘até que ponto
nós estamos também preocupados com as conseqüências
ambientais de tais atos’, pois não é apenas a população
guarani que será atingida, como está comprovado pela
ciência e pelo bom senso, os danos ambientais atingem a
todos nós, direta ou indiretamente.
Uma fonte de água importante está sendo atingida em um
momento de grande escassez de água no planeta, e com
certeza nossos filhos pagarão o preço por tais atos e pela
omissão dos órgãos públicos e grandes parte da sociedade.
Assinam este relatório:
Giulius Césari Gomes Aprígio
(Historiador / Etnólogo)
Vera Lúcia Pontes de Oliveira
(Historiadora / Etnóloga)
Coletivo Alternativa Verde - CAVE