1. 1. Leia os dois artigos que se seguem procurando
identificar qual questão controversa está sendo discutida
e qual é a posição dos autores frente a essa questão.
ARTIGO 1 - EU AMO ESSA CIDADE
Marcelo Rubens Paiva
Eu amo São Paulo. Nasci aqui, quando ela era ainda uma
fria cidade organizada – o Centro era no centro, nos
bairros as pessoas moravam –, provinciana, de muitas
casas om quintais, sua noite era do silêncio, quando havia
mais praças do que avenidas e os fins de semana não
havia o que fazer. Já morei em outras cidades, até na mais
ainda de todas, o Rio de Janeiro. Mas sempre volto. Pior:
com saudades. Como escritor, eu poderia morar em
qualquer canto bucólico do mundo, escrever diante de
uma paisagem deslumbrante. Mas, e se o computador der
pau, quem conserta? E se der fome à noite, quem entrega
comida? E se eu quiser pesquisar algo na biblioteca, terá
alguma completa por perto? E se eu quiser relaxar e ver
um filme de arte, terá algum cinema na região? E se eu
quiser me inspirar e assistir a uma peça do Antunes? E se
eu quiser voar e participar do teatro-ritual de Zé Celso? E
se eu quiser dançar um determinado estilo? E onde
estarão os amigos de todas as partes do Brasil? E uma
padoca aberta de madrugada, quando bater a insônia? E
uma festa maluca, que começa às 2h, num galpão
abandonado? E quando trouxerem uma exposição sobre a
China, ela estará por perto? E haverá uma feira de livros
com todas as editoras representadas? Aliás, dará para eu
comprar livros a qualquer hora do dia? E se eu quiser um
mojito cubano? Ou o novo “The Strokes”? Ou uma
raridade? E se eu estiver duro, terá uma peça do Mário
Bortolotto custando R$ 1, ou um Shakespeare grátis no
teatro do Sesi? E sebos com livros usados? E cursos grátis
do Sesc? Posso ser ouvinte de uma boa universidade?
Aparecer nas palestras do Instituto Moreira Salles? Quem
decide se mudar de São Paulo deve abrir mão de tudo
isso. Olha o dilema: uma vez morando nela, consegue se
livrar do que faz bem à alma? Há qualidade de vida nesse
paradoxo. Há também estresse sem tantos serviços. É
desesperador ter uma paisagem deslumbrante, mas o
computador não ter conserto. São Paulo não tem cara. É
um caleidoscópio do caos. Por isso, fascina. Por isso,
funciona. Das marginais, vê-se a cidade se acotovelar no
sentido da cordilheira da avenida Paulista. Sobre ela, a
indefinida cor da poluição. (...) São Paulo é o mundo entre
seus rios. Não existe nada igual. É única e essencial. Nas
calçadas, não se estranha um negro de mãos dadas com
uma loira, um japonês gordo jogando dominó com um
cego, um português rindo da piada de um italiano, um
índio executivo de terno e gravata falando ao celular, um
árabe beijando um judeu, punks lésbicas bebendo cerveja,
um camelô lendo Dostoievski, harekrishnas paquerando
patricinhas no farol, um anão carregando um trombone,
um malabarista cuspindo fogo, desempregados vendendo
canetas coreanas. São Paulo é sua gente. Em muitos
bairros, ainda se diz afetuosamente “bom dia” às manhãs.
Um café com leite se chama “média”. O pão é crocante e
feito na hora. O sol nem nasceu. Gente voltando da balada
é servida no mesmo balcão que gente indo ao trabalho. E
um pastel de feira não faz mal a ninguém. São Paulo
mudou muito nas últimas décadas. São Paulo sempre
muda muito. Ficou melhor e pior. Ela ganhou a violência
urbana. A desigualdade nunca foi tamanha. E, para um
deficiente, está sempre atrasada em relação a outras
cidades, suas calçadas são difíceis, o transporte público
não é adaptado. Mas ela ganhou a Mostra de Cinema,
festivais de jazz, um número enorme de casas noturnas,
restaurantes e livrarias. A cada ano, teatros e cinemas são
inaugurados. Institutos culturais também. E quase sempre
há acesso para os deficientes. A cidade está na rota das
grandes exposições. Pina Bausch nunca deixa de se
apresentar por aqui. E já vieram Nirvana, U2, até Stevie
Wonder. Alguns tocam de graça no Ibirapuera domingo de
manhã. Aos 15 anos, assisti a Miles Davis no Municipal. E
ao balé Sagração da Primavera do Bolshoi. Vi Ray Charles
também. Até conversei com ele no saguão do Hotel
Transamérica. Conversei também com Kurt Cobain no
saguão do Maksoud. Bem, entre os passarinhos do campo,
o barulho do mar, as cigarras cantando, prefiro o mundo.
Marcelo Rubens Paiva, 44, jornalista e escritor, é articulista da Folha. É
autor de, entre outras obras, Malu de Bicicleta (Objetiva), Feliz Ano
Velho (Arx) e Blecaute (Siciliano).
ARTIGO 2 - SOBREVIVER EM SÃO PAULO
Parece até um título fácil, mas na realidade não. Bom... é
sim, para quem mora em determinado lugar de São Paulo.
Pode-se dizer que a cidade é subdividida em duas, e isso é
claro, central e periférica, a parte difícil é dizer quem cerca
quem. Que os moradores da periferia (como eu, tá
ligado?) vão ao centro para prestar serviço não é
nenhuma novidade,mas e a diversão? E desfrutar a
cidade? Aí são outros quinhentos, ou melhor, são outros
450. Poderia citar milhões de motivos para não gostar da
cidade, poderia divagar por mil fitas, mas a cidade é mãe,
terra de arranha-céus, pátria dos desabrigados, lar de
Germano Mathias, e sempre será assim. São Paulo
continuará iludindo com sua leve manta, e se andarmos à
noite por ela não veremos somente boates, bares, casas
de relaxamento, ruas nobres que parecem as de Londres,
comércios luxuosos que nos fazem ir para Tóquio, lojas
que nos levam ao passado e a pôr um pé no futuro. Mas
se olharmos com detalhe veremos crianças, filhos de seus
não tão ilustres moradores, acompanhados da famosa
“senhora do chapelão”, a fome, em quase toda esquina.
“Mas passa fome quem quer em São Paulo”, já dizia o
sábio professor a sua turma de alunos escolhidos pelo
sistema financeiro de algum colégio tipo o Salesiano. É
quente. Quem não quiser que venda chiclete, balinha, Bob
Esponja, afinal não é igual para todos a entrega do troféu
de cidadão honorário. Vem maranhense, vem
pernambucano, vem baiano, mas daqui direto para o
albergue, ou quem sabe para a periferia. (São Paulo é a
segunda Bahia e o segundo Rio em termos de baianos e
2. cariocas.) Não há vagas, mas há espaço para todos, desde
que cada um esteja no seu devido lugar, certo, manos?
Esse é só um lado da cidade? Pode ser, sangue bom, mas é
o lado que eu conheço, com que convivo, de onde vejo
somente as costas do Borba Gato, segurando seu fuzil,
deixando claro que estamos sendo vigiados, o lado que
me dá a lágrima, que reparte a dor da perda, o lado de
quem não tem lado, de quem nunca é retratado, dá até
rima, seu carro tem ar-condicionado, aqui na perifa só
muleque descalço. Venham todos ver nesse aniversário o
rapa da prefeitura tomar a barraca daquela dona Maria
que era empregada e perdeu o emprego porque o filho
saiu no Cidade Alerta. Venham festejar com o vizinho que
saiu da cadeia há dois dias e ainda não sabe como irá fazer
para co-mer e se vestir, vem que tem vaga para você, aqui
é SP. A terra onde matar periférico causa silêncio e
frustração, e matar do outro lado da ponte causa
indignação, passeatas, mudança na legislação. E todos
falam pra caramba, montam tese, mas passa um dia aqui
para ver se sobra orgulho dos textos mentirosos, dos
verbos bem colocados, das frases bem montadas, que
emocionam, que chocam e que no final são tudo um
monte de mentiras, porque a São Paulo ao seu redor é de
concreto e a nossa é de lama. A sua é: Moema, Morumbi,
Jardim Paulista, Pinheiros, Itaim Bibi e Alto de Pinheiros. A
nossa é: Jardim Ângela, Iguatemi, Lajeado, São Rafael,
Parelheiros, Marsilac, Cidade Tiradentes, Capão Redondo.
Palavrão aqui na comunidade é “desemprego”, aqui é
Sampa também, mas do marketing estamos além, fora da
festa, fora da comemoração. Na área da barragem, onde
vivem índios tupis-guaranis, ninguém está sabendo da
festa. Em Campo Limpo, Grajaú e Brasilândia não vi
ninguém encher de rosas nem ninguém restaurar, não
vieram ao menos canalizar o córrego, no fim do dia não
teve show, não teve visita de ninguém do poder público,
mas vi um menino de 7 anos na ponte esperando a
esperança, só não sei por quanto tempo. A única coisa
que representa o governo por aqui é a polícia, então todos
já imaginam como ele é representado. Tá certo! São Paulo
é nossa também, afinal, cuidamos do dinheiro, lavamos,
vigiamos, passamos, limpamos, digitamos, afogamos
mágoas em pequenos bares, vivemos em pequenos
casulos, comemos o pouco de ração que sobrou do outro
dia e ainda dizemos amém, Sampa city, você é meu berço,
pois não nascemos com nenhum de verdade. Construímos
e não moramos, fritamos e não comemos, assistimos, mas
não vivemos, passamos vontade, mas passamos adiante.
O quê? Ah! A parte boa da cidade? Bom, acho que vou
passar essa, vou deixar para alguém que viva nela, pois o
termo aqui para nós é sobrevivência, mas com certeza
deve ter muita coisa boa nela, Sampa é bem grande, né? E
tem muita diversidade cultural, assim como social. Somos
somente um reflexo de tudo isso, os catadores de
materiais recicláveis, os balconistas, os motoristas, os
flanelinhas, as empregadas domésticas, os vendedores
ambulantes, os vigilantes, os meninos da Febem, os 118
mil presos de todo o Estado e mais uma porrada de gente
que te saúda e deseja mais consciência e consideração
nesse aniversário, São Paulo.
Ferréz é o nome literário de Reginaldo Ferreira da Silva, 28, autor de
Capão Pecado (Labortexto, 2000), romance sobre o cotidiano violento
do bairro do Capão Redondo, na periferia de São Paulo, onde vive o
escritor, e de Manual Prático do Ódio (Objetiva, 2003).
Responda:
a) Qual é a questão controversa que está sendo discutida
pelos dois artigos?
b) Qual é a posição do autor do artigo 1? Cite pelo menos
dois argumentos utilizados pelo autor para defendê-la.
c) Qual é a posição do autor do artigo 2? Cite pelo menos
dois argumentos utilizados pelo autor para defendê-la.
d) Que contrastes podem ser estabelecidos entre os
artigos 1 e 2? Levante alguma hipótese que possa explicar
a divergência de posições existente entre eles.
2. Após ler os textos abaixo responda as questões (utilizar as
mesmas questões para responder os dois textos
separadamente).
a) Qual o assunto abordado pelo texto?
b) Qual a opinião do autor a respeito?
c) Que argumentos ele usa para defendê-los?
d) Em que parágrafo pode-se confirmar sua resposta?
e) Ele dá, em sua conclusão, alguma solução para o problema
apresentado? Aponte.
TEXTO 1 - DANDO UM ROLÊ POR AQUI (Theo Alves)
A classe média brasileira, egressa há pouquíssimo tempo
de camadas socioeconômicas mais sofridas, se assusta
com muita facilidade. Há uma tendência ao escândalo e à
indignação vazia. Os “rolezinhos”, fenômeno social que
inaugurou 2014, é prova desse desespero constante da
classe média. De repente, mil, dez mil, 20 mil jovens
aparecem não se sabe de onde nem como em lugares
públicos em teoria, mas privados na prática, como os
shoppings. E o que essa horda amealhada através das
redes sociais deseja? A resposta é simples: se divertir.
Como quaisquer adolescentes, os meninos e as meninas
dos rolezinhos querem se divertir. Sem embasamento
filosófico, sociológico ou antropológico, mas embalados
pela música ruim do funk ostentação, esse é um grupo
que denota a maneira como veem a vida: o que importa é
se divertir, é “causar”. Se as praias e outros espaços
aparentemente mais democráticos não são mais, há anos,
o Eldorado da diversão da classe média, por que os menos
abastados continuariam relegados aos espaços a que
foram tangidos? Eles exigem, mesmo sem a clareza da
força que fazem, o espaço que lhes é (ou deveria ser)
também de direito.
Enquanto isso, a classe média sonha com a distância que a
classe A mantém dela: assim como os médios olham para
3. cima para ver os mais abastados, esses médios também
querem que alguém os veja de baixo, e assim vociferam
através de uma polícia que age como um destacamento
de capitães do mato. A classe média reclama, exige, que o
fosso entre ela e os menos abastados seja mantido largo e
profundo, mas como conter esse grupo que começou a
perceber que, de direito, esses espaços também lhe
pertencem?
Os shoppings fecham suas lojas, a polícia arrebenta os
guris com cassetetes e sprays de pimenta e as moças de
bom grado se horrorizam com os moleques que se sentam
para pedir os itens mais baratos do cardápio das mesmas
redes de fast food em que elas gastam muito.
Estou longe de ser sociólogo ou antropólogo: estou mais
para lorotólogo mesmo, mas quando vejo o pessoal do
rolezinho, me custa crer na organização de um
movimento e acabo apostando mais na modinha
Facebook, ainda que isso não signifique dizer que o
rolezinho não tenha importância social. Creio que isso
deixará marcas muito maiores que a orquestração do tal
gigante sonâmbulo de 2013 numa sociedade que precisa
compreender que os espaços são tomados quando se
tenta excluir quem também é dono. Espero mesmo que
esse seja um sintoma espontâneo desse reconhecimento
de direitos de classe, ainda que despido de filosofias
basilares, e que a galera do rolezinho possa fazer deste
momento algo significativo para nosso tempo.
*Theo Alves é poeta, escritor, Assistente Administrativo do IFRN,
professor de linguagens em cursinhos preparatórios (literatura) e
coordenador da escola de idiomas WIZARD (língua inglesa), todos em
em Currais Novos/RN.
TEXTO 2 - BRASILEIRO BONZINHO? (Lya Luft)
Tempos atrás, num programa cômico de televisão, uma
jovem americana radicada no Brasil, a cada comentário
sobre violência ou malandragem neste país, pronunciava
com muita graça: “Brasileiro bonzinho!”. E a gente se
divertia.
Hoje nos sentiríamos insultados, pois não somos
bonzinhos nem sequer civilizados. O crime se tornou
banal, a vida vale quase nada. Poucos de meus conhecidos
não foram assaltados ou não conhecem alguém assaltado:
ser assaltado é quase natural – não só em bairros ditos
perigosos ou nas grandes cidades, mas também no
interior se perdeu a velha noção de bucolismo e
segurança.
Em São Paulo, só para dar um exemplo, os arrastões são
tão comuns que em alguns restaurantes o cliente é
recebido por dois ou quatro seguranças fortemente
armados, com colete à prova de bala, que o acompanham
olhando para os lados – atentos como em séries criminais
americanas. Quem, nessas condições, ainda se arrisca a
esta coisa tão normal e divertida, comer fora?
Pessoas inocentes são chacinadas: vemos protestos,
manifestações, choro e imprensa no cemitério, mas nada
compensará o desespero das famílias ou pessoas
destroçadas, cujo número não para de crescer. Em nossas
ruas não se vê um só policial, daqueles que poucos anos
atrás andavam em nossas calçadas. A gente até os
cumprimentava com certo alívio. Não sei onde foram
parar, em que trabalho os colocaram, nem por que
desapareceram. Mas sumiram.
Morar em casa é considerado loucura, a não ser em
alguns condomínios, e mesmo nesses o crime controla o
porteiro, entra, rouba, maltrata, mata. Recomenda-se que
moremos em edifícios: “mais seguros”, seria a ideia. Mas,
mesmo nos edifícios, nem pensar, a não ser com boa
portaria, ou será alto risco, diz a própria polícia,
aconselhando ainda porteiros preparados e instruídos
para proteger dentro do possível nossos lares agora
precários.
Somos uma geração assustada, desamparada, confinada,
gradeada – parece sonho que há não tanto tempo fosse
natural morar em casa, a casa não ter cerca, a meninada
brincar na calçada; e não morávamos em ilhas longínquas
de continentes remotos, mas aqui mesmo, em bairros de
cidades normais. Éramos gente “normal”.
Hoje, a população, apavorada, está nas mãos de
criminosos, frequentemente impunes. Na desorganização
geral, presídios superlotados onde não se criariam porcos
também abrigam pessoas inocentes ou que nunca foram
julgadas.
A impunidade é tema de conversas cotidianas, leis
atrasadas ou não cumpridas nos regem, e continua
valendo a inacreditável lei de responsabilidade criminal só
depois dos 18 anos. Jovens monstros, assassinos frios,
sem remorso, drogados ou simplesmente psicopatas saem
para matar e depois vão beber no bar, jogar na lan house,
curtir o Facebook, com cara de bons meninos.
Num artifício semântico insensato e cruel, se apanhados,
não os devemos chamar de assassinos: são infratores,
mesmo que tenham violentado, torturado, matado. Não
são presos, mas detidos em chamados centros
socioeducativos.
E assim se quer disfarçar nosso incrível atraso em relação
a países civilizados. No Canadá, Holanda e outros, a idade
limite é de 12 anos; na Alemanha e outros, 14 anos. No
Brasil, consideramos incapazes assassinos de 17 anos,
onze meses e 29 dias.
Recentemente, um criminoso de 15 anos confessou
tranquilamente ter matado doze pessoas. “Me deu
vontade”, explicou, sem problema, e sorria. “Hoje a gente
saiu a fim de matar”, comentou outro adolescentezinho,
depois de assaltar, violentar e matar um jovem casal junto
com outro comparsa.
Esses e muitos outros, caso estejam em uma dessas
instituições em que se pretende educar e socializar
indiscriminadamente psicopatas e infratores eventuais,
logo estarão entre nós, continuando a matança. Quem
assume a responsabilidade? Ninguém, pois estamos em
uma guerra civil que autoridades não conseguem resolver,
uma vez que nem a lei ajuda.
Estamos indefesos e apavorados, nas mãos do acaso. Até
quando?