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Inês Fernandes – 12ºT1 Escola Secundária Alfredo dos Reis Silveira Modalidade: texto original
Lycoris Radiata
O mundo em que vivemos é minúsculo, tão insignificante e inútil que nada há para descrever e, mesmo
que tente procurar uma metáfora para o ilustrar, todas as palavras me parecem demasiado
extravagantes para algo tão fútil e descartável.
Apesar de as pessoas que aqui vivem insistirem na sua grandeza com crenças egoístas e se agarrarem
a conjeturas científicas como “Somos mais de sete mil milhões de pessoas a pisar terra e pedra de seis
continentes e a navegar água e sal de cinco oceanos! Olhem para o quão grandes somos!”, a verdade é
que o mundo é tão denso de absolutamente nada que nele apenas cabe um cemitério para os sete mil
milhões de almas, construído em cima de um jardim de lírios-aranha vermelhos. E nada mais que isso.
Nesse mundo, porém, vive (não tão viva assim) uma única pessoa que acredito fazer a diferença, um
ser alienado do planeta, mas aparentemente o único com conhecimento de viver neste reles cemitério
e dedicar tempo a cuidar dos lírios-aranha vermelhos que ainda existem. Ao contrário dos outros
humanos, mortos por dentro e vivos por fora, mantém a sua vivacidade nos ossos, músculos e pele de
um cadáver. Talvez por isso, é o único capaz de ver o cemitério e, provavelmente, foi lá que nasceu.
Estamos habituados a conhecer pessoas que nasceram num ventre, contra a sua vontade ou consciência,
e são enterradas na terra no dia em que se fartam de respirar. Esta não, nasceu diretamente do cemitério
e porque quis. Sabe-se lá em que ventre morrerá! De qualquer forma, não passa de um cadáver. Faço
questão ainda de dizer que é uma rapariga, ou era. Está morta, faleceu ainda jovem e anos depois foi
possuída por uma alma depressiva que deambulava no antigo jardim. Afinal, a alma ganha sempre ao
corpo porque é mais forte.
Numa cara mirrada, bochechas pálidas e olhos negros, a sórdida alma transparece no corpo morto da
rapariga que costumava alastrar elegância e brilhar em tons de vermelho como um lírio-aranha, até que
este pobre e frágil ser sofreu a morte mais lamentável possível que o arrastou para o vale mais profundo
do inferno. Tornou-se numa pessoa desprezível e sem empatia: a única expressão facial que
sobrancelhas, lábios e maçãs do rosto lhe permitem fazer é uma cara enojada de tudo e todos; olha de
cima para baixo para as pessoas desviando o queixo snobe e quando as insónias não a deixam dormir,
imagina-se a matar os que a abandonaram. O corpo, a rapariga, era, porém, gentil: sorria ao dizer “bom
dia” e “obrigada” por mais que lhe doessem as bochechas; tinha um sangue incompatível com os
corações alheios infetados de inveja e aversão e oferecia-se para carregar as mochilas pesadas dos
outros, mesmo tendo uns ombros tão frágeis e finos como vidro.
É uma pena ter-se tornado escrava da sua nova alma, que lhe amoleceu o corpo já débil. A alma entrou-
lhe pelo organismo como se um ácido tivesse sido entornado nos ouvidos e, lenta e dolorosamente, se
fizesse sentir em cada célula do corpo. A agonia corroeu-lhe o timbre da voz que grita agora em
Inês Fernandes – 12ºT1 Escola Secundária Alfredo dos Reis Silveira Modalidade: texto original
frequências não humanas; gota a gota, o travo amargo e venenoso desta substância fez-lhe comichão
onde mais doía e o tormento obrigou-a a arrancar as cordas-vocais, secando a garganta num tom de
voz desprezível. Mais ainda, à medida que o líquido escorreu pelos músculos, foi-lhe paralisando testa,
pálpebras, bochechas, lábios e queixo, numa posição desconfortável e irreversível. Saturou. Ela sofre
e tudo lhe dói. Sofre ainda mais por ser completamente inconsciente, por não ter ideia de que não passa
de um fantoche do espírito malvado que a tomou, como um fantasma que se esqueceu do dia em que
morreu. Por isso, realmente acredita que todo o seu comportamento detestável e repugnante é a sua
pura personalidade e condena-se, despreza-se e castiga-se. Por odiar os outros, odeia-se e é odiada. No
fim, é o vilão no conto da sociedade, mas a mais pobre vítima da sua realidade.
Acreditariam agora se vos contasse o quão inocente é a alma que a devorou? Pobre alma, pobre espírito
de lírio-aranha encarnado pintado com o sangue de quem o amou! Nas rachaduras entre as pedras que
cobriam o chão do cemitério, florescia um ou outro lírio-aranha (já que, antes de ser um mísero
cemitério, o mundo tinha apenas um jardim enorme onde apenas cresciam estas flores). Imaginem o
quão triste esta espécie de lírios se sentiu ao ser completamente destruída por uma raça tão abominável
como o ser humano; o quão solitárias são as poucas flores que persistem, vendo a sua confortável casa
vermelha ser trocada por um túmulo cinzento de seres humanos. Naturalmente, um dia, um desses
lírios decidiu vingar-se e possuir um corpo ali enterrado, tomou-lhe conta do espírito e personalidade
e vive agora na pele da rapariga que não pôde descansar em paz. E, do mesmo modo, a alma que nela
vive não tem culpa de possuir uma personalidade tão arrogante que afasta todos os que por ela passam.
Nos primeiros momentos depois de roubar este corpo, a alma acreditou que, por ser uma moça
simpática, faria amigos humanos no meio da frustração, seria a rapariga amada em tempos. Mas não,
uma personalidade intragável não passa disso, por mais dolorosa que seja. Não importa o corpo que a
possua, essa alma magoa. E claro que ninguém é capaz de ver o quanto ela sofre, todos acreditam que
é impossível alguém tão arrogante ser vítima de si mesmo, todos acreditam que não dói ser-se
detestável. É rotina para esta nova pessoa ser deplorável e insuportável para os outros de manhã; ser
espezinhada e pontapeada por ódio alheio de tarde; e à noite lamentar-se com “Ah, humanos imbecis,
não são capazes de ver a alma cá dentro!”.
Já não é possível voltar atrás, a alma imortal foi condenada a viver em constante agonia por toda a
eternidade e, mesmo que o corpo morra de novo, a alma viverá com as suas memórias para sempre. A
alma verá o nosso mundo nojento através dos olhos do humano, respirará o nosso ar denso e pesado
através dos pulmões do humano, falará a nossa língua corrupta através da boca do humano e colherá o
último e puro lírio-aranha vermelho do nosso jardim com as mãos trémulas do humano.

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Lycoris Radiata - Texto original

  • 1. Inês Fernandes – 12ºT1 Escola Secundária Alfredo dos Reis Silveira Modalidade: texto original Lycoris Radiata O mundo em que vivemos é minúsculo, tão insignificante e inútil que nada há para descrever e, mesmo que tente procurar uma metáfora para o ilustrar, todas as palavras me parecem demasiado extravagantes para algo tão fútil e descartável. Apesar de as pessoas que aqui vivem insistirem na sua grandeza com crenças egoístas e se agarrarem a conjeturas científicas como “Somos mais de sete mil milhões de pessoas a pisar terra e pedra de seis continentes e a navegar água e sal de cinco oceanos! Olhem para o quão grandes somos!”, a verdade é que o mundo é tão denso de absolutamente nada que nele apenas cabe um cemitério para os sete mil milhões de almas, construído em cima de um jardim de lírios-aranha vermelhos. E nada mais que isso. Nesse mundo, porém, vive (não tão viva assim) uma única pessoa que acredito fazer a diferença, um ser alienado do planeta, mas aparentemente o único com conhecimento de viver neste reles cemitério e dedicar tempo a cuidar dos lírios-aranha vermelhos que ainda existem. Ao contrário dos outros humanos, mortos por dentro e vivos por fora, mantém a sua vivacidade nos ossos, músculos e pele de um cadáver. Talvez por isso, é o único capaz de ver o cemitério e, provavelmente, foi lá que nasceu. Estamos habituados a conhecer pessoas que nasceram num ventre, contra a sua vontade ou consciência, e são enterradas na terra no dia em que se fartam de respirar. Esta não, nasceu diretamente do cemitério e porque quis. Sabe-se lá em que ventre morrerá! De qualquer forma, não passa de um cadáver. Faço questão ainda de dizer que é uma rapariga, ou era. Está morta, faleceu ainda jovem e anos depois foi possuída por uma alma depressiva que deambulava no antigo jardim. Afinal, a alma ganha sempre ao corpo porque é mais forte. Numa cara mirrada, bochechas pálidas e olhos negros, a sórdida alma transparece no corpo morto da rapariga que costumava alastrar elegância e brilhar em tons de vermelho como um lírio-aranha, até que este pobre e frágil ser sofreu a morte mais lamentável possível que o arrastou para o vale mais profundo do inferno. Tornou-se numa pessoa desprezível e sem empatia: a única expressão facial que sobrancelhas, lábios e maçãs do rosto lhe permitem fazer é uma cara enojada de tudo e todos; olha de cima para baixo para as pessoas desviando o queixo snobe e quando as insónias não a deixam dormir, imagina-se a matar os que a abandonaram. O corpo, a rapariga, era, porém, gentil: sorria ao dizer “bom dia” e “obrigada” por mais que lhe doessem as bochechas; tinha um sangue incompatível com os corações alheios infetados de inveja e aversão e oferecia-se para carregar as mochilas pesadas dos outros, mesmo tendo uns ombros tão frágeis e finos como vidro. É uma pena ter-se tornado escrava da sua nova alma, que lhe amoleceu o corpo já débil. A alma entrou- lhe pelo organismo como se um ácido tivesse sido entornado nos ouvidos e, lenta e dolorosamente, se fizesse sentir em cada célula do corpo. A agonia corroeu-lhe o timbre da voz que grita agora em
  • 2. Inês Fernandes – 12ºT1 Escola Secundária Alfredo dos Reis Silveira Modalidade: texto original frequências não humanas; gota a gota, o travo amargo e venenoso desta substância fez-lhe comichão onde mais doía e o tormento obrigou-a a arrancar as cordas-vocais, secando a garganta num tom de voz desprezível. Mais ainda, à medida que o líquido escorreu pelos músculos, foi-lhe paralisando testa, pálpebras, bochechas, lábios e queixo, numa posição desconfortável e irreversível. Saturou. Ela sofre e tudo lhe dói. Sofre ainda mais por ser completamente inconsciente, por não ter ideia de que não passa de um fantoche do espírito malvado que a tomou, como um fantasma que se esqueceu do dia em que morreu. Por isso, realmente acredita que todo o seu comportamento detestável e repugnante é a sua pura personalidade e condena-se, despreza-se e castiga-se. Por odiar os outros, odeia-se e é odiada. No fim, é o vilão no conto da sociedade, mas a mais pobre vítima da sua realidade. Acreditariam agora se vos contasse o quão inocente é a alma que a devorou? Pobre alma, pobre espírito de lírio-aranha encarnado pintado com o sangue de quem o amou! Nas rachaduras entre as pedras que cobriam o chão do cemitério, florescia um ou outro lírio-aranha (já que, antes de ser um mísero cemitério, o mundo tinha apenas um jardim enorme onde apenas cresciam estas flores). Imaginem o quão triste esta espécie de lírios se sentiu ao ser completamente destruída por uma raça tão abominável como o ser humano; o quão solitárias são as poucas flores que persistem, vendo a sua confortável casa vermelha ser trocada por um túmulo cinzento de seres humanos. Naturalmente, um dia, um desses lírios decidiu vingar-se e possuir um corpo ali enterrado, tomou-lhe conta do espírito e personalidade e vive agora na pele da rapariga que não pôde descansar em paz. E, do mesmo modo, a alma que nela vive não tem culpa de possuir uma personalidade tão arrogante que afasta todos os que por ela passam. Nos primeiros momentos depois de roubar este corpo, a alma acreditou que, por ser uma moça simpática, faria amigos humanos no meio da frustração, seria a rapariga amada em tempos. Mas não, uma personalidade intragável não passa disso, por mais dolorosa que seja. Não importa o corpo que a possua, essa alma magoa. E claro que ninguém é capaz de ver o quanto ela sofre, todos acreditam que é impossível alguém tão arrogante ser vítima de si mesmo, todos acreditam que não dói ser-se detestável. É rotina para esta nova pessoa ser deplorável e insuportável para os outros de manhã; ser espezinhada e pontapeada por ódio alheio de tarde; e à noite lamentar-se com “Ah, humanos imbecis, não são capazes de ver a alma cá dentro!”. Já não é possível voltar atrás, a alma imortal foi condenada a viver em constante agonia por toda a eternidade e, mesmo que o corpo morra de novo, a alma viverá com as suas memórias para sempre. A alma verá o nosso mundo nojento através dos olhos do humano, respirará o nosso ar denso e pesado através dos pulmões do humano, falará a nossa língua corrupta através da boca do humano e colherá o último e puro lírio-aranha vermelho do nosso jardim com as mãos trémulas do humano.