Resenhas sobre filme Pequena Miss Sunshine (EUA/2006)
1. Pequena Miss Sunshine: não temos como viajar, então vamos!
Prof. Rodrigo Belinaso Guimarães
Pequena Miss Sunshine é muito mais do que um hilário filme on the road. Nele, todo
destino é provisório: uma etapa num processo de descobertas pessoais e coletivas. Mas não
espere chegar a um lugar tranquilo e ideal em que todos os problemas estejam definitivamente
resolvidos, tal como um final feliz clássico. A chegada é tão somente a consciência da
contradição, ou melhor, da sua inevitabilidade. O bom é que esta descoberta, embora dolorosa,
não remete a uma angústia, mas restitui uma esperança: uma aposta no processo, no movimento
da vida.
O elogio da diferença é explícito. A diferença é uma condição quase natural, como se
não houvesse meios para dela escapar. Um alívio! Isso se pensarmos na nossa sociedade
midiática e consumista que normaliza tudo: padrões de beleza, de sucesso, de felicidade, etc. Os
personagens são subjetivados por estes padrões, porém não há como fugirem de suas diferenças
e, ao contrário do que se pensa acontecer, são estas que se impõem e não a norma, o padrão, o
ideal.
2. Há uma série de obstáculos que aquela família desconexa, obrigada à convivência numa
Kombi caindo aos pedaços, encontra em seu caminho. A forma como estes problemas vão
sendo resolvidos garante toda a comédia do filme. Porém, se havia um objetivo final, este vai
perdendo qualquer importância. O que vale mesmo é manter-se em movimento. Os obstáculos
devem ser transpostos unicamente pela manutenção do processo e não por um suposto fim ideal,
ou seja, inalcançável.
A sobreposição de temporalidades é outra marca característica do filme. Trata-se de
objetos, ideias, roupas, músicas que ao invés de se apagarem com os novos tempos, insistem em
permanecerem e em serem contemporâneos. Tudo isso obriga a uma convivência necessária
entre o moderno e o pós-moderno, entre o passado e o presente, entre a brincadeira de criança e
a sensualidade do adulto. Temporalidades que não estão polarizadas, mas encaixadas e
obrigadas a se contemplarem.
Por fim, o filme permite um questionamento sobre a sobreposição de culturas. Como
uma mesma nacionalidade, sem apelar para a imigração ou à miscigenação, pode apresentar
códigos culturais tão variados? É possível que na interiorana cidade de onde sairam, a
pequena miss seria a vencedora do concurso pequena miss pimenta. Porém, na Califórnia,
naquele concurso, sua apresentação só poderia ter aquele desfecho. Nada foi perdido. A estrada
fez com que aquela família de perdedores passasse por uma experiência comum que ofereceu
um substrato, um ponto de convergência.
3. Folha de São Paulo 19/10/2006 - 21h56
Humor vence drama em "Pequena Miss Sunshine"
Sérgio Ripardo - Editor de Ilustrada da Folha Online
Um filme modesto pode se tornar grande. A prova é "Pequena Miss Sunshine", que
estreia nesta sexta-feira. Cotado para disputar o Oscar de melhor roteiro original em 2007, a
produção de orçamento minúsculo cativa ao abordar temas pesados (adolescência problemática,
fracasso profissional, homofobia, suicídio, desilusão amorosa e drogas) sem perder o senso de
humor. Tudo graças a um elenco talentoso e bem dirigido, além de diálogos enxutos e precisos.
O longa é um "road movie". Uma família disfuncional atravessa o deserto, em uma
kombi amarela com defeito, para levar a caçula até a Califórnia onde será disputado um
concurso de beleza para crianças. No caminho, os dramas dos seis personagens se agravam,
criando um clima de tensão e ânimos exaltados. Apesar da "lavagem de roupa suja" sobre quatro
rodas, o filme alimenta a esperança de que a família Hoover, bem como a da plateia no cinema,
tem chance de se entender e ficar unida.
Um dos motivos do sucesso de público e crítica de "Pequena Miss Sunshine" é a atriz-
mirim Abigail Breslin, 10, que despontou no suspense "Sinais" (2002). A garota é um prodígio.
Tomara que supere a maldição "Shirley Temple" e vire, quando adulta, atriz com a força visual
de uma Drew Barrymore e Natalie Portman. O ponto alto de Abigail coincide com o momento
mais emocionante do filme, quando a garota Olive, sua personagem, tenta consolar o irmão
revoltado Dwayne (o promissor Paul Dano, 23), fã de Nietzsche, após uma explosão de raiva
dele contra a família.
Outro motor do filme é o ator Steve Carell, que enverniza sua carreira após
protagonizar o sucesso comercial de "O Virgem de 40 Anos" (2005), outra boa comédia com
pretensão de defender o fim de padrões impostos de comportamento. Em "Pequena Miss
Sunshine", Carell é o professor gay e suicida Frank, especialista na obra de Proust -- uma piada
para os mais eruditos. Não há caricatura na composição do personagem, que na trama exerce a
função de pacificar a família.
Para completar a kombi, a mãe Sheryl (Toni Collette) tenta equilibrar a família, diante
do marido Richard (Greg Kinnear), que dá palestras de auto-ajuda e parece encarnar a obsessão
da América pelo sucesso material e o desprezo por quem não se encaixa nesse perfil. Para ele, o
mundo se divide em vencedores e perdedores, e só crianças magras conseguem o sucesso. O
problema é que o seu pai Edwin (ator veterano Alan Arkin), viciado em heroína, não é bem um
exemplo de êxito.
Desde "Beleza Americana", vitorioso no Oscar de 1999, passando por "Traffic" (2000)
e mais recentemente "Crash" (melhor filme de 2006) e "Transamérica", explorar as farsas e
fragilidades do modelo de família perfeita - em drama ou comédia - deixou de ser um filão
4. restrito ao chamado "cinema independente", conceito cada vez mais débil diante da esperteza
dos grandes estúdios de focar também seus negócios para "filmes de arte", fora do circuito. Na
TV, o fenômeno de mostrar a outra América se repetiu com séries como "A Sete Palmos" e
"Desperate Housewives".
Mesmo com essa maior busca por roteiros alternativos, fora da fórmula, "Pequena Miss
Sunshine" sofreu tanto quanto seus personagens para chegar às telas. O roteirista Michael Arndt,
estreante em longas, ouviu muito "não". Após o burburinho causado no festival de Sundance
neste ano, o filme despertou interesse dos executivos da 20th Century Fox. O estúdio gastou
uma ninharia estimada em US$ 10 milhões pelos direitos do filme.
Ou seja, a imagem da família empurrando a kombi não é à toa no filme dirigido pelo
casal Jonathan Dayton e Valerie Faris, mais conhecidos por assinar clipes de bandas
melancólicas nos anos 90 como Smashing Pumpkins. Se não se agarrasse a um fio de otimismo
no final da história, "Pequena Miss Sunshine" seria mais contundente ao mostrar a perversidade
dos adultos em castrar a infância de seus filhos para realizar seus ideais de sucesso, fabricando
uma geração de crianças plastificadas e pasteurizadas, tanto na beleza como nas atitudes para
enfrentar seus conflitos.