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4. ÍNDICE
NOTAS 36
CAPÍTULO 1
UMA VIDA CURTA, SÓRDIDA E BRUTAl
06
09
13
Invasões bárbaras
Entrando em território hostil
Os últimos dias de civilidade
CAPÍTULO 2
AVRIBVS TENEO LVPVM
(segurando o lobo pelas orelhas)
16
21
24
Um país de garantias
Em pele de cordeiro
Correntes de mentira
CAPÍTULO 3
O CUSTO DO CRIME E O PREÇO DA CIVILIZAÇÃO
27
30
32
Geografia é destino
Uma ameaça para o mundo
O desenvolvimentismo econômico do crime
E - B O O K B P | D O C U M E N T Á R I O E N T R E L O B O S
5. CAPÍTULO 1
E - B O O K B P | D O C U M E N T Á R I O E N T R E L O B O S 5
6. CAPÍTULO 01
ENTRE LOBOS SEÇÃO 01
Entrando EM
tErritório HOSTIL
Espaços públicos tornaram-
se território hostil. Em nossos
deslocamentos diários,
corremos de um abrigo
a outro. Os automóveis
deixaram de ser apenas
meios de locomoção onde
entramos para se tornarem
armaduras que vestimos;
o Brasil lidera o mercado
de veículos blindados no
mundo3
.
Nossas casas são muradas,
enfeitadas de câmeras e
ofendículos e alegradas
por cães de guarda de
estimação. No país dos
Como é a vida no país dos três assaltos por minuto1
? A vida
que a cada nove minutos um assassino tira de um brasileiro2
?
92% de homicídios não
esclarecidos4
, as grades
não prendem os que matam,
mas enjaulam os que tentam
permanecer vivos.
Planos de longo prazo são
substituídos pelo instinto
imediato de sobrevivência
e de proteção das nossas
famílias. No país com 60.000
estupros por ano5
, só nos
resta lutar para que um dos
nossos não esteja entre as
vítimas do dia.
O futuro é nublado de
incertezas e uma das poucas
certezas é a de que todos
seremos vítimas de algum
crime. No país que concentra
25% dos celulares roubados
no mundo6
, sair às ruas com
um celular não é suficiente;
sabendo que um aparelho
será entregue ao assaltante,
é prudente levar dois.
Ainda que as transações
financeiras tenham evoluído
para tecnologias de cartões
e transferências online, toda
pessoa sensata carrega
no bolso uma quantia em
dinheiro para não irritar os
ladrões.
Assaltante faz idosa refém em Belém no Pará - 2019
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7. No Brasil, o avanço tecnológico é uma
ameaça. O advento do Pix fez disparar os
sequestros-relâmpago, a popularização dos
drones muniu as quadrilhas com recurso de
consciência situacional, quase metade dos
casos registrados de fraude com cartão
de crédito no mundo acontecem aqui7
,
e proliferam-se golpes por SMS, e-mail e
WhatsApp.
O medo retalha o tecido social e esteriliza as
relações entre estranhos com desconfiança,
quando não hostilidade. Solicitados a
expressar concordância ou discordância
com a afirmação “a maioria das pessoas é
confiável”, 73,73% dos noruegueses disseram
que sim, a exemplo de 63,76% dos suecos e
62,69% dos chineses. O índice de confiança
dos brasileiros é de 6,53%, perdendo apenas
para o dos colombianos, de 4,13%8
.
O número de homicídios no Brasil supera
a soma dos números dos EUA com os do
Canadá, Marrocos, Argélia, Tunísia, Líbia,
Egito, China, Mongólia, Malásia, Indonésia,
Austrália, Nova Zelândia, Coreia do Sul, Coreia
do Norte, Japão, Portugal, Espanha, Reino
Unido, Irlanda, França, Bélgica, Holanda,
Luxemburgo, Alemanha, Itália, Suíça,
Dinamarca, Noruega, Suécia, Finlândia,
Estônia, Lituânia, Polônia, República Tcheca,
Eslováquia, Áustria, Hungria, Belarus, Ucrânia,
Romênia, Moldávia, Bulgária, Eslovênia,
Croácia, Bósnia-Herzegovina, Sérvia,
Montenegro, Albânia, Grécia e Macedônia10
.
O NÚMERO DE
ASSALTOS NO
BRASIL É O DOBRO
DA MÉDIA MUNDIAL9
ÍNDICE DE CONFIANÇA EM DESCONHECIDOS
FONTE: https://ourworldindata.org/trust#:~:text=In%20one%20extreme%2C%20in%20countries,that%20this%20is%20the%20case
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8. O Escritório de Assuntos Consulares do Departamento de Estado
americano classifica em quatro níveis a recomendação de viagem
a países estrangeiros para seus cidadãos:
No WJP Rule of Law Index, entre 139
países, o Brasil ocupa as posições
no
112 no ranking de eficiência
do Sistema de Justiça Criminal;
no
117 em eficiência da investigação
criminal; e no
131 em eficiência do
sistema punitivo na redução do
comportamento criminoso12
.
“Crimes violentos como assassinato, roubo à mão armada e roubo
de carro são comuns em áreas urbanas, de dia e à noite. Ações
de quadrilhas e do crime organizado são alastradas. Assaltos
são comuns. Funcionários do governo dos Estados Unidos são
desencorajados a usar ônibus públicos, municipais, em todas as
partes do Brasil devido a um elevado risco de roubo e assalto
a qualquer hora do dia e, especialmente, à noite.”11
No informativo lê-se o “resumo do país”:
Exerça
precauções
normais
1 Aumente as
precauções
exercidas
2 Reconsidere
a viagem
3
4 NÃO VIAJE
AO BRASIL, ESTÁ RESERVADO O QUARTO E ÚLTIMO NÍVEL:
O BRASIL É
UM PÁRIA
NO MUNDO
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9. INVASÕES
BÁRBARAS
Jean-Jacques Rousseau é o mais célebre
defensor de que a natureza humana é
cordial, atribuindo a influências perversas
das sociedades modernas a corrupção
de uma pureza primitiva e a origem do
comportamento violento das pessoas. É o
entendimento filosófico do “bom selvagem”.
A vertente antagonista é retratada no
pensamento de Thomas Hobbes. Para ele,
o vício predomina no espírito humano, a
brutalidade norteia nosso comportamento e,
abandonados a nosso estado de natureza,
vivemos a guerra de todos contra todos.
Uma convincente refutação do ideal do “bom
selvagem” pode ser extraída de pesquisas
antropológicas e arqueológicas que apontam
para índices de morte violenta muito
superiores em sociedades pré-estatais em
comparação com os índices das sociedades
modernas.
O VÍCIO PREDOMINA NO
ESPÍRITO HUMANO, A
BRUTALIDADE NORTEIA
NOSSO COMPORTAMENTO
CAPÍTULO 01
ENTRE LOBOS SEÇÃO 02
Acima - Jean-Jacques Rousseau.
Abaixo - Thomas Hobbes.
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10. Na mais antiga civilização africana,
assentada na região de Núbia, estima-
se que 46% das mortes aconteceram por
causas violentas entre 12.000 e 10.000 a.C.
Na Colúmbia Britânica, o índice é de 32,4%
entre 1.500 e 500 a.C e, em Sarai Nahar Rai,
no norte da Índia, de 30% no intervalo de
1.140 a 854 a.C.
Em comunidades tribais que preservam o
modo de vida caçador-coletor ou caçador-
horticultor ainda nos séculos XIX ou XX, as
taxas são de 56% de mortes violentas entre
os Huaorani da Amazônia equatoriana,
de 50% entre os Blackfoot da América do
Norte e de 32% entre os Gebusi da Papua
Nova Guiné.
Por sua vez, no período compreendido entre
1900 e 1960, mesmo com a conflagração de
duas guerras mundiais, as mortes violentas
não superaram 1% dos óbitos na Europa ou
nos Estados Unidos13
.
As sociedades modernas não são agentes indutores
da violência mas, pelo contrário, protegem os
homens de seus próprios impulsos bárbaros.
TAXA DE MORTES VIOLENTAS
FONTES: Todos os dados compreendidos em: Bowles. 2009. Did Warfare Among Ancestral Hunter-Gatherers Affect the Evolution of Human Social Behaviors? Science,
324, 5932, p. 1293-1298. | Gat. 2006. War in Human Civilization. Oxford University Press, USA. | Knauft et al. 1987. Reconsidering Violence in Simple Human Societies:
Homicide among the Gebusi of New Guinea. Current Anthropology, 28, 4, p. 457-500. | Keeley. 1997. War Before Civilization: The Myth of the Peaceful Savage. Oxford
University Press, USA. | Pinker. 2011. The Better Angels of Our Nature: Why Violence Has Declined. Viking. | Walker & Bailey. 2013. Body counts in lowland South American
violence. Evolution and Human Behavior, 34, 1, p. 29–34.
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11. NOVA
ORLEANS
ESPÍRITO
SANTO
MONTREAL
ESTADOS UNIDOS
BRASIL
CANADÁ
Em 2005, o furacão Katrina não
apenas devastou as estruturas
em concreto de Nova Orleans,
mas também abalou seus
próprios pilares civilizacionais.
Com a cobertura estatal de
seus cidadãos fragilizada,
distúrbios civis se multiplicaram.
Às lojas e supermercados
esvaziados por saqueadores
somaram-se ocorrências de
agressão, de estupro e de
assassinato.
Em precedente de 1969, uma paralisação da
polícia resultou na “noite de terror de Montreal”,
testemunhada e relatada por Steven Pinker:
Em 2017, a greve da Polícia
Militar do Espírito Santo
transformou o estado em um
ensaio da guerra de todos
contra todos, com saques
generalizados, número de
roubos aumentado em dez
vezes e 215 assassinatos.
“Como um jovem adolescente no
orgulhosamente pacífico Canadá durante
a romântica década de 1960, eu acreditava
sinceramente no anarquismo de Bakunin. Eu ria
dos meus pais quando argumentavam que se
o governo algum dia abdicasse das armas nós
teríamos o inferno na Terra. Nossas previsões
opostas foram colocadas em teste às 8:00 de
17 de outubro de 1969, quando a polícia de
Montreal entrou em greve. Às 11:20, o primeiro
banco foi roubado. Por volta do meio-dia, a
maioria das lojas do centro tinham fechado
por causa dos saques. Em algumas horas,
taxistas queimaram a garagem do serviço de
limusines que competia com eles pelos clientes
do aeroporto, um sniper no telhado matou
um agente policial da província, arruaceiros
invadiram diversos hotéis e restaurantes, e
um médico matou um ladrão em sua casa no
subúrbio. No fim do dia, seis bancos haviam
sido roubados, uma centena de lojas havia
sido saqueada, doze locais haviam sido
incendiados, quarenta cargas de vitrines de
lojas haviam sido quebradas, e três milhões
de dólares de dano a propriedades haviam
sido infligidos, antes de as autoridades da
cidade chamarem o exército e, é claro, a
Polícia Montada para restaurar a ordem. Esse
teste empírico decisivo destruiu as minhas
crenças políticas (e ofereceu um aperitivo
da vida como cientista).”14
E - B O O K B P | D O C U M E N T Á R I O E N T R E L O B O S 1 1
12. edificada sob a espreita constante dos
invasores bárbaros que ela mesma abriga.
O alicerce moderno desse refúgio de paz
é o Sistema de Justiça Criminal.
79% dos homens e 58% das mulheres admitem
já terem tido fantasias homicidas15
.
O Sistema de Justiça Criminal é o conjunto
das instituições estatais voltadas ao controle
do crime na sociedade, contemplando desde
a ação repressiva e investigativa da polícia
até o sistema carcerário, passando pela
legislação e execução penal.
Estendendo-se pelos poderes executivo,
legislativo e judiciário, o Sistema de Justiça
Criminal é legitimado pela democracia liberal
atrelada à tripartição de poderes.
As sociedades modernas não erradicaram
a violência. Apenas a colocaram em espera
ou a encurralaram na imaginação.
A CIVILIZAÇÃO É UM
REFÚGIO DO MAL PRIMITIVO,
E - B O O K B P | D O C U M E N T Á R I O E N T R E L O B O S 1 2
13. Os últimos dias
de civilidade
Em seu livro Collision of Wills, o sociólogo
ex-professor de Yale, Roger Gould, demonstra
que conflitos são mais frequentes e têm
mais chance de terminar em homicídio
quando as partes ocupam posição social
simétrica, sem que nenhuma delas tenha
superioridade hierárquica estabelecida
sobre a outra. Disputas banais por vaga
em estacionamento ou lugar em uma fila
podem escalar para violência desgovernada
quando o real e inconsciente motivo da
disputa é a posição de domínio na hierarquia
social.
Imagine um profissional de 42 anos
subordinado a um chefe de 28. Cada um
atribui a si um tipo diferente de autoridade
sobre o outro, criando uma ambiguidade na
hierarquia social que favorece a deflagração
de conflitos.
Ambiguidade na ordenação das forças
também foi provada como incentivo à luta
entre animais. Animais da mesma espécie de
porte físico similar têm chances aumentadas
de se engajarem em embates violentos.
Por isso, quando a hegemonia do uso da
força pelo Sistema de Justiça Criminal sofre
fraturas, as fendas são preenchidas pelos
próximos grupos armados mais pujantes
no uso da força. É quando parcelas da
população passam a viver sob o controle de
regentes ilegítimos, em Estados alternativos
onde as leis do seu país não têm jurisdição.
BLACKSPOTS
Black spots são áreas que o Estado perdeu
para concorrentes armados. Neles, a força
de polícia do Estado é expulsa com a fúria
dos soberanos que protegem seus territórios
de invasores estrangeiros.
Ocorrências dessa gravidade são raras.
Um exemplo são as áreas controladas
por rebeldes no Sudão do Sul, em vestígio
da guerra civil que assolou o país nos
anos recentes. Também as montanhas
do Afeganistão, tomadas por terroristas,
eram inacessíveis às tropas americanas,
internacionalmente reconhecidas como
agentes legítimos de uso da força para
manutenção da estabilidade no país
durante a Guerra do Afeganistão.
A MEDIÇÃO DE FORÇAS É O NOSSO
INSTINTO. SOMOS MOVIDOS PELO
DESEJO DE DOMINAÇÃO.
A NATUREZA HUMANA NÃO ADMITE
VÁCUO DE PODER.
CAPÍTULO 01
ENTRE LOBOS SEÇÃO 03
E - B O O K B P | D O C U M E N T Á R I O E N T R E L O B O S 1 3
14. Mais da metade da população da cidade
do Rio de Janeiro vive sob o jugo do crime
organizado. 33% dela mora em territórios
controlados por milícias, 18,2% em áreas do
Comando Vermelho e, 5,1%, em domínios do
Terceiro Comando16
.
Milicianos e traficantes atuam na mesma
diversa gama de atividades ilícitas, em uma
lógica empresarial que torna os black spots
cariocas únicos; distribuídos por uma das
maiores e mais importantes cidades do país
estão Estados alternativos à nossa república
federativa, instalados não por propósitos
políticos, ideológicos ou religiosos, mas,
exclusivamente, financeiros.
Nos territórios que governam, milicianos e
traficantes administram pontos de venda
de drogas, roubos de carga, venda de
produtos e serviços aos moradores (como
botijões de gás, sinal irregular de televisão,
transporte de passageiros em motos e vãs)
e toda outra ação criminosa lucrativa que
seus métodos e sua imaginação consigam
alcançar.
Sem compromisso com os avanços
civilizatórios dos Estados modernos, o
sistema de justiça dos criminosos prevê
No Brasil, não temos rebeldes se insurgindo
contra o poder federal ou terrorismo, mas
temos alguns dos poucos black spots do
mundo;
PORCENTAGEM DE MORTOS
FONTE: PMERJ/EMG/EQS, PMERJ/EMG/PM1, PMERJ/EMG/EI, USA Congressional Research Service CRS Report RL 32492 e US Veteran Statistics.
O ESTADO BRASILEIRO NÃO OPERA
NAS FAVELAS CARIOCAS.
punição de tortura ou morte aos que
descumprem seus regimentos arbitrários.
Mulheres displicentes em suas obrigações
matrimoniais ou de conduta geral têm
o cabelo raspado, sofrem abuso sexual,
são espancadas ou esquartejadas. Dos
fragmentos do Sistema de Justiça Criminal
falido do Brasil, as organizações criminosas
erguem os tribunais da barbárie.
Os Estados alternativos protegem suas
fronteiras com exércitos armados de fuzil,
granada e, até, armamento antitanque. No
Rio de Janeiro, há cerca de 56.600 homens
com armamento de guerra a serviço das
organizações criminosas17
. É quase o dobro
do efetivo das forças armadas de Portugal18
.
O enfrentamento de um poder bélico dessa
magnitude torna a atividade de um policial
militar do Rio de Janeiro mais perigosa do
que a de um combatente americano nas
guerras do século passado. Na 1a
Guerra
Mundial, houve 2,46% de baixas nas forças
dos Estados Unidos, 2,52% na Segunda
Guerra Mundial e 0,98% na Guerra do Vietnã.
A taxa de mortos na polícia militar do Rio
de Janeiro é de 3,22%19
.
O Rio de Janeiro é um aviso para o Brasil. Os
policiais que abarrotam cemitérios cariocas
precipitam o luto da nossa agonizante
defesa nacional contra a barbárie.
SE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL
BRASILEIRO NÃO RECUPERAR A HEGEMONIA
DA FORÇA, ESTAMOS VIVENDO OS NOSSOS
ÚLTIMOS DIAS DE CIVILIDADE.
E - B O O K B P | D O C U M E N T Á R I O E N T R E L O B O S 1 4
15. CAPÍTULO 2
E - B O O K B P | D O C U M E N T Á R I O E N T R E L O B O S 1 5
16. UM PAÍS DE
GARANTIAS
Nas últimas décadas, o
pensamento jurídico brasileiro
vem sendo remodelado pelo
influxo de ideias debatidas,
pesquisadas e ensinadas
na academia e nos círculos
intelectuais. São ideias nem
sempre impostas, nem sempre
aceitas e nem sempre, sequer,
plenamente entendidas, mas
que conquistaram consolidada
posição no topo da hierarquia
de autoridade dos estudos
sociológicos e jurídicos.
Entre Jacques Derrida,
Félix Guattari e outros pós-
modernistas de prestígio
no Brasil, destaca-se a
pervasiva influência de
Michel Foucault, cuja obra
Vigiar e Punir é entrada
bibliográfica unânime nas
grades de primeiro ano das
nossas faculdades de direito.
Para o autor, interações entre
agentes sociais são movidas
por relações de poder, de
modo que descondicionar
nossos olhos da superfície
para que possam enxergar
a estrutura da sociedade
corresponde a identificar nas
partes observadas os papéis
de opressor e de oprimido.
Aplicando seu modelo ao
Sistema de Justiça Criminal,
Foucault encaixa no lugar
dos opressores aqueles
outorgados do poder de
estipular e executar as
punições previstas em lei e, no
lugar dos oprimidos, aqueles
cujos comportamentos se
pretende controlar com a
ameaça e o cumprimento
da punição legal. Assim, as
instituições de Justiça seriam
produtos das desigualdades
sociais que reservam a
poucos o poder sobre os
corpos e as ações de muitos.
CAPÍTULO 02
ENTRE LOBOS SEÇÃO 01
Vigiar e Punir Nascimento da Prisão - Obra de Michel Foucault.
E - B O O K B P | D O C U M E N T Á R I O E N T R E L O B O S 1 6
17. Se, no campo das especulações filosóficas
e sociológicas, Michel Foucault tem
destacado impacto na nossa academia,
entre os juristas, as ideias do italiano Luigi
Ferrajoli encontraram no pensamento jurídico
brasileiro acolhimento sem par no mundo.
Nos anos 60 do século passado, a Itália
sofria com ataques de extremistas que
recorriam ao terrorismo para imposição
de suas vontades políticas. Uma vez que
o Estado enrijeceu a resposta penal a tais
crimes, alguns juristas, preocupados com a
flexibilização em curso das garantias dos
réus, dariam origem à teoria do garantismo
penal, que tem Ferrajoli como principal autor
e representante.
Ainda que a observação dos direitos dos
processados em ações judiciais configure
garantismo hiperbólico monocular
avanço civilizatório incontroverso, o limite
entre um zelo humanitário com o réu e a
promoção da impunidade para criminosos
pode ser despercebidamente ultrapassado
dentro de um enquadramento teórico
que interprete punição como um meio de
opressão. Para não ser confundida com
a legítima promoção das garantias da
vítima e do acusado, a teoria de Ferrajoli é
muitas vezes identificada com o “garantismo
hiperbólico monocular” cunhado por Douglas
Fischer para denunciar a atenção excessiva
e exclusiva que vemos ser dedicada aos
réus nos processos penais do Brasil.
Rastros desse garantismo perverso podem
ser encontrados em decisões judiciais das
mais variadas regiões e instâncias, não
poupando de seu escopo nem mesmo a
mais alta corte do país.
CHOMSKY X FOUCAULT
Em 1971, Noam Chomsky, enfrentando
Foucault em um célebre debate, argumentou
que, ao considerar nossos sistemas de
Justiça meras construções sociais para a
perpetuação de opressores no poder, o
filósofo confunde com invenção histórica algo
que, na verdade, é intrínseco à constituição
psicológica da espécie humana: a noção
de justiça, assim como a diferença entre o
bem e o mal.
Atualmente, são abundantes as evidências
científicas que corroboram a posição
defendida por Chomsky. O caráter
universal e inato do nosso senso moral foi
comprovado em pesquisas com bebês20
e
redes neurais responsáveis pela empatia
foram identificadas nos indivíduos com
neurodesenvolvimento típico21
. Apesar
disso, as ideias de Foucault seguem sendo
disseminadas a estudantes de direito antes
mesmo de serem apresentados à própria
legislação penal do país.
E - B O O K B P | D O C U M E N T Á R I O E N T R E L O B O S 1 7
18. O SUPREMO
O FORTALECIMENTO DO CRIME
A Lei dos Crimes Hediondos,
de 1990, previa o cumprimento
integral da pena em regime
fechado para condenados
por crimes como homicídio
qualificado, latrocínio e
estupro. Em 2006, o plenário
do Supremo Tribunal Federal
concedeu habeas corpus a
Oséas de Campos, preso
por abusar sexualmente
de três crianças. Os
ministros decidiram pela
inconstitucionalidade do
impedimento da progressão
de regime (do fechado para
O Supremo Tribunal que
resguarda a liberdade dos
criminosos é o mesmo que
engessa o enfrentamento
policial deles. Em 2020, uma
decisão do ministro Edson
Fachin, posteriormente
homologada pelo pleno da
corte, proibiu o ingresso das
forças policiais nas favelas
do Rio de Janeiro, salvo em
“hipóteses absolutamente
excepcionais”, com justificativa
por escrito do Ministério
Público. Com isso, o crime
organizado que é dono de
o semiaberto e, deste, para o
aberto), criando precedente
para a inviabilização de
respostas penais severas a
crimes graves.
A execução da pena após
condenação por órgão
colegiado (em regra, a
segunda instância) vinha
sendo aplicada no Brasil
desde a Constituição de 1988
até a primeira mudança de
entendimento do STF que, em
2008, considerou a prática
uma violação do princípio
da presunção de inocência.
Em 2016, a corte revê o próprio
precedente, permitindo
prisão após julgamento em
segunda instância e, em
2019, volta a decidir por sua
inconstitucionalidade.
Ao lado da severa
insegurança jurídica em que
as constantes alterações
de jurisprudência da nossa
Suprema Corte afundam o
Brasil, a exigência de espera
pelo trânsito em julgado
nos tribunais superiores —
a terceira ou, até, a quarta
instância — engendra
prescrições em massa de
processos, extinguindo o
direito de punição dos réus
pelo Estado.
partes do Rio de Janeiro
se fortalece, as manchas
no mapa carioca que não
pertencem mais ao Estado
brasileiro se expandem e mais
cidadãos vivem sob o arbítrio
de tiranias armadas. A cidade
foi abandonada à metástase
dos black spots.
A preocupação hiperbólica e
monocular com as garantias
dos réus ou criminosos que as
medidas do STF denunciam
também não é estranha aos
legisladores que passam pelo
nosso Congresso Nacional.
“A Justiça”, escultura localizada em frente ao
prédio do Supremo Tribunal Federal.
E - B O O K B P | D O C U M E N T Á R I O E N T R E L O B O S 1 8
19. Ainda no regime militar, o pacote de
abril de 1977 foi o precursor da ideia de
que a superlotação das cadeias deve
ser combatida não com o empenho de
ampliação do sistema prisional, mas
com a redução das tipificações penais
passíveis de punição por encarceramento.
A situação se agrava com a Lei dos
Juizados Especiais, de 1995, que impede
a prisão para crimes de “menor potencial
ofensivo” — aqueles com pena prevista
inferior a 2 anos de reclusão —, como
lesão corporal leve, ameaça, violação
de domicílio, assédio sexual, apologia de
crime e motim de presos.
A própria Constituição de 1988,
alegadamente em reação aos abusos
cometidos pelo Estado no período militar,
comporta uma das mais inchadas cartas
de garantias fundamentais do mundo.
Consultando o ranking do Comparative
Constitutions Project, entendemos que
uma elevada quantidade de garantias
firmadas em texto constitucional não
guarda qualquer relação com níveis
de democracia ou de respeito efetivo
aos direitos básicos de quem vive sob a
prometida proteção da lei maior do seu
país. Enquanto a Venezuela conta com
82 desses direitos constitucionais, o Brasil
com 79 e a Etiópia e a Nicarágua com 77, a
Austrália registra apenas 11 deles, a Áustria,
15, a Dinamarca, 21, e, a Holanda, 2622
.
Também o Estatuto da Criança e do
Adolescente (ECA) que, em 1990, consagrou
um valoroso progresso civilizatório na proteção
desta população especialmente vulnerável,
teve brechas em sua composição exploradas
em mais investidas parlamentares pela
leniência com criminosos no Brasil. A Lei do
Sinase (Sistema Nacional de Atendimento
Socioeducativo), de 2012, que regulamenta o
cumprimento das medidas socioeducativas
previstas no ECA, é onde, com maior nitidez,
o ímpeto de proteção de direitos se desvirtua
para a garantia da impunidade.
O artigo 42 da Lei do Sinase determina que,
ao ser reavaliado pelo juiz seis meses após sua
internação em uma unidade socioeducativa, o
menor não poderá ser julgado pela gravidade
do crime que cometeu ou pelos seus
antecedentes. Para decretar a permanência
da detenção ou a libertação do infrator, o juiz
deverá, tão somente, considerar o relatório
de técnicos acerca do comportamento do
adolescente em seu período de internação.
Ainda, no artigo 45 da mesma lei, estabelece-
se a impossibilidade de cumprimento de
uma nova internação por ato anterior ao de
uma internação já cumprida. Supondo que
um adolescente tenha cumprido medida
socioeducativa por consequência de um
estupro que cometeu, às vistas da lei, sua
reeducação para retorno à sociedade já
se completou, de modo que, caso seja
descoberta a autoria dele de um homicídio
praticado antes da sua internação, é vedada
a aplicação ao infrator de uma nova medida
de internação.
CONSTITUIÇÃO ESTATUTO DA
CRIANÇA E DO
ADOLESCENTE
NÚMERO DE DIREITOS
DEFINIDOS EM CONSTITUIÇÃO (POR PAÍS)
FONTE: https://comparativeconstitutionsproject.org/ccp-rankings
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20. Em 2019, Sergio Moro, então ministro da
Justiça e Segurança Pública, apresentou
ao Congresso o “Pacote Anticrime”, um
conjunto de propostas que alterariam o
Código Penal, o Código de Processo Penal,
a Lei de Execução Penal, a Lei de Crimes
Hediondos, entre outras normas, a fim de
acrescentar rigor ao combate ao crime
organizado, ao crime violento e à corrupção.
A Câmara dos Deputados desfigurou o
pacote, não apenas removendo seus mais
relevantes parágrafos (como os do plea
bargain e da execução de pena após
condenação em segunda instância) mas
redigindo, em seu lugar,
O artigo 316 do pacote aprovado, que não
constava no documento original enviado por
Moro, acarretou a libertação, em outubro de
2020, de André do Rap, um dos líderes do PCC,
responsável pela mais lucrativa atividade
da organização: o tráfico internacional de
drogas. A decisão foi suspensa no mesmo
dia por submeter a ordem pública a severo
risco, mas André do Rap nunca mais foi
encontrado pela polícia.
Não apenas os atentados contra o nosso Sistema de Justiça
Criminal são recorrentes por deputados e senadores mas,
também, a sabotagem de qualquer tentativa de reerguê-lo.
Congresso Nacional.
MAIS EMENDAS DE HOMENAGEM AO
GARANTISMO DE INSPIRAÇÃO.
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21. EM PELE DE CORDEIRO
Em uma escala de força, o criminoso supera
a vítima e é superado pelo Estado. Mas
ideias também são forças que incidem
sobre o sistema, e as que prosperam no
ambiente intelectual e jurídico brasileiro têm
amputado da escala seu segmento inferior:
o dos cidadãos vitimados pelo crime. Sem
eles, os criminosos, os mais vulneráveis entre
os atores restantes, assumem a posição
deixada pela vítima e o poderoso Estado
herda os traços do agressor.
O lugar que os criminosos arrancaram das
vítimas não lhes garante apenas proteção
legal e jurídica, como as já exemplificadas,
mas também constrange a sociedade
a depositar confiança em seus próprios
algozes.
CAPÍTULO 02
ENTRE LOBOS SEÇÃO 02
Assim ocorre no cumprimento de pena em
regime aberto, que permite o retorno do
apenado ao convívio regular em sociedade.
Admite o próprio artigo 36 do Decreto Lei
no
2848 que “o regime aberto baseia-se na
autodisciplina e senso de responsabilidade
do condenado”23
.
Apenados no regime semiaberto que tenham
cumprido um sexto da pena têm direito a
até cinco saídas temporárias por ano: no
Natal, na Páscoa, no Dia das Mães, no Dia
dos Pais e no Dia de Finados. O convívio
dos beneficiados em sociedade é restrito
por normas que, desacompanhadas de
qualquer vigilância, têm o efeito de um apelo
à consciência dos criminosos: não podem
frequentar festas, bares, embriagar-se, fazer
uso de substâncias ilícitas, portar armas,
praticar delitos e, principalmente, devem
retornar às unidades prisionais ao término
do intervalo acordado.
IMPÕE-SE À SOCIEDADE QUE
CONFIE NO CUMPRIMENTO
DE REGRAS POR AQUELES
JUDICIALMENTE RECONHECIDOS
COMO VIOLADORES DE REGRAS.
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22. RETAGUARDA JURÍDICA
A VÍTIMA
Todo preso em flagrante
deve ser conduzido a
uma autoridade judicial
em um prazo de
24 horas para
participação em uma
Audiência de Custódia.
Criada para promover celeridade
à Justiça, com rápido acesso do
preso a um juiz, a Audiência, em
consonância com a hiperbólica e
monocular garantia dos direitos dos
acusados que povoa o pensamento
jurídico brasileiro, termina por
favorecer desproporcionalmente
os réus, que tiveram a liberdade
imediatamente concedida em 38,5%
das Audiências de Custódias entre
2015 e 202124
.
Nessas audiências, o crime que
o réu foi acusado de cometer é
ignorado pelo juiz em detrimento
de considerações acerca do
tratamento recebido pelo preso
durante a detenção. Caso qualquer
abuso físico ou psicológico seja
denunciado, é aberta investigação
contra os policiais, que são proibidos
de participar da audiência de
acusação contra eles por receio
de constrangimento ao réu.
Quando o criminoso veste a pele da
vítima, seus compromissos com a lei
merecem nossa confiança e suas
denúncias contra agentes da lei
inspiram autoevidente credibilidade.
Ao contrário, o Estado agressor,
na figura dos agentes policiais,
abandonamos ao descrédito e ao
desamparo.
O policial brasileiro teme o cumprimento do
próprio dever. Coloca-se em risco contra
criminosos cada vez mais armados sem a plena
certeza do resguardo jurídico às suas ações e,
o que é pior, com a plena certeza de que um
desfecho com morte de criminosos lhe custará
um processo dispendioso e uma cobertura
jornalística desfavorável.
No Brasil, a legítima preocupação em denunciar
eventuais abusos cometidos pela polícia escalou
para coberturas jornalísticas acusatórias, quando
não condenatórias. Suspeitas inconsistentes
contra policiais inflamam a revolta calculadamente
incontida dos mesmos âncoras desinteressados
nas atrocidades comprovadas e cotidianas
praticadas por criminosos.
Mas se, agora, criminosos são vítimas
marcadas por agressões do Estado, injustiças
e desigualdades estruturais, então roubam,
estupram e matam por reação neles condicionada
pela própria violência social que sofrem. São
moralmente inimputáveisporseremosúnicos,entre
todos os brasileiros, privados de livre-arbítrio.
A culpa pelo latrocínio é do morto por não ter
impedido, com o poder de decisão que lhe
cabia, a criação de um autômato programado
para matá-lo.
A pessoa roubada, estuprada ou morta, a vítima
em outros tempos, já não é compatível com o
entendimento moderno das relações criminais no
Brasil. Foi relegada a dano colateral, esquecida
pelas leis e abandonada em esperas de até
24 horas nos registros de ocorrência. Vitimada
pelo criminoso, ela é novamente vitimada pela
ineficiência do sistema policial (a chamada
vitimização secundária).
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23. Ao policial militar é limitada,
por imposição constitucional,
a ação ostensiva de
prevenção e repressão ao
crime. Por isso, ainda que
seja o primeiro a ter contato
com o local do crime, com
o próprio criminoso, com
a vítima e com eventuais
testemunhas, qualquer
esforço de apuração de
contextos, causas, autores
ou mandantes configuraria
invasão de competência dos
agentes a quem o poder de
investigação está reservado:
os policiais civis. Apenas o
Brasil e Guiné-Bissau adotam
esse modelo de meias
polícias.
Seja nos anteparos
burocráticos ou nas
sucessivas transferências de
responsabilidade sobre um
caso (que passa por policiais
militares e delegados, peritos
O despreparo do sistema
policial brasileiro para
atender e solucionar
ocorrências criminais
não decorre de um
desvirtuamento dele mas,
pelo contrário, do estrito
cumprimento de suas
previsões.
e outros agentes civis), as
rachaduras por onde escoa
a eficiência no atendimento
às vítimas são muitas.
A disfuncionalidade da
nossa mais imediata barreira
de proteção é o reflexo
invertido da bem estruturada
barreira de proteção legal
que nossos legisladores e
juristas levantaram para
os criminosos. Blindados
de penas severas, os
condenados rapidamente
retornam à convivência em
sociedade, às atividades
ilícitas e aos confrontos com
a polícia.
A progressiva deformação
do nosso Sistema de Justiça
Criminal culminou em uma
anomalia sem comparação
no mundo. Aqui, policiais
se arriscam sob fogo para
prender um mesmo criminoso
duas, três ou dezenas de
vezes. A polícia brasileira é
a que mais mata e a que
mais morre.
Muitos dos policiais que
sobrevivem aos confrontos
capitulam para as sequelas
psicológicas deixadas por
eles. Policiais militares são a
classe profissional que mais
registra suicídios no Brasil,
representando um número
de óbitos ainda maior do que
as próprias baixas sofridas
em serviço25
.
AS VÍTIMAS DO SISTEMA
O SISTEMA É
DISFUNCIONAL E A
CORRETA EXECUÇÃO
DE SUAS ETAPAS POR
TODOS OS ENVOLVIDOS
TORNA A SOCIEDADE
MENOS SEGURA.
Brasão do 51o
Batalhão da Polícia Militar de São Paulo.
E - B O O K B P | D O C U M E N T Á R I O E N T R E L O B O S 2 3
24. CAPÍTULO 02
ENTRE LOBOS SEÇÃO 03
CORRENTES
DE MENTIRA
A prisão é o recurso mais civilizado na
experiência histórica para punição e
desabilitação dos transgressores de normas
sociais. E entre os avanços civilizacionais dos
Sistemas de Justiça Criminal modernos, as
garantias de preservação da integridade
física dos presos ao longo do cumprimento
da pena se destacam como conquistas
louváveis.
As violações de direitos humanos de presos
no Brasil são incontestáveis, recorrentes
e derivadas, na maior parte, da nossa
superlotação carcerária. Por décadas,
a resposta dos nossos legisladores e
governantes ao problema tem sido muito
mais enviesada ao impedimento de medidas
de reclusão (e.g. Lei dos Juizados Especiais e
Audiência de Custódia) ou encurtamento de
penas (e.g. progressão de regime e remição
de pena26
) do que à reforma e ampliação
dos estabelecimentos prisionais.
O investimento na criação de novas vagas
prisionais não é apenas preterido pelas
autoridades mas, também, reprovado por
alguns dos mais influentes defensores dos
direitos dos presos no Brasil. A Agenda
Nacional pelo Desencarceramento, elaborada
pela Pastoral Carcerária e assinada por
dezenas de outras organizações ativistas,
prioriza, na forma da primeira reivindicação
do documento, a “suspensão de qualquer
verba voltada para construção de novas
unidades prisionais ou de internação”.
Segundo a Agenda,
Transparece no excerto o inimigo que esses
ativistas se empenham em combater: o
ímpeto punitivista dos juízes brasileiros,
alegadamente atestado pela terceira
colocação mundial que o Brasil ocupa no
ranking de população carcerária.
A construção de novos presídios não
apenas é inábil ao objetivo de aplacar
a superlotação carcerária, como
também serve de fomento às prisões. De
acordo com David Ladipo, pesquisador
do sistema prisional estadunidense:
“quando as prisões estão superlotadas,
há maior pressão sobre os juízes para
serem mais seletivos na imposição de
sentenças de encarceramento. Quando
a capacidade das prisões aumenta,
parte dessa pressão diminui”.27
E - B O O K B P | D O C U M E N T Á R I O E N T R E L O B O S 2 4
25. Entretanto, uma análise honesta dos dados
embaraça o argumento. Ao passo que,
por ser um dos países mais populosos do
planeta, o Brasil concentra uma das maiores
populações carcerárias, a posição no ranking
mundial despenca para a 26a
no cálculo
de presos por 100 mil habitantes28
. Para o
país recordista em um espectro de delitos
que vai de fraude com cartão de crédito a
homicídio, esse número se aproxima muito
mais de um retrato de impunidade do que
de punitivismo.
Apesar de não encontrar qualquer respaldo
na realidade jurídica brasileira, a ideia de
que o Estado aplica punições em excesso
é coerente com o filtro de realidade que
apaga a vítima da relação de forças sociais;
quando os criminosos aparecem como os
mais fracos, são eles que suplicam proteção
e é a favor deles que as mazelas infligidas
pelo Estado opressor demandam repúdio.
Por isso, o desencarceramento para garantia
de direitos humanos dos apenados justifica
a violação muito mais grave dos direitos
humanos das vítimas consumadas ou futuras
dos criminosos em liberdade. E a resistência do
passo civilizatório de garantia da dignidade
O RETRATO DA IMPUNIDADE
dos presos compensa a dissolução de toda
a vida social em barbárie.
Os Estados Unidos instituíram a Semana
Nacional dos Direitos das Vítimas de Crime
(National Crime Victim’s Rights Week), a
Europa, o Dia Europeu das Vítimas de Crime
(European Day of Victims of Crime). No Brasil,
no lugar da vítima nós temos o criminoso;
no lugar do Dia da Vítima nós temos o Dia
Nacional do Detento.
Traficantes de Jacarepaguá no Rio de Janeiro com submetralhadora e fuzis.
Cartaz comemorativo do Dia Nacional do Detento
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26. CAPÍTULO 3
E - B O O K B P | D O C U M E N T Á R I O E N T R E L O B O S 2 6
27. GEOGRAFIA É DESTINO
O Brasil conta com 16.885,7 km de fronteira
com 10 dos outros 12 países da América
do Sul. São incalculáveis os pontos de
vulnerabilidade para a entrada no país
de produtos descaminhados (fraude
tributária sobre artigos de entrada legal
no país), traficados e contrabandeados
(de entrada ilegal no país). A um Sistema
de Justiça Criminal infiltrado por ideias
debilitantes se junta a sistemática
infiltração da fronteira por mercadorias
que enriquecem e multiplicam os
criminosos em território nacional.
Como um paciente imunodeprimido
assediado por hordas de agentes
patogênicos, somos hospedeiros de
moléstias, um laboratório vivo de mutações
e um alarmante foco de contágio. No
contato comercial com outros países, o
Brasil exporta a violência criminal.
A revolução logística que caracterizou
a globalização econômica, facilitando
o envio de produtos de um local para
outro do mundo, também fomentou o
crescimento e a consolidação de um
exuberante mercado ilícito internacional,
do qual o Brasil é um dos mais pujantes
entrepostos.
Centros de conexão internacional do crime
organizado se estendem da região Sul ao
Norte do país, sendo a tríplice fronteira
(entre Brasil, Argentina e Paraguai) um
dos mais críticos.
CAPÍTULO 03
ENTRE LOBOS SEÇÃO 01
América do Sul e região da tríplice fronteira entre Brasil, Argentina e Paraguai
E - B O O K B P | D O C U M E N T Á R I O E N T R E L O B O S 2 7
28. A COCAÍNA
O país produz sete vezes mais
cigarros do que consome, e
alimenta o contrabando do
produto. O ex-presidente
Horacio Cartes é o maior
produtor de cigarros do país.
Ele também é dono de um time
de futebol e de um banco. O
Paraguai é o maior produtor de
maconha da América do Sul e
umdosmaioresdomundo.Éuma
importante rota do tráfico aéreo
e terrestre de cocaína. É centro
de lavagem de dinheiro e tem
forte presença de comerciantes
chineses e árabes, viabilizando
a conexão com o terrorismo e
a exportação de armas.
A cidade de Foz do Iguaçu,
o lado brasileiro da tríplice
fronteira, é um dos locais do país
onde atua o BPFron, o batalhão
da polícia militar cuja atribuição
exclusiva é o combate aos
crimes transfronteiriços.
Fazendo fronteira com o Paraguai e a Bolívia está
o Mato Grosso do Sul, um dos estados com maior
porosidade fronteiriça para a entrada de contrabando
e tráfico de drogas no Brasil. Lá atua o DOF, o
Departamento de Operações de Fronteira, iniciativa
pioneira que reúne a polícia civil e a militar do estado,
e outra das grandes referências na apreensão de
ilícitos que ingressam no país.
O Brasil não produz cocaína, mas é o único país
que faz fronteira com os três maiores produtores
do mundo: Colômbia, Bolívia e Peru. Situando-se
entre eles e o oceano Atlântico, o território brasileiro
é corredor obrigatório da cocaína destinada ao
rentável mercado europeu.
De 700 kg de folha de coca extrai-se 1 kg de pasta
base de cocaína que, por sua vez, misturada com
outras substâncias, produz de 3 a 5 kg de cloridrato
de cocaína, a “cocaína pura”. Cada quilo de cloridrato
de cocaína custa de 17 a 20 mil reais na fronteira
e acumula exorbitante valorização na rota para a
Europa. Na chegada ao continente, normalmente
pela Bélgica, tem preço estimado em 42 mil euros,
podendo atingir até 75 mil euros no Leste Europeu29
.
Pelo Paraguai, passa
contrabando de armas,
celulares, peças de
veículos, alimentos,
roupas e outros itens.
Apreensão de 20.860 quilos de maconha realizada pelo DOF . A droga estava escondida em um carregamento de milho. Valor estimado em R$ 31,3 milhões.
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29. A plantação de coca é o único meio de
vida de parte da população da Bolívia,
onde a atividade é legal, assim como o
consumo da planta em seu estado natural
como energizante ou fitoterápico.
Politizando suas reivindicações através
de movimentos sindicais (conjuntamente
denominados Movimento Cocalero), a
influência dos plantadores de coca bolivianos
escalou para culminar na conquista do poder
federal por um de seus representantes,
Evo Morales, ex-presidente da Bolívia e
presidente da federação dos cocaleros.
Na fronteira com Rondônia, a principal
brecha de entrada da cocaína boliviana
está na cidade de Guajará-Mirim, separada
de sua gêmea boliviana, Guayaramerín,
pelo rio Mamoré.
A principal plataforma de lançamento de
drogas do Brasil para o exterior é o Porto
de Santos, o maior da América Latina.
A engenhosidade dos criminosos para
embarcarem as drogas nos navios inclui
a técnica de içamento, em que o volume
é içado por um tripulante do navio de
um barco pequeno que encosta em seu
calado, a contratação de mergulhadores
profissionais para a soldagem de caixas
de metal no casco do navio e o chamado
“estufamento” de containers, em que as
drogas são introduzidas em containers de
mercadoria legal ainda em área de terra.
ENGENHOSIDADE
CRIMINOSA
PRODUÇÃO RECORDE
Rota entre Brasil e Bolívia utilizada por traficantes (Guajará-Mirim/RO).
POR ELE TRAFEGAM PIRATAS
BOLIVIANOS QUE PROMOVEM A
TRAVESSIA ILEGAL DE PESSOAS E
MERCADORIAS ENTRE OS PAÍSES.
A polícia brasileira tem quebrado recordes
consecutivos na apreensão de cocaína. Em
2021, houve aumento de 125% em relação
ao ano anterior30
. Ainda que o mérito do
esforço de fiscalização das nossas fronteiras
e rodovias deva ser reconhecido, os recordes
são reflexo mais direto de um preocupante
aumento na produção e no escoamento
da droga. Segundo o Escritório de Política
Nacional de Controle de Drogas da Casa
Branca, em 2020, o cultivo de coca se
alastrou pela superfície nunca antes
constatada de 245.000 hectares e a
produção de cocaína alcançou o volume
inédito de 1.010 toneladas métricas.
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30. CAPÍTULO 03
ENTRE LOBOS SEÇÃO 02
UMA AMEAÇA
PARA O MUNDO
Da união de presos paulistas
que reivindicavam melhores
condições no cumprimento
da pena surgiu o PCC na
década de 90. O abandono
das penitenciárias pelo
Estado, sintoma terminal do
nosso Sistema de Justiça
Criminal, permitiu o controle
e a organização de unidades
carcerárias pelos próprios
criminosos. Porque seja nas
favelas, nas ruas ou nos
presídios, não existe vácuo
de poder.
Nas palavras do promotor
gaúcho Bruno Carpes, o
sistema prisional brasileiro é
uma porta giratória por onde
os mesmos apenados saem
e retornam continuamente.
Por isso, bastou despontar
a inteligência empresarial
dos mais calculistas entre
os criminosos para que
o PCC transformasse as
penitenciárias em escritórios
de administração do tráfico
de drogas inicialmente
regional, progredindo
para nacional e, agora,
internacional.
Em 2006, ainda com força
infinitesimal da que viria a
conquistar nas décadas
seguintes, o PCC parou o
estado mais rico do país.
Em protesto contra a
transferência de Marcola
e outros líderes para
cumprimento de Regime
Disciplinar Diferenciado
(RDD)31
na penitenciária
de Presidente Bernardes, a
organização atacou forças
de segurança e alvos civis
no estado de São Paulo por
seis dias. Uma população
aterrorizada e uma polícia
perplexa contaram 251
atentados, rebelião em 73
presídios e 298 mortos.
Ataques do PCC em 2006 em protesto contra transferência de Marcola.
O PRINCIPAL OPERADOR
LOGÍSTICO DO ENVIO
PARA A EUROPA DA
DROGA PRODUZIDA NA
AMÉRICA DO SUL É O
PRIMEIRO COMANDO
DA CAPITAL (PCC),
A MAIS PODEROSA
ORGANIZAÇÃO
CRIMINOSA DO BRASIL.
E - B O O K B P | D O C U M E N T Á R I O E N T R E L O B O S 3 0
31. EXPANSÃO INTERNACIONAL DO PCC
Também ao impotente Sistema de Justiça
Criminal brasileiro só restou assistir à exuberante
expansão dos negócios do PCC, ano após
ano, até que sua ameaça ultrapassasse os
limites do território nacional. Com faturamento
estimado em 3 bilhões de reais32
, a organização
é peça-chave do mercado ilícito internacional
e alvo não apenas de instituições policiais
como a Interpol mas, também, de instituições
econômicas como a OCDE.
Em dezembro de 2021, o presidente americano
Joe Biden assinou uma ordem executiva
autorizando medidas de combate às ações
internacionais do PCC. Lê-se no documento
que “a entidade brasileira designada nesta
ação, o Primeiro Comando da Capital (PCC),
opera uma das maiores rotas de tráfico de
cocaína do mundo”. Ainda, que
O Primeiro Comando da Capital (PCC) é
a mais poderosa organização criminosa
do Brasil e uma das mais poderosas do
mundo. O PCC surgiu em São Paulo na
década de 1990 e forjou um caminho
de sangue ao poder através do tráfico
de drogas, assim como lavagem de
dinheiro, extorsão, assassinato por
encomenda e cobrança de dívidas de
drogas. O PCC opera pela América
do Sul e suas operações alcançam os
Estados Unidos, a Europa, a África e a
Ásia.33
A fortuna acumulada atrai soldados e
compra um arsenal de armas e consciências.
O imensurável poder de corrupção do PCC
aniquila qualquer resistência que o nosso
debilitado Sistema de Justiça Criminal
ainda pudesse esboçar. Nos últimos anos,
denúncias e condenações de policiais e
outros agentes do Estado por envolvimento
com a organização têm se proliferado.
Também o exercício da defesa criminal,
um dos pilares civilizatórios, é amputado
de princípios razoáveis de moralidade no
Brasil. Aqui, não se controla a origem dos
recursos empenhados no pagamento de
honorários advocatícios, de modo que uma
organização criminosa desconta parte do
lucro resultante das atividades ilícitas para
manutenção de um corpo de advogados
dispostos a enriquecer com a defesa dos
interesses e da liberdade das maiores
ameaças à segurança pública do país.
Rebelião do PCC dentro de presídio em 2006.
E - B O O K B P | D O C U M E N T Á R I O E N T R E L O B O S 3 1
32. CAPÍTULO 03
ENTRE LOBOS SEÇÃO 03
O DESENVOLVIMENTISMO
ECONÔMICO DO CRIME
A atribuição da violência criminal à pobreza
ou às desigualdades sociais parece,
novamente, prestar muito mais reverência
a especulações importadas sobre um
confronto estrutural entre classes sociais do
que à realidade contemporânea do Brasil.
Pery Shikida, professor especialista em
economia do crime, é pioneiro na pesquisa
acadêmica com dados coletados em
entrevistas com presidiários do Brasil. Seus
resultados revelam que, de acordo com
os próprios detentos, as duas principais
Seja na venda de serviços aos moradores
de uma favela carioca que controlam,
seja na disputa por pontos de venda de
drogas no Nordeste, no assalto a bancos
de cidades do interior nas ações do “novo
cangaço” ou na operação logística do
tráfico internacional de cocaína, o crime
organizado é orientado ao lucro: investe em
pessoal, em equipamentos, em transporte,
em planejamento, em informação, proteção
ou omissão de agentes corrompidos na
esperança de que seu faturamento supere
as despesas.
motivações para a prática de crimes são,
respectivamente, ideia de ganho fácil e
cobiça (também identificada nas respostas
como ambição ou ganância)34
.
Shikida encontra arcabouço teórico para
seu estudo na economia do crime de Gary
Becker, vencedor do prêmio Nobel de
Economia em 1992.
Parte do dinheiro apreendido em operação realizada em Santos pela
Polícia Federal contra o tráfico internacional de drogas em 2014.
OS EMPREENDEDORES DO
MERCADO ILÍCITO EM NADA
LEMBRAM OS MISERÁVEIS
LADRÕES DE COMIDA QUE POVOAM
A IMAGINAÇÃO DE SEGMENTOS DA
INTELECTUALIDADE BRASILEIRA.
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33. GARY STANLEY BECKER
Becker entende os criminosos como agentes racionais
cujas decisões de se lançarem em empreitadas delituosas
decorrem de cálculos — ainda que intuitivos — sobre as
variáveis de um modelo econômico.
Ele parte da comparação entre criminosos e pessoas que,
em decisões profissionais ou de investimento, aceitam
elevada exposição a risco na aposta por maiores ganhos,
de modo que “atividades ilegais ‘não pagariam’ (na margem)
no sentido de o rendimento real obtido ser menor do
que poderia ser recebido em uma atividade legal menos
arriscada”35
. Ou seja, os criminosos só aceitam o risco da
atividade ilegal quando tiram dela lucros maiores do que
os projetados para as alternativas lícitas de obtenção de
renda.
Os riscos que incidem sobre a atividade criminosa não
têm caráter exclusivamente pecuniário; custos pessoais
administrados por punição legal também são comparados
com os rendimentos em potencial. Entretanto, como nos
lembra Becker, “apenas criminosos condenados são
punidos”, o que introduz o elemento da incerteza na variável,
alocando-a no domínio das probabilidades. Chamando a
probabilidade de punição de p e a intensidade da pena
de f, ele continua:
Inspirado em Becker, Pery Shikida também pediu aos detentos
entrevistados para que mensurassem o custo-benefício
de sua atividade criminosa, computando como custo um
agregado das despesas de planejamento e execução com
o custo de oportunidade no mercado ilícito e o temor da
punição legal. O resultado expõe as entranhas da crise
de segurança do Brasil: para 75% dos presos, o benefício
foi maior que o custo, para 18%, foi equivalente e, apenas
para 7%, foi menor37
.
(...) se for condenado, ele paga f por crime, enquanto
que, se não for, não paga. Um aumento seja em p ou em
f reduziria a utilidade esperada de um crime e, portanto,
tenderia a reduzir o número de crimes, seja porque a
probabilidade de “pagar” o maior “preço” ou o “preço”
em si mesmo iria aumentar.36
Gary Stanley Becker - Nobel de Economia 1992
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34. Quando a pena é certa e de rigor proporcional
à transgressão cometida, o custo do crime
é alto. Assim, a pena efetiva sua função
conhecida no direito como “prevenção
geral”: “com a ameaça da pena, avisando
os membros da sociedade quais as ações
injustas contra as quais se reagirá; e, por
outro lado, com a aplicação da pena
cominada, deixa-se patente a disposição
de cumprir a ameaça realizada”38
.
Mas quando os delitos acarretam punições
brandas ou inexistentes, garantindo que seus
proventos superem seu custo, há um estímulo
para a replicação do ato pelo mesmo
criminoso ou por outros que descubram na
prática delituosa um custo-benefício mais
vantajoso do que aquele oferecido pelos
meios lícitos de obtenção de renda. Um
Sistema de Justiça Criminal permissivo é um
incentivo econômico do Estado ao crime.
A Teoria das Janelas Quebradas,
desenvolvida pelo cientista político James
Q. Wilson, alerta para uma tendência de
progressão criminosa a partir de infrações
pequenas não respondidas pelo Estado.
Sinais aparentes de abandono do poder
público seriam sintomas de negligência
estatal com a manutenção da ordem, de
maneira que janelas quebradas e demais
rastros de vandalismo encorajariam uma
escalada local de criminalidade. Por isso,
a trajetória de um criminoso ou de uma
gangue deve ser barrada em seu estágio
seminal; pequenos delitos não podem ser
tolerados.
Enquanto, no Brasil, instituía-se a Lei dos
Juizados Especiais, que elencava crimes de
“menor potencial ofensivo” para impedir a
prisão de seus autores, Giuliani asseverava
a punição de quem, por exemplo, burlava
o pagamento da tarifa do metrô, bebia ou
urinava em público e grafitava bens públicos.
Os índices de crimes graves, que vinham
galgando patamares alarmantes nas
décadas anteriores, sofreram um agudo
declínio na Nova Iorque gerida por Giuliani.
Denúncias de crimes graves na cidade de Nova York, 1975 - 2015. De acordo com o FBI, esses crimes incluem assassinato, homicídio culposo,
estupro, roubo, agressão, roubo, furto, roubo de veículo motorizado e incêndio criminoso. Fonte: FBI Uniform Crime Reporting, 1975-2015.
DELITOS NA CIDADE DE NOVA IORQUE
UM DOS MAIS CÉLEBRES EXEMPLOS DE
AUMENTO DO CUSTO DO CRIME POR
MEIO DO RESGATE DA CAPACIDADE
DISSUASÓRIA DO ESTADO É A
APLICAÇÃO DA TEORIA DAS JANELAS
QUEBRADAS POR RUDOLPH GIULIANI,
PREFEITO DE NOVA IORQUE NA
DÉCADA DE 1990.
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35. TAVARES BASTOS
Um exemplo mais próximo e mais
surpreendente é a comunidade
Tavares Bastos, no Rio de Janeiro.
Na cidade onde traficantes e
milicianos transformaram as
favelas em black spots, uma
permanece resguardada pelas
forças do Estado desde o ano 2000,
quando nela foi inaugurada a sede
do Batalhão de Operações Policiais
Especiais (BOPE). A presença
contínua do BOPE não extinguiu
a pobreza ou as desigualdades
sociais que assolam a população
local, mas extinguiu o crime,
desconhecido pelos moradores
há mais de vinte anos.
AsvidasqueoBOPEsalvounaTavares
Bastos são mais testemunhas da
deficiência do Sistema de Justiça
Criminal brasileiro. Somente a elite
da polícia militar do Rio de Janeiro
foi capaz de renovar as promessas
de punição ao crime que o nosso
Sistema de Justiça Criminal perdeu
a credibilidade para autenticar.
Soldado do BOPE - Batalhão de Operações Policiais Especiais
NO BRASIL, PAGAMOS AS
ARMAS DO “NOVO CANGAÇO”
COM OS NOSSOS BENS, OS
AGENTES CORROMPIDOS PELO
PCC COM AS NOSSAS VIDAS E
O CONTROLE TERRITORIAL DE
FAVELAS COM O CORPO DAS
MULHERES. O CUSTO DO CRIME
COBRA O PREÇO
DA CIVILIZAÇÃO.
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36. 1. Secretarias Estaduais de Segurança Pública e/ou Defesa
Social; Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE);
Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
2. Cálculo sobre índice de 60.000 homicídios em um ano
(um a cada 8,76 minutos); IPEA e Fórum de Segurança
Pública.
3. https://forbes.com.br/infomercial/2020/08/brasil-lidera-
mercado-de-veiculos-blindados-per-capita-no-mundo/
4. Estratégia Nacional de Justiça e Segurança Pública
(ENASP).
5. Anuário Brasileiro de Segurança Pública.
6. Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel).
7. Relatório Anual 2020 de Atividade Criminosa Online
no Brasil da Axur.
8. https://ourworldindata.org/trust#:~:text=In%20one%20
extreme%2C%20in%20countries,that%20this%20is%20
the%20case.
9. Pesquisa Better Life Initiative da Organização para
a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).
10. https://super.abril.com.br/coluna/contaoutra/o-brasil-
tem-mais-assassinatos-do-que-todos-estes-paises-
somados/
11. https://travel.state.gov/content/travel/en/
traveladvisories/traveladvisories/brazil-travel-advisory.
html [atualização de 31 de janeiro de 2022].
12. https://worldjusticeproject.org/rule-of-law-index/
country/2021/Brazil/Criminal%20Justice
13. Todos os dados compreendidos em:
Bowles. 2009. Did Warfare Among Ancestral Hunter-
Gatherers Affect the Evolution of Human Social Behaviors?
Science, 324, 5932, p. 1293-1298.
Gat. 2006. War in Human Civilization. Oxford University
Press, USA.
Knauft et al. 1987. Reconsidering Violence in Simple Human
Societies: Homicide among the Gebusi of New Guinea.
Current Anthropology, 28, 4, p. 457-500.
Keeley. 1997. War Before Civilization: The Myth of the
Peaceful Savage. Oxford University Press, USA.
Pinker. 2011. The Better Angels of Our Nature: Why Violence
Has Declined. Viking.
Walker & Bailey. 2013. Body counts in lowland South
American violence. Evolution and Human Behavior, 34,
1, p. 29–34.
14. Pinker. 2002. Blank Slate, The Modern Denial of Human
Nature. Penguin Books, NY, p. 331.
15. Kenrick & Sheets. 1994. Homicidal fantasies. Ethology
and Sociobiology, 14(4), p. 231-246.
16. Mapa dos Grupos Armados do Rio (2020)
17. Relatório da Polícia Civil do Rio de Janeiro enviado ao
Ministério da Justiça e ao Supremo Tribunal Federal (2020).
18. Em 2022, as forças armadas portuguesas
contam com um efetivo de 30.500 homens.
www.globalfirepower.com/active-military-manpower.php
NOTAS
19. PMERJ/EMG/EQS, PMERJ/EMG/PM1, PMERJ/EMG/EI, USA
Congressional Research Service CRS Report RL 32492 e
US Veteran Statistics.
20. Bloom. 2013. Just Babies: The Origins of Good and
Evil. Crown Publishing Group, NY.
21. Bazalgette. 2019. The Empathy Instinct. John Murray
Publishers.
22. https://comparativeconstitutionsproject.org/
ccp-rankings
23. Redação dada pela Lei no 7209.
24. Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
25. Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2019.
26. Redução da pena prevista mediante atividades de
trabalho ou estudo.
27. Agenda Nacional pelo Desencarceramento 2016-2017,
p. 10-11.
28. Monitor da Violência, 2021.
29. https://oglobo.globo.com/rio/policia-apreende-250-
quilos-de-cocaina-que-iria-para-exterior-monitorada-
por-rastreador-da-apple-25307456#:~:text=Ainda%20
segundo%20as%20investiga%C3%A7%C3%B5es%2C%20
o,em%20pa%C3%ADses%20do%20Leste%20Europeu.
30. VIGIA (Programa Nacional de Segurança nas Fronteiras
e Divisas).
31. O RDD consiste no isolamento do preso em cela
individual, com visitas quinzenais e rigoroso controle de
entrada de celulares e outros dispositivos de comunicação.
32. De acordo com o promotor Lincoln Gakiya, do
Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime
Organizado (Gaeco). https://www.correiobraziliense.com.
br/brasil/2021/05/4923137-pcc-movimentou-rs-3-bilhoes-
com-o-trafico-diz-promotor.html
33. https://br.usembassy.gov/u-s-department-of-treasury-
targets-narcotics-traffickers-and-their-supporters-using-
enhanced-counter%E2%80%AFnarcotics-authorities/
34. Schlemper, Shikida & Carvalho. 2020. Perfil Social,
Demográfico e Criminal de Jovens Praticantes de Crimes
Econômicos nos Estados do Paraná e Rio Grande do Sul.
Economic Analysis of Law Review, V. 11 (1), p. 131-156.
Shikida, Bauermann & Godoy. 2019. Crime Econômico de
Tráfico de Drogas: Perfil, Custo e Retorno. Revista Brasileira
de Gestão e Desenvolvimento Regional, V. 15(2), p. 47-55.
35. Becker. 1974. Crime and Punishment: an Economic
Approach. In Becker & Landes (eds.), Essays in the
Economics of Crime and Punishment, p. 44.
36. Ibidem, p. 10.
37. Shikida. 2020. Uma análise da Economia do Crime em
estabelecimentos prisionais paranaenses e gaúchos: o
crime compensa? Revista Brasileira de Execução Penal,
V. 1(1), p. 257-258.
38. Bitencourt. 2000. Manual de Direito Penal. Saraiva:
São Paulo, p. 76.
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