Charles Watson é um professor britânico que ministra cursos sobre processo criativo no Brasil e no mundo. Ele acredita que a arte não deve ter uma finalidade, diferentemente da evolução biológica, e sim se concentrar no próprio processo. Watson também organiza viagens internacionais para estimular a criatividade dos participantes ao saírem de seu contexto habitual.
Entrevista com Charles Watson sobre arte e criatividade
1. ENTREVISTA
Foto: Ricardo Degani
CHARLES POR L IEGE GONZ A L E Z
C “Uma coisa é
harles Watson é professor, mas
“provocador” definiria melhor
seu papel. Desde 1979, mi-
nistra um curso sobre processo criativo,
que é oferecido regularmente na Escola
estar cheio de
de Artes Visuais do Parque Lage, Rio de
Janeiro, e com o qual viaja o Brasil e o emoção pra fazer
uma poesia,
mundo. De acordo com o depoimento de
ex-alunos, Charles tem o poder de “puxar
do fundo da mente o potencial criativo
adormecido” e “fazer ver arte em tudo o
que enxergamos”. Por sua tutela, já pas-
outra é ler e
saram artistas como Beatriz Milhazes e
Adriana Varejão, entre muitos outros. acreditar que
Em 1992, Charles criou o programa Dy-
namic Encounters, que promove viagens
a destinos nacionais e internacionais,
ela sobrevive em
verdadeiras imersões em arte e criação.
Os destinos são os mais variados, desde
meio a outras
São Paulo e Nova Iorque até a Antártida.
É formado em Literatura e Artes pela poesias.”
Bath Academy of Art, na Inglaterra, e
tem como hobby a construção de bar-
cos a vela. Charles recebeu a equipe da
Dasartes em sua casa/oficina, no Rio de
Janeiro. Ele pode ser contatado pelo e-mail
wats352@attglobal.net.
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2. ENTREVISTA
Quais os cursos que você
ministra atualmente?
Dou aula sobre a teoria da arte, mas mi-
nha principal atuação é na área que eu
chamo de “O Processo Criativo” – uma
análise deste processo. São cursos inter-
disciplinares, baseados em exemplos do
mundo das artes, mas também da ciência,
da física,... Para esta análise, tem algo de
especialmente interessante na atividade
da arte: ela não tem finalidade nenhuma.
Tem consequências, mas consequências
e finalidades não são a mesma coisa.
Não são a mesma coisa?
Não, a finalidade é um fruto almejado
daquilo que fazemos, um objetivo; a con-
sequência é um resultado que decorre das
nossas ações, independentemente do nos-
so desejo. É lógico que tem muito artista
que só trabalha com a finalidade de fazer
CHARLES WATSON E IRVING SANDLER FALAM SOBRE TRABALHO DE MORRIS LOUIS CHARLES WATSON ABORDA TRABALHO DE SEAN SCULLY CHARLES ENTREVISTA TONY CRAGG
uma exposição, mas não podemos achar
que só por se chamar de artista que o
indivíduo está realmente criando. Aí po-
demos fazer uma analogia com o processo
evolutivo, não é? A evolução também não
se concentra no resultado se ausenta do pro-
cesso, do qual o resultado tanto depende. “A moldura é “Por que a senhora anda com um ferro na
bolsa?” E ela respondeu: “Ai, eu tenho um
É possível ensinar a criar? Quão
importante é o talento nato?
Você é de origem britânica. Você vê muita
diferença cultural entre os brasileiros e
tem finalidade. Vamos pegar o exemplo de um bioquímico problema terrível, toda vez que eu saio de Existe algo paradoxal sobre o talento. Ele britânicos em relação à criatividade?
???
A ideia que temos da realidade é de que
que descobre uma mudança na proteína
do vírus da AIDS. Esta descoberta resulta
importante casa eu acho que deixei o ferro ligado...”
(risos). Isto tem características de uma so-
é uma espécie de facilidade para fazer as
coisas, certo? E o que acontece quando
Claro. O Brasil e a Grã-Bretanha, de certa
maneira, metaforizam dois polos opostos,
tudo o que aconteceu até aqui resultou na
gente, então, nós devemos ser a finalida-
em um remédio que beneficia 13 milhões
de africanos. Isto é uma consequência, porque, sem este lução criativa, porque resolve o problema,
faz isto de uma maneira inédita e ainda
temos muita facilidade para fazer algo?
Talvez não valorizamos...
um excessivo em subjetividade e outro
excessivo em objetividade. Se ligamos o
de. Mas a evolução é um processo inteira- Mais que isto, fazemos sem pensar. E noticiário no Brasil, não se passam cinco
humilde artifício,
o bioquímico não está fazendo isso por cria uma surpresa, que, em geral, acom-
mente arbitrário, que tem consequências, causa dos 13 milhões, está fazendo isso panha os momentos criativos. Mas chamo criatividade sem ref lexão não existe. minutos sem que se fale de emoção. Emo-
e nós somos uma consequência e não porque adora o que faz. Neste sentido, isto de processo criativo pequeno porque Não basta só fazer; é necessário olhar ção aqui, emoção ali, tudo é emoção. É
uma finalidade.
Mas o darwinismo não coloca
a arte é interessante porque é uma das
poucas atividades onde se investe muita
você não sabe ela não está modificando nenhuma lingua-
gem, não está fazendo contribuição para
duramente para o que foi feito, pensar
se tem valor. Uma coisa é estar cheio de
fantástico, mas não é suficiente, é aí que
deveria entrar a disciplina, a objetividade.
a “sobrevivência da espécie”
como uma finalidade?
energia a troco de... não se sabe, não é? E
isso é muito raro. onde o mundo o pensamento humano. No meu curso,
uso o conceito do pesquisador americano
emoção pra fazer uma poesia, outra é ler
e acreditar que ela sobrevive em meio a
Com os ingleses é o contrário. A palavra
mais comum nos diálogos entre ingleses é
Não, nunca, nunca, nunca. Não vou entrar Como você define o processo criativo? Csikszentmihaly, de criatividade com C outras poesias. Se não sobrevive, não é embarassed (envergonhado). O inglês está
em detalhes porque seria outra discussão,
mas pegue a palavra finalidade: implica um
Penso que existem dois tipos de processo
criativo. Um deles é o pequenininho, que
termina e onde a maiúsculo, que envolve três pré-requisi-
tos: a pré-existência de uma linguagem
arte, é terapia. Voltando à pergunta, não
sei se é possível ensinar uma pessoa a
constantemente constrangido, inclusive
pelo próprio entusiasmo, então finge indi-
futuro previsto, um fim a ser alcançado.
Darwin nunca falou sobre isto, pelo contrá-
todos temos o tempo todo. Vou ilustrar
com um exemplo: uma senhora parou mi-
arte começa.” simbólica sobre o tema em questão, que
o criador modifique de alguma forma esta
ser criativa, mas é certo que você pode
conscientizá-la dos impedimentos que
ferença, é pão-duro emocionalmente. Em
uma das vezes em que levei um grupo para
rio. A analogia com a falta de finalidade na nha enteada na saída da escola e pergun- linguagem e, por último, que outros peritos ela mesma impõe à sua criatividade. Não Nova Iorque, convidamos o artista inglês
criação se dá porque os criadores, as pes- tou: “Minha filha, você sabe onde eu acho sejam capazes de reconhecer o valor desta estou dizendo que talento não é impor- Martin Potts para um jantar com os alunos.
soas que realmente fazem uma diferença o meu neto João?”. A menina conhecia modificação. Tem que ter um contexto. Por tante, estou dizendo que só vem a ser No dia seguinte, perguntei o que ele tinha
em suas áreas, normalmente são pessoas muitos Joãos, então a velhinha disse que exemplo, quando Einstein lançou a teoria importante quando aliado a outros fatores. achado da experiência com brasileiros. Ele
que chamamos de “intrinsecamente moti- iria procurar uma foto dele e começou a de relatividade, dizem que só três físicos Não vemos se sobressair os talentosos estava estarrecido com a espontaneidade
vadas”. Elas se interessam pelo processo e tirar milhões de coisas de dentro da sua no mundo eram capazes de entender o que preguiçosos, não-curiosos, não-instiga- do grupo. Respondeu que nós, saxônicos,
não pelo resultado. Justamente por isto, seu bolsa; e eis que tira um ferro de passar ele falava. Mas havia pelo menos três; o dos, não-convictos sobre a importância elaboramos uma ideia e depois usamos a
resultado promete ser bom, enquanto quem roupa. Minha enteada, curiosa, perguntou: reconhecimento é necessário. do que fazem. língua pra expressar esta ideia. Os brasi-
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3. ENTREVISTA
Foto: Ricardo Degani
leiros, parece que usam a língua para ela- viagens para a Alemanha, Chicago e Nova
borar a ideia, vão falando para saber o que Iorque, visitamos alguns artistas impor-
querem dizer. Isso é o máximo, não? Acho tantes, como Thomas Ruff, Candice Breitz,
que isto é uma das coisas que faz com que Harun Farocki, Janine Antoni, Maya Lin,
o processo de dar aula seja tão enriquece- Thomas Struth...
dor para mim: me dá a oportunidade de Você tem planos para fazer um
desenvolver minhas ideias enquanto as destes encontros na Antártida.
explico para os alunos. Por que este destino?
Em seu curso, você costuma citar o Uma coisa importante nestes encontros
músico Frank Zappa, “o importante na é uma certa intensidade. E essa intensi-
arte é a moldura”. O que isso quer dizer? dade tem a ver com o deslocamento, com
A moldura é importante porque, sem este sair do contexto habitual. Nossa cabeça é
humilde artifício, você não sabe onde o tão cheia que, para uma pessoa aprender
mundo termina e onde a arte começa. alguma coisa, primeiro tem de haver uma
Um exemplo: se o compositor minimalista espécie de “limpeza” cerebral, tirar ideias
John Cage segura um microfone na gar- velhas para abrir espaço para as novas.
ganta enquanto bebe um copo de suco e Nas viagens, a pessoa tem que aprender a
declara que o som resultante é uma com- lidar com a língua diferente, a usar o trans-
posição musical, desde que exista uma porte público, ajuda a abrir a cabeça.
plateia que concorde, então assim é. Eu, Sobre a Antártida, a questão não é o que
PLANO PARA CONSTRUÇÃO DE UM BARCO
pessoalmente, não acho esta discussão tem na Antártida, e sim o que não tem.
interessante, discutir se é ou não é arte. É pela ausência, pelo silêncio. Perante à
Respeito, mas não dedico meu tempo. enormidade da paisagem, nos damos conta
Vou fazer uma outra citação,
que é do cientista Thomas Edison:
de que somos insignificantes, lembramos
que nossos probleminhas, nossa conta de
Como se vai falar em definição técnica,
antes de saber o que se quer definir?
destas linguagens a ponto de perceber
nuances, como um pintor que pintou a
melhorar, vira um destes artistas que fa-
zem uma única grande descoberta e ficam “Se você abre
“O sucesso é 10% inspiração e 90% luz, o carro na oficina, tudo isto é muito Na verdade, esta questão é uma boa vida toda consegue perceber. repetindo a vida toda. Não existe cresci-
transpiração”. Você concorda?
Isso é óbvio. O grande problema no pro-
pequeno, tão pequeno que acaba desapa-
recendo da mente, um deslocamento mais
entrada para uma das características da
arte contemporânea. Antigamente, um
Ainda sobre esta liberdade técnica,
vemos muitos artistas que se lançam
mento sem desconforto, é exatamente
ele que garante que está se vivendo um
mão da busca
cesso criativo é achar um problema. É só
para isto que você precisa de inspiração.
intenso de contexto.
Vamos conversar sobre arte e arte
pintor era um pintor, então ele pintava
coisas pintáveis. Hoje, ocorre o inverso:
nas artes com pouco ou nenhum
conhecimento técnico e teórico.
processo de transformação.
Última pergunta: (entrevistadora mostra eterna por
contemporânea. Sua definição de arte? Você acha que o conhecimento uma imagem do vídeo Work # 547, do
melhorar, vira
Uma vez que você tem um problema, aí o artista pensa “eu tenho um problema
as coisas começam a acontecer. Se eu Eu não tenho a menor ideia de como definir a abordar, qual seria a linguagem mais técnico e teórico se tornou obsoleto? inglês Martin Creed, vencedor do prêmio
pudesse armazenar a energia que cada isto, até porque todo mundo que tentou se adequada?” Ou seja, o método vai ser Não. Absolutamente não. A questão aí não Turner do Museu Tate, que mostra uma
aluno perde experimentando um pouco
disso, um pouco daquilo, eu resolvia os
ferrou. Arte é o que um artista chama de
arte e alguns observadores concordam.
definido de acordo com o que o artista
quer expressar, e não o oposto, onde o
é só a técnica, mas a necessidade de imer-
são na linguagem que se quer trabalhar,
mulher usando uma fantasia de cachorro,
defecando no chão). Por que isto é arte?
um destes
problemas energéticos mundiais.
Vamos passar então para seus
O que eu vejo como muito mais interes-
sante do que discutir o que é arte é dis-
artista vai selecionar para expressar só
aquilo que está dentro do formato que
para poder compreender sua estrutura.
Em geral, considera-se que, para que uma
Martin Creed é um artista que navega
em uma área cinzenta entre o fazer o e artistas que
encontros, os Dynamic Encounters. cutir a lógica interna das obras, levando ele conhece. Recentemente, visitamos o pessoa, artista ou não, possa fazer uma não fazer. Todo o trabalho dele tem a ver
Como surgiu a ideia?
A ideia surgiu em 1992. Eu estava com
em consideração sua eficácia ou não. Me
postando com toda a disponibilidade em
estúdio do artista Jeff Koons, em Nova
Iorque. O estúdio é uma loucura, uma
contribuição significativa para sua lingua-
gem, ela necessita de pelo menos 10 anos
com aspectos lúdicos desta questão. Ele
acredita que, num mundo repleto de coi-
faz uma
saudade da minha cultura inglesa e em
uma noite pensei: por que não convidar
frente a uma obra, se ela for boa, ela incita
um nível de reflexão. Algumas pessoas
empresa com 50 assistentes, departa-
mentos de computação, de moldagem,
de imersão nesta linguagem. E não se trata
de métodos artesanais. Tomando o exem-
sas, adicionar mais uma pode ser um ato
de redundância. Quando a gente pensa a
única grande
os alunos para um curso de um mês na
Inglaterra? Na época, foi um sufoco, não
dizem que não querem entender, querem
apenas gostar ou não gostar, senão estra-
de pintura... Isto tem uma vantagem,
pois se o Jeff tem uma ideia para uma
plo de Sol Le Witt, qual seria sua técnica,
uma vez que ele nunca toca nas obras?
obra de um artista, é importante lembrar
algumas questões: que toda a obra vem descoberta e
me dei conta da infraestrutura necessá- ga. Gosto é uma soma dos costumes e da determinada obra, que só funciona se E também, a evolução, o crescimento são de um desejo do artista de dizer algo, mas
ria, da organização. Também, na ocasião,
fui me dando conta de que sou limitado,
cultura e acho que não vale para julgar se
a arte é boa ou não.
for em porcelana, ele não vai ficar a vida
inteira aprendendo as técnicas da por-
sempre acompanhados de desconforto, o
desconforto de saber que estamos aquém.
naturalmente transborda de outras obras
já feitas por este artista e toca na historia
ficam repetindo
de que não posso fazer tudo, e então fui
entrando em contato com amigos, curado-
Ultimamente, com a introdução de novas
mídias, novas formas de fazer arte, vídeos,
celana: ele vai achar quem saiba fazer
e contratar. A vantagem é que o artista
Um dia, um aluno meu, muito ingênuo, me
perguntou: “Charles, será que um dia eu
da linguagem que ele trabalha. É ingênuo
achar que se pode saber sobre uma obra a vida toda”
res, artistas... Acabou sendo maravilhoso performances, etc., a arte ficou muito fica livre para criar, sem se limitar a uma vou chegar lá?” Ora, um dia você vai mor- sem saber sobre o artista, o contexto em
para todos os envolvidos. Já fizemos 30, 32 mais diversificada, abrangente. Pode linguagem. A desvantagem, suponho, é rer, mas você nunca vai ter aonde chegar. que ele trabalha e o contexto cultural e
viagens em 15 anos. No ano passado, em existir um limite técnico para a arte? que ele talvez não penetre em nenhuma Se você abre mão desta busca eterna por histórico em que ele se insere.
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