Este documento discute os limites do ativismo trans liberal em estados neoliberais. A busca por direitos trans como não discriminação e reconhecimento legal ocorre em meio a cortes de serviços públicos que afetam desproporcionalmente pessoas trans pobres. Além disso, o liberalismo queer reproduz hierarquias raciais através da violência policial contra não-brancos. O documento defende uma crítica do liberalismo trans que conteste as desigualdades da sociedade e considere a intersecção de raça e classe.
3. INTRODUÇÃO
Dois anos após a publicação da
primeira edição da Transzine, mui-
tas transformações se notaram no
campo político e institucional, nas
práticas, nos eventos e, principal-
mente, nas abordagens quanto à
realidade trans* no ativismo em
Portugal. Surgem novos coletivos
e associações com uma posição
despatologizante. Além disso,
florescem projetos e grupos que
exploram realidades além do bina-
rismo de género.
A 2ª edição da Transzine nasce, tal
como a 1ª, de uma iniciativa das
Panteras Rosa: frente de combate à
lesbigaytransfobia, e no contexto
da convocatória da Campanha
Stop Patologização Trans para
o Outubro Trans. O propósito da
mesma é a de se tornar um meio
de informação e reflexão em torno
das questões trans, mas também
de registo de ações pela despa-
tologização e de algum trabalho
produzi-do, nesse âmbito, pelas
Panteras Rosa.
Convidamos-te a fazer uma tour
por esta zine! Apresentamos
outras luzes para a reflexão sobre
discursos de resistência e afir-
mação trans que vão surgindo pelo
mundo: na cinzenta luz de contex-
tos socioeconómicos, políticas neo-
liberais, racistas e capacitistas, que
nos soterram dia-a-dia; na amarela
luz histórica sobre a qual caem for-
mas de normalizar e olvidar lutas e
na luz lilás em que podemos ver os
limites sob os quais encontramos
semelhantes e reivindicamos a
autodeterminação.
Tiramos um flash a momentos
interessantes na luta e também na
conquista de direitos: do Nepal,
onde uma alteração da lei parecia
florir num contexto improvável, a
Portugal, onde a Audição Parla-
mentar do Bloco de Esquerda para
alteração da Lei de Identidade de
Género nunca teve tantas pessoas
trans presentes e com uma posição
marcadamente despatologizante.
A nossa fotografia culmina no
registo do Bloco Trans na Mar-
cha do Orgulho LGBT de Lisboa,
também com uma forte posição
despatologizante, transfeminista e
uma numerosa presença trans.
Revelamos um conjunto de con-
tatos úteis, com a apresentação
de associações e coletivos com
trabalho trans* que surgiram no
último ano, redes sociais que nas-
ceram e ainda sítios para navegar
nos nossos corpos, desejos e senti-
dos de forma menos transfóbica e
4. fetichizante e potencialmente mais
empoderadora.
De mãos dadas com Carmo Gê
Pereira, exploramos uma forma
de fazer um stand-to-pee caseiro
e abordamos as implicações da
genderização binária das casas de
banho para a saúde física trans*.
Sabemos ainda que o stress,
fomentado por uma catalogação
simplista e binária e por uma
sociedade cissexista e transfóbica,
faz com que muit*s de nós não
consiga ter um acesso pleno a
estas instalações públicas.
Fazemos uma pequena pausa para
um café e um poema e seguimos
para uma reflexão sobre família,
rejeição e homicídios mascarados.
Surgem questões sobre famílias
escolhidas, ou ainda, a criação de
redes de intimidades múltiplas
depois de momentos de rutura. As
histórias de jovens trans*que são
empurrad*s para um modelo
cis-heterossexista e patriarcal que
leva vári*s à morte obrigam-nos
a ver o suicídio trans* de outra
forma. Santiago Martinez foi a mais
recente vítima da sociedade trans-
fóbica, sobre o qual as Panteras
Rosa realizaram um comunicado.
Finalizamos com uma breve
apresentação da Campanha Stop
Patologização Trans, por forma a
apresentar a mesma e contextuali-
zá-la nesta Zine.
Agradecemos, desde já, toda
a colaboração, quer de quem
demonstrou vontade mas por
impedimentos de precariedade
temporal não conseguiu colaborar,
quer de quem teve condições e fez
das tripas-coração para contribuir
com ilustrações, textos, traduções e
contactos.
Esperamos que esta Transzine te
faça sentido e que abra
novas portas e janelas nesta nossa
viagem sem destinos obrigatórios.
Afinal,“Not all who wander are
lost”(tradução: nem tod*s *s que
vagueiam estão perdid*s)
Boas leituras!
NOTAS IMPORTANTES
NOTA DE LINGUAGEM
A linguagem desta zine tenta ser
inclusiva e não-binária. O que quer
isto dizer? Que evitamos mascu-
linizar e/ou feminizar os pronomes
e as palavras. Escolhemos usar o *
(asterisco) porque sabemos que
existem múltiplas identidades e
pronomes pelos quais preferimos
que nos tratem. Desejamos que
5. toda a gente sinta que a sua identi-
dade e pronome escolhido são
igualmente visíveis e valorizados
(quer sejam enquanto“ele”,“ela”
ou outras opções). Acreditamos,
ainda, que esta interrogação da
linguagem é uma parte importante
de uma prática trans* crítica.
A utilização de trans* (com asteri-
sco) ou trans (sem asterisco) é feita,
regra geral, indiscriminadamente
por esta utilização estar a ser
objeto de reflexão e pela edição
não ter tomado nenhuma medida
normativizadora dos textos nesse
sentido. Todavia, quando utilizada,
segue a intenção de Lucas Platero
(2014), de marcar a diversidade
de experiências, vidas e conheci-
mentos, por forma a incluir uma
multitude de corpos e vidas tidas
como fora da norma e/ou que a
rejeitam.
NOTA DE TRADUÇÃO
Uma nota prévia comuns aos tex-
tos de origem anglo-saxónica que
traduzimos para esta publicação
é sobre as nuances na utilização
do termo“queer”. Ao contrário do
ativismo político mais radicalizado,
de base feminista, que tem por
referência a“teoria queer”-
baseada na fluidez de identidades
sexuais e de género e da crítica da
homonormatividade dos movi-
mentos LGBT tradicionais institu-
cionalizados – nestes contextos
“queer”é usado como referência
a esses mesmos movimentos
institucionalizados que buscam
uma“normalização”baseada em
binarismos identitários rígidos.
Fazemos então uma nota para as
nuances na interpretação do termo
“queer”que deve ler-se, quando
assinalado e contextualmente,
como“LGBT”, pois referem-se aos
movimentos tradicionais. Pedimos
a* leitor* redobrada atenção para
não se confundir esse temo com a
denominação política radical origi-
nada pela“teoria queer”.
7. FICHA TÉCNICA
Selecção de Textos:
Roger
Tradução:
Irina Castro
Paula Gil
Sérgio Vitorino
Criações originais:
Pip
Carmo Gê Pereira
Sacha
João David
Revisão:
Sérgio Vitorino
Mic
Design e paginação:
M.
8. PERSPETIVAS:
TRANS A OUTRAS LUZES
OS LIMITES
DO LIBERALISMO TRANS
por Nat Raha
[21 Setembro 2015]
“Sob Blair e Brown, eu sentia-me, nor-
malmente, irritada e decepcionada,
agora, eu estava desesperada e der-
rotada. Ao trabalhar na PCT, a forma
como esta foi desmembrada e rebaixada,
ao observar como o financiamento das
artes, do desemprego e invalidez, os
serviços de saúde mental e as redes de
apoio, para mulheres e pessoas LGBT,
foram impiedosamente cortadas, muitas
vezes disse a amigos que um dos proble-
mas que tive com a coligação era nunca
poder decidir qual o deputado que mais
desprezava. Ao argumentar a favor da
abolição da Lei de Direitos Humanos,
Theresa May tinha dito “o imigrante ile-
gal que não pode ser deportado porque -
e eu não estou a inventar isto - tinha um
gato de estimação ‘, e ela estava sempre
perto do topo da minha lista de ódio”.
Juliet Jacques, Trans: Uma memória
Em 2011, Juliet Jacques recebeu
um convite para o lançamento da
“Diversity Role Models”(Diversi-
dade de Modelos) nas Casas do
Parlamento, uma instituição de
caridade que visava combater
o“bullying”homo / bi / trans-
fóbico nas escolas. No seu livro de
memórias Trans, Jacques recorda:
“Eu gostava que tivéssemos tido
o mesmo no Oakwood, pensava
eu – mas podia ir a um evento pro-
movido pelo ministro conservador
do Interior?”Esta situação capta a
contradição de lutar pelos direitos
trans em estados neoliberais. No
final, Jacques decidiu participar de
forma pragmática, com a intenção
de evitar a oradora convidada - a
Deputada Theresa May.
Não devemos esquecer que o
nosso actual momento histórico,
apelidado de“o ponto de inflexão
transgénero”na luta pelos direitos
e reconhecimento social trans*,
é também o da consolidação do
sonho Thatcher. Enquanto direitos
como o crime de ódio e a proteção
do emprego, cuidados de saúde,
reconhecimento de género legal
(embora limitado aos géneros
binários no Reino Unido), ao lado
de representação positiva da
comunicação social, podem ter
um impacto positivo na vida trans,
ativistas trans* têm-se centrado
sobre estas questões numa era de
austeridade de género, violência
estatal racista e políticas fron-
teiriças. Quais são as implicações
da prossecução de direitos trans
sob estes amargos tempos de
perda de direitos?
9. Esta forma de política trans - que
pode ser descrita como‘Liberal-
ismo Trans’argumenta que os direi-
tos transgénero são a solução para
os problemas que enfrentam as
pessoas trans* e permitirão a nossa
participação na sociedade capi-
talista (Ocidental); que, a par de
direitos, julga que a representação
positiva na comunicação social é
o melhor método para conquistar
o mundo cisgénero e melhorar a
posição dos assuntos trans* dentro
da diversidade multicultural de
uma sociedade aparentemente
igual. A base deste“igualdade”
é fictícia: os estados neoliberais,
onde essa luta é feita, reproduzem
divisões socioeconómicas ao longo
das linhas de intersecção de etnia
e classe, género, sexualidade, (d)
eficiência, nacionalidade e status
de imigração. Sem contestar a
desigualdade existente da socie-
dade, o ativismo trans inspirado
nas iniciativas liberais“bem suce-
didas”pelos direitos das lésbicas e
dos homossexuais - como o traba-
lho desenvolvido pela Campanha
de Direitos Humanos nos Estados
Unidos e Stonewall UK- defensores
de inclusão social, ocorre com e
através da privação de direitos aos
mais pobres.
Destacando a busca dos direitos de
LGBT como uma política de privilé-
gio, o trabalho de Lisa Duggan,
Jasbir Puar, David Eng, Lauren Ber-
lant, Robert McRuer e outros teóri-
cos queer fornecem uma crítica do
liberalismo queer1
. Eles enfatizam
que o reconhecimento político
LGBT contemporâneo privilegia
a intimidade doméstica e o casal
monogâmico,“boa cidadania”, e
obrigatoriedade de“não deficiên-
cia”- afirmando as relações de pro-
priedade privada que se agregam
em torno de privilégios socioe-
conómicos. Mas essa crítica parece
ter mudado pouco nas formas mais
visíveis de ativismo trans e LGBT
cuja luta se foca numa política de
respeitabilidade e assimilação.
Paralelamente, assiste-se a uma
reestruturação social e material
violenta do capitalismo pós 2008.
A austeridade trouxe um aumento
da redistribuição da riqueza para
os mais ricos, cortes e privati-
zação dos serviços do Estado. Os
cortes na segurança social, apoio
de inaptidão e financiamento do
terceiro sector afetam despropor-
cionalmente as pessoas trans e LGB
mais necessitadas: a dizimação de
assistência judiciária, que permite
o acesso aos direitos exigidos; o
aumento considerável das pessoas
sem-abrigo- 25% d*s sem-abrigo
jovem identifica-se como LGBTQ - e
a privatização do subfinanciado
10. Serviço Nacional de Saúde. Jun-
tamente com as transformações
das condições qualitativas e
quantitativas da força de trabalho
- incluindo salário, com desem-
prego fortemente racializado - e
reprodução social, este desinvesti-
mento sistémico no sector público
tem tido um impacto dramático na
qualidade e possibilidades de vida
trans.
UM NEGÓCIO MINADO PARA *S
TRABALHADOR*S TRANS, 2013
Além disso, as condições de po-
ssibilidade do liberalismo queer
são cúmplices na reprodução
contínua de hierarquias raciais pe-
los estados neoliberais Ocidentais
- dentro das suas fronteiras através
da violência polícia normalizada,
do complexo industrial da prisão,
da injustiça legal e da detenção de
imigrantes, a par da destruição d*s
“outr*s”racializada*s através do im-
perialismo e de guerras rentáveis.
Tais acções são responsáveis por,
e também serão propostas como
“soluções”para, a crise atual da
Europa Fortaleza.
A violência de Estado e a injustiça
contra pessoas não-brancas -
mulheres trans* não-brancas em
particular - revelam a insuficiência
do liberalismo trans que espelha
a política do liberalismo LGBT. A
brutalidade policial quotidiana, ra-
cializada e os assassinatos de pes-
soas negras na América, a matança
e a perseguição das mulheres trans
não-brancas, continuam, e continu-
arão, a ser levados para a opinião
pública através de protestos,
bloqueios e revoltas. As identifi-
cações e rugas racistas tornaram-
se uma norma nas ruas de áreas
urbanas no Reino Unido e EUA,
tendo como alvo principalmente
adultos, adolescentes e crianças
negr*s. Além disso, somos teste-
munhas da deportação em curso
de requerentes LGBT de asilo, cujos
apelos legais são contestados pelo
Ministério do Interior com intole-
rância como a bifobia, no caso de
Aderonke Ronnie Apata. Enquanto
a violência do Estado está a ser
desafiada pelos novos movimentos
de libertação negra na América, e
pelas pessoas negras e migrantes
na Europa, as organizações liberais
LGBT continuam, na generalidade,
em silêncio sobre estas questões,
quando, por exemplo, o ativismo
trans desde os motins de Stonewall
tem sido uma luta contra o racismo
e pela libertação de género.
Por exemplo, uma declaração con-
junta da Human Rights Campaign
e a Trans People of Color Coalition
chamou os recentes assassinatos
11. de mulheres não-brancas nos EUA
uma“crise nacional”. No entanto, o
manifesto do relatório só poderia
sugerir mais políticas de inclusão
social trans- sugestões politicas
que não abordavam diretamente
as desigualdades estruturais de
origem racista ou de classe, nem
desafiavam a violência racializada e
de género, especificamente dirigi-
da a mulheres trans não-brancas.
Enquanto muitas pessoas trans*
permanecem em trabalhos mal
remunerados e precários, o libera-
lismo trans de colarinho branco
permitirá o sucesso dessas vidas
trans consideradas aceitáveis para
uma sociedade multicultural em
expansão, em que as empresas
entendem a diversidade como
boa prática e indivíduos trans
como trabalhador*s altamente
produtiv*s. E, como o ativismo
trans se torna o ativismo profi-
ssional, alimentado no complexo
industrial das ONGs, cujos financia-
mentos podem limitar as priori-
dades e formas de apoio para as
pessoas LGBT.
No entanto, lutas de sobrevivência
imediata, apoio mútuo, questões
laborais, e uma política feminista
interseccional, anticolonialista,
anticapitalista e abolição da prisão
existem em oposição ao sistema
Ilustração de Marta Calejo
12. e estatuto liberal. Esta tem sido a
bandeira do Transfeminismo radi-
cal, com o entendimento de que
um outro mundo é necessário e
já está a ser criado no qual vidas
trans podem florescer. Esta é uma
praxis de vida que entende o
quotidiano de vidas trans como
lutas contra a transmisoginia e
sexismo, a supremacia branca e
trabalho precário; que entende o
herstory1
de lutas trans e queer
como enraizada nestas. Esta é uma
política que deve compreender a
centralidade do anticolonialismo,
das lutas de migrantes e das lutas
de libertação negra para a transfor-
mação do mundo; que as mulheres
não-brancas - e as nossas experiên-
cias - são fundamentais. Este é
um ativismo que entende que a
solidariedade para com as pessoas
com deficiência e trabalhador*s do
sexo devem ser parte da sua cons-
tituição; que suporta e constrói
alianças com as pessoas que lutam
por mais seguras e auto-determi-
nadas condições de trabalho para
trabalhador*s do sexo, livre de as-
sédio policial, muit*s dos quais são
pessoas trans - e que cria espaço
para a articulação de conhecimen-
2
N.T. inversão de History (História, com-
posição de“his”= ele com“story”= história),
da realização de uma História focada no
homem como sujeito único e fundamental
de registo, para herstory (“her”= ela) .
tos, experiências e criatividade
daquel*s mais marginalizad*s num
mundo capacitista. Esta é uma
prática mundial de tomada de
posição, articulando uma cultura
politizada refrescada, à medida que
desenvolvemos uma consciência
de diversas experiências trans,
expressa através da arte, poesia,
cinema e performance. Esta é uma
política e praxis trans que responde
aos desafios do nosso tempo, para
desafiar as desigualdades funda-
mentais, estruturais da“sociedade
errada”a que Jacques astutamente
destaca que estamos pres*s.
Nat Raha é uma poeta e ac-
tivista queer / trans, que vive
no sul de Londres. A sua poesia
inclui ‘[of sirens / body & fault-
lines]’ (Veer Books, em breve),
“Countersonnets” (Contraband
Books, 2013) e ‘mute exterior
intimate”(Oystercatcher Press,
2013). Publicou em jornais e
apresentou o seu trabalho inter-
nacionalmente. Atualmente está
a fazer o seu Doutoramento em
Marxismo, teoria queer e poesia
contemporânea na Universidade
de Sussex.
FONTE: www.versobooks.com/blogs/2245-
the-limits-of-trans-liberalism-by-nat-raha
13. Criação original de Pip, inspirada no
artigo“Sylvia Rivera - Ela foi mais do
que Stonewall”.
Quando o nome Sylvia Rivera é
mencionado, um dos primeiros
pensamentos, comentários ou
reflexões que se tem é, sem dúvida,
que “Sylvia é amplamente reconhe-
cida pelo atirar do primeiro sapato
(ou, dependendo das recordações,
a primeira ou a segunda garrafa,
cocktail Molotov, etc) em Stonewall.”
A partir desse ponto, a memória e
análise de Sylvia é fortemente in-
fluenciada por este momento pivot
na história queer1. Muito pouco
daquilo que é recordado, falado
ou escrito sobre Sylvia se desvia
muito do seu envolvimento em
Stonewall e no movimento LGBT
de condução predominantemente
SYLVIA RIVERA - ELA FOI
MAIS DO QUE STONEWALL
por jerimarie liesegang
2010
14. branca e de classe média que se
lhe sucedeu. E, tristemente, mesmo
no interior da comunidade Trans* à
qual Sylvia dedicou a sua vida, ela é
essencialmente branqueada, junto
com a marginalização ou mesmo
total omissão das suas políticas
radicais.
Contudo, como a maioria das
grandes figuras da história, Sylvia
foi uma verdadeira revolucionária
da justiça social, se não insur-
recta, uma figura cuja vida, ideias,
acções e palavras abarcavam uma
essência interseccional. Em 2007,
um artigo de Jessi Gan no Centro
Journal tinha por título “Ainda na
parte de trás do autocarro”: A luta
de Sylvia Rivera é um dos poucos
artigos que critica a memória de
Sylvia Rivera por muitos escritores
à luz da sua clara omissão da in-
terseccionalidade de Sylvia. Sylvia
permaneceu predominantemente
uma figura desconhecida – ape-
sar disso, o seu activismo, os seus
escritos e a sua influência dentro
do movimento“gay e lésbico”de
Nova Iorque do final dos anos 60 e
início dos 70, embora breves, foram
de grande influência. Foi só com a
publicação de Stonewall, de Martin
Dubermans, que o seu papel nos
motins de Stonewall se tornou
amplamente conhecido. E, não
muito depois disto, Sylvia ressurgiu
no meio nova-iorquino com a sua
revolta e paixão inatas, lutando
ruidosamente pela juventude
queer sem-abrigo e pelas pes-
soas Trans não-brancas, até à sua
prematura morte, em Fevereiro de
2002. No entanto, mesmo após a
sua morte, os nomes Sylvia Rivera e
Stonewall estavam tão interligados
que muito do seu trabalho revolu-
cionário pela justiça social nunca
foi reconhecido. Felizmente, devido
à extensa pesquisa e subsequente
publicação de The Gay Liberation
Movement in New York (O Movi-
mento de
Libertação Gay em Nova Iorque),
Stephan L. Cohen coloca em
contexto um retrato de Sylvia que
vai muito para além de Stonewall
e nos permite um relance sobre a
sua vida e as suas acções através de
um excelente tratado em S.T.A.R.
(Street Transvestite Action Revo-
lutionaries – Travestis de Rua em
Acção Revolucionária).
Com o surgimento das políticas
Transgénero durante os anos 1990,
Sylvia tornou-se na matriarca deste
movimento ressurgente. Porém, a
sua envergadura neste movimento
foi antes de mais devida ao seu
documentado papel nos motins
de Stonewall, o que foi utilizado
por bastantes activistas trans* para
exigirem um assento no movimen-
15. to gay e lésbico e a inclusão das
pe-ssoas transgénero nas organi-
zações e lutas pelos direitos civis
gays e lésbicas existentes.
Contudo, regressando à análise
de Jessi Gan, reproduzo o excerto
abaixo, que vai ao coração do
facto de Sylvia ter sido muito mais
do que Stonewall. De facto, os
alicerces da rebelião de Stonewall
reflectem mais as questões raciais e
de classe enfrentadas pela juven-
tude queer sem-abrigo do que a
visão tradicionalmente abraçada
que permitiu a gays e lésbicas
branc*s de classe média verem-se
a si mesm*s como resistentes e
radicais.
“… tal como“gay”tinha excluído
“transgénero”no imaginário de
Stonewall, a alegação de que“tam-
bém houve pessoas transgénero
em Stonewall”possibilitou as suas
próprias omissões de diferença e
hierarquia dentro do termo“trans-
género.”Rivera era pobre e Latina,
enquanto algum*s activistas trans*
que fizeram reivindicações políti-
cas com base na sua história eram
branc*s e de classe média. Ela foi
louvada por se tornar visível como
trans*, enquanto a sua visibilidade
racial e de classe era simultanea-
mente oculta. Alguns projectos de
recuperação oleados pela memória
de Rivera – no seu esquecimento
simultâneo das lógicas suprema-
cista branca e capitalista que
construíram a sua alteridade raciali-
zada e de classe – serviram para
unificar as políticas transgénero em
torno de um eixo genderizado. As
omissões permitiram a* activista
trans* Leslie Feinberg, no seu livro
Trans Liberation (Libertação Trans),
invocar uma ampla coligação de
pessoas unidas exclusivamente
por um desejo político de levar o
género“para lá do azul ou rosa.”
Esta abordagem pluralista celebrou
a luta de Rivera como um“rosto”
num mar de rostos do“movimento
trans”. Da mesma forma, a anto-
logia“GenderQueer: Voices from
Beyond the Sexual Binary”(Vozes
de além do Binarismo Sexual),
apelou a um“movimento de gé-
nero”que garantiria a“igualdade
plena para tod*s *s american*s,
independentemente do género.”
A inclusão da história de vida de
Rivera na perspectiva Gender-
Queer, largamente branca, uma
“diversidade”multicultural e auten-
ticidade histórica para a juventude,
identidade unitária não marcada
racialmente,“genderqueer”, emer-
gida do ambiente universitário de
classe média. Mas a supressão da
interseccionalidade em nome da
fabricação de mitos unitários serviu
para reinscrever outros mitos. O
mito de que toda a opressão trans*
16. é igual deixou o capitalismo e a
supremacia branca por desafiar,
excluindo frequentemente alinha-
mentos unitários não ancorados
na análise de género e permitindo
simultaneamente às pessoas trans-
género evitarem considerar a sua
cumplicidade na manutenção de
sistemas de opressão simultâneos
e entrelaçados. Rivera é, para além
disso, profundamente importante
numa historiografia Latina, trans-
género e queer na qual as histórias
das pessoas transgénero não-bran-
cas são poucas e distanciadas.
(…)
Eu gostaria, no entanto, de concluir
com o seguinte excerto de Cathy
Cohen, como detalhado no grande
artigo de Jessi Gan sobre Sylvia no
Centro Journal.
A cientista política Cathy Cohen
sugeriu que as políticas queer
falharam, não estando à altura da
sua promessa inicial de transfor-
mação radical da sociedade. Mais
do que libertar de sistemas de
opressão, Cohen diz que a agenda
queer procurou a assimilação e a
integração nas instituições domi-
nantes que perpetuaram esses
sistemas. Agarrando-se a um único
modelo de opressão que divide
o mundo em“hetero”e“queer”
e insiste que *s hetero oprimem
enquanto *s queer são oprimid*s,
as políticas queer negligenciaram
a análise de como“o poder informa
e constitui sujeitos privilegiados
e marginalizados em ambos os
lados desta dicotomia.”Por exem-
plo, ao fechar os olhos à forma
como o Estado continua a regular
as capacidades reprodutivas das
pessoas não-brancas através da
encarceração. Cohen sugere que
isto se deve ao quadro teórico
das políticas queer se amarrarem
a categorias identitárias rígidas
e redutoras que não permitem
a possibilidade de exclusões
e marginalizações dentro das
categorias. Sendo igualmente
colocada de parte a possibilidade
de as próprias categorias poderem
ser instrumentos de dominação
necessitados de destabilização e
reconceptualização.
Original em http://queers-
withoutborders.com/wpmu/
blog/2010/09/05/sylvia-rivera-
she-was-more-than-stonewall-
2/#more-1305
17. TRANSITAR
DESCOLONIZAR CORPOS
TRANS*
João Manuel de Oliveira
[investigador em estudos de género e
teoria feminista/queer ISCTE-IUL]
Como habitar um género sem um
certo grau de horror? Denise Riley
Uso o termo pessoas trans*, assim
prefixo mais o asterisco, como
Lucas Platero (2014), sinalizando
a diversidade de experiências, de
vidas e de conhecimentos, tendo
em conta que o termo pode e deve
incluir corpos e vidas que são tidas
como fora da norma, que não que-
rem a norma, ou que querem estar
noutro género sem relação com o
género que lhes foi atribuído. Não
falo de identidades, porque são ao
mesmo tempo demasiado vastas,
demasiado estreitas, demasiado
fixas. Falo de expressões de género,
que são aquilo que as pessoas
querem que elas sejam. Falo de um
género que nunca se é, mas que se
faz por ser. Um género ou mais do
que um, (podemos ter mais do que
um) e daí esses termos identitários
me parecerem uma linguagem
muito gasta para falarmos do
mesmo. E se funcionarmos, como
algum*s de nós, por desidentifi-
cação? Por não me adequar, por
não querer estar, ou por recusar.
Como o Bartleby, personagem de
Herman Melville,“I would prefer
not to”, a usar uma sagaz expressão
que diz muito menos do que a
personagem sente, mas por uma
espécie de sarcasmo encontra no
“Eu preferia que não”uma forma
de resistência. Uma resistência em
potência, condicional.
A opção pelo trans*, termo guarda
chuva e pouco preciso, é que ele
parece-me ter a possibilidade de
abrir a porta à ideia de multitude.
Uma multidão de gente, desunida
na identidade (porque ela é dema-
siado vasta ou demasiado estreita),
unida no seu desfasamento face
à norma, no seu rompimento da
mesma, na sua recusa em ser tão
somente um corpo errado. Não há
nenhum corpo errado. Errados são
os termos em que esta questão é
posta. Há corpos que não cor-
respondem ao nosso projeto de
corpo, ou de género, ou os dois.
Para isso, se inventou a tecnologia.
Exija-se, altere-se, mostre-se como
a tecnologia serve também para
deixar as pessoas a viverem mel-
hores vidas, sem nenhuma obrig-
ação de se chegar a ser algo. Corpo
também teste, projeto do que
queremos ser. O único critério deve
o de Espinosa: perseverar na nossa
singularidade, naquilo que quere-
mos ser e que sentimos que somos.
18. Cabe ao Estado garantir isso. E não
nece-ssariamente nenhuma forma
de autoridade externa a dizer-te
quem és e como podes ser mais
ou menos mulher ou homem.
Não têm nenhuma base científica,
porque até agora nunca definiram
mulheres ou homens ideais, sequer
masculinidade e feminilidade.
E há mais géneros do que isso.
Muitos mais. Numa estimativa
conservadora, uns mil. E um: o teu.
Assim o género passa a ser não só
critério de reconhecimento social,
fundamento para expectativas
e para comportamentos. Passa
Ilustração de Marta Calejo
19. a ser uma potência, aquilo que
cada pessoa sonhou para si e que
deve ser acarinhado, reconhecido
e valorizado como diverso, pois
que numa democracia não é nem
pode ser uma decisão de médic*s,
psicólog*s, psiquiatras assistentes
sociais, etc, quem pode ser o quê.
A decisão pertence ao domínio da
auto-determinação.
Dentro desse arco-iris (obrigado,
Lorelay Fox, pela metáfora) que é o
género, e a viagem que tod*s faze-
mos dentro desse arco-íris, sejamos
nós auto-definidos como trans*
ou não, há muitas possibilidades,
algumas das quais mais reconhe-
cidas que outras de acordo com
critérios estéticos, políticos e certas
equivalências entre sexo e género.
O problema é que essas equivalên-
cias só existem para as pessoas
que acreditam em corpos errados,
em fronteiras fixas entre homens
e mu-lheres e na necessidade de
catalo-gar essas identidades, a
que eu prefiro que pensar como
expressões. Como explica Judith
Butler, a esse sexo que é visto como
matéria é afinal o género que lhe
dá sentido e leitura. Obviamente
a sociedade que é fundamentada
numa ideologia sexista, genderi-
zada, anti-trans, conformista do
ponto de vista de género e po-
liticamente heterosse-xual, dá um
tratamento diferencial consoante a
percepção que tem do género da
pessoa. O género lido pelas lentes
da norma implica que quem não
seja lid* como apresentado uma
suposta continuidade entre sexo e
género é tratad* de forma discrimi-
natória, violenta e por vezes, não
raramente, pode inclusivamente
acabar mort*. Brandon Teena,
Gisberta, Diana Sacayan, entre
tant*s outr*s, tombad*s nesta
guerra do género.
Contudo, este risco precisa de
tratado no quadro da democracia
que tem que ser estendida às pe-
ssoas trans* e um primeiro passo
é a auto-determinação, inscrita na
lei, a necessidade de descolonizar
os corpos, que não sejam definidos
por outros, mas que sejam a sua
singularidade. Daí a dificuldade
da terminologia. Por isso prefiro
pensar em expressões para que
as polícias de género que querem
definir quem é o quê, não pos-
sam chegar a fazê-lo. Que esses
projetos de corpos e corpos sejam
perseverar no projeto de quem
querem ser, com o uso ou não de
tecnologias de género que nos
aproximem dessa necessidade.
Auto-determinad*s, livres dentro
de democracias que são também
democracias de género ou não são
democracias.
20. Durante as últimas seis décadas,
o Nepal, um dos cinco países
que abrange a cordilheira dos
Himalaias, viveu uma situação de
instabilidade política que permitiu
o afastamento da monarquia e o
estabelecimento de um Estado
verdadeiramente democrático. A
24 de dezembro de 2007 foi assim
anunciado o acordo de abolir - com
implementação a partir de 2008
- os 293 anos de regime monárqui-
co, permitindo o surgimento, e
eleição, da Assembleia Constituinte
do Nepal. Meses mais tarde, a 28 de
maio de 2008, o Nepal foi então de-
clarado de República Democrática
Federal. Apesar de tudo, demora-
ram mais de 7 anos até que a nova
Constituição fosse ratificada, algo
que aconteceu a 16 de Setembro
de 2015.
Embora a luta pela democracia
seja em si mesma uma importante
caminhada, a cereja no topo do
bolo deste processo de luta pela
demo-cracia, é o facto de o Nepal
se tornar assim o primeiro país do
continente Asiático a conceder
constitucionalmente igualdade
de direitos e proteção contra a
discriminação à sua comunidade
LGBT. O Nepal passa assim a
estar na Lista Mundial de países,
constituída por um punho de
Estados entre os quais a África
do Sul (1996) e o Equador (1998),
que aprovaram leis que garantem
direitos e proteção a todos/as os/as
cidadãos/cidadãs LGBT. Algo que
mereceu o comentário por parte
da HRC (Human Rights Campaign)
de estarmos perante um momento
histórico para todos os países
Asiáticos.
O que diz a nova Constituição do
Nepal:
Artigo 12º- *s cidadã*s vão poder
escolher a identidade de género
que constará nos seus docu-
mentos de cidadania. As opções
disponíveis são correspondentes
com o sexo masculino, feminino ou
outro.
Artigo 18º - afirma que as minorias
sexuais e de género não serão alvo
de descriminação de Estado, nem
FLASH DE 2015
NO MUNDO
Nepal
NOVAS LEIS ANTI-DISCRI-
MINAÇÃO LGBT NEPALESA
DEIXAM OCIDENTE E ÍNDIA
PARA TRÁS
21. do Poder Judiciário na aplicação
das leis. O artigo acrescenta ainda
que o governo pode produzir dis-
posições especiais, através de leis,
que permitam proteger, capacitar e
promover os direitos das minorias
de sexuais e de género, bem como
de outros grupos minoritários ou
marginalizados.
Artigo 42º – lista as minorias sexu-
ais e de género entre os grupos
com direito a participar nos
mecanismos de Estados e nos
serviços públicos com base no
princípio da inclusão.
IMPLICAÇÕES
No início deste ano, o Nepal já
havia reconhecido a sua comu-
nidade transgénero ao permitir
que uma terceira categoria de
“outros”constasse nos passaportes,
para além das categorias binárias
existentes de“homem”e“mulher”.
Após a destruição que assolou,
pós-terramoto, o Nepal, vários
foram os campos de apoio criados
para acolher membros da comuni-
dade LGBT de forma a garantir um
ambiente de maior conforto. Neste
sentido, as recentes inclusões na
constituição nepalesa estão em
conformidade com os pequenos
passos já dados neste país dos
Himalaias.
Segundo Sunil Babu Pant, funda-
dor da Blue Diamond Society e o
primeiro deputado federal aberta-
mente gay de um parlamento na
Ásia, “Esta nova Constituição deixa
claro que podemos nos orgulhar
das nossas identidades LGBT, e que
podemos ser orgulhos*s cidadã*s
do Nepal [...] Esta vitória é apenas o
começo do nosso longo caminho em
direção à plena igualdade. Estamos
prontos/as para ir além da discrimi-
nação, da violência e da exclusão
do passado, e continuarmos com
a promoção de uma ainda maior
integridade, responsabilidade e dedi-
cação contribuindo para o processo
de construção do estado-nação. Tra-
balharemos em conjunto com com
*s noss*s aliad*s internacionais e no
Nepal, para construir o nosso país,
um novo, inclusivo e próspero Nepal”.
Ty Cobb, diretor da HRC Global felici-
tou ainda a comunidade LGBT nepa-
lesa e su*s aliad*s por “esta vitória
histórica, e pela esperança de ver
outros estados da Ásia, e do mundo,
tomarem medidas semelhantes para
assegurar a igualdade jurídica plena
para seus/suas cidadãos/ãs LGBT.”
Embora não haja uma menção
direta ao casamento entre pessoas
do mesmo sexo na nova constitui-
ção, todas as questões relacionadas
ao casamento estão programa-
das para virem a ser tratadas na
22. fotografia da Manifestação organizada pela ExisTrans em Outubro 2015, em co-
ordenação com a Campanha Stop Patologização Trans (origem desconhecida)
futura revisão do código civil. Uma
situação que permitirá instigar
uma ampla campanha com vista
à legalização do casamento entre
pessoas do mesmo sexo, tal como
aconteceu na África do Sul.
LEGISLAÇÃO INTERNACIONAL
DOS DIREITOS LGBT:
A julho de 2015, são 72 - bem
como cinco jurisdições subnacio-
nais - os países que têm leis que
criminalizam a homossexualidade;
a maioria deles localizados na
Ásia e em África. Apenas em 19
países no mundo há igualdade no
casamento, e em 2 o casamento
entre pessoas do mesmo sexo é
apenas legal em determinadas
jurisdições. No entanto, são ainda
75 os países que criminalizam
relações entre pessoas do mesmo
sexo, e em 10 destes, as relações
são consideradas um crime punível
com pena de morte, e são centenas
as pessoas transgénero que são
assassinadas todos os anos.
Índia
A secção 377 do Código Penal
Indiano foi introduzida durante
o domínio britânico na Índia. Em
1860, o CPI 377 era lido na seguinte
forma:
Delitos não-naturais: Quem
23. voluntariamente tem relações
carnais contra a ordem da natureza
com qualquer homem, mulher ou
animal, será punido com pena de
prisão perpétua, ou com penas
de prisão de outras tipologias que
podem se estender por dez anos e
também estará sujeito à multa.
Isto significou que uma ampla, em-
bora minoritária, comunidade que
faz parte da cultura indiana desde
tempos imemoriais fosse declarada
de criminosa com apenas um
golpe de caneta.
Este legado colonial está ainda
muito presente no nosso país [Ín-
dia], e apesar do raio de esperança
que se avizinhou quando a Corte
Superior de Nova Deli decidiu anu-
lar a secção 377 do Código Penal
Indiano (descriminalizando assim
a homossexualidade), essa espe-
rança foi de curta duração pois em
2013 a Suprema Corte rejeitou a
decisão da Corte Superior de Deli.
Sendo a maior democracia no
mundo, nós [as pessoas da Ín-
dia] deveríamos ser, idealmente,
portadoras da tocha da defesa dos
direitos desta comunidade minori-
tária, no entanto permanecemos
ainda muito atrás. Esperamos sin-
ceramente que possamos aprender
com o Nepal, e forjemos leis e um
estatuto constitucional igualitário
a esta comunidade que enfrenta
traumas físicos e emocionais,
custódia policial, abusos, violações
e assassinatos numa base diária ao
longo das suas vidas.
Original em http://thelogicalindian.
com/news/nepals-new-non-dis-
crimination-lgbt-laws-leaves-even-
india-the-west-behind/
24. EM PORTUGAL
Audição Parlamentar promovida
pelo Bloco de Esquerda
“Pessoas Trans e intersexo: que
reconhecimento e que novos
direitos?”
Com o objetivo de debater a
situação das pessoas trans e
intersexo em Portugal, o Bloco de
Esquerda promoveu uma audição
pública, que teve lugar na
Assembleia da República no dia 5
de maio, às 17h30.
“A audição parlamentar do Bloco
de Esquerda sobre direitos trans
e intersexo, que decorreu a 5 de
Maio na Assembleia da República,
foi uma ocasião histórica para o
movimento trans e intersexo e todas
as pessoas e coletivos que lutam
pelo reconhecimento das identi-
dades e expressões de género, e foi
revelador do ânimo e empenho das
novas gerações de ativistas trans
e intersexo que têm surgido nos
anos recentes, posteriormente à
aprovação da lei que hoje vigora.
Dezenas de pessoas trans e intersexo
tomaram pela primeira vez a palavra
na Assembleia da República para,
em nome próprio, denunciarem o
policiamento do género a que são
sujeitas por um sistema médico de
visões estreitas e ultrapassadas, a
inaceitável e errada classificação de
“doença mental”, o incumprimento
evidente das boas práticas médicas
internacionalmente reconhecidas - e
consequentes arbitrariedades -, a
pressão, dissuasão, infantilização
e chantagem operadas por um
sistema médico que exerce relações
25. de poder a ponto de querer decidir
pelas pessoas sobre os seus corpos
e identidades. Denunciou-se, ainda,
as operações à nascença de pessoas
intersexo, o não-reconhecimento
da diversidade das identidades de
género, o desrespeito pela Lei atual
por parte da Ordem dos Médicos e
do Instituto do Notariado, além dos
sérios obstáculos sociais, laborais ou
de acesso à saúde enfrentados por
estas comunidades.
Comumaclaramaioriadevozes
afavordadespatologizaçãodas
identidadestranseintersexoeda
autodeterminaçãodaspessoastranse
intersexo,estáparabreve,eseráapre-
sentadopeloBEaindanestalegislatura,
aapresentaçãodeumProjeto-Lei
inspiradonasleisargentina(http://
www.infoleg.gov.ar/infolegInternet/an-
exos/195000-199999/197860/norma.
htm)edeMalta(http://tgeu.org/wp-
content/uploads/2015/04/Malta_GI-
GESC_trans_law_2015.pdf),vistas
comoasmaisavançadasdomundo.”
- Panteras Rosa 07/05/2015
Umgrupodepessoastrans*,organi-
zadasnaspanteras,articulouentresi
asintervençõesproduzidasnesta
audiçãoequeseseguem,resumida-
mente.
26. INTERVENÇÕES
De Mi
(…) Nunca esperei ver tantas pes-
soas trans* reunidas num espaço,
como as que aqui estão hoje, a
discutir uma questão sobre as NO-
SSAS vidas.
(…) Não há nada que eu possa
dizer, aqui e agora, que faça jus
ao que é necessário dizer neste
momento. (…) Gostaria apenas de
explicar alguns termos e pen-
samentos que têm surgido inter-
nacionalmente em meios e grupos
ativistas trans*, da forma mais
objetiva possível. (…)
Em muitos países, como no Bra-
sil, nos E.U.A., em Inglaterra, em
Espanha, na Argentina, no Chile,
em França, na Holanda, na Bélgica,
na Austrália, entre muitos outros,
surge um ativismo trans* especí-
fico, com reivindicações diferentes
e fortes. Esta ação tem ultrapas-
sado fronteiras, especialmente no
que toca à representa-tividade e
aos discursos utilizados. Hoje em
dia, podemos ver atrizes e ativistas
trans* como a Laverne Cox ou a Ja-
net Mock nos televisores de nossa
casa. Hoje em dia, podemos ver
homens trans como o americano
Aydian Dowling ou o polonês Oli-
wer em artigos portugueses. (…)
Os termos que vou apresentar,
em seguida, não são estéreis. Eles
representam uma outra forma de
ver a realidade trans* e uma outra
forma das pessoas trans* olharem
para si e para o que as rodeia. É
uma forma de ter a sua voz ouvida
e de se nomearem e explicarem a si
mesm*s.
Estasideiasforamretiradasde
conteúdospedagógicosqueestãoa
serdistribuídosinternacionalmente
eamplamente,emgruposativistase
ADAPTED
FROM
SAMUEL
LURIE
27. organizaçõestrans*específicas(como
aTGEUouaTSR,entreoutros).
Peço agora que observem os es-
quemas divulgados no início desta
sessão:
Os quatro componentes apresen-
tados nos esquemas acima (sexo,
expressão de género, identidade
de género e orientação sexual) são
independentes entre si.
Sexo: características anatómicas e/
ou cromossómicas que apresenta-
mos quando nascemos.
Expressão de género: conjunto de
atos, expressões ou atividades que
são genderizadas pelos outros, mas
que também estão relacionadas
com a forma de nos expressarmos
FONTE:“Transgender Basics”, LGBT Community Center, em Nova Iorque
28. socialmente. (…)
Identidade de género: auto-per-
ceção do nosso género. O género
a que sentimos pertencer ou com
o qual nos sentimos identificad*s.
(homem, mulher, não-binári*, etc)
Orientação sexual: pessoa pela
qual nos sentimos atraídos. A
orientação sexual foi adicionada
no esquema para demonstrar a
diferença e independência entre
orientação sexual e identidade
de género, que são muitas vezes
confundidas.
O modelo tradicional (acima)
é o que é esperado e replicado
constantemente. Nele, espera-se
que, se um bebé nascer com o que
aparenta ser um pénis, ele terá de
agir de forma masculina, tem de
sentir ser homem e deverá sentir-
se atraído por mulheres. Por outro
lado, caso o bebé aparente nascer
com uma vagina, terá de agir de
forma feminina, deverá sentir-se
mulher e terá de sentir atração
por homens. Muitas pessoas não
se adequam a esse modelo, como
sabemos.
De acordo com a ideia de que
devemos adotar um modelo de
género mais lato e espectral, o
modelo tradicional não se adequa
à maioria das pessoas. Passo a citar,
“temos duas escolhas: ou muda-
mos as pessoas ou mudamos o
modelo.”(Carrie Davis, Organiza-
dora no LGBT Community Center).
Dado isto, conceberam-se algumas
definições:
Mulher trans* ou mulher trans-
género: pessoa que foi designada
homem à nascença mas que vive e/
ou se identifica como mulher.
Homem trans* ou homem trans-
género: pessoa que foi designada
mulher à nascença e que vive e/ou
se identifica como homem.
Género não-binário: Uma pes-
soa que não se identifica como
homem, nem como mulher, exclu-
sivamente, ou de forma geral.
Atualmente, vários grupos políticos
e associações trans adotaram tam-
bém termos como“privilégio cis”.
A ele está subsequente uma lógica
de poder que tem sido analisada,
tal como foi entre heterossexual e
homossexual ou entre pessoa vista
como homem e uma pessoa vista
como mulher.
Cisgénero ou Cis: pessoa cujo
género designado à nascença é
concordante com a identidade de
género esperada,segundoomodelo
tradicional. (…) É, portanto, uma
29. pessoa que segue parte do modelo
tradicional de género(…).. Assim,
as pessoas cis têm, por exemplo,
a possibilidade de ter um cartão
de cidadão que representa a sua
identidade ou de ter acesso mais
facilitado à habitação, à educação e
ao trabalho.
Trans*: termo abrangente para
pessoas que não se conformam ou
identificam com as espectativas
de género associadas com o sexo
que lhes foi designado à nascença.
Inclui identidades de género como
género fluído, genderqueer, bigé-
nero ou agénero.
Transfobia: medo ou receio ir-
racional de pessoas trans* (TSER),
mas também violência institu-
cional, médica e social dirigida a
pessoas trans*
Cissexismo: A crença de que as
pessoas cisgénero são inerente-
mente superiores ou“mais normais”
do que as pessoas trans*. (…)
Quem tem poder para falar sobre
as nossas vidas?
Transmisoginia: Este termo surgiu
de Julia Serano (2007) e refere-se
à ideia de que a feminilidade e o
ser-se feminino são vistas como in-
feriores e existem para o benefício
do ser-se masculino e da masculi-
nidade. Permite perceber como a
transfobia intensifica a misoginia
com que as mulheres trans são con-
frontadas.
Para se ter uma visão ainda mais
abrangente deste fenómeno, cito
Laverne Cox, que escreveu há
poucos dias:“A realidade da vida
das pessoas trans é sermos alvos
de vio-lência. Experimentamos a
discriminação de forma
desproporcional em relação ao
resto da comunidade. A nossa taxa
de desemprego é o dobro da mé-
dia nacional [EUA]; para as pessoas
trans negras, essa taxa é 4 vezes
mais alta que a média nacional. A
taxa de homicídio é a mais alta para
as mulheres trans. Se nos focarmos
sobre a transição, não chegamos a
falar dessas coisas.“
De Duarte Gaio
A noção de ajuda, havendo uma
relação de poder, está viciada.” –
Stéphane
Pessoas trans*, como qualquer
pessoa, deviam poder pedir apoio
médico e/ou psicológico sem
terem de previamente provar e ser
testadas durante meses ou anos
que precisam desse apoio.
A identidade é nossa, a necessi-
30. dade de transicionar física e/ou
socialmente é nossa, e não faz
sentido que exista um policiamen-
to dos nossos corpos através de
diagnósticos,“testes de vida real”,
avaliações, autorizações e exigên-
cias que limitam a liberdade de
nos exprimirmos como queremos,
sem necessidade de, em cada frase,
maneirismo, memória e desejo
sejamos forçados a cair no padrão
pretendido, de nos apresentarmos
legalmente como somos, porque
nem esta audição é exceção: várias
pessoas aqui presentes foram
impedidas de entrar com o seu real
nome, por não terem acesso legal
ao mesmo e por burocracias que
interferem em tantas experiências
quotidianas.
“Perturbação de Identidade de
género”é uma expressão ultrapas-
sada e substituída por“Disforia de
Género”. O problema mantém-se.
Não somos doentes mentais mas
somos tratados como tal. Porque
nos forçam, como aos doentes
mentais se faz, a provar que
estamos cientes do que dizemos,
a provar através de testes que não
pedimos, se temos direito a sermos
quem afirmamos ser, numa pers-
petiva distorcida em que outros
têm o poder de dizer se temos ou
não razão, se estamos engana-
mos ou não, se sabemos de facto
se sabemos quem somos, como
se um eventual arrependimento
pudesse afetar alguém senão a nós
próprios.
Digam-me quem sou. Avaliem se
sei quem sou. Autorizem-me a
ser percecionado como quero ser.
Discriminem-me resguardados por
uma classe profissional que valida
a invasão da minha intimidade,
corpo, expressão e desejos, numa
brutalidade digna de síndrome
de Estocolmo, porque preciso de
vocês para aceder aos procedi-
mentos e receitas que quero, e em
vez de res-peitarem as minhas
necessidades específicas, obrigam-
-me a viver consoante um papel de
género que desenharam para mim,
no qual, como qualquer pessoa,
posso não me encaixar.
Queremos viver nos nossos termos,
livres de nos identificarmos com o
género que for, livres de exprimir
esse mesmo género como for,
livres de procurar assistência
médica, psicológica ou cirúrgica,
ou de não o fazermos se não qui-
sermos, porque sujeitar pessoas a
normas heterocisnormativas cuja
não concordância nos impede
de ter acesso a apoios, é tirar-nos
a liberdade. De expressão e de
identidade. Liberdade.
Reivindico também o direito ao
prazer sexual, sendo que muitas
31. das cirurgias genitais a que nos su-
jeitamos o veem como secundário
em prol de uma estética binária
com a qual podemos não estar à
vontade, mas á qual não temos
alternativa.
Existe uma única equipa médica a
concretiza-las, fazendo as cirurgias
segundo os seus critérios, os seus
desejos, os seus objetivos, que
podem ser ótimos para algumas
pessoas mas não o ser para outros.
E escolher entre fazer certa cirurgia
ou não fazer nenhuma não é liber-
dade de escolha. Escolher impli-
caria a existência de outra opção,
de pelo menos mais uma equipa
médica que fizesse cirurgias que a
outra não oferece.
Portanto, objetivamente, o que
pretendo é:
Despatologização trans*
Acesso gratuito a, caso desejado,
apoio médico, psicológico, cirúr-
gico e a tratamento hormonal
Criação de alternativas relati-
vamente às cirurgias, exigindo
escolha quanto aos procedimen-
tos, como aliás temos em todos os
outros casos não trans* relaciona-
dos.
Possibilidade de escolher ter
ou não o género no Cartão do
Cidadão.
De Sacha
Boa tarde. Sou o Sacha, trans de
29 anos e Francês. Estou consci-
pancarta carregada no Bloco Trans 2015
32. ente que a lei que está discutida
aqui provavelmente não mudará
qualquer coisa para mim, mas
quero falar porque sei que muitas
pessoas trans portuguesas encon-
tram-se numa situação parecida
com a minha. Aliás, algumas dessas
pessoas estão aqui agora, mas
não terão a liberdade de falar de
tudo o que queriam por causa da
presença de médicos que têm um
enorme poder sobre as suas vidas,
podendo recusar diagnósticos,
receitas ou cirurgias na base de
preconceitos.
Tenho uma identidade de gênero
não-binária, ou seja genderqueer,
nem homem, nem mulher, mas sim
bastante masculino. Não preciso
de uma avaliação psicológica para
saber quem sou, aliás sou o único
especialista da minha identidade.
Mas a falta de reconhecimento
dessa minha identidade pelas
autoridades administrativas e
médicas trava a minha transição
assim como o resto da minha
vida. Porque já recuso usar o meu
nome de nascença e porque o
meu verdadeiro nome, Sacha,
não aparece nos meus papéis de
identificação, estou proibido de
obter um número de contribuinte
que me abriria acesso ao trabalho,
à habitação e à saúde aqui em
Portugal. Essa situação de clandes-
tinidade, que partilho com imensas
pessoas trans, faz com que a minha
vida esteja bloqueada. Vivemos
assim numa grande precariedade
institucional, social e económica.
Em relação ao percurso de tran-
sição médico, eu recuso submeter-
me ao poder de autoproclamados
especialistas que procurarão avaliar
o meu « transexualismo » e decidir
o melhor « tratamento » para mim.
Identifico-me como trans e quero
decidir eu próprio o que preciso
para ser feliz. As pessoas trans que
escolhem passar por um percurso
médico têm que seguir um pro-
tocolo que demora meses e anos,
bastante caro, e muitas vezes sem
a liberdade de escolher os seus
tratamentos.
Assim encontro-me numa situação
de clandestinidade administrativa
e médica. Decidi começar a tomar
testosterona em breve, na mesma
sem pedir a autorização. Estou
consciente que falar dessa decisão
pode descredibilizar-me mas espe-
ro que possam entender as razões. É
importante guardar em mente que
muitas pessoas trans que seguem
um protocolo não dizem toda a
verdade e às vezes mentem aos mé-
dicos para obter o que precisam para
viver dignamente. Um acesso livre à
transição administrativa e médica, na
base da autodeterminação e do con-
33. sentimento informado, é necessário
para restabelecer uma relação de
confiança entre pessoas trans e mé-
dicos, diminuindo a relação de poder
e melhorando a possibilidade, por
parte do pessoal médico, de cuidar
verdadeiramente da saúde das pes-
soas trans. A despatologização é
verdadeiramente a única maneira
de melhorar esta lei.
Quero acrescentar que a violên-
cia institucional, médica, social e
económica que acabo de de-
screver, que é a consequência da
transfobia, leva muitas vezes a
situações de stress psicológico, à
depressão e ao suicídio. Somos
uma comunidade extremamente
minoritária em número, mas
anormalmente exposta a violências
e problemas de saúde. As nossas
identidades existem, são válidas e
não deviam cons-tituir um proble-
ma. O problema é que precisamos
estar protegidos dessas violências
transfóbicas.
Estou, assim como tantas outras
pessoas trans, farto de ser um ci-
dadão de 2ª classe e de ver a minha
vida bloqueada. É urgente, com
uma lei despatologizante, resolver
as nossas dificuldades.
Obrigado.
De Alice Cunha
Em primeiro lugar, gostava de lou-
var a ordem das intervenções em
que falam as pessoas trans primei-
ro, porque esta audição é para uma
lei que é para a nossa saúde, para
o nosso bem-estar, para a nossa
integração social, para o nosso
reconhecimento e dignidade, e é
isto que está em causa aqui. Não
precisamos que falem por nós.
Não estou doente. Isso subentende
uma suposta anomalia de onde
derivarão fatores negativos para a
minha vida. Não estou doente, sou
Trans. Não procuro ser curada, mas
sim reconhecida (eu e outras pes-
soas Trans) na nossa diversidade e
especificidade.
Mas somos sujeit*s a uma patologi-
zação forçada. Quando arranjamos
coragem para nos aceitarmos (que
é precisa, porque esta sociedade
ensina-nos que estamos errad*s,
e é árduo o processo de nos
consciencializarmos que somos
pessoas legítimas sendo quem
somos), procuramos acesso ao que
precisamos (seja isso reconheci-
mento legal, hormonas, cirurgias,
acompanhamento psicológico).
Mas vemo-nos face a profissio-
nais de saúde que ao invés de nos
ajudarem a lidar com problemas
34. que advêm da forte discriminação
que sofremos, ou nos permitirem
o acesso a hormonas e cirurgias,
nos mantêm num processo médico
prolongado, que às ve-zes excede
o limite legal, para que estes“te-
nham a certeza”de quem somos.
Não se preocupem, porque eu sei
quem sou.
No que toca às nossas transições,
não somos tod*s iguais. Não há cai-
xinha, nem há caixinhas. Obrigam-
-nos a seguir uma linha pré defini-
da em que“qualquer pessoa Trans*
será então transexual, quererá
então o diagnóstico, quererá então
as hormonas, quererá então as ci-
r-urgias”. Eu posso dizer que somos
pessoas diversas, com necessi-
dades e prioridades diversas. Há
quem precise (por motivos sociais,
emocionais, laborais) do reconheci-
mento legal imediato, que o dia-
gnóstico impede. Outras pessoas
querem, por exemplo, uma mastec-
tomia sem terem uma necessidade
imediata ou sequer uma vontade
absoluta de tomar hormonas. Há
também uma suposição de que
queremos tod*s cirurgias genitais.
Isto advém tudo de padrões de
género (O que é um homem? O
que é uma mulher?). Eles são-nos
impostos. Certos genitais não são
de certos géneros. Pêlos, roupas e
apresentações não são de certos
géneros, certas orientações sexuais
não são de certos géneros.
O processo a que somos
submetid*s quando procuramos
a ajuda médica que precisamos
muitas vezes obriga-nos a mentir.
Isto é muito frequente, isto é muito
narrado.
Porque sabemos que para acredi-
tarem que alguém é uma mulher,
ela terá de querer certas cara-
cterísticas, terá que ser estrita-
mente heterossexual, etc. E sei de
profissionais de saúde que não
funcionam com esta lógica anti-
quada, mas ainda é muito, muito
frequente.
Queremos acesso aos serviços de
saúde que precisamos e quere-
mos, pela ordem que queremos.
Podemo-nos informar, e temos a
habilidade de escolher por nós.
Passando a uma pequena lista de
propostas mais específicas:
-Quanto ao acesso à alteração legal
de nome e género, um simples
processo de autodeterminação
(que como foi aqui referido, é o
que identifica uma pessoa Trans).
Eu sou Trans, e como muitas pe-
ssoas (e como já foi referido aqui
35. hoje duas vezes) tive de deixar
lá em baixo um documento de
identificação que não tem o meu
nome. E há pessoas que sabem um
nome que não é meu, isso é uma
violência para comigo. Como me
precisaria de submeter a um pro-
cesso longo do qual tenho muito
medo, não mudei o meu nome e
género no BI.
-Propunha também o retirar da
especificação de género no BI se eu
assim decidir não o ter lá.
-Quanto ao acesso às hormonas
e às cirurgias, um consentimento
informado também é suficiente. E
atenção (e não falando por pessoas
intersexo), um consentimento
informado pressupõe que a pessoa
pode consentir, por isso cirurgias à
nascença serão certamente ilegais.
-Salvaguardar os nossos direitos de
saúde. Porque o acompanhamento
psicológico que nós muitas vezes
estamos para ter não o consegue.
Porque temos alguém que está à
nossa frente para nos legitimar ou
ilegitimar enquanto pessoas Trans
ou não.
-Propunha também a alteração de
denominações oficiais de transe-
xual pelo menos para transgénero.
Transexual, da minha perspetiva
(e de muitas leituras e conversas
que tive) acarreta uma carga d*
“Transexual tradicional”, a pessoa
que quer tudo isto e se calhar até
por esta ordem. Essas pessoas tam-
bém são pessoas transgénero, mas
nem todas as pessoas transgénero
são transexuais. Este termo será
mais abrangente e mais inclusivo
para as pessoas Trans.
-Apontava também que embora
a lei salvaguarde os nossos di-
reitos de acesso à saúde, como
a Júlia referiu à pouco, eles não
acontecem hoje em dia. Há muito
pouca transparência, e muito pou-
cos esclarecimentos. Eu propunha
que, a partir do momento em que
o SNS não consegue suportar,
neste momento, cirurgias, acom-
panhamento, etc, este deverá não
só forçar-se em especializar profi-
ssionais, mas promover alternativas
de qualidade e segurança, como
por exemplo, idas ao estrangeiro a
sítios amplamente acreditados
Obrigada.
36. BLOCO TRANS & TRANSFEMINISTA
Para o dia 20 de Junho de 2015,
na Marcha do Orgulho LGBT de
Lisboa, um grupo de ativistas trans
auto-organizad*s preparou a reali-
zação de um Bloco Trans, com uma
forte componente transfeminista,
que agregou muita gente de diver-
sos grupos e coletivos, com uma
marcada posição despatologizante.
Contou, ainda, com a presença
essencial dos Ritmos da Resistên-
cia, que cantaram connosco e nos
acompanharam com toda a per-
severança e energia. Gritaram-se
lemas como“Aqui está a resistência
Trans”,“LGBT sem T não tem jeito
nem porquê”,“Diagnosticar não
é ajudar”,“Este é o cis-tema do
género formatado: as mulheres
são assim e os homens são assado”,
“Sou trans, sou precári*, também
sou proletárix*”,“A Transfobia mata:
nem mais uma! nem mais uma!”.
No evento convocado seguia o
seguinte texto de convite:
“Enquanto Trans, somos silenciad*s
e mal-representad*s regularmente.
Neste ano, na Marcha do Orgulho
LGBT de Lisboa, gritamos:“BASTA!”.
Sabemos quem somos e o que
queremos. Sabemos, também,
qual é o cis-tema que nos força a
ser tratad*s como cidadãos de 2ª
classe. Queremos poder mudar o
nosso corpo e género no Cartão de
Cidadão, de acordo com a nossa
identidade de género, sem precisar
de ter a legitimação de médicos
que avaliam o nosso género e repli-
cam cissexismo num modelo da
Barbie e do Ken. Esses modelos são
limitados, binários e asfixiantes.
Para além disso, sabemos que
as pessoas percecionadas como
mulheres pela sociedade são regu-
larmente inferiorizadas e subjuga-
das, em detrimento das que são
percecionadas enquanto homens
e que é o patriarcado que alimenta
isso. Opomo-nos à ideia de que a
feminilidade é sinal de fragilidade e
unimo-nos numa insurreição queer
e femme. Estas opressões são, em
muitos campos, transversais às
vidas e experiências das pessoas
trans, em especial à das mulheres
trans e pessoas trans femininas.
Rejeitamos todas as formas de
sexismo, incluindo cissexismo e a
transmisoginia!
Somos muitas coisas e por isso
sabemos que esta luta não se faz
sozinha. Sabemos que o cis-hetero-
patriarcado que nos quer esmagar
não aguentará se tod*s nós nos
unirmos contra ele. Marchamos
em conjunto e queremos que este
grito de libertação trans e trans-
feminista se oiça bem alto!”
37. Ao longo desta Tranzine encon-
tram-se algumas fotos partilhadas
do evento.
Participação dos Ritmos da Resistência que acompanharam o Bloco Trans 2015
38. CONTACTOS
DE E PARA TRANS*
Alguns links úteis
GRUPOS EXCLUSIVOS DE PES-
SOAS TRANS COM TRABALHO
TRANS
API (Ação pela Identidade):
https://apidentidade.wordpress.
com/
Relançada em 2014, “A Ação Pela
Identidade – API é uma organização
não-governamental liderada por
jovens ativistas e direcionada para
a defesa e estudo da diversidade de
género e de características sexuais,
incluindo a experiência das pessoas
trans e intersexo. A API baseia-se na
interseccionalidade das várias dis-
criminações sentidas por quem pro-
cura o direito à sua própria identi-
dade. Partimos de uma perspectiva
de não-discriminação, abrangendo
raça/etnia, sexo/género, situação
sócio-económica, deficiência e
religião, etc.”
Grupo Transexual Portugal: htt-
ps://www.facebook.com/Transexu-
al-Portugal-206480776058294/
GRUPOS QUEER E LGBT (NÃO-EX-
CLUSIVOS) DE E COM TRABALHO
TRANS*
Campanha Stop Patologização
Trans em Portugal: https://www.
facebook.com/150656943552/
Panteras Rosa: frente de com-
bate contra a lesbigaytransfobia:
http://www.panterasrosa.blogspot.
pt/ , panterasro
Colectivo Lóbula: http://www.
lobula.net/
Criada em 2014, “A LÓBULA é um
projecto de intervenção artística
e cultural de linha trans*, queer e
feminista. O mapa cultural de Lisboa
é dominantemente hetero, cisgé-
nero, masculino e branco, revelando-
se demasiado conservador para
invenções e intervenções (sexuais,
artísticas, lúdicas e sociais) que
excedam e compliquem os termos
estritos das identidades dominantes.
A LÓBULA pretende contrapor este
contexto, produzindo alternativas
criativas e críticas - eventos, textos,
imagens, vídeos, performances,
debates, zines... -- que representem
outras poéticas e outras políticas do
corpo.
Somos um colectivo de artistas, ac-
tivistas, académicas e outras intere-
ssadas em servir de zona de contacto
e comunicação entre diferentes
linhas de saber, formas criativas e
intervenções políticas, relacionando-
-as e rearticulando-as. Temos como
horizonte um panorama cultural
tran*s, queer e feminista revitali-
zado, para lá da normatividade que
nos constrange.”
41. DIY: COMO FABRICAR UM
STAND-TO-PEE
Como fabricar um STP (stand-to-
pee, aparelho para urinar em pé)
a partir de um cabide de casacos.
1. encontra cabide com abas largas,
os de pendurar casacos.
2. com uma faca de serrilha corta
pela junção com o gancho.
3. Com uma lima ou lixa, alisa a
ponta cortada.
4. usa!
Um estudo de 2008 do Williams
Institute, UCLA, determinou que
70% das pessoas trans ou não
binárias, enfrentam discriminação
no uso de casas de banho, que
como sabemos são, quase em ab-
soluto, genderizadas. Ao evitarem
o uso de casas de banho durante o
dia, o mesmo estudo aponta uma
percentagem de 54% de pessoas
com complicações de saúde
ligadas ao trato urinário, infecções
urinárias, renais, desidratação e
outros problemas renais.
Como alternativa, se te aprouver,
usa esta solução para poderes
urinar onde e como quiseres.
Aqui vai também lista de casas
de banho trans friendly por todo
o mundo: http://www.refugere-
strooms.org/
Com Carinho,
CGP
lustração, fonte: anticopyright, freely
shared, made by yaya.
http://baadink.tumblr.com
42. POEMA DE OLIVIA,
MULHER TRANS FRANCESA
YOU.
How many years in a cavern do I owe you?
I cowered in fear from you for years.
I never felt safe.
I had to act like a machine to be with you,
I had to betray myself all my life around you.
I don’t know safety, you shattered it!
I always had to be other: « do this, do that, be like that »
I am what I am, i don’t have to be any different.
I don’t exist for you.
For too long I presented the other cheek,
For too long you used me for your glory,
For too long you stood on my shoulders,
For too long you weighed on me.
You took away my beauty,
You took away my body,
You took away my smile,
You took away my voice,
And chewed on my emotions.
You shamed me,
You mocked me,
You hurted me,
You betrayed me,
You abandonned me.
You tread on every rose I gave you.
You denied me your love,
You denied me my body.
Ilustração de Marta Calejo
43. You left me, eyes wide open, with an open
bleeding heart.
I had to be what you wanted.
Well I won’t!
Fuck off!
You own my brain no more!
I am crawling out of the grave you put me in…
From the deepest hole,
Slowly, step by step,
I will shake my sleeping limbs.
Slowly, step by step,
I will feel again.
Slowly, step by step,
I will trust again.
Slowly, step by step,
I will live again.
Slowly, step by step,
I will love again,
And finally will be
FONTE: ubikablog.wordpress.com/2015/04/19/you/
44. SUICíDIOS TRANS - HOMICIDIOS
DE MASCARA
A Família e o Suicídio Trans
de Sacha / Outubro 2015
A família. A família é para a vida, os
laços de sangue são sagrados, na
família encontramos amor incondi-
cional e outros mitos.
Se for verdadeiramente assim,
então, porque sofremos tanta
violência, rejeição, porquê os aban-
donos ? Só nesse ano, já chorámos
as mortes de muitos jovens trans, a
maior parte dos EUA onde tais tra-
gédias começam a estar um pouco
mediatizadas. Mortes por suicídio
antes de chegar aos vinte anos,
ou pouco depois. Chamavam-se
Leelah, Casper, Ash, Aubrey, Blake,
Skylar… Mais perto daqui, foi o
Santiago que desapareceu prema-
turamente. E aqueles cujos nomes
não conhecemos, isolad*s e talvez
no armário ? Quantos deles, de nós,
já perdemos?
Esses jovens viviam, a maior parte
deles, em casa dos pais. Não en-
contraram em seus lares a proteção
de que precisavam para sobreviver
ao bullying que sofriam na escola,
para aguentar esse mundo cissexi-
sta. Pior, a opressão transfóbica era
reproduzida nesses lares, deixan-
do-lhes sem nenhuma proteção
contra a violência vinda de fora e
de dentro.
Leelah Alcorn escreveu antes de
morrer : « They wanted me to be
their perfect little straight christian
boy ». Sim, querem que nos con-
formemos à sua imagem idealizada
de criança perfeita, não lhes inte-
ressa quem somos.
Misgendering, uso exclusivo do
nome de nascença, desprezo,
chantagem emocional, punições
que isolam, violências físicas, tera-
pias de“conversão”… são as marcas
de amor usuais desses pais que
escolhem a fantasia da“normali-
dade”em vez de ver as crianças
deles como verdadeiramente são.
Mas não são marcas de amor, são
as armas que usam para nos matar.
Quem protegerá as crianças trans
desse“amor”destruidor ?
Quando o conflito chega a um
ponto dramático, a separação pode
ser inevitável. Mandados para fora
de casa pelos próprios pais ou fug-
indo para se protegerem da violên-
cia, tal como o Blake Brockington,
esses jovens trans encontram-se
numa situação ainda mais precária,
de vulnerabilidade e de solidão,
que pode ser fatal.
Esses casos ressaltam mecanismos
de violência e exclusão muito co-
muns, que ultrapassam as histórias
da Leelah, do Blake etc. Muitas
pessoas trans anónimas sofrem
essas violências até algumas mor-
45. rerem ou fugirem. Estou a falar de
assassínios disfarçados de suicídios.
Nós, trans, morremos às mãos da
sociedade, da escola, dos pais…
mas dizem que nos matámos, que
nos suicidámos. O crime perfeito.
Mas não nos vamos deixar matar,
nem vamos deixar ess*s criminos*s
livres e em paz. Para sobreviver, va-
mos reinventar as nossas famílias,
encontrar verdadeir*s amig*s, va-
mos criar as nossas próprias comu-
nidades e solidariedades. Para que
haja justiça e que as nossas vidas
sejam dignas, vamos continuar a
lutar e impor as nossas vozes. Que
encontremos o amor condicional
nas nossas famílias escolhidas.
Criação original de João David
46. COMUNICADO PANTERAS ROSA
Santiago Martinez: uma vítima mais
da transfobia
15/09/2015
Há pouco menos do um mês, o San-
tiago faleceu, assassinado por trans-
fobia. O Santiago era um homem
trans de trinta anos. Desta vez, não
foram pancadas dadas por pessoas
exteriores que mataram esse jovem
do distrito de Lisboa. Ele não viveu
a tortura da Gisberta em 2006 e de
inúmeras mulheres trans através do
mundo quotidianamente.
O Santiago, dirão que morreu por
suicídio. As Panteras Rosas – Frente
de Combate à LesBiGayTransfobia,
afirmam que ele foi assassinado por
transfobia. Morto pela ignorância e
pelos preconceitos transfóbicos da
sociedade em que era obrigado a
viver, por uma situação económica
precária, pela dificuldade no acesso
ao trabalho e o aumento dos cortes
com a política de austeridade. A
transfobia institucionalizada e as
dificuldades económicas no acesso
a cuidados plenos de saúde trans-
específicos não são alheios, mas
sim potenciados pela condição de
precariedade de Santiago, como de
muitas pessoas trans em situações
similares. Santiago foi morto pelo
silêncio e a incapacidade do Serviço
Nacional de Saúde e do Hospital de
Coimbra e, através deles, do Estado
português que permanece indifer-
ente ao sofrimento das pessoas
trans.
Em memória do Santiago e para que
nenhuma pessoa trans se encontre
em idêntica situação, as Panteras
Rosas exigem:
-DespatologizaçãoTrans
Resposta do SNS adaptada às
necessidades das pessoas trans e
completamente comparticipada
pelo Estado
-Retoma de cirurgias de qualidade
em Coimbra
-Acesso a cuidados de saúde e con-
dições laborais plenas
47. QUEM SOMOS
STP, Campanha Internacional Stop
Trans Pathologization é uma plata-
forma ativista internacional, criada
com o objetivo de incentivar a
realização de ações pela despatolo-
gização trans em diferentes partes
do mundo. No início, a Campanha
STP foi uma iniciativa de grupos
de ativistas precedentes, na sua
maioria, do contexto do Estado
Espanhol.
A partir de 2009, a STP conseguiu
fazer uma divulgação internac-
ional em diferentes continentes.
Em Outubro de 2015, ocorreram
mais de 90 ações pela despatologi-
zação em 45 cidades de diferentes
continentes, coordenadas por 108
grupos e organizações dentro da
convocatória STP. Atualmente, a
Campanha conta com a adesão
de mais de 390 grupos, organi-
zações e redes ativistas da América
Latina, América do Norte, África,
Ásia, Europa e Oceânia. O lança-
mento desta Transzine, tal como na
primeira edição (2013), faz também
parte das iniciativas no âmbito do
Outubro Trans, convocado pela STP.
Um grupo de trabalho composto
por ativistas trans de diversas
partes do mundo realiza o trabalho
de coordenação e organização da
Campanha STP, além da convo-
catória anual para o Dia Internac-
ional de Ação pela Despatologi-
zação Trans.
OBJETIVOS
Exigimos:
A retirada da categoria de“disfo-
ria de género”/“perturbações de
identidade de gênero”dos manuais
internacionais de diagnóstico.
A abolição dos tratamentos de
normalização binária a pessoas
intersexo.
O livre acesso aos tratamentos hor-
monais e às cirurgias (sem tutela
psiquiátrica).
Serviço público de atenção a saúde
trans-específica (acompanhamento
terapêutico voluntário, atendimen-
to ginecológico/urológico, trata-
mentos hormonais, cirurgias).
A luta contra a transfobia: fomentar
a formação educacional e a inser-
ção social e no mundo do trabalho
das pessoas trans, assim como
visibilizar e denunciar todo tipo de
transfobia institucional ou social.