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Telia Negrão
Regina Vargas
Leina Peres Rodrigues
(Orgs.)
Saúde mental e gênero
novas abordagens para uma linha de cuidado
1ª edição
Projeto Girassóis – a experiência em Canoas (RS)
Porto Alegre
Coletivo Feminino Plural
2015
Dados internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
S255 Saúde mental e gênero: novas abordagens para uma linha de cuidado -
a experiência de Canoas (RS) / Telia Negrão, Regina Vargas e Leina Peres
Rodrigues (organizadoras). – Porto Alegre: Coletivo Feminino Plural, 2015.
132 p.
ISBN
1.Saúde mental. 2. Gênero. 3. Políticas públicas. 4. Saúde da mulher.
5. Medicalização. I. Negrão, Telia. II. Vargas, Regina. III. Rodrigues,
Leina Peres
CDU 305-055.2 : 613.86
Coletivo Feminino Plural:
Rua Gen. Andrade Neves, 159, conj. 84/ 85
Porto Alegre, RS - Brasil - Tel.: (51) 3221.5298
coletivofemininoplural@gmail.com
www.femininoplural.org.br
Saúde mental e gênero:
novas abordagens para uma linha de cuidado
Projeto Girassóis -
Apoio: Secretaria de Políticas para as Mulheres
da Presidência da República
Parcerias: Prefeitura Municipal de Canoas e Rede Nacional
Feminista de Saúde, Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos
Entidade executora: Coletivo Feminino Plural
Organização: Telia Negrão, Regina Vargas
e Leina Peres Rodrigues
Capa, projeto gráfico e editoração
eletrônica: Vit Núñez Comunicação Visual
Expediente
a experiência de Canoas (RS)
APRESENTAÇÃO
A construção de uma perspectiva de integralidade na atenção à saúde
compõe a agenda do movimento de mulheres no Brasil há varias décadas.
Notadamente, a partir dos anos de 1980, quando o processo de democratização
do país coloca em debate as políticas públicas, tendo como centro os direitos
humanos. A excessiva medicalizaçãodas mulheres, as relaçõesentre sofrimento
psíquico e condições de trabalho, o adoecimento mental como decorrência da
violência de gênero, estigmas, discriminações, fixidez de papéis sexuais e de
gênero são levantados como disparadores de dores, muitas vezes sem
explicação pelas próprias mulheres que, em sua maioria, vivem em contextos de
dificuldadeseconômicasededifícilacessoaosbenssociaiseculturais.
Por outro lado, a história – que vem sendo reescrita desde os anos de
1960 por estudiosas de todo o mundo – está recheada de exemplos do uso dos
dispositivos disciplinadores das mulheres, entre os quais as internações
compulsórias e imotivadas, hoje amplamente denunciadas e condenadas como
violações aos direitos humanos. Ilustração dada por Perrot (1995) na obra
Historia da Vida Privada – 4 revela as práticas de reclusão em hospícios das
mulheres “ditas loucas” na França. Ao dissertar sobre o poder dos homens no
períodoposterioràRevoluçãoFrancesaatéaPrimeiraGuerraMundial,elatorna
visívelaascensãodapráticadainternaçãofemininacomoformadeafastamento
davidasocialdaquelasquedestoavamemtermosdesexualidadeeliberalidade.
Aalegaçãoeradesuafraquezapsíquicaemoral.
Paradoxalmente, duzentos anos antes, o filósofo cartesiano francês
Poulain de la Barre realizara refutação da tese de menor capacidade mental e de
raciocínio das mulheres em relação aos homens. Dizia ele que a desigualdade
social entre homens e mulheres não é consequência da desigualdade natural,
senão o seu contrário, a desigualdade social e política é aquela que produz as
teorias da inferioridade da natureza feminina (Bedia, apud Amorós, 1995). No
entanto, segundo Perrot (op. cit.) uma lei de 1838 na França autorizava que
“loucos, dementes e imbecis” fossem privados de seus direitos, o que incluía as
mulheres em sua maioria. A internação por ordem do marido, pai ou patrão
tornava quase impossível sua libertação do confinamento, ficando conhecidas
algumas histórias de familiares que lutaram arduamente – como a demanda
pública “Clemence de Cerilley” – para quebrar hospitalizações feitas em forma
decastigoàsmulheres.
7
NoBrasil,atravésdealgunsestudosrealizadosapósaadoçãodaReforma
Psiquiátrica (década de 1990), ficaram conhecidos episódios de internação de
mulheres sem diagnóstico em inúmeros hospitais psiquiátricos e sua
permanência por décadas, algumas até a morte, pelo “esquecimento” ou
“abandono”. Dissertação de Mestrado realizada por Waddy (2006) constatou
que,apesardesermenoronúmerodeinternaçõesnoentãoHospícioSãoPedro,
em Porto Alegre (RS) até o início do século passado, a partir dos anos de 1920 as
mulheres vão se tornando maioria, porque são ali deixadas, enquanto os
homens obtêm alta e retomam a vida em menos tempo. Nesse mesmo período,
cresce o número de mulheres em clínicas particulares para doentes mentais.
Segundo a autora, a explicação possível é de que a chamada “loucura feminina”,
por ocorrer no espaço do privado, onde viviam majoritariamente as mulheres,
exporia mais elementos da sexualidade reprimida, dando margem à sua
exclusão.Dizela:
Se a loucura está inscrita no corpo feminino, sujeita aos fluxos e refluxos deste
corpo, que são constantes, ininterruptos e permanentes, pelo menos até a
menopausa–momentoemqueocorpofemininoreencontrariaoequilíbriofísico
e psíquico perdido com a menstruação – e, se os lugares das mulheres na
sociedade de então são mais restritosdo que os dos homens, parece lógico que o
número de mulheres “curadas” seja sempre inferior ao de homens nestas
mesmascondições(Waddy,2006,p.68).
Com a adoção do paradigma de direitos humanos nas políticas públicas e
o questionamento da fragmentação do corpo feminino, outras interpelações
visaram o poder masculino e médico na concepção da atenção à saúde das
mulheres. Assim, um programa do Ministério da Saúde corporificou, em 1984,
pela primeira vez, a resposta à crítica em torno da concepção materno infantil
prevalente nas políticas de saúde para as mulheres, fortalecendo o discurso
feministasobreanãofragmentaçãodoscorposeaautonomia.
Segundo Osis (1998), o conceito de assistência integral contido no
documento de apresentação do PAISM, deveria ser entendido como um
conjunto de ações destinadas a atender a todas as necessidades das mulheres
para promover, proteger e recuperar a sua saúde. No entanto, embora sendo
denominado como “integral”, o Paism, saudado como um avanço pelo
movimento de mulheres, também sofreu críticas por esse mesmo segmento,
por focalizar a maioria de suas ações às funções reprodutivas. Por outro lado,
justamente por essa característica, incorporou o planejamento familiar como
parte da política de saúde, abrindo para a discussão sobre autonomia e direito
dasmulheresdecontrolarafertilidade(idem).
Entretanto, apenas em 2004, ao ser atualizado e transformado numa
política transversal (PNAISM), a saúde mental é posta como uma das dimensões
8
da saúde das mulheres, à qual corresponde uma política de atenção. Essa nova
versão do antigo programa incorpora o enfoque de relações de gênero e
reconhece a diversidade entre as mulheres, sendo mobilizadora da sociedade.
Desde então, os diversos segmentos que compõem o movimento de mulheres
no Brasil buscam editar um quadro referencial e ações de saúde que venham ao
encontro de suas especificidades. Nesta política, os direitos sexuais e os direitos
reprodutivos foram incluídos como componentes essenciais na atenção,
embora ainda limitados pela legislação brasileira, em especial quanto ao tema
do aborto; e as políticas com perspectiva de integralidade apresentam-se ainda
secundarizadasfrenteàquelascomênfasenaatençãoàsaúdematerna.
Quantoàsaúdemental,emborareconhecidacomoumcampoprioritário
de atenção, permanece sem um desenho que reconheça as desigualdades de
gênero. A reforma psiquiátrica, embora inovadora e ancorada nos direitos
humanos, nem na teoria e nem na prática incorporou o que já se sabe sobre o
adoecimento psíquico das mulheres e tão pouco avançou na promoção de
estudosepesquisassobreotema.
Acreditamos que essa foi uma das motivações do edital público da
Secretaria de Políticas para as Mulheres, em 2013, o qual chamou à participação
iniciativas da sociedade para auxiliar na construção de uma proposta de linha de
cuidado em saúde mental com enfoque de gênero. Dessa forma, abriu também
umcampoparanovasreflexõeseconstruçãodeconhecimento.
Coletivo Feminino Plural, em parceria com a regional do Rio Grande do
Sul da Rede Feminista de Saúde Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos,
assumiu o desafio de implementar um projeto composto de inúmeras ações,
todas elas destinadas a subsidiar a elaboração de uma proposta de linha de
cuidado em saúde mental com perspectiva de gênero para o município de
Canoas, na região metropolitana de Porto Alegre, Rio Grande do Sul. Ações
comunicacionais, educativas, capacitação de agentes públicos, estudo de caso,
diagnóstico situacional e publicação compõem o projeto “Gênero, componente
essencial na atenção à saúde mental das mulheres”, conhecido como “Projeto
Girassóis – Saúde Mental e Gênero”. O projeto se desenvolveu entre 2014 e
2015.
A presente publicação “Saúde Mental e Gênero em novas abordagens
para uma linha de cuidado - Projeto Girassóis - a experiência em Canoas (RS)”
destina-se a divulgar as ações e reflexões sobre o Projeto. Em oito capítulos, as
autoras abordam e aprofundam conceitos essenciais ao debate proposto. É o
caso de Regina Beatriz Vargas, que interpela a percepção do tema da
integralidade da atenção através da leitura acurada das entrevistas realizadas
com profissionais da rede de saúde de Canoas. Revela, de um lado, as
dessintonias, e de outro o profundo comprometimento dessas profissionais no
9
seu trabalho cotidiano nas pontas do Sistema Único de Saúde e nas agências
especializadas.
É secundada por Maria José de Oliveira Araújo, em dois artigos: no
primeiro, mergulha na literatura sobre Saúde Mental das Mulheres, trazendo à
superfície os novos enfoques que consideram relações de gênero e
determinantes sociais da saúde. Com uma forte crítica à excessiva
medicalização, aos estigmas, estereótipos e discriminações sobre o adoecer
psíquico das mulheres, abre a discussão para uma nova compreensão sobre o
mal estar feminino e as exigências sociais de nos sentirmos sempre felizes. Em
seguida, a mesma autora, cuja trajetória pelas políticas de saúde é amplamente
conhecida, avança para discutir modelos de atenção à saúde mental das
mulheres e propor uma linha de cuidado na perspectiva de Direitos Humanos,
Gênero e Integralidade na Saúde. Com este trabalho, finca algumas estacas para
futuras construções de estratégias e diretrizes, deixando sem dúvida sua marca
dequembuscanaprofundidaderespostasavelhasenovasindagações.
A provocação de ajudar a desconstruir e reconstruir conceitos proposta
pelas capacitações de profissionais da rede de saúde, de violência de gênero e
ativistas dos movimentos sociais está descrita no artigo assinado por Regina
Beatriz Vargas e Telia Negrão. As autoras recuperam alguns fundamentos da
chamada Metodologia Feminista, abordagem adotada pelo projeto para
trabalharumconjuntodetemaseinstigaràreflexão.
Comoobjetivodedesenvolverestratégiaeducativainovadorabuscou-se
umaparceriaparamultiplicaçãodeconteúdosdoProjetoGirassóiscomusuárias
do SUS. O trabalho conjunto com integrantes do Projeto Mulheres da Paz está
descrito e problematizado por Leina Peres Rodrigues, Carolina Mombach e
Jéssica Pereira da Silva, que percorreram, ao lado de ativistas de comunidades,
locaisquerealizamoatendimentoamulheresemCanoas.
O Projeto Girassóis – Saúde Mental e Gênero identificou na violência
contra as mulheres um dos fatores para o agravamento da sua saúde mental,
embora não o único ou principal. Para melhor compreender esse nexo,
desenvolveu-se um estudo de caso com usuárias de um centro de referência
público, coordenado pelo Coletivo Feminino Plural em Canoas, resultando num
texto assinado por Teresa Cristina Bruel e Carolina Mombach. Complementam a
publicação alguns textos resultantes de atividades extracurriculares das
capacitações.
Este conjunto de trabalhos traduz a forma ousada e não raro
transgressora com que a entidade Coletivo Feminino Plural responde a
provocações, atenta que é aos pressupostos feministas, destacando-se aquele
de que o conhecimento deve ser fruto do saber compartilhado. E não custa
10
REFERÊNCIAS
BEDIA, Rosa Cobo. Gênero. In: Amorós, Celia (Org.) Diez Palabras Clave sobre Mujer.
EditorialVerboDivino,1995.Madrid,Espanha.
OSIS, Maria José. Paism: um marco na abordagem da saúde reprodutiva no Brasil. Cad.
SaúdePúblicavol.14suppl.1,RiodeJaneiro,1998.
PERROT, Michelle. Historia da Vida Privada 4. Da Revolução Francesa à Primeira Guerra.
CompanhiadasLetras,SãoPaulo,2009.
WADDI,YonissaMarmitt.Experiênciasdevida,experiênciasdeloucura:algumashistórias
sobre mulheres internas no Hospício São Pedro (Porto Alegre, RS, 1884-1923). Disponível
em:http://revistas.unisinos.br/index.php/historia/article/view/6171/3336.Pag.65-79.
lembrar de um dos mais caros ao feminismo, a necessidade de duvidar das
verdades dadas como certas e reescrever a própria história. Desejo uma boa
leitura.
Porto Alegre, agosto de 2015.
Telia Negrão
Coordenadora do Coletivo Feminino Plural
11
12
2
Introdução
A atenção integral à saúde tem como condição sine qua non o
reconhecimento dos determinantes sociais que afetam as condições de saúde
das populações e de cada pessoa. As desigualdades sociais, econômicas e
culturais influenciam a vida e as formas de adoecer e de morrer, com impactos
mais severos sobre aquelas pessoas que sofrem privações e opressão. Nesse
sentido, a persistência de desigualdades de gênero em uma sociedade traz
implicações para os processos de saúde e doença de mulheres e de homens e,
em grande medida, determina os fatores de mortalidade para cada um dos
sexos.
Isso evidencia a importância fundamental do conhecimento e do
reconhecimento, por parte dos formuladores de políticas e dos operadores
dessas últimas, dos fatores decorrentes dessas desigualdades, os quais colocam
mulheres e homens sob distintos riscos relacionados à saúde. Os dados
disponíveis e estudos diversos revelam uma maior procura dos serviços de
saúde pelas mulheres (Pinheiro et al.,2002) , muitas vezes de forma reiterada e
com “queixas vagas” que denunciam antes um “mal-estar” (Burin, 1990; 2010)
do que uma enfermidade de origem orgânica. A maior procura dos serviços por
parte das mulheres dá-se, também, em função de seu papel de cuidadoras que
levam filhos, idosos e outras pessoas das quais assumem o cuidado. Por outro
lado, os dados revelam ainda que os homens procuram menos a atenção básica
à saúde; quando acessam a rede, é por demanda especializada e já em estágios
avançados das enfermidades. Em geral, em razão disso, morrem mais cedo do
que as mulheres. Estudos revelam também que a cultura patriarcal
predominante, que associa a masculinidade à valentia e à invulnerabilidade é a
granderesponsávelporessequadropreocupante.
A prevalência entre mulheres de transtornos mentais comuns – casos
com sintomas ansiosos, depressivos ou somatoformes –, de síndromes
funcionais e de dores sem causa orgânica é frequente. Segundo a Organização
Mundial de Saúde (OMS), essas alterações de saúde mental ocorrem duas vezes
mais entre as mulheres do que entre os homens (WHO, 1993; 1997; 2000). Isso
tem um impacto importante na atenção primária à saúde, pois representa uma
fortepressãoassistencialsobrearede.Algunsestudosapontamqueentre30%e
60% de toda a demanda primária da saúde deve-se a sintomas para os quais não
A integralidade da atenção à saúde
na percepção de profissionais da rede
1
Regina Vargas
13
seidentificaumacausaorgânica(Ariasetal.,2007).
Os transtornos mentais comuns referem-se a situações de saúde de
indivíduos cujos sintomas não preenchem os critérios formais para diagnósticos
de depressão e/ou ansiedade, conforme estabelecidos pelas classificações
DSM-IV (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders – Fourth Edition)
e CID-10 (Classificação Internacional de Doenças – 10ª Revisão), mas são
sintomas proeminentes que resultam em uma incapacitação funcional
comparável ou até pior do que a de quadros crônicos já bem estabelecidos
(Maragno et al., 2006). Por tais sintomas não se ajustarem aos critérios de
classificação vigentes, sequer se dispõem de estatísticas oficiais da incidência
desses transtornos na população brasileira, embora os dados sobre consumo de
medicamentos psicotrópicos, predominantemente entre mulheres, no Brasil,
sinalizem sua prevalência. Conforme aponta a Organização Mundial da Saúde
(WHO,2015)
gênero é um fator determinante fundamental da saúde mental e dos transtornos
mentais. A morbidade associada aos transtornos mentais tem recebido muito
mais atenção dos que os determinantes específicos de gênero e os mecanismos
que promovem e protegem a saúde mental e desenvolvem a resiliência ao
estresseeàsadversidades.
Diante desse contexto, tanto a abordagem da integralidade quanto o
enfoque dos determinantes sociais de gênero tornam-se fundamentais na
atençãoà saúde das mulheres, comênfase na atençãoà saúde mental. Os dados
de sintomatologia sem causa orgânica e de medicalização excessiva por parte
das usuárias mulheres do sistema de saúde sugerem a falta dessas abordagense
algumas lacunas nas políticas de atenção integral à saúde. Tais constatações
levaram Coletivo Feminino Plural a propor uma intervenção nessa área, a qual
assumiu o escopo de um projeto piloto para estabelecer novas práticas, capazes
de manejar adequadamente as interfaces entre gênero e saúde mental. O
projeto teve, por um lado, o objetivo de sensibilizar profissionais da rede para a
necessidade das referidas abordagens. Por outro, buscou elementos, no campo
daspráticasedaspercepçõesdosprofissionaisdarededeserviçosdesaúdeede
bem-estar social, que pudessem fornecer indicadores para a construção de uma
3
linhadecuidadoemsaúdementalcomenfoquedegênero .
Ocontextodaexperiência
Para a implementaçãoda experiência piloto, foi escolhidoo município de
Canoas, no Rio Grande do Sul, que pertence à Região Metropolitana de Porto
Alegre, capital do estado. O município conta com uma população de
aproximadamente 340.000 habitantes (IBGE), possui uma taxa de urbanização
4
de 100%, apresentou, em 2010, um IDHM de 0,750, considerado alto, e uma
14
renda per capita de R$952,13. O índice de pobreza do município, segundo dados
do Censo 2010 e da Pesquisa de Orçamentos Familiares - POF 2002/2003, é de
29,52%. A taxa média anual de crescimento da população de Canoas entre 2000
e 2010 foi de 0,56%, enquanto no Brasil foi de 1,17%, no mesmo período. Entre
2000 e 2010, a razão de dependência no município passou de 49,18% para
5
42,56%eataxadeenvelhecimento,de5,59%para7,49% .
A rede pública de saúde do município conta com 28 Unidades Básicas de
Saúde (UBS); 6 Unidades de Pronto Atendimento (UPA), sendo duas delas 24h e
uma especializada em idosos; 7 Centros de Atendimento Psicossocial (CAPS),
sendo três CAPS III, dois deles dedicados para transtornos por álcool e drogas
(AD);umCAPSIIparatranstornospsíquicosdiversos;doisCAPSI,dedicadospara
atendimento a crianças e adolescentes; e um CAPS para idosos que consiste em
um ambulatório de neurologia. A rede dispõe também de um Posto da Mulher,
para atendimento especializado em ginecologia, e mais quatro centros de
especialidades – médicas, odontológicas, testagem e aconselhamento e
atendimento em DSTs/Aids, e tisiologia. Há um hospital de referência para os
serviços de interrupção da gravidez em caso de violência sexual e todas as
unidades de pronto atendimento estão habilitadas a ministrar a profilaxia de
emergênciaparaessescasos.
No início de 2015, o município contava com 44 Equipes da Estratégia de
Saúde da Família (ESF). Esse número representa pouco mais da metade daquele
que deveria ter conforme as recomendações do Ministério da Saúde para a
expansão, qualificação e consolidação da atenção básica, na perspectiva de
ampliar a resolutividade e impacto na situação de saúde das pessoas e
coletividades.A importância dessas equipes cresce,na medida em que a política
de saúde mental do município está iniciando uma experiência de matriciamento
na atenção à saúde mental. O matriciamento consiste em um processo de
integração da saúde mental à atenção básica, pelo qual duas ou mais equipes
desenvolvem conjuntamente uma proposta de intervenção pedagógico-
terapêutica.
A rede de proteção socioassistencial, por sua vez, compreende cinco
Centros de Referência de Assistência Social (CRAS), distribuídos entre os quatro
quadrantes do município, sendo que o quadrante Noroeste possui dois. Além
desses, há um Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS)
que oferta serviços especializados a pessoas e famílias em situação de ameaça
oudeviolaçãodedireitos.
Em 2011, a administração municipal, através do esforço da
Coordenadoria de Políticas para as Mulheres de Canoas, criou um Centro de
Referência para Mulheres em situação de violência, o Centro de Referência para
Mulheres – Patrícia Esber (CRM), estruturado em conformidade com a Norma
Técnica da SPM/PR para implantação desses serviços. Criou também uma Casa
15
Abrigo para mulheres em situação de risco de morte devido à violência de
gênero. Como aponta Telia Negrão (2013), com isso, iniciou-se no município um
ciclo de políticasvoltadas ao fortalecimentodas mulheres comocidadãs e para a
garantia de seus direitos humanos. A partir dos dois serviços especializados e de
uma delegacia especializada de atendimento à mulher (DEAM), uma rede
estabeleceu-se envolvendo judiciário, defensoria e promotorias especializadas,
além de Patrulha Maria da Penha e o programa Mulheres da Paz (Negrão, 2013).
Entretanto, eventuais interfaces dos serviços especializados com as demais
portas de entrada da rede – saúde, assistência social, educação – não lograram,
até agora, como se verá adiante, evoluir para laços consistentes e permanentes,
para práticas de referência e contrarreferência, fluxos definidos e pactuados, de
modo a consolidar uma rede ampliada e melhorar a resolutividade do sistema
deproteção.
Foi justamente a identificação de lacunas nessas interfaces o que
motivou Coletivo Feminino Plural a propor um projeto de intervenção junto a
atores dessas políticas, no sentido de despertar para a importância de um outro
olhar sobre as questões que afetam as mulheres, por serem mulheres, e cuja
abordagem, portanto, demanda um conhecimento diferente daquele
supostamente “neutro” que trata a todas/os “igualmente”. Esse foi, então, o
cenário escolhido para a experiência – um cenário amigável para a implantação
de políticas com enfoque de gênero, mas que, contudo, como costuma ser no
Brasil, ainda porta muitas das deficiências típicas de um sistema cuja demanda
excede largamente a capacidade dos serviços. Um cenário que, embora não
configurando o ideal, mostra-se promissor para a exploração dos limites e
possibilidades de uma atenção à saúde mental das mulheres com enfoque de
gênero.
Ocampodeinvestigação
A intervenção proposta, como já mencionado, foi pensada em duas
vertentes, e pode ser qualificada como pesquisa-ação. A primeira vertente teve
por objetivo a sensibilização de profissionais das rede de saúde, assistência
socialeespecializadadeatençãoàsmulheresparaaimportânciadeumenfoque
de gênero nos serviços, ou seja, para as implicações do ser mulher para a saúde
físicaementaleparaasegurançaebem-estardasmulheres.Asegundavertente
buscou reunir elementos do campo das práticas e das percepções de
profissionais dessas redes para melhor compreender a realidade e os entraves
postos a essas práticas, bem como apontar indicadores para a construção de
umalinhadecuidadoemsaúdementalcomenfoquedegênero.
A busca desses elementos dividiu-se, por sua vez, em três tipos de
sondagens: a primeira, vinculada aos cursos de formação e à interação com e
produção de trabalhos pelas/os participantes sobre suas experiências nas
16
unidades. Uma modalidade de pesquisa-ação e de construção participativa de
subsídios para o projeto, a qual é objeto do quarto capítulo deste livro. A
segunda consistiu de estudo de múltiplos casos de mulheres que passaram pelo
Centro de Referência Patrícia Esber em virtude de uma situação de violência
vivida. Seu objetivo foi identificar o reconhecimento ou não dos impactos da
situação vivida sobre a saúde física e mental dessas mulheres pelas/os equipes
dos serviços pelos quais elas passaram. Os estudos de caso são objeto do quinto
capítulodestelivro.
A terceira sondagem, que iremos descrever aqui, buscou conhecer a
percepção de profissionais da rede de serviços ampliada, sobre os temas
relacionados a uma atençãointegral à saúde das mulheres,comênfase na saúde
mental. O inquérito sondou desde o conhecimento sobre as diretrizes do SUS,
passando pelos fatores que podem afetar a saúde das mulheres e sua qualidade
de vida, até a capacidade dos serviços e da rede para darem resposta eficaz às
necessidades e demandas específicas das mulheres. A pesquisa foi baseada em
entrevistas semiestruturadas conduzidas com profissionais dos serviços da
atençãobásicadasaúde,daatençãoàsaúdemental,dosserviçosespecializados
de atenção à saúde da mulher e a mulheres em situação de violência, além de
gestoras das políticas relevantes. A pesquisa foi aprovada pelo órgão
responsável da Secretaria Municipal de Saúde (SMS) de Canoas e as entrevistas
foram realizadas mediante a autorização e mediação da Coordenação das
UnidadesBásicasdeSaúdedaSMS.
Realizaram-se, ao todo, 34 entrevistas, das quais quatro foram com
gestoras das políticas. As 30 restantes distribuíram-se entre 16 unidades de
serviços, envolvendo 33 profissionais. A Tabela 1 exibe a distribuição das
pessoas entrevistadas por tipo de unidade. Foram realizadas entrevistas em
todas as unidades de CAPS – Centros de Atendimento Psicossocial do município;
em 8 UBS – Unidades Básicas de Saúde, correspondendo a 29% das UBS de
Canoas e cobrindo três quadrantes geográficos; também com profissionais do
Posto da Mulher (especialidades ginecológicas), do serviço de atenção a vítimas
deviolênciasexual(HU)edoCentrodeReferênciadaMulher.
Tabela 1 - Entrevistadas/os por Tipo de Unidade nº
UBS 14
CAPS 10
Rede especializada de Políticas p/ mulheres 6
Gestão 4
Total 34
17
Perfildaspessoasentrevistadas
Houve uma predominância de entrevistadas mulheres (84%) em relação
aos homens e uma predominância de enfermeiras(os), no que tange à profissão
e função das pessoas entrevistadas (Gráfico 1). No entanto, é importante
18
Gráfico 1 - Pessoas entrevistadas por profissão/função
Gestora
Assistente Social
Terapeuta Ocupacional
Pedagoga
Técnica de Enfermagem
Advogada
Psicóloga
Médica
Enfermeira
4
9
13
3
4
1
1
1
1
Outra informação relevante com relação ao grupo de entrevistadas é o
tempo de experiência dessas pessoas no serviço, que variou entre 5 dias e 20
anos, com uma forte preponderância daquelas com bem poucos meses. Isso se
deu em função de recente mudança pela SMS do tipo de contratação das
equipes e da consequente substituição das terceirizadas por concursadas,
mudança que ocorreu de forma concomitante à implementação do projeto
Girassóis no município, gerando algumas dificuldades para os processos. Assim,
excetuando-se uma médica do Posto da Mulher, com 20 anos no serviço, e três
psicólogas dos CAPS, duas com 5 e uma com 10 anos no serviço, todas as demais
pessoas entrevistadas contavam com menos de três anos na unidade.
Considerando-seapenasasUBS,amédiadetemponaunidadefoide3,5meses.
Acondiçãoeavisãodequemestáparaouviretratar
As entrevistas buscaram ouvir gestoras e profissionais da rede para
tentar captar sua percepção sobre as interfaces da saúde com as condições de
vida das mulheres, imbricações entre o mal-estar físico, a saúde mental e as
desigualdades de gênero que marcam a vida de grande parte delas, e sobre a
capacidade dos serviços de conferir resolutividade às demandas. Para tanto, as
observar que, quando se desagrega o grupo por profissões, na profissão médica,
os homens representaram 44% das respondentes, confirmando os estudos que
apontam a prevalência masculina nos postos hierarquicamente mais elevados,
em qualquer setor do mercado de trabalho. O perfil das respondentes é
consistente também com estudos que apontam que as mulheres, não só são o
maiorgrupodeusuáriasdoSUS,comotambémconstituemagrandemaioriadas
profissionais que atendemnas unidades tanto da atençãobásicacomoda média
e alta complexidades, com ênfase nas funções de enfermagem, técnicas de
enfermagemeagentescomunitáriasdesaúde.
entrevistas exploraram quatro aspectos das práticas nos serviços: 1) a visão da
atençãopara além do serviço específicoem que atuae o preparo e sensibilidade
individuais para perceber aquelas imbricações; 2) a percepção sobre a
demanda, sobre as causas não orgânicas das enfermidades, e sobre como dar
conta desses casos; 3) o conhecimento de uma rede ampliada de atenção às
mulheres e a percepção sobre o funcionamento e sobre possíveis interconexões
entre os nós dessa rede; 4) a percepção sobre os vínculos entre o sofrimento
psíquico e as condições de vida das mulheres, com foco nos impactos da
violênciasobreasaúdemental.
O roteiro de entrevistas foi estruturado em seis blocos: o primeiro, de
dados sobre a pessoa entrevistada e sua unidade; o segundo focado na
participação em reuniões de rede e em atividades de capacitação, e no
conhecimento sobre diretrizes do SUS para a atenção integral à saúde e à saúde
das mulheres em particular. Um terceiro bloco sondou a percepção sobre os
tipos de demanda do serviço, sobre as demandas de saúde das mulheres e suas
causas, as conexões com a rede, a percepção de casos de violência contra a
mulhernãoexplicitados,eotipodeabordagemparaessescasos.Oquartobloco
explorou a percepção sobre as conexões e a integração do serviço com a rede de
atenção a mulheres em situação de violência, a existência de fluxos, protocolos
ou práticas de referência e contrarreferência para esses casos. O quinto bloco
explorou a percepção de sofrimento psíquico entre as usuárias do serviço e
sobre suas possíveis causas e vínculos com outras queixas de saúde, sobre
diferenciais em relação ao adoecimento psíquico dos homens e ao consumo de
substâncias psicotrópicas. Um bloco final buscou obter uma percepção
valorativa sobre a integração em rede, a capacidade de encaminhamento pelos
serviços e o investimento público em sua estrutura, além da visão sobre os
caminhosparaoaprimoramentodaintegralidadenaatenção.
Os dados resultantes foram examinados com base na técnica de análise
de conteúdo (Bardin, 1977), a partir da definição de categorias e dimensões de
análise, para cada um dos aspectos avaliados. Os principais achados seguem
descritos nas próximas seções que, por razões de espaço nesta publicação,
privilegiam as percepções de profissionais da atenção básica e da saúde mental,
não especializada na atenção às mulheres, uma vez que interessa-nos
justamente conhecer essas percepções para entender em que medida as
desigualdadesdegênerosãoreconhecidasemanejadadentrodaredebásica.
Noçõessobreredeintersetorialeatençãointegralàsaúde
Para o primeiro bloco de questões, definiram-se como categorias: 1.1
noções sobre rede intersetorial; 1.2 noções sobre integralidade em saúde; 1.3
conhecimento sobre abordagem integral à saúde das mulheres. Dimensões e
indicadores foram estabelecidos para cada uma das categorias, que orientaram
19
aanálisedasentrevistas.
Quadro 1 - Noções sobre rede intersetorial e atenção integral à saúde
Categorias Dimensões Indicadores
Noções sobre rede
intersetorial
Noções sobre a
política de saúde
integral das
mulheres
Noções sobre
integralidade
em saúde
Participação
Amplitude
Compreende para
além da saúde sexual
e reprodutiva
Usuária e sua queixa
Prática da Atenção
Determinantes sociais
Menção de outros setores
Nº de setores mencionados
Cita aspectos para além do ciclo
reprodutivo e dasquestões
ginecológicas
Reconhece as desigualdades de
gênero com questão de saúde
Compreende para além da queixa
Reconhece a necessidade de
envolver outros setores
Reconhece o impacto das
condições de vida
Sobre o conhecimento e participação em reuniões de redes
intersetoriais, observa-se um diferencial claro de percepção e de participação
entre, de um lado profissionais dos CAPS e do CRM, e de outro, das UBS. Nos
primeiros serviços, as entrevistas sugerem a existência de um diálogo maior do
serviço com outros setores da rede de atenção, e maior participação em
reuniões intersetoriais. Já nas UBS, a grande maioria de respondentes disse não
participar de reuniões (o que, em parte, se explica pelo fato de as pessoas, em
geral, serem bastante novas na unidade). Contudo, chama atenção, nas falas
daquelas que responderam afirmativamente, a referência a reuniões das
equipes do próprio serviço, ou entre diferentes equipes da saúde (médicas,
enfermagem, agentes comunitárias, p.ex.), como reuniões intersetoriais, o que
sugereumdesconhecimentosobreosignificadoderedeintersetorial.
O conceito de intersetorialidade está estreitamente vinculado ao de
atençãointegral no que tangeàs políticassociais. A abordagemintersetorial visa
romper as barreiras da fragmentação das políticas, que impedem a consecução
dos direitos sociais. Em geral, as políticas sociais buscam soluções para os
problemas da população, cada uma a seu modo, sem considerar a cidadã (o
cidadão) em sua totalidade, e tampouco a ação das outras políticas sociais que
também buscam a melhoria da qualidade de vida (Junqueira, 2004). Em vista
disso, têm crescido no âmbito da gestão pública os debates sobre
intersetorialidade, a qual pode ser definida como a articulação de saberes e
experiências com vistas ao planejamento, para a realização e avaliação de
políticas,programas e projetos, como objetivo de alcançar resultados sinérgicos
emsituaçõescomplexas(Junqueiraetal.,1998,p.24).
20
Outra dimensão analisada no primeiro bloco das entrevistas foi a
familiaridade das/dos profissionais com as Diretrizes da Política Nacional de
6
Atenção Integral à Saúde das Mulheres (PNAISM) . Nesse ponto, embora a
maioria das respondentes afirmasse conhecer pelo menos em parte essas
diretrizes, ninguém foi capaz de apontá-las, o que sugere a total ausência de
disseminação desses princípios na atenção básica. As pessoas que arriscaram
citar alguns pontos ao serem provocadas, mencionaram: “A questão do exame
preventivo, a questão do acompanhamento delas...”; “A parte da prevenção do
colo de útero e de mama, o pré-natal”; “A questão do aleitamento materno, CP
citopatológico, colposcopia”; “Geralmente, pré-natal, acompanhamento clínico
ginecológico de prevenção. Basicamente isso”. Falas de médicas(os) e
enfermeiras(os) das UBS reveladoras da persistência de uma visão de “saúde da
mulher” como “ginecologia e obstetrícia”, “gestação e maternidade” – mulher
como sinônimo de útero e mamas, um ser que não existe fora de seu ciclo
reprodutivo. Sinal de que a política no papel, quase 30 anos depois, ainda não
ganhouconcretude.
A concepção de integralidade em saúde, embora revele diferentes
entendimentos e ainda um certo grau de desconhecimento, alcançou mais
consistência nas falas. Entre as equipes dos CAPS, a rede aparece em diversas
falas como fundamental para dar conta de uma atenção integral. Já entre as
equipes das UBS, quando há resposta para a questão, ora ela aponta para uma
abordagem multidisciplinar do problema trazido pela usuária, ora para a
importância de ver a usuária como um todo, incluindo o contexto em que vive,
ora a perspectiva ampliada da ação em saúde – promoção, prevenção,
reabilitação. Surge, nesse ponto, também, o paradoxo entre princípios e
estrutura do SUS, que impõe sérias limitações à integralidade na atenção,
embora se possam observar esforços individuais no sentido de vencer essas
limitações.Algumasfalassãorepresentativas:
Acho que no atendimento a gente tem que buscar além da queixa. Olhar [...]o
contexto todo. Não só a queixa dela. Ir mais a fundo, porque muitas vezes essas
queixas estão escondendo algo que a gente (não sabe). Existem outras questões
que perpassam a saúde, que afetam a saúde como questões sociais (Enfermeira
E4,coordenadoradeUBS2).
Integralidade em saúde, eu acredito que é tu ver o paciente como um todo. Por
exemplo, tu vai coletar um CP, não é só um CP. É tudo o que envolve a saúde da
mulher. É todas as questões que ela venha te relatar. É importante que isso seja
uma escuta qualificada, ou seja, tu poder atuar de alguma forma naquilo que ela
tefalou.(EnfermeiraE8,UBS5).
É dar uma assistência de forma mais ampla. Vendo não só a questão da
necessidade que o paciente vem a descrever, mas tentando compreenderqual é o
contexto do território, de que forma está organizado esse ambiente [em] que ele
estávivendo,praconseguircompreenderseéalgumadoecimentonatural,setem
21
alguma influência do meio em si. E também compreender que não é só um
profissional, só uma categoria profissional que vai dar esse suporte pra ele. E que
não é também só a saúde, que vai envolver a educação, meio ambiente, e outros,
assistênciasocial, outrosórgãos(EnfermeiraE9,UBS6).
Nós trabalhamos aqui num permanente paradoxo. As políticas nacionais de
saúdedafamíliapreveemqueasequipesdesaúde,comasuadiversidade,comos
diferentes saberes, têm essa missão de implementar uma política assistencial
humanizada que possa enxergar a pessoa na sua integralidade. Esse é o nosso
desafio, porque, na verdade, nós vivemos uma contradição, é um paradoxo, ou
seja, nós temos, por um lado, enormes carências dos usuários - de acesso aos
serviços de saúde. E temos também, por outro lado, as metas dos gestores. Então
nós, aqui, como equipe de saúde da família, vivemos esse permanente paradoxo.
Ao mesmo tempo que nós temos como meta a humanização e a atenção integral,
nós temos agendas superlotadas, nós temos pouco tempo pra atender os
pacientes, nós temos demandas acima da nossa capacidade.[...] A saúde da
família é um processo em construção. Quando nós atendemos um usuário, a
unidade básica de saúde é um centro de escuta dos sofrimentos e dores das
pessoas. Então, nós nos empenhamos e lutamos aqui diariamente pra gente
conseguir, no tempo que nós temos. A agenda do médico é uma agenda que tem
umtempoútildequinzeminutos(MédicogeneralistaM7,UBS7).
A integralidade, enquanto princípio orientador do SUS, é oficialmente
definida como um conjunto articulado e contínuo das ações e serviços
preventivosecurativos,individuaisecoletivos,exigidosparacadacasoemtodos
7
os níveis de complexidade do sistema . Tal definição mostra-se muito limitada
para dar conta dos múltiplos sentidos e distintas perspectivas da integralidade
no âmbito da saúde. Vários estudos têm sido desenvolvidos tanto sob
abordagens teóricas que buscam aprofundar a compreensão sobre os diversos
sentidos desse termo polissêmico, quanto da perspectiva empírica de avaliação
8
da efetividade ou não do princípio nas práticas do SUS . Mattos (2006) defende
que, ao invés de se buscar a consolidação do termo integralidade em um
conceito preciso e operativo, deve-se mantê-lo como uma imagem-objetivo, ou
seja, um objetivo situado em um horizonte ainda distante – mas não
inalcançável; não utópico. É uma imagem que traduz uma transformação social
buscada, a qual se acredita possível em um horizonte temporal definido, e que
traduz também um pensamento crítico – “um pensamento que se recusa a
reduzirarealidadeaoqueexiste”.
A compreensão do que é integralidade, para Mattos(2006), envolve pelo
menos três categorias de sentidos: integralidade como um traço da boa
medicina;integralidadecomoummododeorganizaraspráticas;integralidadee
políticas especiais. Na primeira categoria de sentidos, o autor aponta a
necessidade de superação do distanciamento estabelecido entre a assistência
médica, orientada por uma racionalidade biomédica (focada na doença), e a
22
saúdecoletiva(comfocopreventivo).Paraoautor,
Uma primeira dimensão da integralidade, na prática, se expressa exatamente na
capacidade dos profissionais para responder ao sofrimento manifesto, que
resultou na demanda espontânea, de um modo articulado à oferta relativa a
ações ou procedimentos preventivos. Para os profissionais, isso significa incluir
no seu cotidiano de trabalho rotinas ou processos de busca sistemática daquelas
necessidades mais silenciosas, posto que menos vinculadas à experiência
individualdosofrimento.Paraosserviços,issosignificacriardispositivoseadotar
processos coletivos de trabalho que permitam oferecer, para além das ações
demandadas pela própria população a partir de experiências individuais de
sofrimento,açõesvoltadasparaaprevenção(MATTOS,2004p.1413)
Embora essa postura na prática médica traduza a boa medicina, Mattos
alerta para os cuidados com essa prática preventiva, para não se incorrer na
medicalização, ou regulação dos corpos – típica da medicina preventiva e
invasora da privacidade – ou na simples expansão do consumo de bens e
serviçosdesaúde.Aintegralidadecomoboa medicinareflete,enfim,o encontro
entre médica e usuária do serviço – um encontro atento, que envolve escuta,
acolhimentoerespeitoàsubjetividadedaoutra.
Apercepçãosobreademandaesuascausas
O segundo aspecto trabalhado nas entrevistas envolveu a percepção das
profissionaissobreademanda,sobreascausasnãoorgânicasdasenfermidades,
sobreprevalênciadesituaçõesdeviolêncianavidadeusuáriasesobrecomodar
conta desses casos. O bloco de questões que contemplava esse aspecto
possibilitou, de um lado, uma análise quantitativa sobre o tipo de demanda que
chega às unidades, ainda que não baseada em dados de registro, mas na
percepção das equipes. Por outro lado, permitiu uma análise qualitativa de
aspectos das práticas relacionados com o princípio da integralidade na saúde.
Para essa última, elegeram-se duas categorias, com respectivas dimensões e
indicadores,conformeseobservamnoquadro2.
Quadro 2 - percepção sobre a demanda e suas causas
Categorias Dimensões Indicadores
Adoecimento
das mulheres
Percepção sobre
a demanda
Percepção de causas
não biológicas das
enfermidades
Percepção de
sofrimentos silenciados
Tipo de causa atribuídas
Relação com aspectos sociais
ou psíquicos
Identificação de posturas e
traços psíquicos
continua
23
Com relação ao perfil da demanda, considerando-se os serviços não
específicos para mulheres – CAPS e UBS – há uma grande diferença entre o
público que os acessa. Enquanto nos CAPS (exceto para aqueles dedicados a
crianças e adolescentes) o público predominante é de homens jovens e adultos
(entre 70% e 85%), nas UBS predominam as mulheres acima dos 40 anos (70% a
80%), grande parte delas idosas. A maior procura dos homens pelos serviços de
atenção à saúde mental parece ter uma forte relação com a dependência
química. O acesso das mulheres ao serviço é percebido como resultado de seu
papeldecuidadoras:
Acredito que é bem dentro desse viés de cuidadora. Cuidadora de seus filhos, de
seu marido, pais... Quando é para elas, talvez porque ela precisa estar inteira,
precisa estar forte. É o que acontece aqui com os grupos de família, em que a
maioria são mulheres, que vêm pelos filhos, buscando se fortalecer, para então
trazerosfilhos(AS1,CoordenadoradeCAPS).
Já as justificativas mobilizadas para a maior procura das mulheres pela
atenção básica estão associadas a fatores culturais: as mulheres tenderiam a
cuidarmaisdesi,etambémdosoutros,sermaispreocupadas,ter,desdecedo,o
hábito de fazer exames preventivos; enquanto os homens tenderiam a recusar-
se a admitir que estão doentes, porque isso seria um sinal de fragilidade.
SegundoummédicodaESF,oshomens“sóvãodearrasto”àUBS(M7,UBS).
Euacho queas mulheressão maisesclarecidas,sabe? Euacho que,sepreocupam
mais. [...] a mulher, desde mais jovem, já tem aquele incentivo, de procurar
prevenir, por exemplo, o câncer de colode útero [...].Então, ela já criou o hábito de
vir no posto de saúde, diferente do homem que, teoricamente, vai começar fazer
prevençãoapartirdosquarentaanosemolhelá...(M5,médicodeUBS).
Algumas falas também atribuem essa diferença ao fato de as mulheres
disporem de mais tempo – “eles trabalham e as mulheres não” (Médica M8,
UBS8); “nós temos bastante donas de casa aqui, então, elas têm mais
disponibilidade”(E12,enfermeira,UBS8);“Muitaspacientesnãotrabalham[...].
O homem está trabalhando e a mulher tem mais tempo pra buscar ajuda,
enquanto o homem trabalha mais” (M3, médico, UBS). Associar o trabalho
doméstico feito pelas mulheres ao não trabalho é uma das práticas discursivas
Categorias Dimensões Indicadores
Tipo de prática
adotada
Escuta atenta
Respeito à subjetividade
e autonomia das usuárias
Casos cujo atendimento extrapola
o objeto da consulta
Aconselhamento sem imposição
continuação
24
que contribuem para reproduzir as desigualdades de gênero, conferindo ao
9
trabalhoatribuídoàsmulherespelasociedadepatriarcalmenorvalor .
Quanto ao tipo de demanda, se referenciada ou espontânea, na maior
parte dos CAPS, ela é sempre referenciada, oriunda das UBS e motivada por
transtornomentalgrave:“Usuáriosquesãograves,quetêmriscoasioucolocam
risco a outros, que precisam de um olhar mais próximo, que estão numa
desorganização maior, é que têm indicação de estar aqui no CAPS” (TO1,
Coordenadora CAPS1). Mudanças recentes na organização desses serviços
abriram a possibilidade de atendimento de portas abertas e, em alguns CAPS,
observou-se também uma demanda espontânea tendente a crescer. Já nas UBS,
a demanda é espontânea, mas é feita por teleagendamento, o que, na avaliação
de algumas equipes, interpõe alguma dificuldade de manejo da agenda pelas
unidades.
Anossademandaéporteleagendamento.[...]Claro,quandotemalgum...quando
a gente atua nas equipes de saúde, [...]a gente já conhece todos. Então, é claro,
nós temos duas ou três emergências que a gente chama de encaixe: chegou
fulano de tal que está precisando...a gente encaixa. Vem direto aqui, fala comigo,
seagentenãoresolve,passapromédico(EnfermeiraE3,UBS1).
Na verdade, a demanda é uma questão bem controversa, porque a gente, muitas
vezes, não tem autonomia pra fazer nossa agenda. Então tem a questão do
agendamento por telefone que, às vezes, as pessoas que não são da área acabam
sendo agendadas pra gente atender. Outras vezes, as pessoas que são, que
querem marcar retorno não conseguem, porque a agenda limita. [...] A gente
queria ter maior autonomia, porque em vários grupos hipertensos, diabéticos,
gestantes,agentetemtidoproblemasemagendarretornos(MédicoM2,UBS1).
É que nós chamamos, assim, o melhor termo é demanda programada. [...] O
usuário liga pro teleagendamento, ele programa uma consulta e recebe um
agendamento. Então, nós trabalhamos com demandas programadas que muitas
vezes ocupam demais o nosso tempo. E também temos as demandas imediatas,
que é o usuário que procura a unidade sem uma consulta marcada. Aí nós
fazemosoacolhimento,aescuta(MédicoM7,UBS7).
Noqueconcerneaosprincipaisproblemasdesaúdeentreaspessoasque
buscam os serviços da atenção básica, há unanimidade entre as equipes ao
apontarem hipertensão e diabetes como o problema mais prevalente em todas
as regiões do município, embora algumas afirmem não ser essa,
necessariamente, a queixa que leva as usuárias à unidade. A saúde mental
também aparece em alguns depoimentos e a questão da medicalização surgiu
deformaespontâneanafaladeumaenfermeiracoordenadoradeUBS:
Então, a gente vem enfrentando uma dificuldade bem grande no município, de
uma forma geral, assim, na questão de adesão a tratamento e consultas de
rotina. Então, o paciente, ele vem num costume há longo prazo aí de renovações
25
de receitas, das mais diversas possíveis, inclusive de psicotrópicos. Então tem
casos de pacientes que não consultam há mais de dois anos, mas que vêm
renovando uma receita com a mesma miligrama nesses últimos dois anos. [...] E
elesóquerarenovação,elenãoqueravaliação,nãoqueraconsulta(Enfermeira
E9,UBS6,ênfasesminhas).
Questionadas sobre demandas específicas das mulheres, repetem-se
nas respostas os problemas da hipertensão e da diabetes, o que é consistente
com o perfil identificado do público atendido – majoritariamente mulheres de
meia idade e idosas. Mas surgem também outras questões que vão ao encontro
dospressupostosdapesquisa,comoseobservanasfalasaseguir:
Diabete e hipertensão, não tem como fugir. Depressão, muito. E... coisa
específica de saúde da mulher,... não é o principal assim, é mais doença clínica
mesmo(MédicoM3,UBS2).
Tem a questão das cobranças básicas a nível de ministério, que é a coleta de
preventivo, de mamografia por cota, dependendo da faixa-etária. Agora se tem
também a oferta de testes rápidos pra sorologias de sífilis, AIDS, HIV e hepatites,
mas tem muito a questão forte também do uso de psicotrópicos e dessa
renovação,dessadependênciaporessarenovação(EnfermeiraE9,UBS6).
Na totalidade das entrevistas houve referência a sofrimento psíquico
das mulheres usuárias. Entre os transtornos identificados nas UBS visitadas
aparecem com muita frequência depressão, ansiedade, tristeza constante,
desânimoetc.
Sim. 90% das mulheres [que acessam o serviço] têm queixa de saúde mental.
Choro persistente, tristeza interior, falta de vontade de fazer as suas atribuições,
mulheres muito infelizes nos seus casamentos, infelizes no trabalho, sem
perspectivadefuturo...(EnfermeiraE7,UBS4,ênfasesminhas).
[Queixas de saúde mental] É bem frequente. A maioria é depressão e ansiedade.
Asduasco-morbidadesmaisfrequentes(MédicaM4,UBS3).
A percepção dos sofrimentos silenciados, por sua vez, entre os quais a
violência contra a mulher, apareceu em pelo menos metade dos serviços
pesquisados. Para algumas equipes, a violência vivida aparece com frequência;
para outras, não é comum, mas acontece. Observa-se que a identificação e a
possibilidade de trabalhar essa questão dependem do interesse da profissional
envolvidanoatendimento:
Às vezes a gente não consegue tirar isso de início, às vezes é com o vínculo que tu
consegues fazer isso. Mas, se tu vais fazendo uma escuta dos casos, a maioria ou
está passando por uma situação de violência, ou passou por isso na sua vida
(TerapeutaOcupacionalTO1,CAPS1).
26
Eu acho que é possível perceber. Independente de que muitas coisas às vezes não
são ditas. Se a gente não fala, isso se expressa com o corpo. Vai de deixar à
vontade, investigar. [...] a mulher, ela necessita de um vínculo pra poder se dispor
eabrir(EnfermeiraE4,coordenadoraUBS2).
Não é comum, mas não é raro. Só que pra gente chega, assim, é geralmente
durante a conversa de saúde da mulher, numa coleta de preventivo, ou algum
pedidodemamografia,nahoradequestionarseelatemumavidasexualativa,se
ela está feliz com sua sexualidade [...]. E aí, na hora de esmiuçar o que é a
sexualidade e como ela vivencia isso, começam os relatos de que, na verdade, às
vezes, o ato não é consentido, mas é porque ela é casada e ele, então, enquanto
marido, tem esse direito. Aí já começa a perceber essa primeira violência. E pra
ela realmente chegar a ponto de dizer que o marido bate nela ou de que ela sofre
violência explícita assim, é mais, quando ela já vem sofrendo por anos a fio. Não é
numprimeiromomentoelaváchegarevaitecontar(EnfermeiraE9,UBS6).
No Posto da Mulher, para onde são encaminhados casos que demandam
atendimento ginecológico especializado, parecem aparecer com frequência
casos que trazem impactos de violências e abusos sofridos na infância ou
adolescência: “Recebemos muita paciente nessa fase, que nos transporta até
um passado dessa pessoa, com queixas sexuais, muitas queixas sexuais
relacionadas a abuso na infância. E [...]não que apareça nessa fase, mas muitas
vezes são pessoas que por tu dar condições de ela te falar...” (Médica M1, Posto
da Mulher). A escuta atenta é fundamental para isso e, nesse aspecto, vale
observar, por um lado, a quase impossibilidade de médicas e médicos nas UBS
exercerem uma tal escuta, dado o exíguo tempo de que dispõem para cada
consulta. Por outro lado, vale destacar o esforço das equipes de enfermagem no
aproveitamento do tempo de coleta de CP para fazerem essa escuta e
estabeleceremvínculosdeconfiançacomasusuárias.
Quanto à última dimensão de análise na categoria da percepção da
demanda, não foi possível, a partir das falas em unidades de CAPS e de UBS,
analisar em que medida as práticas adotadas respeitam a autonomia e
subjetividade das usuárias. Um único depoimento, relacionado a situações de
violência identificadas, sugere um reconhecimento e respeito à vontade da
mulhercomrelaçãoàformacomoquerlidarcomaquestão:
Quando é uma violênciaque a mulher refere no consultório, mas que ela não quer
que saia dali, a gente não pode encaminhar. Por exemplo, mulheres casadas que
sofrem estupro por parte do marido. Nas consultas para coleta do CP, elas
relatam que não têm mais desejo sexual, mas os maridos forçam a relação. Isso
é muito comum aqui. Só que elas relatam, mas quando a gente sugere alguma
providência, elas se negam, e o profissional não pode acionar um Conselho, uma
Delegacia da Mulher, porque se trata de um "estupro consentido", vamos dizer
27
assim. É uma violência, mas o profissional fica de mãos amarradas (Enfermeira
E7,UBS4,ênfasesminhas).
Oconhecimentodaredeampliadaexistentenomunicípiopoderiaajudar
essa profissional a orientar melhor a usuária, apontando outros espaços de
escuta e de empoderamento que lhe permitissem superar a violência
continuadacertamentecausadoradesofrimentopsíquico.
Conhecimentodaredeintersetorialdeatençãoàsmulheres
Outra dimensão referida às práticas adotadas por profissionais e equipes
é a do conhecimento da rede intersetorial e percepção sobre sua integração ou
não. Para essa categoria de análise, definiram-se quatro dimensões: o
conhecimento dos serviços da rede, a percepção sobre sua integração, a
existência de fluxos e a existência de protocolo para identificação de sofrimento
psíquicodecorrentedesituaçõesdeviolência.
Quadro 3 - conhecimento da rede intersetorial
Categorias Dimensões Indicadores
Noções e
percepções
sobre a rede
intersetorial
Conhecimento dos serviços
Percepção de
integração da rede
Existência de fluxos
Existência de um
protocolo para
identificação de
sofrimento psíquico
decorrente da violência
Enumeração dos serviços
Referência e contrarreferência
Descrição do fluxo
Roteiro de anamnese
Os depoimentos relativos ao conhecimento e mobilização das redes
revelam algumas diferenças de articulação entre CAPS e UBS. Observa-se entre
as pessoas entrevistadas dos CAPS um maior conhecimento sobre os recursos e
serviços disponíveis no município, as quais informam alguma interação com
CRM, Casa Azul, CRAS, CREAS e Conselho Tutelar (CT). Já as equipes das UBS
entrevistadas quando muito mencionam o CAPS, a assistência social (CRAS) e
alguma orientação à usuária para fazer um Boletim de Ocorrência (B.O.) na
delegacia, em casos de identificação de violência contra a mulher. Observa-se,
pelos depoimentos, que essas últimas equipes mobilizam inicialmente seus
recursos internos – Agentes Comunitárias de Saúde, equipes de enfermagem – e
tentam manejar por si mesmas casos de violência e de sofrimento psíquico que
nãoatendemcritériosdeencaminhamentoparaCAPSouparaoutrossetores.
[A] gente procura, quando detecta, tomar as medidas cabíveis, junto com a
equipe de saúde e fazer algum tipo de intervenção nesse sentido. Porque só falar
28
coma mulher... ela está, digamos, dentrode uma realidade que ela não consegue
sozinha resolver essa questão. Então, são sempre problemas bem complexos. São
problemasquemuitasvezesdemoratempopraaparecer.Elasprecisam,àsvezes,
de um tempo pra estabelecer um vínculo, não só comigo, mas com toda a equipe
de saúde, com a enfermagem. Então, muitas vezes elas, durante o exame de CP,
queéfeitoaquipelasenfermeiras,elasfalamdesituações...(MédicoM2,UBS1).
E a gente procura, na medida do possível, dar algum encaminhamento pra esses
casos. É, o primeiro passo, a gente costuma conversar com o agente comunitário
pra saber como é que é a realidade daquela família, quem são os moradores, se
tem crianças [...]. E a partir daí é passado, assim, pra realmente conversar,
principalmentecomosetordeassistênciasocial(MédicoM2,UBS1).
As falas nas UBS mostraram que a maior parte das equipes entrevistadas
não conhece a rede intersetorial de atenção a mulheres em situação de
violência. Aparentemente não há uma prática de referência e contrarreferência
quando se tratam de encaminhamentos para serviços de outros setores das
políticas. A existência de fluxos estabelecidos de referência e contrarreferência
intersetorial é fundamental para a integralidade da atenção à saúde – a
integralidade considerada nos três sentidos principais – como um traço da boa
medicina; como modo de organizar as práticas; como políticas especiais, que
atentem para as especificidades de certos grupos sociais. Fluxos que
possibilitem uma atenção que, para além de tratar, incida na prevenção e na
promoção da saúde, tendo em conta seus determinantes sociais. Fluxos que
permitam organizar as práticas na forma de uma ação concertada e sinérgica
envolvendo todos os setores das políticas sociais; e focar nas especificidades e
necessidades de saúde de cada grupo social, com uma abordagem correta
fundadanasdiretrizesdapolíticaespecífica.Issovaleparaasaúdedasmulheres,
para a saúde dos homens, para a saúde de crianças e adolescentes etc. As
entrevistas revelam a inexistência desses fluxos e, além disso, uma articulação
intersetorial muito frágil e totalmente dependente da iniciativa e do esforço de
uma ou outro profissional. Tampouco se identificaram nas falas iniciativas de
capacitaçãoparaotrabalhoemredeintersetorial.
Da mesma forma, a inexistência de um protocolo para identificação de
sofrimento psíquico decorrente de violência contra a mulher deixa as equipes
inseguras em relação ao tipo de encaminhamento e, mesmo, ao modo de
condução do caso na própria unidade. O sofrimento psíquico tende a
apresentar-se, na atenção básica, mais frequentemente na forma de sintomas
somáticos do que psicológicos. Múltiplos sintomas físicos podem, muitas vezes,
dificultar um diagnóstico correto, prolongando o sofrimento da paciente,
levando a um tratamento inadequado, e provocando sua busca reiterada dos
serviços de saúde. Por essa razão, o desenvolvimento de protocolos clínicos
para a identificação e tratamento de sofrimentos psíquicos causados por
29
determinantes sociais é fundamental para a resolutividade de inúmeros casos
noâmbitodaatençãobásica.
Percepçãodosvínculosentresofrimentopsíquicoedeterminantessociais
A sondagem sobre a percepção do sofrimento psíquico como resultado
das condições de vida das mulheres buscou analisar esse aspecto das práticas
segundo três dimensões: o reconhecimento de queixas que remetem à saúde
mental; as causas que são atribuídas a essas queixas; e a questão da
medicalização das mulheres com substâncias psicotrópicas. O quadro 4 a seguir
ilustra essas dimensões e seus respectivos indicadores identificados na
pesquisa.
Quadro 4 - percepção dos vínculos entre sofrimento psíquico e condições de vida
Categorias Dimensões Indicadores
Percepção de
sofrimento
psíquico
vinculado
às condições
de vida
Reconhecimento de queixas
de saúde mental
Causas atribuídas às queixas
Medicalização
Identifica ou não na demanda
Assédio moral, violência, sexo
forçado, conflitos familiares,
sobrecarga na família
Razões identificadas, atitude
perante a indicação de medicação
psicotrópica, alternativas sugeridas
No que tange à primeira dimensão, as entrevistas realizadas não
confirmaram o pressuposto da pesquisa, de que faltaria na atenção básica o
reconhecimento do sofrimento psíquico que provoca o mal-estar e o
adoecimento das mulheres. Todas as pessoas entrevistadas, tanto nos CAPS
comonasUBS,CRMePostodaMulherresponderamafirmativamenteàquestão
sobre a identificação de queixas relacionadas à saúde mental por parte de
mulheres atendidas no serviço. Mais do que isso, muitos depoimentos vinculam
esse sofrimento às situações vividas por essas mulheres e reconhecem nele as
causasdoadoecimento,porexemplo:
É... depressão, transtorno de ansiedade, transtorno bipolar, ... luto. Muitas vezes,
tanto depressão quanto transtornos de ansiedade são causados por situações
vividas dentro de casa. Não diria que por agressão física ou verbal, mas por
atritos, entre elas e os companheiros, os maridos, mas é uma coisa muito
recorrente assim. Eu até diria que não é muito atrás da hipertensão e diabete.
Tem muitos casos de depressão, de transtorno de ansiedade também por
sofrimento que predomina bastante em mulheres em relação a, algumas vezes, a
atritosfamiliares(MédicoM2,UBS1,ênfaseminha).
30
Observa-se, também, a percepção das queixas vagas como um sintoma
de algum sofrimento psíquico não enunciado, como se pode ver nas falas
reproduzidasaseguir:
Porque ela nunca chega dizendo que está em sofrimento mental. Ela não chega
chorando e diz que não sabe por que começou a chorar. Ela chega aqui com uma
"dor no dedo", só que esse dedo não tem nada. E aí tu revira do avesso e não
aparece nada. E aí tu deixa ela falar, falar, e começa a perguntar se tem alguma
coisa diferente, se aconteceu alguma coisa diferente. E é nesse ponto que elas
começamerelatamascoisas(EnfermeiraE7,UBS4).
Muitasvezessãosintomas,digamosassim,sintomasfísicosequeagentecomeça
a perguntar e começa a descobrir que tem um fundo emocional naquele sintoma
físico. Então, uma dor de cabeça, daí tu pergunta que momento ela costuma
acontecer mais, “ah, quando eu fico mais nervosa, quando eu fico mais
estressada”.(MédicoM2,UBS1).
[...] quando nós abordamos a pessoa na sua integralidade, nós temos uma
dimensão física, que se manifesta por sintomas e queixas funcionais, digamos
assim. Como, por exemplo, dor de cabeça, dor nas costas, mas essas queixas
físicas funcionais, elas estão interligadas e, muitas vezes, são determinadas pela
dimensão mental do indivíduo. Que seria assim, uma dimensão que inclui as
emoções, os pensamentos, as vontades e que, muitas vezes, o indivíduo, nessa
dimensão mental, ele está em sofrimento, pelas suas circunstâncias de vida, E
essa dimensão mental, ou psíquica ou psicológica, ela determina, muitas vezes,
queixas físicas, que são, digamos, o que muitas vezes o usuário..., ele manifesta.
Então, existe uma diferença, entre ouvir a queixa e escutar a queixa. Então, a
atenção à pessoa, o profissional da saúde precisa abordar integralmente isso.
[...] é muito comum as queixas físicas não terem relação orgânica. (Médico M7,
UBS7,ênfasesminhas).
As causas apontadas pelas entrevistadas para esse sofrimento são
associadas, em geral, a conflitos familiares, insatisfação com o casamento e a
vida sexual, controle excessivo por parte dos maridos, humilhação e assédio
moral no lar. Algumas vezes, menciona-se também o processo de
envelhecimento como causador de processos depressivos tanto em mulheres
como nos homens. A violência física aparece em bem poucos relatos, mas a
violência sexual ou, no mínimo, as relações sexuais não desejadas parecem ser
bemmaisfrequentes.
A questão da medicalização excessiva, por sua vez, também é percebida
por parte das equipes e sugere ser um recurso a que as usuárias se agarram
como se fosse uma solução para os seus problemas. Foram identificados
esforços em algumas UBS no sentido de desmedicalizar as usuárias, o que, visto
sob um ângulo, sinaliza para a dimensão grave desse processo de medicalização
entre as mulheres, a ponto de mobilizar estratégias das equipes de saúde para
31
reverter tal quadro. De outra perspectiva, aponta para o fato positivo da
existênciamesmadessasiniciativas.
Ela que carrega a família. É ela que sofre mais as perdas. E daí, como elas vêm de
uma cultura de medicação, então acham que a medicação é pra tudo. A gente
estátentandotirarumvício,tiraramedicação,eelasnãoconseguem.[...]Eelas
gostam,porqueelasdeitamedormem(EnfermeiraE3,UBS1).
[...]agenteestátentandofazerumdesmame.[...]fazoitomesesquenósestamos
aqui. A gente vai pegar todos esses que tão fazendo uso dessa medicação há
muito tempo e vamos tentar ver ou encaminhar, daí, com o psiquiatra para fazer
avaliação. Porque é muita medicação, é muita... eles tão tomando
[psicotrópicos]demais(E3,UBS1).
[...] o pessoal toma bastante remédio controlado aí. Eles já vêm... Às vezes até tu
tentadesmamaralguns quetuvêquetãomeioexageradoassim,no teupontode
vistaassim,eédifícil,porqueestãohálongotempousando(M5,UBS4).
Eu acho que num primeiro momento vem mais a questão dessa frustração, por
não conseguir, em alguns momentos, se ver nesse papel de mulher e de
independente, de dona do seu corpo e da sua vida. E aí, acaba gerando um
processo depressivo, não necessariamente uma depressão. E aí, se consulta e já
nessaconsulta,comohojeemdiasetemmuitoacessoàinformação,elasporsisó
já entraram em contato com alguma amiga, ou alguém que já tomou algum
psicotrópico e que se sentiu, [...] melhor [...]. Então, elas já chegam nessa
consultacomessepedidoeessanecessidade(EnfermeiraE9,UBS6).
A medicação psiquiátrica das mulheres, eu vou te dizer que a grande maioria usa
porqueelaschegamaquicomailusãodequeexiste"umapíluladafelicidade".Ela
vai tomar aquele comprimido e o marido vai sacar que ela não quer fazer sexo, a
criançaquechoravaipassar(EnfermeiraE7,UBS4).
Ainda assim, percebe-se em muitas falas a prática de prescrição de
psicotrópicos por médicas(os) generalistas ou de saúde da família e por
ginecologistas,mesmoparacasosde“transtornoslevesemoderados”.
Como aqui a gente trabalha com médico da família, todos os casos de transtorno
leve e moderado que não tenha que ser encaminhado ao CAPS, casos difíceis ou
com persistência já e tal, que fique aqui. O psicológico, quem faz o diagnóstico,
quemfazoacompanhamentoenósdasaúdedafamíliaeomédicoqueprescreve.
E acho que, sim, acho que todos têm que dar atenção. Se eu vou fragmentar de
novo, “não, só quem prescreve isso é o psiquiatra”, sabe? Então daí tu não tem, tu
não tá olhando ela como um todo, e principalmente no seu território (Enfermeira
E4,UBS2).
Então, na rede de saúde, por uma questão de demanda, a gente acaba... os
próprios clínicos são os que mais receitam. Porque aquela situação ideal, tu vê
32
uma situação que pode enquadrar no quadro de depressão, pra daí tu
encaminhar pra um psiquiatra, pra daí ele avaliar se é pra gerenciar um
tratamento ou não. Tu perde muito tempo nesse processo, assim, a pessoa acaba
ficando muito tempo em sofrimento. Então, na prática, o próprio clínico é quem
maisacabareceitandoessetipodemedicação(MédicoM2,UBS1).
Portanto, apesar de reconhecerem que o sofrimento, na maior parte das
vezes, tem causas sociais e não orgânicas, e apesar de reconhecerem a
disseminação preocupante do uso de psicotrópicos nessa população, os
profissionais seguem prescrevendo essas medicações. Vale observar, também,
nessa última fala do médico de UBS, a referência à “rede de saúde” como
exclusivamente a da atenção básica. Essa menção, embora não de forma assim
explícita, transpareceu em outras falas e pode ser tomada como um sintoma da
faltadeconexãoentreosserviçosdaatençãobásicaedasaúdemental,edafalta
de integralidade da atenção, desta vez com relação à integralidade como um
modo de organizar as práticas. A inexistência de um trabalho integrado em rede
provocaa demora a que o médicose refere, prolongando, consequentemente, o
sofrimento da usuária do serviço, e deixando o profissional sem outro recurso
queodereproduzirpráticasqueelemesmopercebecomoprejudiciais.
Percepção sobre a capacidade dos serviços de conferir resolutividade às
demandas
O último bloco de questões avaliou a percepção das pessoas
entrevistadas quanto a três quesitos: a integração entre os serviços da rede, a
capacidade dos serviços de darem encaminhamento/manejarem situações de
violência e seus agravos, e o investimento da administração municipal na rede.
Os quesitos deveriam ser avaliados com pontuação de 1 a 5, sendo que 1
representa nenhum(a) e 5 representa plena(o). Quanto à integração da rede,
69% das respondentes atribuíram 3, significando que consideram haver algum
grau de integração, mas ainda distante do ideal. Sobre a capacidadedos serviços
de manejar e dar encaminhamento adequado a casos que envolvam situações
de violência, as percepções foram bem diversas: plena (5) correspondeu a 6%;
quase plena (4), a 38%; média (3), a 31%; e muito pouca (2), 25%. Já a percepção
do investimento da administração municipal na rede dividiu-se de forma
perfeitamenteequilibradaentreasavaliaçõesde1a4,com25%paracadauma.
Entre os principais desafios para a integralidade na atenção, surge
repetidamente a necessidade de integração da rede, de um fluxo estabelecido,
que seja do conhecimento de todos os serviços, de melhor comunicação entre
os serviços e da necessidade de pessoal preparado/ capacitado para atender
essetipodesituação.
33
Consideraçõesfinais
A prevalência de sofrimento psíquico entre mulheres, associada às
persistentes desigualdades de gênero na sociedade e aos papéis sociais a elas
atribuídos,ficamuitoevidentenosdadosqueemergiramdapesquisadecampo.
A constatação de outros estudos, da excessiva medicalização sem qualquer
outra abordagem que fortaleça as mulheres de modo a apontar-lhes uma porta
de saída desse sofrimento, também ficou corroborada pelos depoimentos de
profissionais entrevistadas. A partir dos relatos obtidos, observa-se que na
atenção básica, em Canoas, só muito raramente o sofrimento psíquico das
mulheres é percebido por profissionais da medicina como associado a situações
de violência vividas, sendo mais relacionado a conflitos familiares, perdas,
sobrecarga de encargos domésticos e insatisfação no casamento. Violências,
quando identificadas, são em geral psicológicas, como assédio moral,
humilhações, restrição à liberdade de escolha. Já, em vários relatos de
profissionais da enfermagem que se engajam em uma escuta ativa durante
examesdecoletadoCP,surgeaidentificaçãodeviolênciasexual,principalmente
naformaderelaçõessexuaisindesejadasmas“impostas”pelocasamento.
A análise dos dados não confirmou a suposição de que o mal-estar das
mulheres e seus vínculos sociais não seriam percebidos pelas equipes na
atenção básica. Boa parte das entrevistas revelou que as e os profissionais que
atuam em UBS sim conseguem reconhecer e estabelecer vínculos entre
sintomas e sofrimentos apresentados pelas usuárias e alguns fatores sociais
condicionantes de sua saúde, apesar das acentuadas carências em termos tanto
de estrutura dos serviços como de tempo para uma escuta ativa. Vale observar
que nem sempre, contudo, o reconhecimento desses fatores implica o
reconhecimento das desigualdades de gênero neles implicadas. Em alguns
casos,a condição desigual que provocao sofrimento é vista simplesmente como
inerente à vida daquela pessoa e não como uma situação que pode e deve ser
mudada com o fortalecimento de sua autoconfiança. Esse não reconhecimento
de um determinante de gênero para o adoecimentopsíquico das mulheres pode
explicaremparteporqueaquelasnessasituaçãocontinuamasersimplesmente
medicalizadas, sem obter um acompanhamento capaz de fortalecê-las para
enfrentarautonomamenteascondiçõesqueasoprimem.
No entanto, a julgar pelos depoimentos, não só nisso reside a resposta
para esta questão – ela pode estar relacionada também a duas deficiências
principais. A primeira diz respeito à estrutura insuficiente dos serviços para dar
conta da demanda atual. Uma estrutura que precisa ser repensada e planejada,
tendoemvistaaAtençãoBásicatercomopúblicoprincipalpessoasacimados40
anos, na maioria mulheres, e a tendência demográfica do município ser de
envelhecimento da população, apontando para uma demanda crescente. O
número insuficiente de equipes de Estratégia de Saúde da Família (ESF) e de
34
Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF) para dar suporte às equipes
existentes reduz significativamente o enfoque de prevenção e promoção da
saúde – pressuposto básico da integralidade da atenção –, bem como a própria
capacidade resolutiva da rede, pela falta da abordagem multidisciplinar exigida
em muitos casos. A lógica produtivista que vem orientando os serviços, com
pessoal reduzido e metas que operam em detrimento da qualidade do
atendimento e da escuta ativa, se contrapõe ao princípio da integralidade e
contribuitantoparaaineficáciacomoparaasobrecargadosistema;tantoparao
adoecimento crescente da população como para a medicalização excessiva e a
pressãosobreosníveisdemaiorcomplexidade.
A segunda deficiência diz respeito à falta de entendimento do que seja
uma rede intersetorial, e à falta de conhecimento dos equipamentos que
compõem essa rede. Ficou evidente, a partir das falas de maior parte das
pessoas entrevistadas, especialmente daquelas vinculadas à atençãobásica,um
entendimento de “rede” como o conjunto de serviços integrantes do setor do
qual a pessoa faz parte, e não o conjunto de todos os setores de políticas sociais
que podem contribuir para a melhoria dos condicionantes sociais da saúde de
indivíduos e população. A capacitação para o reconhecimento e a integração
dessa rede ampliada poderia contribuir para conferir maior segurança às
equipes no encaminhamento de casos que exigem uma abordagem
multidisciplinar e multissetorial, e contribuir para a resolutividade da atenção.
Além disso, o estabelecimento de um fluxo compartilhado por todos os serviços
e de protocolos que reconheçam e integrem a rede ampliada também é
fundamental para esses objetivos. A necessidade desses instrumentos é
reconhecida por quem atua no atendimento e sente-se impotente, muitas
vezes,pornãosaberaquemrecorrerparaacomplementaridadedaatençãoque
presta às usuárias. Isso fica claro em algumas respostas à questão sobre os
principaisdesafiosparaaintegralidadedaatenção:
Eu acho que um bom fluxo, onde todas as partes têm o mesmo fluxo. Acho que
tem que pactuar isso entre todos. Representantes de todas as especialidades e
não só saúde. Tem que entrar assistência, tem que entrar segurança, educação,
proteção, intersetorialidade mesmo. Todos assinarem, pactuarem e seguir no
mesmofluxo.Einvestimentonaestrutura(EnfermeiraE4,UBS2).
Acho que falar uma só linguagem. Deixar tudo certinho assim, o que fazer. Criar
protocolos,euachoqueissoéoprincipal,temquesecriar.Esaberinformar[para]
quem a gente tem que encaminhar o que, em que situações. Eu acho que é mais
isso. Quando isso começar a andar junto com as nossas capacitações pra isso, a
gente vai estar mais segura pra fazer esse tipo de encaminhamento e conseguir
enxergarissodentrodaunidadetambém(EnfermeiraE12,UBS8).
É importante reconhecer os esforços que vêm sendo desenvolvidos no
município no sentido de fortalecer e integrar políticas, de conferir mais
35
estabilidade às equipes da Atenção Básica ao renovar os quadros por meio de
concurso público, de investir em diversas iniciativas de capacitação das equipes
e fomentar a integração em redes. Vale destacar, em especial, o importante
papel da Coordenadoria Municipal de Políticas para as Mulheres de impulsionar
a transversalidade dessas políticas entre os diversos setores da gestão
municipal. Pontos que ficaram evidentes tanto nas entrevistas com as gestoras
quantonasfalasdeváriasprofissionaiscontatadas.
Os dados levantados, no entanto, indicam que ainda há um longo
caminhoapercorrer,especialmentenoqueconcerneàintegralidadenaatenção
à saúde das mulheres. Embora haja um reconhecimento de que a maior
demandanaatençãobásicasejademulheresacimados40anos,comênfasenas
idosas; embora haja um reconhecimento de que boa parte da demanda por
atendimento na atenção básica seja de mulheres com queixas somatoformes e
de sofrimento psíquico que sugerem a necessidade de escuta e de terapias
alternativas, segue-se medicalizando o mal-estar das mulheres, como único
procedimento. Não se identificam políticas voltadas para essa questão como,
por exemplo, o cumprimentodas metas de estruturaçãodas equipes de ESF e de
NASF que poderiam contribuir no enfrentamento dessa problemática, nem
iniciativasdedesenhodeumfluxointegrandoarede.
No que tange às prioridades da política de saúde da mulher, embora se
reconheça que o que mais mata mulheres hoje, no município, são as doenças
cardiovasculares,e–umdadoassustador–oquemaismatamulheresemidade
fértil é o vírus HIV (ver Anexo 2), as ações em saúde da mulher seguem
priorizando câncer de colo de útero e de mama, a política voltada para a
prevenção da Aids não tem qualquer recorte de gênero e nenhuma das
entrevistas realizadas colocou a questão da Aids como uma demanda de saúde
naatençãobásica.
A coordenação das políticas para as mulheres, por sua vez, têm dado
ênfase ao enfrentamento à violência contra as mulheres e à estruturação e
consolidação de uma rede cujo foco ainda está na segurança pública, justiça e
assistência social, buscando dar proteção e possibilitar um fortalecimento
socioeconômico das mulheres em situação de violência para que possam sair
dessa situação. As implicações sobre a saúde ainda carecem de um olhar mais
sistemático e as interfaces com a rede de saúde, quando ocorrem, em geral,
estãovinculadasaosdireitossexuaisereprodutivos.
Por outro lado, segundo relatos de algumas gestoras, questões
relacionadas à saúde mental das mulheres apareceram com força na
Conferência Municipal de Políticas para as Mulheres e nas plenárias municipais
para a construção do Plano Municipal de Saúde. Essas demandas refletem
necessidades que estão levando as mulheres à atenção básica com queixas
diversas para as quais elas não conseguem acesso à atenção à saúde mental e
36
acabam medicalizadas. Essas mulheres, como vimos nos depoimentos
ilustrados aqui, não necessariamente são vítimas de uma violência explícita
passível de denúncia e punição. Um grande contingente é apenas refém de
práticas e modos patriarcais de organização da vida que desvalorizam e
sobrecarregam a mulher, levando-a à infelicidade, à perda da libido, à depressão
e perda de perspectiva de vida, coisas que não se curam com remédio, mas com
ações capazes de respeitar e valorizar a subjetividade dessas mulheres, ações
que devem envolver múltiplos setores de políticas e múltiplas especialidades
profissionais. Devem envolver, ademais, como aponta Araújo em artigo nesta
publicação, vontade política, recursos humanos e materiais, adesão ao projeto e
desejoderealizá-lo,alémdareorganizaçãodosprocessosdetrabalho.
A atenção à saúde mental, no município, começa a organizar o seu
serviço na perspectiva do matriciamento, da abordagem do caso por equipes
dos CAPS e da Atenção Básica simultaneamente, no sentido de reforçar a
integralidade e a resolutividade da atenção. Alguns CAPS começam também a
organizar grupos de mulheres, como uma estratégia de enfrentamento ao uso
disseminado dos benzodiazepínicos. Mas a política continua operando focada
apenas nos transtornos mentais graves e sem uma perspectiva de gênero, sem
um recorte específico, protocolos ou fluxos que possibilitem uma abordagem
informada sobre os condicionantes sociais que afetam a saúde mental das
mulheresdiferentementedoshomens.
Finalizando, fica evidente, a partir da pesquisa, a importância
fundamental de se desenharam políticas e linhas de cuidado para dar conta das
necessidades específicas das mulheres. Em particular, uma linha de cuidado
capaz de lidar com os impactos sobre a saúde mental de uma população em
processo de envelhecimento, constituída majoritariamente por mulheres, as
quais, além de condições desiguais de poder na família, veem-se cada vez mais
sobrecarregadas com responsabilidades de cuidado e pressionadas por noções
de felicidade, vendidas pelos meios de comunicação, associadas a ideais de
beleza, de vivência da sexualidade e de acesso a bens de consumo
completamente distantes da realidade. A demanda por esse enfoque emerge
tanto da população da Canoas, como ficou registrado na Conferência Municipal
de Políticas para as Mulheres, como das profissionais da rede de atenção,
conforme se evidenciou nessa pesquisa. As recomendações para o desenho
dessa linha de cuidado estão explicitadas no texto de Maria José Araújo sobre o
tema,nestapublicação.
37
NOTAS
1
Mestra em Sociologia, Bacharel em Adminis-
tração Pública. Coordenadora geral do Projeto
Girassóis.
2
A redação deste texto obedece uma escolha
situada em relação à forma gramatical. Ao
contrário da regra comum, a qual determina
que na referência a pessoas em geral a flexão é
no masculino, aqui se afirma o feminino, de
modo que homens estão inclusos nas
menções às profissionais, às entrevistadas, às
usuáriasetc.
3
A pesquisa que deu origem a este artigo foi
desenvolvidapor uma equipe de consultoras e
colaboradoras do Projeto Girassóis – Coletivo
Feminino Plural. Participaram da elaboração
do instrumento de pesquisa Maria José de
OliveiraAraújo,ReginaVargaseTeliaNegrão.A
equipe de entrevistadoras incluiu Amanda
Machado, Carolina Mombach, Jessica Pereira
daSilvaeTerezaCristinaBrueldosSantos.Para
a degravação das entrevistas, contribuíram
Jessica Pereira da Silva e Liana Vargas
Fernandes. Agradecemos a todas e todos pro-
fissionais da rede e gestoras que disponibili-
zaram seu tempo para possibilitar que este
estudoserealizasse.
4
IDHM - Índice de Desenvolvimento Humano
Municipal.
5
Fontes: IBGE - Cidades@ e PNUD - Atlas do
DesenvolvimentoHumanonoBrasil,2013.
Veranexo1.
Lei8080de19/09/1990-Art.7º,II.
Ver por exemplo, Mattos (2004; 2006), Tesser
e Luz (2008) e o sítio de internet: http://www.
lappis.org.br/site/
Na verdade, valor nenhum, uma vez que nem
é remunerado nem é considerado para o
cálculo econômico da riqueza produzida em
umadadasociedade.
6
7
8
9
REFERÊNCIAS
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/1529/Burin_2010_Preprint.pdf?sequence=1.Acessoem:5demaiode2015.
BURIN, M.; VELÁZQUEZ, S.; MONCARZ, E. .El malestar de las mujeres: la tranquilidad
recetada.BuenosAires:EditorialPaidós,1990.
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Abrasco,2006
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38
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MentalHealthandPreventionofSubstanceAbuse.Geneva:WHO,1997.
WHO – World Health Organization. Psychosocial and mental health aspects of women's
health.WHO/FHE/MNH/93.1.DivisionofFamilyHealth.Geneva:WHO,1993.
39
40
Saúde Mental das Mulheres, novos enfoques
Maria José de Oliveira Araújo
1
Uma sopa de letrinhas até a longa, estranha e incompreensível palavra no meio
da página... Palavras vagamente familiares mas estranhamente alteradas, como
rostos diante de um espelho mágico, passavam rapidamente, não deixando
nenhuma impressão na superfície de vidro de meu cérebro. As letras formaram
pontas de espinhos. Vi-as separarem-se umas das outras e saltitarem de maneira
absurda. Depois elas se juntaram em formas fantásticas e intraduzíveis (Sylvia
PlathapudGarcia,1995).
Introdução
A conscientização de que os transtornos mentais representam um sério
problema de saúde pública é relativamente recente, ocorrendo a partir de
publicação realizada pela Organização Mundial da Saúde - OMS e por
pesquisadoresdaEscoladeSaúdePúblicadaUniversidadedeHarvard,em1994.
Considerando como medida uma combinação do número de anos vividos com
incapacidade e sua consequente deterioração da qualidade de vida, e o número
de anos perdidos por morte prematura causada pela doença (medidos pela
unidade Disability Adjusted Life Years – DALYs), verificou-se que doenças como
transtornos depressivos e problemas cardiovasculares vêm rapidamente
substituindo a desnutrição, as complicações perinatais e as doenças
infectocontagiosas em países subdesenvolvidos, onde vive a grande maioria da
populaçãomundial(OMS,2010).
Segundo a OMS, as desordens mentais e neurológicas são responsáveis
por 11% da carga mundial de saúde. A estimativa da organização, para o ano
2020, é de que esse percentual chegará a 15% e de que serão necessárias
mudançasnosmodelosdeatençãoàsaúdeparaqueaspessoascomtranstornos
mentaispossamreceberaatençãodesaúdenecessária(OMS, 2010).
Constata-se que, nos países da Ásia e da América Latina, essa transição
epidemiológicavemocorrendosemumaadequadaadaptaçãodoplanejamento
dos serviços e da assistência à saúde pública. Embora os transtornos mentais
causem pouco mais de 2% da mortalidade em homens e mulheres, são respon-
sáveis por mais de 12% das incapacidadesdecorrentes dos agravosà saúde. Esse
percentualaumentapara23%empaísesdesenvolvidos(RSMLAC,2001).
Um em cada quatro indivíduos de ambos os sexos será afetado por
transtorno mental ou neurológico em algum momento de sua vida, porém nem
41
sempre receberá o diagnóstico e o tratamento adequados (RSMLAC, 2001). A
esta situação se somam questões como o estigma, a discriminação e a exclusão
social implícitas neste tipo de enfermidade, que agregam mais sofrimento
àquele já vivido pela própria doença. Das dez principais causas de incapacidade
na população em geral, cinco delas estão relacionadas aos transtornos
psiquiátricos, sendo a depressão responsável por 13% destas incapacidades, o
alcoolismo por 7,1%, a esquizofrenia por 4%, o transtorno bipolar por 3,3% e o
transtornoobsessivo-compulsivopor2,8%(OMS,2010).
Na população feminina, no Brasil, os dados do Sistema de Informação
Hospitalar do Sistema Únicode Saúde – SHI/SUS (Brasil apud Araújo e Simonetti,
2009), revelam que as principais causas de internação por transtornos mentais
estão relacionadas, por ordem de importância, aos seguintes problemas:
esquizofrenia e transtornos esquizotípicos e delirantes (51,86%), transtornos do
humor/afetivos (20%), transtornos mentais e comportamentais devido ao uso
de substâncias psicoativas (4,80%) e transtornos mentais e comportamentais
devidoaousodeálcool(3,60%).
Estudo de Araújo & Simonetti (2009), sobre os gastos com as principais
internações de mulheres no SUS, revela que na rubrica “Transtornos mentais e
comportamentais” os gastos percentuais com as internações por "Esquizofrenia
e transtornos esquizotípicos e delirantes" respondem por mais da metade dos
gastos,aindaqueestejamemdeclínio.Contudo,destaca-seofatodequeogasto
com as internações devidas aos "Transtornos de humor [afetivos]", inclusive a
depressão, aumentaram percentualmente e o mesmo padrão é observado em
relação aos "Transtornos mentais e comportamentais devido ao uso de álcool" e
"Transtornos mentais e comportamentais devido ao uso de outras substâncias
psicoativas", sendo este último conjunto de causas o que apresenta um
aumento mais expressivo. Esses dados sobre o aumento do uso de substâncias
psicoativas entre as mulheres são compatíveis com os dados do Ministério da
Justiça(Brasil,2008),quereferemumfortecrescimentodapopulaçãocarcerária
demulheresdevidoaoenvolvimentonotráficodedrogas.
É importante frisar que o Brasil implantou nos anos noventa uma nova
política para a saúde mental, a Reforma Psiquiátrica que tem como principal
estratégia a luta antimanicomial, medida que visa reduzir as hospitalizações por
causas psiquiátricas. Considerada um dos modelos mais avançados de política
para a área na América Latina (Lancetti, 2009), essa reforma prioriza como
política de Estado os programas de apoio psicossocial, que incluem uma rede
composta por centros de atenção psicossocial (Caps) e residências terapêuticas,
tendo havido, desde então, sensível redução na rubrica orçamentária para
internaçõespsiquiátricas.
Embora possa ser considerada uma das políticas mais importantes
assimilada pela Reforma do Sistema de Saúde no momento de sua criação, o
42
debate sobre as desigualdades de gênero nas formas de adoecimento e morte
entre homens e mulheres ainda era incipiente e essa ausência era sentida na
formulaçãodasdiversaspolíticaselaboradaspelasinstânciasresponsáveispelas
políticaspúblicas.
Concomitantes a essas reformas, começavam a desenvolver-se núcleos
de estudos de gênero nas universidades e pelo movimento feminista, que
introduziram uma nova perspectiva teórica metodológica e uma concepção
política das relações sociais e de poder para analisar o conjunto de atributos e
expectativas que a sociedade, em cada momento histórico, destina a homens e
mulheres. Observa-se, a partir de então, avanço conceitual importante no
campo da saúde sobre a necessidade de introduzir na formulação das políticas e
na análise dos dados epidemiológicos, mecanismos explicitadores das
diferenças sociais que incidem e determinam a saúde das mulheres e dos
homens (Matamala, 2005). Estudos demonstraram diferenças nos modos de
adoecimento e no impacto dos problemas de saúde que afetam homens e
mulheres como seres sociais, o que obriga os serviços a darem respostas
adaptadas especificamente às suas necessidades e demandas. Tais
necessidades, em geral, permanecem invisíveis para os profissionais de saúde.
Transtornos ligados à drogadição são um exemplo, incluindo o uso abusivo dos
medicamentospsiquiátricose do álcool,e os problemas resultantes da violência
domésticaesexual(Araújo,2010).
Tais avanços, no entanto, não alcançaram a Política Nacional de Saúde
Mental, cujas ações são ainda dirigidas indiscriminadamente para homens e
mulheres. As desigualdades de gênero prevalentes numa sociedade patriarcal,
associadas a pobreza, discriminação, sobrecarga de trabalho e violência
doméstica, e que colocam as mulheres em situação de maior vulnerabilidade,
inclusive para os transtornos psiquiátricos, passam despercebidas nessa
Política.Outra lacuna persiste no limitado e incipiente diálogo entre a Políticade
Saúde Mental e as políticas públicas dirigidas às mulheres, dificultando a
concretização do princípio da integralidade que deve permear todas as formas
decuidado.
Persiste, no campo da saúde mental, uma hegemonia das práticas e do
discurso centrados nas questões biomédicas e a invisibilidade das diferenças de
gênero. Torna-se urgente a revisão desses paradigmas de modo a introduzir
novos enfoques que permitam compreender as necessidades de saúde da
população feminina e intervir de forma adequada (Gómez & Grela, 2001). O
campo da saúde mental precisa ser repensado, de forma a incorporar o nexo
existente entre a saúde mental das mulheres e a sua produção histórica
enquantosujeitossociais.
2
Nesse sentido, Burín (1990) introduz no debate o conceito de mal-estar
para definir uma nova categoria que objetiva desarticular o dualismo saúde-
43
doença. O mal-estar, segundo a autora, refere-se aos sofrimentos psíquicos e
emocionais das mulheres como reveladores de sua condição de gênero. Com
esse conceito, Burín propõe abordar a saúde mental a partir de um marco
teórico que enfatiza o lugar historicamente construído para as mulheres, assim
como, os modelos de atenção associados a ele, como fatores de risco para os
agravosàsaúde.
Conforme Burín, o conceito de “mal-estar psicológico feminino” tem
como referência “um estado de bem-estar, felicidade e desenvolvimento
pessoal ideal ou normativo positivo”. Portanto, é um conceito mais amplo que o
de doença mental, que só considera como problema de saúde um conjunto de
sintomas ou o que se chama síndrome. Nesse conceito, a saúde mental não é
somenteoladonegativodasdoençaspsiquiátricas,mas,sim,
(o) resultado das contradições e tensões entre a experiência vital e as
expectativas de gênero e está constituído por um conjunto de elementos
específicosnavidadasmulheres(Burín,1990,p.35).
Conforme estabelece a OMS (2010), as desigualdades sociais entre os
homens e as mulheres são determinantes dos problemas de saúde mental da
população feminina, pois aumentam sua exposição aos riscos e sua
vulnerabilidade frente aos mesmos, limitando o acesso aos serviços e à
informação em saúde. As enfermidades mentais em geral, e a depressão em
particular, apresentam na sua prevalência uma das diferenças de gênero mais
marcantes na área da saúde (OPS, 2000). Ainda de acordo com a OPS, na fase
adulta emergem grandes diferenças entre os homens e as mulheres em relação
aostranstornosmentais.
Ao analisar os dados referentes à demanda da população feminina por
serviços de saúde públicos e privados no Brasil, Villela (1992) observa uma
grande frequência de queixas psicológicas como causa de procura dos serviços,
revelando maior prevalência de distúrbios psiquiátricos em mulheres.
Encontram-se na literatura diversos estudos que evidenciam a estreita relação
entre transtornos mentais e situações de vida próprias da população feminina.
Embora as disparidades nos dados sobre transtornos mentais entre homens e
mulheres possam apresentar diferentes causas, inclusive biológicas, numerosos
estudos sobre o tema apontam a socialização de gênero e as relações de
dominação e submissão como fatores importantes na gênese dessas diferenças,
gerando consequências negativas para a saúde mental das mulheres (Burín,
1990;AMS,2008).
A baixa condição socioeconômica de grande parcela das mulheres, a
discriminação social, o abuso emocional, a tripla jornada levando a uma
sobrecarga de trabalho e a violência doméstica e sexual contribuem para esta
situação. No entanto, muitas mulheres não associam estas situações com a
origem da depressão, de suas dores cotidianas, de sua tristeza, dificultando a
44
saídadocírculoviciosodamáqualidadedevida.
Os dados da OMS (2010) revelam que existem 400 milhões de pessoas
que sofrem algum tipo de depressão no mundo. Em torno de 20% são
consideradas depressões endógenas ou biológicas que afetam igualmente
homens e mulheres; o restante, 80%, são as chamadas depressões exógenas ou
situacionais que afetam desigualmente os dois sexos: 30% são depressões
diagnosticadas nos homens e 70% nas mulheres. Ainda segundo a OMS (idem)
as mulheres apresentam uma maior vulnerabilidade a sintomas ansiosos e
depressivos,especialmenteassociadosaoperíodoreprodutivo.
O uso abusivodos medicamentosconsiderados de uso psiquiátricosurge
com uma das consequências dessa situação. Além disso, os dados revelam que
as mulheres constituem o maior grupo consumidor desse tipo de medicamento
no mundo inteiro. Cerca de 75% do consumo de psicotrópicos é atribuído às
mulheres, dada à sua situação de maior vulnerabilidade social. Aquelas das
classes menos favorecidas, incluindo as mulheres negras, aquelas em situação
de privação de liberdade, as adolescentes sem apoio social e as mulheres na
terceira idade estão mais suscetíveis de passar por transtornos mentais graves
causados pela superposição de vulnerabilidades, potencializando os agravos à
saúde.
A depressão nas mulheres pode ser desencadeada por fatores que
ultrapassam a história de violência de gênero que elas vivem ao longo de suas
vidas. Nesse sentido, além da violência doméstica ou sexual praticada pelo
companheiro, pelos filhos e filhas ou por estranho, outros eventos traumáticos
de gênero podem resultar em “mal-estar psicológico feminino”, tais como:
gravidez indesejada e abortos realizados em condições físicas e emocionais
inseguras; abuso sexual ou incesto na infância; menopausa e depressão pós-
parto(AMS,2008).
Ainda segundo AMS (2008), a depressão de gênero não seria uma
enfermidade mental e nem biológica, senão um conjunto de sofrimentos e mal-
estares físicos e psíquicos que as mulheres experimentariam ao padecerem o
que a autora denomina de “crise de identidade de gênero”. Um exemplo seria o
que Bonino (1998) chama de microviolência, isto é, os pequenos e
imperceptíveis controles e abusos de poder, quase normalizados, que acontece
nas relações afetivas entre homens e mulheres. Outros exemplos seriam as
contradições que as mulheres enfrentam ao ter que responder ao conjunto de
requisitos socialmente exigidos e durante a vivência de crises importantes tais
comoseparações,depressãopós-partoeoutras.
Para Carla Garcia, os problemas de saúde mental das mulheres revelados
na pesquisa realizada em diversos manicômios da cidade de São Paulo,
traduzem“ummundocontraditórioefechadoaossentimentoseaosafetos,que
sempre constituiu a realidade feminina” (Garcia, 1995, p.129). De acordo com a
45
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Gênero e Saúde Mental: novas abordagens para uma linha de cuidado

  • 1. Telia Negrão Regina Vargas Leina Peres Rodrigues (Orgs.) Saúde mental e gênero novas abordagens para uma linha de cuidado 1ª edição Projeto Girassóis – a experiência em Canoas (RS) Porto Alegre Coletivo Feminino Plural 2015
  • 2. Dados internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) S255 Saúde mental e gênero: novas abordagens para uma linha de cuidado - a experiência de Canoas (RS) / Telia Negrão, Regina Vargas e Leina Peres Rodrigues (organizadoras). – Porto Alegre: Coletivo Feminino Plural, 2015. 132 p. ISBN 1.Saúde mental. 2. Gênero. 3. Políticas públicas. 4. Saúde da mulher. 5. Medicalização. I. Negrão, Telia. II. Vargas, Regina. III. Rodrigues, Leina Peres CDU 305-055.2 : 613.86 Coletivo Feminino Plural: Rua Gen. Andrade Neves, 159, conj. 84/ 85 Porto Alegre, RS - Brasil - Tel.: (51) 3221.5298 coletivofemininoplural@gmail.com www.femininoplural.org.br Saúde mental e gênero: novas abordagens para uma linha de cuidado Projeto Girassóis - Apoio: Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República Parcerias: Prefeitura Municipal de Canoas e Rede Nacional Feminista de Saúde, Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos Entidade executora: Coletivo Feminino Plural Organização: Telia Negrão, Regina Vargas e Leina Peres Rodrigues Capa, projeto gráfico e editoração eletrônica: Vit Núñez Comunicação Visual Expediente a experiência de Canoas (RS)
  • 3.
  • 4.
  • 5. APRESENTAÇÃO A construção de uma perspectiva de integralidade na atenção à saúde compõe a agenda do movimento de mulheres no Brasil há varias décadas. Notadamente, a partir dos anos de 1980, quando o processo de democratização do país coloca em debate as políticas públicas, tendo como centro os direitos humanos. A excessiva medicalizaçãodas mulheres, as relaçõesentre sofrimento psíquico e condições de trabalho, o adoecimento mental como decorrência da violência de gênero, estigmas, discriminações, fixidez de papéis sexuais e de gênero são levantados como disparadores de dores, muitas vezes sem explicação pelas próprias mulheres que, em sua maioria, vivem em contextos de dificuldadeseconômicasededifícilacessoaosbenssociaiseculturais. Por outro lado, a história – que vem sendo reescrita desde os anos de 1960 por estudiosas de todo o mundo – está recheada de exemplos do uso dos dispositivos disciplinadores das mulheres, entre os quais as internações compulsórias e imotivadas, hoje amplamente denunciadas e condenadas como violações aos direitos humanos. Ilustração dada por Perrot (1995) na obra Historia da Vida Privada – 4 revela as práticas de reclusão em hospícios das mulheres “ditas loucas” na França. Ao dissertar sobre o poder dos homens no períodoposterioràRevoluçãoFrancesaatéaPrimeiraGuerraMundial,elatorna visívelaascensãodapráticadainternaçãofemininacomoformadeafastamento davidasocialdaquelasquedestoavamemtermosdesexualidadeeliberalidade. Aalegaçãoeradesuafraquezapsíquicaemoral. Paradoxalmente, duzentos anos antes, o filósofo cartesiano francês Poulain de la Barre realizara refutação da tese de menor capacidade mental e de raciocínio das mulheres em relação aos homens. Dizia ele que a desigualdade social entre homens e mulheres não é consequência da desigualdade natural, senão o seu contrário, a desigualdade social e política é aquela que produz as teorias da inferioridade da natureza feminina (Bedia, apud Amorós, 1995). No entanto, segundo Perrot (op. cit.) uma lei de 1838 na França autorizava que “loucos, dementes e imbecis” fossem privados de seus direitos, o que incluía as mulheres em sua maioria. A internação por ordem do marido, pai ou patrão tornava quase impossível sua libertação do confinamento, ficando conhecidas algumas histórias de familiares que lutaram arduamente – como a demanda pública “Clemence de Cerilley” – para quebrar hospitalizações feitas em forma decastigoàsmulheres. 7
  • 6. NoBrasil,atravésdealgunsestudosrealizadosapósaadoçãodaReforma Psiquiátrica (década de 1990), ficaram conhecidos episódios de internação de mulheres sem diagnóstico em inúmeros hospitais psiquiátricos e sua permanência por décadas, algumas até a morte, pelo “esquecimento” ou “abandono”. Dissertação de Mestrado realizada por Waddy (2006) constatou que,apesardesermenoronúmerodeinternaçõesnoentãoHospícioSãoPedro, em Porto Alegre (RS) até o início do século passado, a partir dos anos de 1920 as mulheres vão se tornando maioria, porque são ali deixadas, enquanto os homens obtêm alta e retomam a vida em menos tempo. Nesse mesmo período, cresce o número de mulheres em clínicas particulares para doentes mentais. Segundo a autora, a explicação possível é de que a chamada “loucura feminina”, por ocorrer no espaço do privado, onde viviam majoritariamente as mulheres, exporia mais elementos da sexualidade reprimida, dando margem à sua exclusão.Dizela: Se a loucura está inscrita no corpo feminino, sujeita aos fluxos e refluxos deste corpo, que são constantes, ininterruptos e permanentes, pelo menos até a menopausa–momentoemqueocorpofemininoreencontrariaoequilíbriofísico e psíquico perdido com a menstruação – e, se os lugares das mulheres na sociedade de então são mais restritosdo que os dos homens, parece lógico que o número de mulheres “curadas” seja sempre inferior ao de homens nestas mesmascondições(Waddy,2006,p.68). Com a adoção do paradigma de direitos humanos nas políticas públicas e o questionamento da fragmentação do corpo feminino, outras interpelações visaram o poder masculino e médico na concepção da atenção à saúde das mulheres. Assim, um programa do Ministério da Saúde corporificou, em 1984, pela primeira vez, a resposta à crítica em torno da concepção materno infantil prevalente nas políticas de saúde para as mulheres, fortalecendo o discurso feministasobreanãofragmentaçãodoscorposeaautonomia. Segundo Osis (1998), o conceito de assistência integral contido no documento de apresentação do PAISM, deveria ser entendido como um conjunto de ações destinadas a atender a todas as necessidades das mulheres para promover, proteger e recuperar a sua saúde. No entanto, embora sendo denominado como “integral”, o Paism, saudado como um avanço pelo movimento de mulheres, também sofreu críticas por esse mesmo segmento, por focalizar a maioria de suas ações às funções reprodutivas. Por outro lado, justamente por essa característica, incorporou o planejamento familiar como parte da política de saúde, abrindo para a discussão sobre autonomia e direito dasmulheresdecontrolarafertilidade(idem). Entretanto, apenas em 2004, ao ser atualizado e transformado numa política transversal (PNAISM), a saúde mental é posta como uma das dimensões 8
  • 7. da saúde das mulheres, à qual corresponde uma política de atenção. Essa nova versão do antigo programa incorpora o enfoque de relações de gênero e reconhece a diversidade entre as mulheres, sendo mobilizadora da sociedade. Desde então, os diversos segmentos que compõem o movimento de mulheres no Brasil buscam editar um quadro referencial e ações de saúde que venham ao encontro de suas especificidades. Nesta política, os direitos sexuais e os direitos reprodutivos foram incluídos como componentes essenciais na atenção, embora ainda limitados pela legislação brasileira, em especial quanto ao tema do aborto; e as políticas com perspectiva de integralidade apresentam-se ainda secundarizadasfrenteàquelascomênfasenaatençãoàsaúdematerna. Quantoàsaúdemental,emborareconhecidacomoumcampoprioritário de atenção, permanece sem um desenho que reconheça as desigualdades de gênero. A reforma psiquiátrica, embora inovadora e ancorada nos direitos humanos, nem na teoria e nem na prática incorporou o que já se sabe sobre o adoecimento psíquico das mulheres e tão pouco avançou na promoção de estudosepesquisassobreotema. Acreditamos que essa foi uma das motivações do edital público da Secretaria de Políticas para as Mulheres, em 2013, o qual chamou à participação iniciativas da sociedade para auxiliar na construção de uma proposta de linha de cuidado em saúde mental com enfoque de gênero. Dessa forma, abriu também umcampoparanovasreflexõeseconstruçãodeconhecimento. Coletivo Feminino Plural, em parceria com a regional do Rio Grande do Sul da Rede Feminista de Saúde Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos, assumiu o desafio de implementar um projeto composto de inúmeras ações, todas elas destinadas a subsidiar a elaboração de uma proposta de linha de cuidado em saúde mental com perspectiva de gênero para o município de Canoas, na região metropolitana de Porto Alegre, Rio Grande do Sul. Ações comunicacionais, educativas, capacitação de agentes públicos, estudo de caso, diagnóstico situacional e publicação compõem o projeto “Gênero, componente essencial na atenção à saúde mental das mulheres”, conhecido como “Projeto Girassóis – Saúde Mental e Gênero”. O projeto se desenvolveu entre 2014 e 2015. A presente publicação “Saúde Mental e Gênero em novas abordagens para uma linha de cuidado - Projeto Girassóis - a experiência em Canoas (RS)” destina-se a divulgar as ações e reflexões sobre o Projeto. Em oito capítulos, as autoras abordam e aprofundam conceitos essenciais ao debate proposto. É o caso de Regina Beatriz Vargas, que interpela a percepção do tema da integralidade da atenção através da leitura acurada das entrevistas realizadas com profissionais da rede de saúde de Canoas. Revela, de um lado, as dessintonias, e de outro o profundo comprometimento dessas profissionais no 9
  • 8. seu trabalho cotidiano nas pontas do Sistema Único de Saúde e nas agências especializadas. É secundada por Maria José de Oliveira Araújo, em dois artigos: no primeiro, mergulha na literatura sobre Saúde Mental das Mulheres, trazendo à superfície os novos enfoques que consideram relações de gênero e determinantes sociais da saúde. Com uma forte crítica à excessiva medicalização, aos estigmas, estereótipos e discriminações sobre o adoecer psíquico das mulheres, abre a discussão para uma nova compreensão sobre o mal estar feminino e as exigências sociais de nos sentirmos sempre felizes. Em seguida, a mesma autora, cuja trajetória pelas políticas de saúde é amplamente conhecida, avança para discutir modelos de atenção à saúde mental das mulheres e propor uma linha de cuidado na perspectiva de Direitos Humanos, Gênero e Integralidade na Saúde. Com este trabalho, finca algumas estacas para futuras construções de estratégias e diretrizes, deixando sem dúvida sua marca dequembuscanaprofundidaderespostasavelhasenovasindagações. A provocação de ajudar a desconstruir e reconstruir conceitos proposta pelas capacitações de profissionais da rede de saúde, de violência de gênero e ativistas dos movimentos sociais está descrita no artigo assinado por Regina Beatriz Vargas e Telia Negrão. As autoras recuperam alguns fundamentos da chamada Metodologia Feminista, abordagem adotada pelo projeto para trabalharumconjuntodetemaseinstigaràreflexão. Comoobjetivodedesenvolverestratégiaeducativainovadorabuscou-se umaparceriaparamultiplicaçãodeconteúdosdoProjetoGirassóiscomusuárias do SUS. O trabalho conjunto com integrantes do Projeto Mulheres da Paz está descrito e problematizado por Leina Peres Rodrigues, Carolina Mombach e Jéssica Pereira da Silva, que percorreram, ao lado de ativistas de comunidades, locaisquerealizamoatendimentoamulheresemCanoas. O Projeto Girassóis – Saúde Mental e Gênero identificou na violência contra as mulheres um dos fatores para o agravamento da sua saúde mental, embora não o único ou principal. Para melhor compreender esse nexo, desenvolveu-se um estudo de caso com usuárias de um centro de referência público, coordenado pelo Coletivo Feminino Plural em Canoas, resultando num texto assinado por Teresa Cristina Bruel e Carolina Mombach. Complementam a publicação alguns textos resultantes de atividades extracurriculares das capacitações. Este conjunto de trabalhos traduz a forma ousada e não raro transgressora com que a entidade Coletivo Feminino Plural responde a provocações, atenta que é aos pressupostos feministas, destacando-se aquele de que o conhecimento deve ser fruto do saber compartilhado. E não custa 10
  • 9. REFERÊNCIAS BEDIA, Rosa Cobo. Gênero. In: Amorós, Celia (Org.) Diez Palabras Clave sobre Mujer. EditorialVerboDivino,1995.Madrid,Espanha. OSIS, Maria José. Paism: um marco na abordagem da saúde reprodutiva no Brasil. Cad. SaúdePúblicavol.14suppl.1,RiodeJaneiro,1998. PERROT, Michelle. Historia da Vida Privada 4. Da Revolução Francesa à Primeira Guerra. CompanhiadasLetras,SãoPaulo,2009. WADDI,YonissaMarmitt.Experiênciasdevida,experiênciasdeloucura:algumashistórias sobre mulheres internas no Hospício São Pedro (Porto Alegre, RS, 1884-1923). Disponível em:http://revistas.unisinos.br/index.php/historia/article/view/6171/3336.Pag.65-79. lembrar de um dos mais caros ao feminismo, a necessidade de duvidar das verdades dadas como certas e reescrever a própria história. Desejo uma boa leitura. Porto Alegre, agosto de 2015. Telia Negrão Coordenadora do Coletivo Feminino Plural 11
  • 10. 12
  • 11. 2 Introdução A atenção integral à saúde tem como condição sine qua non o reconhecimento dos determinantes sociais que afetam as condições de saúde das populações e de cada pessoa. As desigualdades sociais, econômicas e culturais influenciam a vida e as formas de adoecer e de morrer, com impactos mais severos sobre aquelas pessoas que sofrem privações e opressão. Nesse sentido, a persistência de desigualdades de gênero em uma sociedade traz implicações para os processos de saúde e doença de mulheres e de homens e, em grande medida, determina os fatores de mortalidade para cada um dos sexos. Isso evidencia a importância fundamental do conhecimento e do reconhecimento, por parte dos formuladores de políticas e dos operadores dessas últimas, dos fatores decorrentes dessas desigualdades, os quais colocam mulheres e homens sob distintos riscos relacionados à saúde. Os dados disponíveis e estudos diversos revelam uma maior procura dos serviços de saúde pelas mulheres (Pinheiro et al.,2002) , muitas vezes de forma reiterada e com “queixas vagas” que denunciam antes um “mal-estar” (Burin, 1990; 2010) do que uma enfermidade de origem orgânica. A maior procura dos serviços por parte das mulheres dá-se, também, em função de seu papel de cuidadoras que levam filhos, idosos e outras pessoas das quais assumem o cuidado. Por outro lado, os dados revelam ainda que os homens procuram menos a atenção básica à saúde; quando acessam a rede, é por demanda especializada e já em estágios avançados das enfermidades. Em geral, em razão disso, morrem mais cedo do que as mulheres. Estudos revelam também que a cultura patriarcal predominante, que associa a masculinidade à valentia e à invulnerabilidade é a granderesponsávelporessequadropreocupante. A prevalência entre mulheres de transtornos mentais comuns – casos com sintomas ansiosos, depressivos ou somatoformes –, de síndromes funcionais e de dores sem causa orgânica é frequente. Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), essas alterações de saúde mental ocorrem duas vezes mais entre as mulheres do que entre os homens (WHO, 1993; 1997; 2000). Isso tem um impacto importante na atenção primária à saúde, pois representa uma fortepressãoassistencialsobrearede.Algunsestudosapontamqueentre30%e 60% de toda a demanda primária da saúde deve-se a sintomas para os quais não A integralidade da atenção à saúde na percepção de profissionais da rede 1 Regina Vargas 13
  • 12. seidentificaumacausaorgânica(Ariasetal.,2007). Os transtornos mentais comuns referem-se a situações de saúde de indivíduos cujos sintomas não preenchem os critérios formais para diagnósticos de depressão e/ou ansiedade, conforme estabelecidos pelas classificações DSM-IV (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders – Fourth Edition) e CID-10 (Classificação Internacional de Doenças – 10ª Revisão), mas são sintomas proeminentes que resultam em uma incapacitação funcional comparável ou até pior do que a de quadros crônicos já bem estabelecidos (Maragno et al., 2006). Por tais sintomas não se ajustarem aos critérios de classificação vigentes, sequer se dispõem de estatísticas oficiais da incidência desses transtornos na população brasileira, embora os dados sobre consumo de medicamentos psicotrópicos, predominantemente entre mulheres, no Brasil, sinalizem sua prevalência. Conforme aponta a Organização Mundial da Saúde (WHO,2015) gênero é um fator determinante fundamental da saúde mental e dos transtornos mentais. A morbidade associada aos transtornos mentais tem recebido muito mais atenção dos que os determinantes específicos de gênero e os mecanismos que promovem e protegem a saúde mental e desenvolvem a resiliência ao estresseeàsadversidades. Diante desse contexto, tanto a abordagem da integralidade quanto o enfoque dos determinantes sociais de gênero tornam-se fundamentais na atençãoà saúde das mulheres, comênfase na atençãoà saúde mental. Os dados de sintomatologia sem causa orgânica e de medicalização excessiva por parte das usuárias mulheres do sistema de saúde sugerem a falta dessas abordagense algumas lacunas nas políticas de atenção integral à saúde. Tais constatações levaram Coletivo Feminino Plural a propor uma intervenção nessa área, a qual assumiu o escopo de um projeto piloto para estabelecer novas práticas, capazes de manejar adequadamente as interfaces entre gênero e saúde mental. O projeto teve, por um lado, o objetivo de sensibilizar profissionais da rede para a necessidade das referidas abordagens. Por outro, buscou elementos, no campo daspráticasedaspercepçõesdosprofissionaisdarededeserviçosdesaúdeede bem-estar social, que pudessem fornecer indicadores para a construção de uma 3 linhadecuidadoemsaúdementalcomenfoquedegênero . Ocontextodaexperiência Para a implementaçãoda experiência piloto, foi escolhidoo município de Canoas, no Rio Grande do Sul, que pertence à Região Metropolitana de Porto Alegre, capital do estado. O município conta com uma população de aproximadamente 340.000 habitantes (IBGE), possui uma taxa de urbanização 4 de 100%, apresentou, em 2010, um IDHM de 0,750, considerado alto, e uma 14
  • 13. renda per capita de R$952,13. O índice de pobreza do município, segundo dados do Censo 2010 e da Pesquisa de Orçamentos Familiares - POF 2002/2003, é de 29,52%. A taxa média anual de crescimento da população de Canoas entre 2000 e 2010 foi de 0,56%, enquanto no Brasil foi de 1,17%, no mesmo período. Entre 2000 e 2010, a razão de dependência no município passou de 49,18% para 5 42,56%eataxadeenvelhecimento,de5,59%para7,49% . A rede pública de saúde do município conta com 28 Unidades Básicas de Saúde (UBS); 6 Unidades de Pronto Atendimento (UPA), sendo duas delas 24h e uma especializada em idosos; 7 Centros de Atendimento Psicossocial (CAPS), sendo três CAPS III, dois deles dedicados para transtornos por álcool e drogas (AD);umCAPSIIparatranstornospsíquicosdiversos;doisCAPSI,dedicadospara atendimento a crianças e adolescentes; e um CAPS para idosos que consiste em um ambulatório de neurologia. A rede dispõe também de um Posto da Mulher, para atendimento especializado em ginecologia, e mais quatro centros de especialidades – médicas, odontológicas, testagem e aconselhamento e atendimento em DSTs/Aids, e tisiologia. Há um hospital de referência para os serviços de interrupção da gravidez em caso de violência sexual e todas as unidades de pronto atendimento estão habilitadas a ministrar a profilaxia de emergênciaparaessescasos. No início de 2015, o município contava com 44 Equipes da Estratégia de Saúde da Família (ESF). Esse número representa pouco mais da metade daquele que deveria ter conforme as recomendações do Ministério da Saúde para a expansão, qualificação e consolidação da atenção básica, na perspectiva de ampliar a resolutividade e impacto na situação de saúde das pessoas e coletividades.A importância dessas equipes cresce,na medida em que a política de saúde mental do município está iniciando uma experiência de matriciamento na atenção à saúde mental. O matriciamento consiste em um processo de integração da saúde mental à atenção básica, pelo qual duas ou mais equipes desenvolvem conjuntamente uma proposta de intervenção pedagógico- terapêutica. A rede de proteção socioassistencial, por sua vez, compreende cinco Centros de Referência de Assistência Social (CRAS), distribuídos entre os quatro quadrantes do município, sendo que o quadrante Noroeste possui dois. Além desses, há um Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS) que oferta serviços especializados a pessoas e famílias em situação de ameaça oudeviolaçãodedireitos. Em 2011, a administração municipal, através do esforço da Coordenadoria de Políticas para as Mulheres de Canoas, criou um Centro de Referência para Mulheres em situação de violência, o Centro de Referência para Mulheres – Patrícia Esber (CRM), estruturado em conformidade com a Norma Técnica da SPM/PR para implantação desses serviços. Criou também uma Casa 15
  • 14. Abrigo para mulheres em situação de risco de morte devido à violência de gênero. Como aponta Telia Negrão (2013), com isso, iniciou-se no município um ciclo de políticasvoltadas ao fortalecimentodas mulheres comocidadãs e para a garantia de seus direitos humanos. A partir dos dois serviços especializados e de uma delegacia especializada de atendimento à mulher (DEAM), uma rede estabeleceu-se envolvendo judiciário, defensoria e promotorias especializadas, além de Patrulha Maria da Penha e o programa Mulheres da Paz (Negrão, 2013). Entretanto, eventuais interfaces dos serviços especializados com as demais portas de entrada da rede – saúde, assistência social, educação – não lograram, até agora, como se verá adiante, evoluir para laços consistentes e permanentes, para práticas de referência e contrarreferência, fluxos definidos e pactuados, de modo a consolidar uma rede ampliada e melhorar a resolutividade do sistema deproteção. Foi justamente a identificação de lacunas nessas interfaces o que motivou Coletivo Feminino Plural a propor um projeto de intervenção junto a atores dessas políticas, no sentido de despertar para a importância de um outro olhar sobre as questões que afetam as mulheres, por serem mulheres, e cuja abordagem, portanto, demanda um conhecimento diferente daquele supostamente “neutro” que trata a todas/os “igualmente”. Esse foi, então, o cenário escolhido para a experiência – um cenário amigável para a implantação de políticas com enfoque de gênero, mas que, contudo, como costuma ser no Brasil, ainda porta muitas das deficiências típicas de um sistema cuja demanda excede largamente a capacidade dos serviços. Um cenário que, embora não configurando o ideal, mostra-se promissor para a exploração dos limites e possibilidades de uma atenção à saúde mental das mulheres com enfoque de gênero. Ocampodeinvestigação A intervenção proposta, como já mencionado, foi pensada em duas vertentes, e pode ser qualificada como pesquisa-ação. A primeira vertente teve por objetivo a sensibilização de profissionais das rede de saúde, assistência socialeespecializadadeatençãoàsmulheresparaaimportânciadeumenfoque de gênero nos serviços, ou seja, para as implicações do ser mulher para a saúde físicaementaleparaasegurançaebem-estardasmulheres.Asegundavertente buscou reunir elementos do campo das práticas e das percepções de profissionais dessas redes para melhor compreender a realidade e os entraves postos a essas práticas, bem como apontar indicadores para a construção de umalinhadecuidadoemsaúdementalcomenfoquedegênero. A busca desses elementos dividiu-se, por sua vez, em três tipos de sondagens: a primeira, vinculada aos cursos de formação e à interação com e produção de trabalhos pelas/os participantes sobre suas experiências nas 16
  • 15. unidades. Uma modalidade de pesquisa-ação e de construção participativa de subsídios para o projeto, a qual é objeto do quarto capítulo deste livro. A segunda consistiu de estudo de múltiplos casos de mulheres que passaram pelo Centro de Referência Patrícia Esber em virtude de uma situação de violência vivida. Seu objetivo foi identificar o reconhecimento ou não dos impactos da situação vivida sobre a saúde física e mental dessas mulheres pelas/os equipes dos serviços pelos quais elas passaram. Os estudos de caso são objeto do quinto capítulodestelivro. A terceira sondagem, que iremos descrever aqui, buscou conhecer a percepção de profissionais da rede de serviços ampliada, sobre os temas relacionados a uma atençãointegral à saúde das mulheres,comênfase na saúde mental. O inquérito sondou desde o conhecimento sobre as diretrizes do SUS, passando pelos fatores que podem afetar a saúde das mulheres e sua qualidade de vida, até a capacidade dos serviços e da rede para darem resposta eficaz às necessidades e demandas específicas das mulheres. A pesquisa foi baseada em entrevistas semiestruturadas conduzidas com profissionais dos serviços da atençãobásicadasaúde,daatençãoàsaúdemental,dosserviçosespecializados de atenção à saúde da mulher e a mulheres em situação de violência, além de gestoras das políticas relevantes. A pesquisa foi aprovada pelo órgão responsável da Secretaria Municipal de Saúde (SMS) de Canoas e as entrevistas foram realizadas mediante a autorização e mediação da Coordenação das UnidadesBásicasdeSaúdedaSMS. Realizaram-se, ao todo, 34 entrevistas, das quais quatro foram com gestoras das políticas. As 30 restantes distribuíram-se entre 16 unidades de serviços, envolvendo 33 profissionais. A Tabela 1 exibe a distribuição das pessoas entrevistadas por tipo de unidade. Foram realizadas entrevistas em todas as unidades de CAPS – Centros de Atendimento Psicossocial do município; em 8 UBS – Unidades Básicas de Saúde, correspondendo a 29% das UBS de Canoas e cobrindo três quadrantes geográficos; também com profissionais do Posto da Mulher (especialidades ginecológicas), do serviço de atenção a vítimas deviolênciasexual(HU)edoCentrodeReferênciadaMulher. Tabela 1 - Entrevistadas/os por Tipo de Unidade nº UBS 14 CAPS 10 Rede especializada de Políticas p/ mulheres 6 Gestão 4 Total 34 17 Perfildaspessoasentrevistadas Houve uma predominância de entrevistadas mulheres (84%) em relação aos homens e uma predominância de enfermeiras(os), no que tange à profissão e função das pessoas entrevistadas (Gráfico 1). No entanto, é importante
  • 16. 18 Gráfico 1 - Pessoas entrevistadas por profissão/função Gestora Assistente Social Terapeuta Ocupacional Pedagoga Técnica de Enfermagem Advogada Psicóloga Médica Enfermeira 4 9 13 3 4 1 1 1 1 Outra informação relevante com relação ao grupo de entrevistadas é o tempo de experiência dessas pessoas no serviço, que variou entre 5 dias e 20 anos, com uma forte preponderância daquelas com bem poucos meses. Isso se deu em função de recente mudança pela SMS do tipo de contratação das equipes e da consequente substituição das terceirizadas por concursadas, mudança que ocorreu de forma concomitante à implementação do projeto Girassóis no município, gerando algumas dificuldades para os processos. Assim, excetuando-se uma médica do Posto da Mulher, com 20 anos no serviço, e três psicólogas dos CAPS, duas com 5 e uma com 10 anos no serviço, todas as demais pessoas entrevistadas contavam com menos de três anos na unidade. Considerando-seapenasasUBS,amédiadetemponaunidadefoide3,5meses. Acondiçãoeavisãodequemestáparaouviretratar As entrevistas buscaram ouvir gestoras e profissionais da rede para tentar captar sua percepção sobre as interfaces da saúde com as condições de vida das mulheres, imbricações entre o mal-estar físico, a saúde mental e as desigualdades de gênero que marcam a vida de grande parte delas, e sobre a capacidade dos serviços de conferir resolutividade às demandas. Para tanto, as observar que, quando se desagrega o grupo por profissões, na profissão médica, os homens representaram 44% das respondentes, confirmando os estudos que apontam a prevalência masculina nos postos hierarquicamente mais elevados, em qualquer setor do mercado de trabalho. O perfil das respondentes é consistente também com estudos que apontam que as mulheres, não só são o maiorgrupodeusuáriasdoSUS,comotambémconstituemagrandemaioriadas profissionais que atendemnas unidades tanto da atençãobásicacomoda média e alta complexidades, com ênfase nas funções de enfermagem, técnicas de enfermagemeagentescomunitáriasdesaúde.
  • 17. entrevistas exploraram quatro aspectos das práticas nos serviços: 1) a visão da atençãopara além do serviço específicoem que atuae o preparo e sensibilidade individuais para perceber aquelas imbricações; 2) a percepção sobre a demanda, sobre as causas não orgânicas das enfermidades, e sobre como dar conta desses casos; 3) o conhecimento de uma rede ampliada de atenção às mulheres e a percepção sobre o funcionamento e sobre possíveis interconexões entre os nós dessa rede; 4) a percepção sobre os vínculos entre o sofrimento psíquico e as condições de vida das mulheres, com foco nos impactos da violênciasobreasaúdemental. O roteiro de entrevistas foi estruturado em seis blocos: o primeiro, de dados sobre a pessoa entrevistada e sua unidade; o segundo focado na participação em reuniões de rede e em atividades de capacitação, e no conhecimento sobre diretrizes do SUS para a atenção integral à saúde e à saúde das mulheres em particular. Um terceiro bloco sondou a percepção sobre os tipos de demanda do serviço, sobre as demandas de saúde das mulheres e suas causas, as conexões com a rede, a percepção de casos de violência contra a mulhernãoexplicitados,eotipodeabordagemparaessescasos.Oquartobloco explorou a percepção sobre as conexões e a integração do serviço com a rede de atenção a mulheres em situação de violência, a existência de fluxos, protocolos ou práticas de referência e contrarreferência para esses casos. O quinto bloco explorou a percepção de sofrimento psíquico entre as usuárias do serviço e sobre suas possíveis causas e vínculos com outras queixas de saúde, sobre diferenciais em relação ao adoecimento psíquico dos homens e ao consumo de substâncias psicotrópicas. Um bloco final buscou obter uma percepção valorativa sobre a integração em rede, a capacidade de encaminhamento pelos serviços e o investimento público em sua estrutura, além da visão sobre os caminhosparaoaprimoramentodaintegralidadenaatenção. Os dados resultantes foram examinados com base na técnica de análise de conteúdo (Bardin, 1977), a partir da definição de categorias e dimensões de análise, para cada um dos aspectos avaliados. Os principais achados seguem descritos nas próximas seções que, por razões de espaço nesta publicação, privilegiam as percepções de profissionais da atenção básica e da saúde mental, não especializada na atenção às mulheres, uma vez que interessa-nos justamente conhecer essas percepções para entender em que medida as desigualdadesdegênerosãoreconhecidasemanejadadentrodaredebásica. Noçõessobreredeintersetorialeatençãointegralàsaúde Para o primeiro bloco de questões, definiram-se como categorias: 1.1 noções sobre rede intersetorial; 1.2 noções sobre integralidade em saúde; 1.3 conhecimento sobre abordagem integral à saúde das mulheres. Dimensões e indicadores foram estabelecidos para cada uma das categorias, que orientaram 19
  • 18. aanálisedasentrevistas. Quadro 1 - Noções sobre rede intersetorial e atenção integral à saúde Categorias Dimensões Indicadores Noções sobre rede intersetorial Noções sobre a política de saúde integral das mulheres Noções sobre integralidade em saúde Participação Amplitude Compreende para além da saúde sexual e reprodutiva Usuária e sua queixa Prática da Atenção Determinantes sociais Menção de outros setores Nº de setores mencionados Cita aspectos para além do ciclo reprodutivo e dasquestões ginecológicas Reconhece as desigualdades de gênero com questão de saúde Compreende para além da queixa Reconhece a necessidade de envolver outros setores Reconhece o impacto das condições de vida Sobre o conhecimento e participação em reuniões de redes intersetoriais, observa-se um diferencial claro de percepção e de participação entre, de um lado profissionais dos CAPS e do CRM, e de outro, das UBS. Nos primeiros serviços, as entrevistas sugerem a existência de um diálogo maior do serviço com outros setores da rede de atenção, e maior participação em reuniões intersetoriais. Já nas UBS, a grande maioria de respondentes disse não participar de reuniões (o que, em parte, se explica pelo fato de as pessoas, em geral, serem bastante novas na unidade). Contudo, chama atenção, nas falas daquelas que responderam afirmativamente, a referência a reuniões das equipes do próprio serviço, ou entre diferentes equipes da saúde (médicas, enfermagem, agentes comunitárias, p.ex.), como reuniões intersetoriais, o que sugereumdesconhecimentosobreosignificadoderedeintersetorial. O conceito de intersetorialidade está estreitamente vinculado ao de atençãointegral no que tangeàs políticassociais. A abordagemintersetorial visa romper as barreiras da fragmentação das políticas, que impedem a consecução dos direitos sociais. Em geral, as políticas sociais buscam soluções para os problemas da população, cada uma a seu modo, sem considerar a cidadã (o cidadão) em sua totalidade, e tampouco a ação das outras políticas sociais que também buscam a melhoria da qualidade de vida (Junqueira, 2004). Em vista disso, têm crescido no âmbito da gestão pública os debates sobre intersetorialidade, a qual pode ser definida como a articulação de saberes e experiências com vistas ao planejamento, para a realização e avaliação de políticas,programas e projetos, como objetivo de alcançar resultados sinérgicos emsituaçõescomplexas(Junqueiraetal.,1998,p.24). 20
  • 19. Outra dimensão analisada no primeiro bloco das entrevistas foi a familiaridade das/dos profissionais com as Diretrizes da Política Nacional de 6 Atenção Integral à Saúde das Mulheres (PNAISM) . Nesse ponto, embora a maioria das respondentes afirmasse conhecer pelo menos em parte essas diretrizes, ninguém foi capaz de apontá-las, o que sugere a total ausência de disseminação desses princípios na atenção básica. As pessoas que arriscaram citar alguns pontos ao serem provocadas, mencionaram: “A questão do exame preventivo, a questão do acompanhamento delas...”; “A parte da prevenção do colo de útero e de mama, o pré-natal”; “A questão do aleitamento materno, CP citopatológico, colposcopia”; “Geralmente, pré-natal, acompanhamento clínico ginecológico de prevenção. Basicamente isso”. Falas de médicas(os) e enfermeiras(os) das UBS reveladoras da persistência de uma visão de “saúde da mulher” como “ginecologia e obstetrícia”, “gestação e maternidade” – mulher como sinônimo de útero e mamas, um ser que não existe fora de seu ciclo reprodutivo. Sinal de que a política no papel, quase 30 anos depois, ainda não ganhouconcretude. A concepção de integralidade em saúde, embora revele diferentes entendimentos e ainda um certo grau de desconhecimento, alcançou mais consistência nas falas. Entre as equipes dos CAPS, a rede aparece em diversas falas como fundamental para dar conta de uma atenção integral. Já entre as equipes das UBS, quando há resposta para a questão, ora ela aponta para uma abordagem multidisciplinar do problema trazido pela usuária, ora para a importância de ver a usuária como um todo, incluindo o contexto em que vive, ora a perspectiva ampliada da ação em saúde – promoção, prevenção, reabilitação. Surge, nesse ponto, também, o paradoxo entre princípios e estrutura do SUS, que impõe sérias limitações à integralidade na atenção, embora se possam observar esforços individuais no sentido de vencer essas limitações.Algumasfalassãorepresentativas: Acho que no atendimento a gente tem que buscar além da queixa. Olhar [...]o contexto todo. Não só a queixa dela. Ir mais a fundo, porque muitas vezes essas queixas estão escondendo algo que a gente (não sabe). Existem outras questões que perpassam a saúde, que afetam a saúde como questões sociais (Enfermeira E4,coordenadoradeUBS2). Integralidade em saúde, eu acredito que é tu ver o paciente como um todo. Por exemplo, tu vai coletar um CP, não é só um CP. É tudo o que envolve a saúde da mulher. É todas as questões que ela venha te relatar. É importante que isso seja uma escuta qualificada, ou seja, tu poder atuar de alguma forma naquilo que ela tefalou.(EnfermeiraE8,UBS5). É dar uma assistência de forma mais ampla. Vendo não só a questão da necessidade que o paciente vem a descrever, mas tentando compreenderqual é o contexto do território, de que forma está organizado esse ambiente [em] que ele estávivendo,praconseguircompreenderseéalgumadoecimentonatural,setem 21
  • 20. alguma influência do meio em si. E também compreender que não é só um profissional, só uma categoria profissional que vai dar esse suporte pra ele. E que não é também só a saúde, que vai envolver a educação, meio ambiente, e outros, assistênciasocial, outrosórgãos(EnfermeiraE9,UBS6). Nós trabalhamos aqui num permanente paradoxo. As políticas nacionais de saúdedafamíliapreveemqueasequipesdesaúde,comasuadiversidade,comos diferentes saberes, têm essa missão de implementar uma política assistencial humanizada que possa enxergar a pessoa na sua integralidade. Esse é o nosso desafio, porque, na verdade, nós vivemos uma contradição, é um paradoxo, ou seja, nós temos, por um lado, enormes carências dos usuários - de acesso aos serviços de saúde. E temos também, por outro lado, as metas dos gestores. Então nós, aqui, como equipe de saúde da família, vivemos esse permanente paradoxo. Ao mesmo tempo que nós temos como meta a humanização e a atenção integral, nós temos agendas superlotadas, nós temos pouco tempo pra atender os pacientes, nós temos demandas acima da nossa capacidade.[...] A saúde da família é um processo em construção. Quando nós atendemos um usuário, a unidade básica de saúde é um centro de escuta dos sofrimentos e dores das pessoas. Então, nós nos empenhamos e lutamos aqui diariamente pra gente conseguir, no tempo que nós temos. A agenda do médico é uma agenda que tem umtempoútildequinzeminutos(MédicogeneralistaM7,UBS7). A integralidade, enquanto princípio orientador do SUS, é oficialmente definida como um conjunto articulado e contínuo das ações e serviços preventivosecurativos,individuaisecoletivos,exigidosparacadacasoemtodos 7 os níveis de complexidade do sistema . Tal definição mostra-se muito limitada para dar conta dos múltiplos sentidos e distintas perspectivas da integralidade no âmbito da saúde. Vários estudos têm sido desenvolvidos tanto sob abordagens teóricas que buscam aprofundar a compreensão sobre os diversos sentidos desse termo polissêmico, quanto da perspectiva empírica de avaliação 8 da efetividade ou não do princípio nas práticas do SUS . Mattos (2006) defende que, ao invés de se buscar a consolidação do termo integralidade em um conceito preciso e operativo, deve-se mantê-lo como uma imagem-objetivo, ou seja, um objetivo situado em um horizonte ainda distante – mas não inalcançável; não utópico. É uma imagem que traduz uma transformação social buscada, a qual se acredita possível em um horizonte temporal definido, e que traduz também um pensamento crítico – “um pensamento que se recusa a reduzirarealidadeaoqueexiste”. A compreensão do que é integralidade, para Mattos(2006), envolve pelo menos três categorias de sentidos: integralidade como um traço da boa medicina;integralidadecomoummododeorganizaraspráticas;integralidadee políticas especiais. Na primeira categoria de sentidos, o autor aponta a necessidade de superação do distanciamento estabelecido entre a assistência médica, orientada por uma racionalidade biomédica (focada na doença), e a 22
  • 21. saúdecoletiva(comfocopreventivo).Paraoautor, Uma primeira dimensão da integralidade, na prática, se expressa exatamente na capacidade dos profissionais para responder ao sofrimento manifesto, que resultou na demanda espontânea, de um modo articulado à oferta relativa a ações ou procedimentos preventivos. Para os profissionais, isso significa incluir no seu cotidiano de trabalho rotinas ou processos de busca sistemática daquelas necessidades mais silenciosas, posto que menos vinculadas à experiência individualdosofrimento.Paraosserviços,issosignificacriardispositivoseadotar processos coletivos de trabalho que permitam oferecer, para além das ações demandadas pela própria população a partir de experiências individuais de sofrimento,açõesvoltadasparaaprevenção(MATTOS,2004p.1413) Embora essa postura na prática médica traduza a boa medicina, Mattos alerta para os cuidados com essa prática preventiva, para não se incorrer na medicalização, ou regulação dos corpos – típica da medicina preventiva e invasora da privacidade – ou na simples expansão do consumo de bens e serviçosdesaúde.Aintegralidadecomoboa medicinareflete,enfim,o encontro entre médica e usuária do serviço – um encontro atento, que envolve escuta, acolhimentoerespeitoàsubjetividadedaoutra. Apercepçãosobreademandaesuascausas O segundo aspecto trabalhado nas entrevistas envolveu a percepção das profissionaissobreademanda,sobreascausasnãoorgânicasdasenfermidades, sobreprevalênciadesituaçõesdeviolêncianavidadeusuáriasesobrecomodar conta desses casos. O bloco de questões que contemplava esse aspecto possibilitou, de um lado, uma análise quantitativa sobre o tipo de demanda que chega às unidades, ainda que não baseada em dados de registro, mas na percepção das equipes. Por outro lado, permitiu uma análise qualitativa de aspectos das práticas relacionados com o princípio da integralidade na saúde. Para essa última, elegeram-se duas categorias, com respectivas dimensões e indicadores,conformeseobservamnoquadro2. Quadro 2 - percepção sobre a demanda e suas causas Categorias Dimensões Indicadores Adoecimento das mulheres Percepção sobre a demanda Percepção de causas não biológicas das enfermidades Percepção de sofrimentos silenciados Tipo de causa atribuídas Relação com aspectos sociais ou psíquicos Identificação de posturas e traços psíquicos continua 23
  • 22. Com relação ao perfil da demanda, considerando-se os serviços não específicos para mulheres – CAPS e UBS – há uma grande diferença entre o público que os acessa. Enquanto nos CAPS (exceto para aqueles dedicados a crianças e adolescentes) o público predominante é de homens jovens e adultos (entre 70% e 85%), nas UBS predominam as mulheres acima dos 40 anos (70% a 80%), grande parte delas idosas. A maior procura dos homens pelos serviços de atenção à saúde mental parece ter uma forte relação com a dependência química. O acesso das mulheres ao serviço é percebido como resultado de seu papeldecuidadoras: Acredito que é bem dentro desse viés de cuidadora. Cuidadora de seus filhos, de seu marido, pais... Quando é para elas, talvez porque ela precisa estar inteira, precisa estar forte. É o que acontece aqui com os grupos de família, em que a maioria são mulheres, que vêm pelos filhos, buscando se fortalecer, para então trazerosfilhos(AS1,CoordenadoradeCAPS). Já as justificativas mobilizadas para a maior procura das mulheres pela atenção básica estão associadas a fatores culturais: as mulheres tenderiam a cuidarmaisdesi,etambémdosoutros,sermaispreocupadas,ter,desdecedo,o hábito de fazer exames preventivos; enquanto os homens tenderiam a recusar- se a admitir que estão doentes, porque isso seria um sinal de fragilidade. SegundoummédicodaESF,oshomens“sóvãodearrasto”àUBS(M7,UBS). Euacho queas mulheressão maisesclarecidas,sabe? Euacho que,sepreocupam mais. [...] a mulher, desde mais jovem, já tem aquele incentivo, de procurar prevenir, por exemplo, o câncer de colode útero [...].Então, ela já criou o hábito de vir no posto de saúde, diferente do homem que, teoricamente, vai começar fazer prevençãoapartirdosquarentaanosemolhelá...(M5,médicodeUBS). Algumas falas também atribuem essa diferença ao fato de as mulheres disporem de mais tempo – “eles trabalham e as mulheres não” (Médica M8, UBS8); “nós temos bastante donas de casa aqui, então, elas têm mais disponibilidade”(E12,enfermeira,UBS8);“Muitaspacientesnãotrabalham[...]. O homem está trabalhando e a mulher tem mais tempo pra buscar ajuda, enquanto o homem trabalha mais” (M3, médico, UBS). Associar o trabalho doméstico feito pelas mulheres ao não trabalho é uma das práticas discursivas Categorias Dimensões Indicadores Tipo de prática adotada Escuta atenta Respeito à subjetividade e autonomia das usuárias Casos cujo atendimento extrapola o objeto da consulta Aconselhamento sem imposição continuação 24
  • 23. que contribuem para reproduzir as desigualdades de gênero, conferindo ao 9 trabalhoatribuídoàsmulherespelasociedadepatriarcalmenorvalor . Quanto ao tipo de demanda, se referenciada ou espontânea, na maior parte dos CAPS, ela é sempre referenciada, oriunda das UBS e motivada por transtornomentalgrave:“Usuáriosquesãograves,quetêmriscoasioucolocam risco a outros, que precisam de um olhar mais próximo, que estão numa desorganização maior, é que têm indicação de estar aqui no CAPS” (TO1, Coordenadora CAPS1). Mudanças recentes na organização desses serviços abriram a possibilidade de atendimento de portas abertas e, em alguns CAPS, observou-se também uma demanda espontânea tendente a crescer. Já nas UBS, a demanda é espontânea, mas é feita por teleagendamento, o que, na avaliação de algumas equipes, interpõe alguma dificuldade de manejo da agenda pelas unidades. Anossademandaéporteleagendamento.[...]Claro,quandotemalgum...quando a gente atua nas equipes de saúde, [...]a gente já conhece todos. Então, é claro, nós temos duas ou três emergências que a gente chama de encaixe: chegou fulano de tal que está precisando...a gente encaixa. Vem direto aqui, fala comigo, seagentenãoresolve,passapromédico(EnfermeiraE3,UBS1). Na verdade, a demanda é uma questão bem controversa, porque a gente, muitas vezes, não tem autonomia pra fazer nossa agenda. Então tem a questão do agendamento por telefone que, às vezes, as pessoas que não são da área acabam sendo agendadas pra gente atender. Outras vezes, as pessoas que são, que querem marcar retorno não conseguem, porque a agenda limita. [...] A gente queria ter maior autonomia, porque em vários grupos hipertensos, diabéticos, gestantes,agentetemtidoproblemasemagendarretornos(MédicoM2,UBS1). É que nós chamamos, assim, o melhor termo é demanda programada. [...] O usuário liga pro teleagendamento, ele programa uma consulta e recebe um agendamento. Então, nós trabalhamos com demandas programadas que muitas vezes ocupam demais o nosso tempo. E também temos as demandas imediatas, que é o usuário que procura a unidade sem uma consulta marcada. Aí nós fazemosoacolhimento,aescuta(MédicoM7,UBS7). Noqueconcerneaosprincipaisproblemasdesaúdeentreaspessoasque buscam os serviços da atenção básica, há unanimidade entre as equipes ao apontarem hipertensão e diabetes como o problema mais prevalente em todas as regiões do município, embora algumas afirmem não ser essa, necessariamente, a queixa que leva as usuárias à unidade. A saúde mental também aparece em alguns depoimentos e a questão da medicalização surgiu deformaespontâneanafaladeumaenfermeiracoordenadoradeUBS: Então, a gente vem enfrentando uma dificuldade bem grande no município, de uma forma geral, assim, na questão de adesão a tratamento e consultas de rotina. Então, o paciente, ele vem num costume há longo prazo aí de renovações 25
  • 24. de receitas, das mais diversas possíveis, inclusive de psicotrópicos. Então tem casos de pacientes que não consultam há mais de dois anos, mas que vêm renovando uma receita com a mesma miligrama nesses últimos dois anos. [...] E elesóquerarenovação,elenãoqueravaliação,nãoqueraconsulta(Enfermeira E9,UBS6,ênfasesminhas). Questionadas sobre demandas específicas das mulheres, repetem-se nas respostas os problemas da hipertensão e da diabetes, o que é consistente com o perfil identificado do público atendido – majoritariamente mulheres de meia idade e idosas. Mas surgem também outras questões que vão ao encontro dospressupostosdapesquisa,comoseobservanasfalasaseguir: Diabete e hipertensão, não tem como fugir. Depressão, muito. E... coisa específica de saúde da mulher,... não é o principal assim, é mais doença clínica mesmo(MédicoM3,UBS2). Tem a questão das cobranças básicas a nível de ministério, que é a coleta de preventivo, de mamografia por cota, dependendo da faixa-etária. Agora se tem também a oferta de testes rápidos pra sorologias de sífilis, AIDS, HIV e hepatites, mas tem muito a questão forte também do uso de psicotrópicos e dessa renovação,dessadependênciaporessarenovação(EnfermeiraE9,UBS6). Na totalidade das entrevistas houve referência a sofrimento psíquico das mulheres usuárias. Entre os transtornos identificados nas UBS visitadas aparecem com muita frequência depressão, ansiedade, tristeza constante, desânimoetc. Sim. 90% das mulheres [que acessam o serviço] têm queixa de saúde mental. Choro persistente, tristeza interior, falta de vontade de fazer as suas atribuições, mulheres muito infelizes nos seus casamentos, infelizes no trabalho, sem perspectivadefuturo...(EnfermeiraE7,UBS4,ênfasesminhas). [Queixas de saúde mental] É bem frequente. A maioria é depressão e ansiedade. Asduasco-morbidadesmaisfrequentes(MédicaM4,UBS3). A percepção dos sofrimentos silenciados, por sua vez, entre os quais a violência contra a mulher, apareceu em pelo menos metade dos serviços pesquisados. Para algumas equipes, a violência vivida aparece com frequência; para outras, não é comum, mas acontece. Observa-se que a identificação e a possibilidade de trabalhar essa questão dependem do interesse da profissional envolvidanoatendimento: Às vezes a gente não consegue tirar isso de início, às vezes é com o vínculo que tu consegues fazer isso. Mas, se tu vais fazendo uma escuta dos casos, a maioria ou está passando por uma situação de violência, ou passou por isso na sua vida (TerapeutaOcupacionalTO1,CAPS1). 26
  • 25. Eu acho que é possível perceber. Independente de que muitas coisas às vezes não são ditas. Se a gente não fala, isso se expressa com o corpo. Vai de deixar à vontade, investigar. [...] a mulher, ela necessita de um vínculo pra poder se dispor eabrir(EnfermeiraE4,coordenadoraUBS2). Não é comum, mas não é raro. Só que pra gente chega, assim, é geralmente durante a conversa de saúde da mulher, numa coleta de preventivo, ou algum pedidodemamografia,nahoradequestionarseelatemumavidasexualativa,se ela está feliz com sua sexualidade [...]. E aí, na hora de esmiuçar o que é a sexualidade e como ela vivencia isso, começam os relatos de que, na verdade, às vezes, o ato não é consentido, mas é porque ela é casada e ele, então, enquanto marido, tem esse direito. Aí já começa a perceber essa primeira violência. E pra ela realmente chegar a ponto de dizer que o marido bate nela ou de que ela sofre violência explícita assim, é mais, quando ela já vem sofrendo por anos a fio. Não é numprimeiromomentoelaváchegarevaitecontar(EnfermeiraE9,UBS6). No Posto da Mulher, para onde são encaminhados casos que demandam atendimento ginecológico especializado, parecem aparecer com frequência casos que trazem impactos de violências e abusos sofridos na infância ou adolescência: “Recebemos muita paciente nessa fase, que nos transporta até um passado dessa pessoa, com queixas sexuais, muitas queixas sexuais relacionadas a abuso na infância. E [...]não que apareça nessa fase, mas muitas vezes são pessoas que por tu dar condições de ela te falar...” (Médica M1, Posto da Mulher). A escuta atenta é fundamental para isso e, nesse aspecto, vale observar, por um lado, a quase impossibilidade de médicas e médicos nas UBS exercerem uma tal escuta, dado o exíguo tempo de que dispõem para cada consulta. Por outro lado, vale destacar o esforço das equipes de enfermagem no aproveitamento do tempo de coleta de CP para fazerem essa escuta e estabeleceremvínculosdeconfiançacomasusuárias. Quanto à última dimensão de análise na categoria da percepção da demanda, não foi possível, a partir das falas em unidades de CAPS e de UBS, analisar em que medida as práticas adotadas respeitam a autonomia e subjetividade das usuárias. Um único depoimento, relacionado a situações de violência identificadas, sugere um reconhecimento e respeito à vontade da mulhercomrelaçãoàformacomoquerlidarcomaquestão: Quando é uma violênciaque a mulher refere no consultório, mas que ela não quer que saia dali, a gente não pode encaminhar. Por exemplo, mulheres casadas que sofrem estupro por parte do marido. Nas consultas para coleta do CP, elas relatam que não têm mais desejo sexual, mas os maridos forçam a relação. Isso é muito comum aqui. Só que elas relatam, mas quando a gente sugere alguma providência, elas se negam, e o profissional não pode acionar um Conselho, uma Delegacia da Mulher, porque se trata de um "estupro consentido", vamos dizer 27
  • 26. assim. É uma violência, mas o profissional fica de mãos amarradas (Enfermeira E7,UBS4,ênfasesminhas). Oconhecimentodaredeampliadaexistentenomunicípiopoderiaajudar essa profissional a orientar melhor a usuária, apontando outros espaços de escuta e de empoderamento que lhe permitissem superar a violência continuadacertamentecausadoradesofrimentopsíquico. Conhecimentodaredeintersetorialdeatençãoàsmulheres Outra dimensão referida às práticas adotadas por profissionais e equipes é a do conhecimento da rede intersetorial e percepção sobre sua integração ou não. Para essa categoria de análise, definiram-se quatro dimensões: o conhecimento dos serviços da rede, a percepção sobre sua integração, a existência de fluxos e a existência de protocolo para identificação de sofrimento psíquicodecorrentedesituaçõesdeviolência. Quadro 3 - conhecimento da rede intersetorial Categorias Dimensões Indicadores Noções e percepções sobre a rede intersetorial Conhecimento dos serviços Percepção de integração da rede Existência de fluxos Existência de um protocolo para identificação de sofrimento psíquico decorrente da violência Enumeração dos serviços Referência e contrarreferência Descrição do fluxo Roteiro de anamnese Os depoimentos relativos ao conhecimento e mobilização das redes revelam algumas diferenças de articulação entre CAPS e UBS. Observa-se entre as pessoas entrevistadas dos CAPS um maior conhecimento sobre os recursos e serviços disponíveis no município, as quais informam alguma interação com CRM, Casa Azul, CRAS, CREAS e Conselho Tutelar (CT). Já as equipes das UBS entrevistadas quando muito mencionam o CAPS, a assistência social (CRAS) e alguma orientação à usuária para fazer um Boletim de Ocorrência (B.O.) na delegacia, em casos de identificação de violência contra a mulher. Observa-se, pelos depoimentos, que essas últimas equipes mobilizam inicialmente seus recursos internos – Agentes Comunitárias de Saúde, equipes de enfermagem – e tentam manejar por si mesmas casos de violência e de sofrimento psíquico que nãoatendemcritériosdeencaminhamentoparaCAPSouparaoutrossetores. [A] gente procura, quando detecta, tomar as medidas cabíveis, junto com a equipe de saúde e fazer algum tipo de intervenção nesse sentido. Porque só falar 28
  • 27. coma mulher... ela está, digamos, dentrode uma realidade que ela não consegue sozinha resolver essa questão. Então, são sempre problemas bem complexos. São problemasquemuitasvezesdemoratempopraaparecer.Elasprecisam,àsvezes, de um tempo pra estabelecer um vínculo, não só comigo, mas com toda a equipe de saúde, com a enfermagem. Então, muitas vezes elas, durante o exame de CP, queéfeitoaquipelasenfermeiras,elasfalamdesituações...(MédicoM2,UBS1). E a gente procura, na medida do possível, dar algum encaminhamento pra esses casos. É, o primeiro passo, a gente costuma conversar com o agente comunitário pra saber como é que é a realidade daquela família, quem são os moradores, se tem crianças [...]. E a partir daí é passado, assim, pra realmente conversar, principalmentecomosetordeassistênciasocial(MédicoM2,UBS1). As falas nas UBS mostraram que a maior parte das equipes entrevistadas não conhece a rede intersetorial de atenção a mulheres em situação de violência. Aparentemente não há uma prática de referência e contrarreferência quando se tratam de encaminhamentos para serviços de outros setores das políticas. A existência de fluxos estabelecidos de referência e contrarreferência intersetorial é fundamental para a integralidade da atenção à saúde – a integralidade considerada nos três sentidos principais – como um traço da boa medicina; como modo de organizar as práticas; como políticas especiais, que atentem para as especificidades de certos grupos sociais. Fluxos que possibilitem uma atenção que, para além de tratar, incida na prevenção e na promoção da saúde, tendo em conta seus determinantes sociais. Fluxos que permitam organizar as práticas na forma de uma ação concertada e sinérgica envolvendo todos os setores das políticas sociais; e focar nas especificidades e necessidades de saúde de cada grupo social, com uma abordagem correta fundadanasdiretrizesdapolíticaespecífica.Issovaleparaasaúdedasmulheres, para a saúde dos homens, para a saúde de crianças e adolescentes etc. As entrevistas revelam a inexistência desses fluxos e, além disso, uma articulação intersetorial muito frágil e totalmente dependente da iniciativa e do esforço de uma ou outro profissional. Tampouco se identificaram nas falas iniciativas de capacitaçãoparaotrabalhoemredeintersetorial. Da mesma forma, a inexistência de um protocolo para identificação de sofrimento psíquico decorrente de violência contra a mulher deixa as equipes inseguras em relação ao tipo de encaminhamento e, mesmo, ao modo de condução do caso na própria unidade. O sofrimento psíquico tende a apresentar-se, na atenção básica, mais frequentemente na forma de sintomas somáticos do que psicológicos. Múltiplos sintomas físicos podem, muitas vezes, dificultar um diagnóstico correto, prolongando o sofrimento da paciente, levando a um tratamento inadequado, e provocando sua busca reiterada dos serviços de saúde. Por essa razão, o desenvolvimento de protocolos clínicos para a identificação e tratamento de sofrimentos psíquicos causados por 29
  • 28. determinantes sociais é fundamental para a resolutividade de inúmeros casos noâmbitodaatençãobásica. Percepçãodosvínculosentresofrimentopsíquicoedeterminantessociais A sondagem sobre a percepção do sofrimento psíquico como resultado das condições de vida das mulheres buscou analisar esse aspecto das práticas segundo três dimensões: o reconhecimento de queixas que remetem à saúde mental; as causas que são atribuídas a essas queixas; e a questão da medicalização das mulheres com substâncias psicotrópicas. O quadro 4 a seguir ilustra essas dimensões e seus respectivos indicadores identificados na pesquisa. Quadro 4 - percepção dos vínculos entre sofrimento psíquico e condições de vida Categorias Dimensões Indicadores Percepção de sofrimento psíquico vinculado às condições de vida Reconhecimento de queixas de saúde mental Causas atribuídas às queixas Medicalização Identifica ou não na demanda Assédio moral, violência, sexo forçado, conflitos familiares, sobrecarga na família Razões identificadas, atitude perante a indicação de medicação psicotrópica, alternativas sugeridas No que tange à primeira dimensão, as entrevistas realizadas não confirmaram o pressuposto da pesquisa, de que faltaria na atenção básica o reconhecimento do sofrimento psíquico que provoca o mal-estar e o adoecimento das mulheres. Todas as pessoas entrevistadas, tanto nos CAPS comonasUBS,CRMePostodaMulherresponderamafirmativamenteàquestão sobre a identificação de queixas relacionadas à saúde mental por parte de mulheres atendidas no serviço. Mais do que isso, muitos depoimentos vinculam esse sofrimento às situações vividas por essas mulheres e reconhecem nele as causasdoadoecimento,porexemplo: É... depressão, transtorno de ansiedade, transtorno bipolar, ... luto. Muitas vezes, tanto depressão quanto transtornos de ansiedade são causados por situações vividas dentro de casa. Não diria que por agressão física ou verbal, mas por atritos, entre elas e os companheiros, os maridos, mas é uma coisa muito recorrente assim. Eu até diria que não é muito atrás da hipertensão e diabete. Tem muitos casos de depressão, de transtorno de ansiedade também por sofrimento que predomina bastante em mulheres em relação a, algumas vezes, a atritosfamiliares(MédicoM2,UBS1,ênfaseminha). 30
  • 29. Observa-se, também, a percepção das queixas vagas como um sintoma de algum sofrimento psíquico não enunciado, como se pode ver nas falas reproduzidasaseguir: Porque ela nunca chega dizendo que está em sofrimento mental. Ela não chega chorando e diz que não sabe por que começou a chorar. Ela chega aqui com uma "dor no dedo", só que esse dedo não tem nada. E aí tu revira do avesso e não aparece nada. E aí tu deixa ela falar, falar, e começa a perguntar se tem alguma coisa diferente, se aconteceu alguma coisa diferente. E é nesse ponto que elas começamerelatamascoisas(EnfermeiraE7,UBS4). Muitasvezessãosintomas,digamosassim,sintomasfísicosequeagentecomeça a perguntar e começa a descobrir que tem um fundo emocional naquele sintoma físico. Então, uma dor de cabeça, daí tu pergunta que momento ela costuma acontecer mais, “ah, quando eu fico mais nervosa, quando eu fico mais estressada”.(MédicoM2,UBS1). [...] quando nós abordamos a pessoa na sua integralidade, nós temos uma dimensão física, que se manifesta por sintomas e queixas funcionais, digamos assim. Como, por exemplo, dor de cabeça, dor nas costas, mas essas queixas físicas funcionais, elas estão interligadas e, muitas vezes, são determinadas pela dimensão mental do indivíduo. Que seria assim, uma dimensão que inclui as emoções, os pensamentos, as vontades e que, muitas vezes, o indivíduo, nessa dimensão mental, ele está em sofrimento, pelas suas circunstâncias de vida, E essa dimensão mental, ou psíquica ou psicológica, ela determina, muitas vezes, queixas físicas, que são, digamos, o que muitas vezes o usuário..., ele manifesta. Então, existe uma diferença, entre ouvir a queixa e escutar a queixa. Então, a atenção à pessoa, o profissional da saúde precisa abordar integralmente isso. [...] é muito comum as queixas físicas não terem relação orgânica. (Médico M7, UBS7,ênfasesminhas). As causas apontadas pelas entrevistadas para esse sofrimento são associadas, em geral, a conflitos familiares, insatisfação com o casamento e a vida sexual, controle excessivo por parte dos maridos, humilhação e assédio moral no lar. Algumas vezes, menciona-se também o processo de envelhecimento como causador de processos depressivos tanto em mulheres como nos homens. A violência física aparece em bem poucos relatos, mas a violência sexual ou, no mínimo, as relações sexuais não desejadas parecem ser bemmaisfrequentes. A questão da medicalização excessiva, por sua vez, também é percebida por parte das equipes e sugere ser um recurso a que as usuárias se agarram como se fosse uma solução para os seus problemas. Foram identificados esforços em algumas UBS no sentido de desmedicalizar as usuárias, o que, visto sob um ângulo, sinaliza para a dimensão grave desse processo de medicalização entre as mulheres, a ponto de mobilizar estratégias das equipes de saúde para 31
  • 30. reverter tal quadro. De outra perspectiva, aponta para o fato positivo da existênciamesmadessasiniciativas. Ela que carrega a família. É ela que sofre mais as perdas. E daí, como elas vêm de uma cultura de medicação, então acham que a medicação é pra tudo. A gente estátentandotirarumvício,tiraramedicação,eelasnãoconseguem.[...]Eelas gostam,porqueelasdeitamedormem(EnfermeiraE3,UBS1). [...]agenteestátentandofazerumdesmame.[...]fazoitomesesquenósestamos aqui. A gente vai pegar todos esses que tão fazendo uso dessa medicação há muito tempo e vamos tentar ver ou encaminhar, daí, com o psiquiatra para fazer avaliação. Porque é muita medicação, é muita... eles tão tomando [psicotrópicos]demais(E3,UBS1). [...] o pessoal toma bastante remédio controlado aí. Eles já vêm... Às vezes até tu tentadesmamaralguns quetuvêquetãomeioexageradoassim,no teupontode vistaassim,eédifícil,porqueestãohálongotempousando(M5,UBS4). Eu acho que num primeiro momento vem mais a questão dessa frustração, por não conseguir, em alguns momentos, se ver nesse papel de mulher e de independente, de dona do seu corpo e da sua vida. E aí, acaba gerando um processo depressivo, não necessariamente uma depressão. E aí, se consulta e já nessaconsulta,comohojeemdiasetemmuitoacessoàinformação,elasporsisó já entraram em contato com alguma amiga, ou alguém que já tomou algum psicotrópico e que se sentiu, [...] melhor [...]. Então, elas já chegam nessa consultacomessepedidoeessanecessidade(EnfermeiraE9,UBS6). A medicação psiquiátrica das mulheres, eu vou te dizer que a grande maioria usa porqueelaschegamaquicomailusãodequeexiste"umapíluladafelicidade".Ela vai tomar aquele comprimido e o marido vai sacar que ela não quer fazer sexo, a criançaquechoravaipassar(EnfermeiraE7,UBS4). Ainda assim, percebe-se em muitas falas a prática de prescrição de psicotrópicos por médicas(os) generalistas ou de saúde da família e por ginecologistas,mesmoparacasosde“transtornoslevesemoderados”. Como aqui a gente trabalha com médico da família, todos os casos de transtorno leve e moderado que não tenha que ser encaminhado ao CAPS, casos difíceis ou com persistência já e tal, que fique aqui. O psicológico, quem faz o diagnóstico, quemfazoacompanhamentoenósdasaúdedafamíliaeomédicoqueprescreve. E acho que, sim, acho que todos têm que dar atenção. Se eu vou fragmentar de novo, “não, só quem prescreve isso é o psiquiatra”, sabe? Então daí tu não tem, tu não tá olhando ela como um todo, e principalmente no seu território (Enfermeira E4,UBS2). Então, na rede de saúde, por uma questão de demanda, a gente acaba... os próprios clínicos são os que mais receitam. Porque aquela situação ideal, tu vê 32
  • 31. uma situação que pode enquadrar no quadro de depressão, pra daí tu encaminhar pra um psiquiatra, pra daí ele avaliar se é pra gerenciar um tratamento ou não. Tu perde muito tempo nesse processo, assim, a pessoa acaba ficando muito tempo em sofrimento. Então, na prática, o próprio clínico é quem maisacabareceitandoessetipodemedicação(MédicoM2,UBS1). Portanto, apesar de reconhecerem que o sofrimento, na maior parte das vezes, tem causas sociais e não orgânicas, e apesar de reconhecerem a disseminação preocupante do uso de psicotrópicos nessa população, os profissionais seguem prescrevendo essas medicações. Vale observar, também, nessa última fala do médico de UBS, a referência à “rede de saúde” como exclusivamente a da atenção básica. Essa menção, embora não de forma assim explícita, transpareceu em outras falas e pode ser tomada como um sintoma da faltadeconexãoentreosserviçosdaatençãobásicaedasaúdemental,edafalta de integralidade da atenção, desta vez com relação à integralidade como um modo de organizar as práticas. A inexistência de um trabalho integrado em rede provocaa demora a que o médicose refere, prolongando, consequentemente, o sofrimento da usuária do serviço, e deixando o profissional sem outro recurso queodereproduzirpráticasqueelemesmopercebecomoprejudiciais. Percepção sobre a capacidade dos serviços de conferir resolutividade às demandas O último bloco de questões avaliou a percepção das pessoas entrevistadas quanto a três quesitos: a integração entre os serviços da rede, a capacidade dos serviços de darem encaminhamento/manejarem situações de violência e seus agravos, e o investimento da administração municipal na rede. Os quesitos deveriam ser avaliados com pontuação de 1 a 5, sendo que 1 representa nenhum(a) e 5 representa plena(o). Quanto à integração da rede, 69% das respondentes atribuíram 3, significando que consideram haver algum grau de integração, mas ainda distante do ideal. Sobre a capacidadedos serviços de manejar e dar encaminhamento adequado a casos que envolvam situações de violência, as percepções foram bem diversas: plena (5) correspondeu a 6%; quase plena (4), a 38%; média (3), a 31%; e muito pouca (2), 25%. Já a percepção do investimento da administração municipal na rede dividiu-se de forma perfeitamenteequilibradaentreasavaliaçõesde1a4,com25%paracadauma. Entre os principais desafios para a integralidade na atenção, surge repetidamente a necessidade de integração da rede, de um fluxo estabelecido, que seja do conhecimento de todos os serviços, de melhor comunicação entre os serviços e da necessidade de pessoal preparado/ capacitado para atender essetipodesituação. 33
  • 32. Consideraçõesfinais A prevalência de sofrimento psíquico entre mulheres, associada às persistentes desigualdades de gênero na sociedade e aos papéis sociais a elas atribuídos,ficamuitoevidentenosdadosqueemergiramdapesquisadecampo. A constatação de outros estudos, da excessiva medicalização sem qualquer outra abordagem que fortaleça as mulheres de modo a apontar-lhes uma porta de saída desse sofrimento, também ficou corroborada pelos depoimentos de profissionais entrevistadas. A partir dos relatos obtidos, observa-se que na atenção básica, em Canoas, só muito raramente o sofrimento psíquico das mulheres é percebido por profissionais da medicina como associado a situações de violência vividas, sendo mais relacionado a conflitos familiares, perdas, sobrecarga de encargos domésticos e insatisfação no casamento. Violências, quando identificadas, são em geral psicológicas, como assédio moral, humilhações, restrição à liberdade de escolha. Já, em vários relatos de profissionais da enfermagem que se engajam em uma escuta ativa durante examesdecoletadoCP,surgeaidentificaçãodeviolênciasexual,principalmente naformaderelaçõessexuaisindesejadasmas“impostas”pelocasamento. A análise dos dados não confirmou a suposição de que o mal-estar das mulheres e seus vínculos sociais não seriam percebidos pelas equipes na atenção básica. Boa parte das entrevistas revelou que as e os profissionais que atuam em UBS sim conseguem reconhecer e estabelecer vínculos entre sintomas e sofrimentos apresentados pelas usuárias e alguns fatores sociais condicionantes de sua saúde, apesar das acentuadas carências em termos tanto de estrutura dos serviços como de tempo para uma escuta ativa. Vale observar que nem sempre, contudo, o reconhecimento desses fatores implica o reconhecimento das desigualdades de gênero neles implicadas. Em alguns casos,a condição desigual que provocao sofrimento é vista simplesmente como inerente à vida daquela pessoa e não como uma situação que pode e deve ser mudada com o fortalecimento de sua autoconfiança. Esse não reconhecimento de um determinante de gênero para o adoecimentopsíquico das mulheres pode explicaremparteporqueaquelasnessasituaçãocontinuamasersimplesmente medicalizadas, sem obter um acompanhamento capaz de fortalecê-las para enfrentarautonomamenteascondiçõesqueasoprimem. No entanto, a julgar pelos depoimentos, não só nisso reside a resposta para esta questão – ela pode estar relacionada também a duas deficiências principais. A primeira diz respeito à estrutura insuficiente dos serviços para dar conta da demanda atual. Uma estrutura que precisa ser repensada e planejada, tendoemvistaaAtençãoBásicatercomopúblicoprincipalpessoasacimados40 anos, na maioria mulheres, e a tendência demográfica do município ser de envelhecimento da população, apontando para uma demanda crescente. O número insuficiente de equipes de Estratégia de Saúde da Família (ESF) e de 34
  • 33. Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF) para dar suporte às equipes existentes reduz significativamente o enfoque de prevenção e promoção da saúde – pressuposto básico da integralidade da atenção –, bem como a própria capacidade resolutiva da rede, pela falta da abordagem multidisciplinar exigida em muitos casos. A lógica produtivista que vem orientando os serviços, com pessoal reduzido e metas que operam em detrimento da qualidade do atendimento e da escuta ativa, se contrapõe ao princípio da integralidade e contribuitantoparaaineficáciacomoparaasobrecargadosistema;tantoparao adoecimento crescente da população como para a medicalização excessiva e a pressãosobreosníveisdemaiorcomplexidade. A segunda deficiência diz respeito à falta de entendimento do que seja uma rede intersetorial, e à falta de conhecimento dos equipamentos que compõem essa rede. Ficou evidente, a partir das falas de maior parte das pessoas entrevistadas, especialmente daquelas vinculadas à atençãobásica,um entendimento de “rede” como o conjunto de serviços integrantes do setor do qual a pessoa faz parte, e não o conjunto de todos os setores de políticas sociais que podem contribuir para a melhoria dos condicionantes sociais da saúde de indivíduos e população. A capacitação para o reconhecimento e a integração dessa rede ampliada poderia contribuir para conferir maior segurança às equipes no encaminhamento de casos que exigem uma abordagem multidisciplinar e multissetorial, e contribuir para a resolutividade da atenção. Além disso, o estabelecimento de um fluxo compartilhado por todos os serviços e de protocolos que reconheçam e integrem a rede ampliada também é fundamental para esses objetivos. A necessidade desses instrumentos é reconhecida por quem atua no atendimento e sente-se impotente, muitas vezes,pornãosaberaquemrecorrerparaacomplementaridadedaatençãoque presta às usuárias. Isso fica claro em algumas respostas à questão sobre os principaisdesafiosparaaintegralidadedaatenção: Eu acho que um bom fluxo, onde todas as partes têm o mesmo fluxo. Acho que tem que pactuar isso entre todos. Representantes de todas as especialidades e não só saúde. Tem que entrar assistência, tem que entrar segurança, educação, proteção, intersetorialidade mesmo. Todos assinarem, pactuarem e seguir no mesmofluxo.Einvestimentonaestrutura(EnfermeiraE4,UBS2). Acho que falar uma só linguagem. Deixar tudo certinho assim, o que fazer. Criar protocolos,euachoqueissoéoprincipal,temquesecriar.Esaberinformar[para] quem a gente tem que encaminhar o que, em que situações. Eu acho que é mais isso. Quando isso começar a andar junto com as nossas capacitações pra isso, a gente vai estar mais segura pra fazer esse tipo de encaminhamento e conseguir enxergarissodentrodaunidadetambém(EnfermeiraE12,UBS8). É importante reconhecer os esforços que vêm sendo desenvolvidos no município no sentido de fortalecer e integrar políticas, de conferir mais 35
  • 34. estabilidade às equipes da Atenção Básica ao renovar os quadros por meio de concurso público, de investir em diversas iniciativas de capacitação das equipes e fomentar a integração em redes. Vale destacar, em especial, o importante papel da Coordenadoria Municipal de Políticas para as Mulheres de impulsionar a transversalidade dessas políticas entre os diversos setores da gestão municipal. Pontos que ficaram evidentes tanto nas entrevistas com as gestoras quantonasfalasdeváriasprofissionaiscontatadas. Os dados levantados, no entanto, indicam que ainda há um longo caminhoapercorrer,especialmentenoqueconcerneàintegralidadenaatenção à saúde das mulheres. Embora haja um reconhecimento de que a maior demandanaatençãobásicasejademulheresacimados40anos,comênfasenas idosas; embora haja um reconhecimento de que boa parte da demanda por atendimento na atenção básica seja de mulheres com queixas somatoformes e de sofrimento psíquico que sugerem a necessidade de escuta e de terapias alternativas, segue-se medicalizando o mal-estar das mulheres, como único procedimento. Não se identificam políticas voltadas para essa questão como, por exemplo, o cumprimentodas metas de estruturaçãodas equipes de ESF e de NASF que poderiam contribuir no enfrentamento dessa problemática, nem iniciativasdedesenhodeumfluxointegrandoarede. No que tange às prioridades da política de saúde da mulher, embora se reconheça que o que mais mata mulheres hoje, no município, são as doenças cardiovasculares,e–umdadoassustador–oquemaismatamulheresemidade fértil é o vírus HIV (ver Anexo 2), as ações em saúde da mulher seguem priorizando câncer de colo de útero e de mama, a política voltada para a prevenção da Aids não tem qualquer recorte de gênero e nenhuma das entrevistas realizadas colocou a questão da Aids como uma demanda de saúde naatençãobásica. A coordenação das políticas para as mulheres, por sua vez, têm dado ênfase ao enfrentamento à violência contra as mulheres e à estruturação e consolidação de uma rede cujo foco ainda está na segurança pública, justiça e assistência social, buscando dar proteção e possibilitar um fortalecimento socioeconômico das mulheres em situação de violência para que possam sair dessa situação. As implicações sobre a saúde ainda carecem de um olhar mais sistemático e as interfaces com a rede de saúde, quando ocorrem, em geral, estãovinculadasaosdireitossexuaisereprodutivos. Por outro lado, segundo relatos de algumas gestoras, questões relacionadas à saúde mental das mulheres apareceram com força na Conferência Municipal de Políticas para as Mulheres e nas plenárias municipais para a construção do Plano Municipal de Saúde. Essas demandas refletem necessidades que estão levando as mulheres à atenção básica com queixas diversas para as quais elas não conseguem acesso à atenção à saúde mental e 36
  • 35. acabam medicalizadas. Essas mulheres, como vimos nos depoimentos ilustrados aqui, não necessariamente são vítimas de uma violência explícita passível de denúncia e punição. Um grande contingente é apenas refém de práticas e modos patriarcais de organização da vida que desvalorizam e sobrecarregam a mulher, levando-a à infelicidade, à perda da libido, à depressão e perda de perspectiva de vida, coisas que não se curam com remédio, mas com ações capazes de respeitar e valorizar a subjetividade dessas mulheres, ações que devem envolver múltiplos setores de políticas e múltiplas especialidades profissionais. Devem envolver, ademais, como aponta Araújo em artigo nesta publicação, vontade política, recursos humanos e materiais, adesão ao projeto e desejoderealizá-lo,alémdareorganizaçãodosprocessosdetrabalho. A atenção à saúde mental, no município, começa a organizar o seu serviço na perspectiva do matriciamento, da abordagem do caso por equipes dos CAPS e da Atenção Básica simultaneamente, no sentido de reforçar a integralidade e a resolutividade da atenção. Alguns CAPS começam também a organizar grupos de mulheres, como uma estratégia de enfrentamento ao uso disseminado dos benzodiazepínicos. Mas a política continua operando focada apenas nos transtornos mentais graves e sem uma perspectiva de gênero, sem um recorte específico, protocolos ou fluxos que possibilitem uma abordagem informada sobre os condicionantes sociais que afetam a saúde mental das mulheresdiferentementedoshomens. Finalizando, fica evidente, a partir da pesquisa, a importância fundamental de se desenharam políticas e linhas de cuidado para dar conta das necessidades específicas das mulheres. Em particular, uma linha de cuidado capaz de lidar com os impactos sobre a saúde mental de uma população em processo de envelhecimento, constituída majoritariamente por mulheres, as quais, além de condições desiguais de poder na família, veem-se cada vez mais sobrecarregadas com responsabilidades de cuidado e pressionadas por noções de felicidade, vendidas pelos meios de comunicação, associadas a ideais de beleza, de vivência da sexualidade e de acesso a bens de consumo completamente distantes da realidade. A demanda por esse enfoque emerge tanto da população da Canoas, como ficou registrado na Conferência Municipal de Políticas para as Mulheres, como das profissionais da rede de atenção, conforme se evidenciou nessa pesquisa. As recomendações para o desenho dessa linha de cuidado estão explicitadas no texto de Maria José Araújo sobre o tema,nestapublicação. 37
  • 36. NOTAS 1 Mestra em Sociologia, Bacharel em Adminis- tração Pública. Coordenadora geral do Projeto Girassóis. 2 A redação deste texto obedece uma escolha situada em relação à forma gramatical. Ao contrário da regra comum, a qual determina que na referência a pessoas em geral a flexão é no masculino, aqui se afirma o feminino, de modo que homens estão inclusos nas menções às profissionais, às entrevistadas, às usuáriasetc. 3 A pesquisa que deu origem a este artigo foi desenvolvidapor uma equipe de consultoras e colaboradoras do Projeto Girassóis – Coletivo Feminino Plural. Participaram da elaboração do instrumento de pesquisa Maria José de OliveiraAraújo,ReginaVargaseTeliaNegrão.A equipe de entrevistadoras incluiu Amanda Machado, Carolina Mombach, Jessica Pereira daSilvaeTerezaCristinaBrueldosSantos.Para a degravação das entrevistas, contribuíram Jessica Pereira da Silva e Liana Vargas Fernandes. Agradecemos a todas e todos pro- fissionais da rede e gestoras que disponibili- zaram seu tempo para possibilitar que este estudoserealizasse. 4 IDHM - Índice de Desenvolvimento Humano Municipal. 5 Fontes: IBGE - Cidades@ e PNUD - Atlas do DesenvolvimentoHumanonoBrasil,2013. Veranexo1. Lei8080de19/09/1990-Art.7º,II. Ver por exemplo, Mattos (2004; 2006), Tesser e Luz (2008) e o sítio de internet: http://www. lappis.org.br/site/ Na verdade, valor nenhum, uma vez que nem é remunerado nem é considerado para o cálculo econômico da riqueza produzida em umadadasociedade. 6 7 8 9 REFERÊNCIAS ARIAS, S.V. Evaluación de una intervención biopsicosocial para el malestar de las mujeres enatenciónprimaria.Feminismo/s,v.10,dezembro2007,pp.:111-131. BURIN, M. Género y salud mental: construcción de la subjetividad femenina y masculina. UCES – Universidad de Ciencias Empresariales y Sociales, online, 2012. Disponível em: <http://dspace.uces.edu.ar:8180/xmlui/bitstream/handle/123456789 /1529/Burin_2010_Preprint.pdf?sequence=1.Acessoem:5demaiode2015. BURIN, M.; VELÁZQUEZ, S.; MONCARZ, E. .El malestar de las mujeres: la tranquilidad recetada.BuenosAires:EditorialPaidós,1990. JUNQUEIRA L.A.; INOJOSA, R. M.; KOMATSU, S. Descentralização e intersetorialidade na gestão pública municipal no Brasil: a experiência de Fortaleza. Série Concurso de Ensayos CLADCaracas:UNESCO/CLAD,1998. MATTOS, Ruben Araujo de. Os Sentidos da Integralidade: algumas reflexões acerca de valores que merecem ser defendidos. In: PINHEIRO; MATTOS (orgs.) Os Sentidos da Integralidade na Atenção e no Cuidado em Saúde. Rio de Janeiro : CEPESC/IMS/UERJ/ Abrasco,2006 NEGRÃO, T. O sentido de nossas práticas em defesa dos direitos humanos das mulheres. In: NEGRÃO; JARDIM (orgs). Experiência de implantação de um Centro de Referência: reflexõesepráticas.ColetivofemininoPlural,2013. PINHEIRO, R.S. et al.. Gênero, morbidade, acesso e utilização de serviços de saúde no Brasil.CiênciaeSaúdeColetiva,v.7,2002,pp.687-707. SCHRAIBER LB, GOMES R, COUTO MT. Homens e saúde na pauta da saúde coletiva. CiênciaeSaúdeColetiva,10(1):7-17,2005. 38
  • 37. WHO-WorldHealthOrganization.Siteinstitucional.Mentalhealth.Genderandwomen's mental health, 2015. Disponível em: <http://www.who.int/mental_health/ prevention/genderwomen/en/>.Acessoem5demaiode2015. WHO – World Health Organization. Women's mental health: an evidence based review. WHO/MSD/MDP/00.1.WorldHealthOrganization.Geneva:WHO,2000. WHO – World Health Organization.A focus on women. WHO/MSA/NAM/97.4.Division of MentalHealthandPreventionofSubstanceAbuse.Geneva:WHO,1997. WHO – World Health Organization. Psychosocial and mental health aspects of women's health.WHO/FHE/MNH/93.1.DivisionofFamilyHealth.Geneva:WHO,1993. 39
  • 38. 40
  • 39. Saúde Mental das Mulheres, novos enfoques Maria José de Oliveira Araújo 1 Uma sopa de letrinhas até a longa, estranha e incompreensível palavra no meio da página... Palavras vagamente familiares mas estranhamente alteradas, como rostos diante de um espelho mágico, passavam rapidamente, não deixando nenhuma impressão na superfície de vidro de meu cérebro. As letras formaram pontas de espinhos. Vi-as separarem-se umas das outras e saltitarem de maneira absurda. Depois elas se juntaram em formas fantásticas e intraduzíveis (Sylvia PlathapudGarcia,1995). Introdução A conscientização de que os transtornos mentais representam um sério problema de saúde pública é relativamente recente, ocorrendo a partir de publicação realizada pela Organização Mundial da Saúde - OMS e por pesquisadoresdaEscoladeSaúdePúblicadaUniversidadedeHarvard,em1994. Considerando como medida uma combinação do número de anos vividos com incapacidade e sua consequente deterioração da qualidade de vida, e o número de anos perdidos por morte prematura causada pela doença (medidos pela unidade Disability Adjusted Life Years – DALYs), verificou-se que doenças como transtornos depressivos e problemas cardiovasculares vêm rapidamente substituindo a desnutrição, as complicações perinatais e as doenças infectocontagiosas em países subdesenvolvidos, onde vive a grande maioria da populaçãomundial(OMS,2010). Segundo a OMS, as desordens mentais e neurológicas são responsáveis por 11% da carga mundial de saúde. A estimativa da organização, para o ano 2020, é de que esse percentual chegará a 15% e de que serão necessárias mudançasnosmodelosdeatençãoàsaúdeparaqueaspessoascomtranstornos mentaispossamreceberaatençãodesaúdenecessária(OMS, 2010). Constata-se que, nos países da Ásia e da América Latina, essa transição epidemiológicavemocorrendosemumaadequadaadaptaçãodoplanejamento dos serviços e da assistência à saúde pública. Embora os transtornos mentais causem pouco mais de 2% da mortalidade em homens e mulheres, são respon- sáveis por mais de 12% das incapacidadesdecorrentes dos agravosà saúde. Esse percentualaumentapara23%empaísesdesenvolvidos(RSMLAC,2001). Um em cada quatro indivíduos de ambos os sexos será afetado por transtorno mental ou neurológico em algum momento de sua vida, porém nem 41
  • 40. sempre receberá o diagnóstico e o tratamento adequados (RSMLAC, 2001). A esta situação se somam questões como o estigma, a discriminação e a exclusão social implícitas neste tipo de enfermidade, que agregam mais sofrimento àquele já vivido pela própria doença. Das dez principais causas de incapacidade na população em geral, cinco delas estão relacionadas aos transtornos psiquiátricos, sendo a depressão responsável por 13% destas incapacidades, o alcoolismo por 7,1%, a esquizofrenia por 4%, o transtorno bipolar por 3,3% e o transtornoobsessivo-compulsivopor2,8%(OMS,2010). Na população feminina, no Brasil, os dados do Sistema de Informação Hospitalar do Sistema Únicode Saúde – SHI/SUS (Brasil apud Araújo e Simonetti, 2009), revelam que as principais causas de internação por transtornos mentais estão relacionadas, por ordem de importância, aos seguintes problemas: esquizofrenia e transtornos esquizotípicos e delirantes (51,86%), transtornos do humor/afetivos (20%), transtornos mentais e comportamentais devido ao uso de substâncias psicoativas (4,80%) e transtornos mentais e comportamentais devidoaousodeálcool(3,60%). Estudo de Araújo & Simonetti (2009), sobre os gastos com as principais internações de mulheres no SUS, revela que na rubrica “Transtornos mentais e comportamentais” os gastos percentuais com as internações por "Esquizofrenia e transtornos esquizotípicos e delirantes" respondem por mais da metade dos gastos,aindaqueestejamemdeclínio.Contudo,destaca-seofatodequeogasto com as internações devidas aos "Transtornos de humor [afetivos]", inclusive a depressão, aumentaram percentualmente e o mesmo padrão é observado em relação aos "Transtornos mentais e comportamentais devido ao uso de álcool" e "Transtornos mentais e comportamentais devido ao uso de outras substâncias psicoativas", sendo este último conjunto de causas o que apresenta um aumento mais expressivo. Esses dados sobre o aumento do uso de substâncias psicoativas entre as mulheres são compatíveis com os dados do Ministério da Justiça(Brasil,2008),quereferemumfortecrescimentodapopulaçãocarcerária demulheresdevidoaoenvolvimentonotráficodedrogas. É importante frisar que o Brasil implantou nos anos noventa uma nova política para a saúde mental, a Reforma Psiquiátrica que tem como principal estratégia a luta antimanicomial, medida que visa reduzir as hospitalizações por causas psiquiátricas. Considerada um dos modelos mais avançados de política para a área na América Latina (Lancetti, 2009), essa reforma prioriza como política de Estado os programas de apoio psicossocial, que incluem uma rede composta por centros de atenção psicossocial (Caps) e residências terapêuticas, tendo havido, desde então, sensível redução na rubrica orçamentária para internaçõespsiquiátricas. Embora possa ser considerada uma das políticas mais importantes assimilada pela Reforma do Sistema de Saúde no momento de sua criação, o 42
  • 41. debate sobre as desigualdades de gênero nas formas de adoecimento e morte entre homens e mulheres ainda era incipiente e essa ausência era sentida na formulaçãodasdiversaspolíticaselaboradaspelasinstânciasresponsáveispelas políticaspúblicas. Concomitantes a essas reformas, começavam a desenvolver-se núcleos de estudos de gênero nas universidades e pelo movimento feminista, que introduziram uma nova perspectiva teórica metodológica e uma concepção política das relações sociais e de poder para analisar o conjunto de atributos e expectativas que a sociedade, em cada momento histórico, destina a homens e mulheres. Observa-se, a partir de então, avanço conceitual importante no campo da saúde sobre a necessidade de introduzir na formulação das políticas e na análise dos dados epidemiológicos, mecanismos explicitadores das diferenças sociais que incidem e determinam a saúde das mulheres e dos homens (Matamala, 2005). Estudos demonstraram diferenças nos modos de adoecimento e no impacto dos problemas de saúde que afetam homens e mulheres como seres sociais, o que obriga os serviços a darem respostas adaptadas especificamente às suas necessidades e demandas. Tais necessidades, em geral, permanecem invisíveis para os profissionais de saúde. Transtornos ligados à drogadição são um exemplo, incluindo o uso abusivo dos medicamentospsiquiátricose do álcool,e os problemas resultantes da violência domésticaesexual(Araújo,2010). Tais avanços, no entanto, não alcançaram a Política Nacional de Saúde Mental, cujas ações são ainda dirigidas indiscriminadamente para homens e mulheres. As desigualdades de gênero prevalentes numa sociedade patriarcal, associadas a pobreza, discriminação, sobrecarga de trabalho e violência doméstica, e que colocam as mulheres em situação de maior vulnerabilidade, inclusive para os transtornos psiquiátricos, passam despercebidas nessa Política.Outra lacuna persiste no limitado e incipiente diálogo entre a Políticade Saúde Mental e as políticas públicas dirigidas às mulheres, dificultando a concretização do princípio da integralidade que deve permear todas as formas decuidado. Persiste, no campo da saúde mental, uma hegemonia das práticas e do discurso centrados nas questões biomédicas e a invisibilidade das diferenças de gênero. Torna-se urgente a revisão desses paradigmas de modo a introduzir novos enfoques que permitam compreender as necessidades de saúde da população feminina e intervir de forma adequada (Gómez & Grela, 2001). O campo da saúde mental precisa ser repensado, de forma a incorporar o nexo existente entre a saúde mental das mulheres e a sua produção histórica enquantosujeitossociais. 2 Nesse sentido, Burín (1990) introduz no debate o conceito de mal-estar para definir uma nova categoria que objetiva desarticular o dualismo saúde- 43
  • 42. doença. O mal-estar, segundo a autora, refere-se aos sofrimentos psíquicos e emocionais das mulheres como reveladores de sua condição de gênero. Com esse conceito, Burín propõe abordar a saúde mental a partir de um marco teórico que enfatiza o lugar historicamente construído para as mulheres, assim como, os modelos de atenção associados a ele, como fatores de risco para os agravosàsaúde. Conforme Burín, o conceito de “mal-estar psicológico feminino” tem como referência “um estado de bem-estar, felicidade e desenvolvimento pessoal ideal ou normativo positivo”. Portanto, é um conceito mais amplo que o de doença mental, que só considera como problema de saúde um conjunto de sintomas ou o que se chama síndrome. Nesse conceito, a saúde mental não é somenteoladonegativodasdoençaspsiquiátricas,mas,sim, (o) resultado das contradições e tensões entre a experiência vital e as expectativas de gênero e está constituído por um conjunto de elementos específicosnavidadasmulheres(Burín,1990,p.35). Conforme estabelece a OMS (2010), as desigualdades sociais entre os homens e as mulheres são determinantes dos problemas de saúde mental da população feminina, pois aumentam sua exposição aos riscos e sua vulnerabilidade frente aos mesmos, limitando o acesso aos serviços e à informação em saúde. As enfermidades mentais em geral, e a depressão em particular, apresentam na sua prevalência uma das diferenças de gênero mais marcantes na área da saúde (OPS, 2000). Ainda de acordo com a OPS, na fase adulta emergem grandes diferenças entre os homens e as mulheres em relação aostranstornosmentais. Ao analisar os dados referentes à demanda da população feminina por serviços de saúde públicos e privados no Brasil, Villela (1992) observa uma grande frequência de queixas psicológicas como causa de procura dos serviços, revelando maior prevalência de distúrbios psiquiátricos em mulheres. Encontram-se na literatura diversos estudos que evidenciam a estreita relação entre transtornos mentais e situações de vida próprias da população feminina. Embora as disparidades nos dados sobre transtornos mentais entre homens e mulheres possam apresentar diferentes causas, inclusive biológicas, numerosos estudos sobre o tema apontam a socialização de gênero e as relações de dominação e submissão como fatores importantes na gênese dessas diferenças, gerando consequências negativas para a saúde mental das mulheres (Burín, 1990;AMS,2008). A baixa condição socioeconômica de grande parcela das mulheres, a discriminação social, o abuso emocional, a tripla jornada levando a uma sobrecarga de trabalho e a violência doméstica e sexual contribuem para esta situação. No entanto, muitas mulheres não associam estas situações com a origem da depressão, de suas dores cotidianas, de sua tristeza, dificultando a 44
  • 43. saídadocírculoviciosodamáqualidadedevida. Os dados da OMS (2010) revelam que existem 400 milhões de pessoas que sofrem algum tipo de depressão no mundo. Em torno de 20% são consideradas depressões endógenas ou biológicas que afetam igualmente homens e mulheres; o restante, 80%, são as chamadas depressões exógenas ou situacionais que afetam desigualmente os dois sexos: 30% são depressões diagnosticadas nos homens e 70% nas mulheres. Ainda segundo a OMS (idem) as mulheres apresentam uma maior vulnerabilidade a sintomas ansiosos e depressivos,especialmenteassociadosaoperíodoreprodutivo. O uso abusivodos medicamentosconsiderados de uso psiquiátricosurge com uma das consequências dessa situação. Além disso, os dados revelam que as mulheres constituem o maior grupo consumidor desse tipo de medicamento no mundo inteiro. Cerca de 75% do consumo de psicotrópicos é atribuído às mulheres, dada à sua situação de maior vulnerabilidade social. Aquelas das classes menos favorecidas, incluindo as mulheres negras, aquelas em situação de privação de liberdade, as adolescentes sem apoio social e as mulheres na terceira idade estão mais suscetíveis de passar por transtornos mentais graves causados pela superposição de vulnerabilidades, potencializando os agravos à saúde. A depressão nas mulheres pode ser desencadeada por fatores que ultrapassam a história de violência de gênero que elas vivem ao longo de suas vidas. Nesse sentido, além da violência doméstica ou sexual praticada pelo companheiro, pelos filhos e filhas ou por estranho, outros eventos traumáticos de gênero podem resultar em “mal-estar psicológico feminino”, tais como: gravidez indesejada e abortos realizados em condições físicas e emocionais inseguras; abuso sexual ou incesto na infância; menopausa e depressão pós- parto(AMS,2008). Ainda segundo AMS (2008), a depressão de gênero não seria uma enfermidade mental e nem biológica, senão um conjunto de sofrimentos e mal- estares físicos e psíquicos que as mulheres experimentariam ao padecerem o que a autora denomina de “crise de identidade de gênero”. Um exemplo seria o que Bonino (1998) chama de microviolência, isto é, os pequenos e imperceptíveis controles e abusos de poder, quase normalizados, que acontece nas relações afetivas entre homens e mulheres. Outros exemplos seriam as contradições que as mulheres enfrentam ao ter que responder ao conjunto de requisitos socialmente exigidos e durante a vivência de crises importantes tais comoseparações,depressãopós-partoeoutras. Para Carla Garcia, os problemas de saúde mental das mulheres revelados na pesquisa realizada em diversos manicômios da cidade de São Paulo, traduzem“ummundocontraditórioefechadoaossentimentoseaosafetos,que sempre constituiu a realidade feminina” (Garcia, 1995, p.129). De acordo com a 45