Este documento discute o papel da mídia durante uma calamidade no Vale do Itajaí em novembro. Analisa como a cobertura da mídia impressa, televisiva e online evoluiu ao longo do evento, passando de um enfoque inicial no espetáculo da tragédia para uma abordagem mais técnica e informativa. Também examina as ações dos produtores de informação do governo municipal e estadual para coordenar a divulgação de informações durante a emergência.
1. A mídia e a calamidade
(*) Aristheu Formiga
Dentre os fatores presentes na calamidade de novembro no
médio vale do Itajaí, um deles teve reflexos significativos na
população, que foi a atuação da mídia, dos meios de
comunicação de massa.
“Deve entender-se como meios de comunicação de
massa, todos aquelas disposições da sociedade que
se servem, para propagar a comunicação, de meios
técnicos de reprodução massiva. Deste modo, se deve
pensar sobre livros, revistas e jornais no que se refere
ao meio impresso, assim como na reprodução fotográfica
ou eletrônica de todo o tipo, na medida em que sua
produção seja em grande número e esteja dirigida a
receptores desconhecidos”. (Luhmann, 2000, p. 2)
Nesta apresentação, faremos 1) uma avaliação dos
procedimentos da mídia durante o evento, 2) analisaremos o
papel dos produtores públicos de informação jornalística nas
esferas municipal e estadual e, 3) que papel assumiram os
meios de comunicação de massa, impressos e eletrônicos, no
período da calamidade.
A escolha destes aspectos a serem analisados não é casual,
pois as informações circularam durante o evento
principalmente através da mídia. Na impossibilidade da
circulação de pessoas, devido a deslizamentos, enxurradas ou
enchente, o acesso à informação e a compreensão das
ocorrências ocorreu fundamentalmente através da televisão,
internet e depois, pelo jornal impresso. Este acesso ocorreu, é
claro, onde havia rede elétrica em funcionamento.
Uma tragédia anunciada
Na avaliação dos procedimentos da mídia, verificamos que
esta atuação sofreu diversas modificações, tanto no conteúdo
das informações como na forma de sua apresentação, nos
jornais e na TV, a medida que a calamidade se desenrolou e
seus efeitos e detalhes foram conhecidos. Para melhor
compreensão, abordaremos de modo distinto e particular os
conteúdos e a forma das notícias e informações nos jornais,
internet e na televisão.
Na mídia impressa, a chuva persistente já causava
deslizamentos na região da Rua Coripós e na Rua Pedro Kraus
Sênior, o que, à exceção dos atingidos localmente, era assunto
para as páginas internas dos jornais diários.
2. A partir do dia 22 de novembro, os jornais diários relatam a
tragédia, em Blumenau, Gaspar, Itajaí e depois em Ilhota. A
mancha impressa dos jornais foi ocupada por fotos e relatos
da calamidade, porém com pouca um nenhuma explicação, em
bases sólidas, sobre o que estava acontecendo. Curiosamente,
até a terminologia utilizada para descrever o fenômeno careceu
de precisão, na medida em que os jornais utilizavam os termos
catástrofe, tragédia e calamidade como se sinônimos fossem,
numa tentativa de tornar um espetáculo o evento.
No Jornal de Santa Catarina (JSC) do dia 24 de novembro, a
manchete é “Tragédia”, ocupa 19 das 32 páginas da edição
para tratar o tema, fala que Blumenau está em estado de
calamidade pública, e indica o que fazer durante a enchente e
apresenta as cotas de enchente das ruas da cidade. O referido
jornal da edição de 28 de novembro, tem a manchete “Vamos
reconstruir”, repetindo o discurso de autoridades (governador
do Estado e prefeito municipal), de que o problema seria
contornado com obras civis e restauração da infra-estrutura.
Opinião técnica
Após o susto inicial, os jornais buscaram dar um significado
técnico, além do espetáculo e da informação factual, ao evento.
O JSC de 29 e 30 de novembro, registra a fala do prof. Juarês
Aumond, quando atribui as causas da tragédia à morfologia do
vale, à geologia do vale e ao clima nos últimos meses,
apresentando pela primeira vez uma opinião fundamentada
tecnicamente.
Na contramão do discurso oficial das autoridades, um grupo de
professores da UFSC, FURB e Univali publicaram uma coluna
no jornal Diário Catarinense de 29 de novembro, sobre o
Código Ambiental catarinense, em que listam deslizamentos,
erosão pela chuva e ação dos rios como fatores condicionantes
diferentes, mas que fazem parte da dinâmica natural do vale do
Itajaí, ensejando a necessidade de evoluir a gestão urbana e
rural e encontrar instrumentos que permitam a convivência
entre cidade, rios e encostas.
O jornal Folha de Blumenau, na edição de 3 a 5 de dezembro,
registra Pelo menos cinco causas para a tragédia, citando
professores da Udesc e da FURB, que seriam as chuvas,
3. rocha, cortes dos morros, mata atlântica e ciliares e o plano
diretos da cidade.
O espetáculo da tragédia
Na produção de informação na televisão e na internet não foi
diferente. Na noite de 23 de novembro, as televisões de
Blumenau relatavam o nível da água do rio Itajaí-açu, enquanto
locutores respondiam e-mails da audiência, opinando sobre
enchente, como se a calamidade fosse apenas isto. Formou-se
uma rede de solidariedade, envolvendo as emissoras FURB
TV, TV Galega e TV Legislativa, onde personalidades e
jornalistas se revezavam informando ruas alagadas, locais dos
abrigos e o que fazer para deslocar-se.
A partir da terça-feira 25 de novembro, os telejornais das redes
nacionais transmitiram de Blumenau, falando da tragédia como
espetáculo, sem contudo aprofundar a discussão do tema.
Trataram da questão como sendo o problema das enchentes
no Sul do Brasil. Transmitiram ao vivo do prédio da prefeitura
de Blumenau, Willian Bonner, Caco Barcellos, Ana Maria
Braga, Roberto Cabrini e José Luiz Datena, apresentado cenas
da calamidade em tempo real e solicitando doações de água,
gêneros de primeira necessidade e roupas, o que apenas que
faltava. Os critérios para a matéria espetáculo, num telejornal
de rede, como o Jornal Nacional, devem:
“ – Afetar um universo grande de brasileiros;
preferencialmente, mais do que uma cidade de porte
médio. Isso vale para recursos hídricos, por
exemplo. (...) Deve-se considerar também que um
telejornal, por se tratar de um programa de televisão,
precisa ser interessante. E o interesse público é
maior quanto maior for o número de temas
abordados numa edição”. (Bonner, 2004: p.112)
Então o interesse da matéria, no conjunto do jornal, passa a
ser mais importante do que a significação do fato em si, das
implicações dele para as pessoas, humanas, concretas. E a
realidade foi também construída com os desejos e visões
recortadas dos jornalistas, como se
“No âmbito do mundo virtual, as coisas, as gentes e
as idéias, tanto como as identidades, alteridades,
4. diversidades e desigualdades, parecem mudar de
figura e figuração. Como parecem descoladas da
experiência, realidade ou existência, aparecem como
fantasias do imaginário. Podem ser criações
prosaicas ou originais, mais ou menos elaboradas
com base na estética eletrônica, de tal modo que
muitos, muitíssimos, multidões, são levados a visões
do mundo destituídas de tensões e contradições”.
(Ianni, 2000: p.75)
Quando a maioria das rádios silenciou na noite de 23 de
novembro, as informações foram transmitidas através da Rádio
Mix FM, sediada em Indaial, que não teve problemas com
energia elétrica. Diversos locutores de outras emissoras de
Blumenau, que operavam em frequência modulada e ondas
médias, passaram a transmitir da Rádio Mix as informações
que recebiam. A rádio FURB FM também atuou durante todo o
período, repassando as informações que também eram
transmitidas através da FURB TV. A rádio AM Nereu Ramos
instalou estúdio na prefeitura e transmitiu 24 horas por dia.
Ação pública na mídia
Os produtores públicos de informação jornalística em
Blumenau atuaram a partir da assessoria de imprensa da
prefeitura municipal, com duas tarefas principais: a) passar as
informações coletadas aos jornalistas e correspondentes dos
meios de comunicação de massa e, b) comunicar à população
os locais de abrigo, de acesso à serviços de saúde, de
distribuição de alimentos e sobre o que fazer em situações de
emergência. Esta postura incomodou inicialmente alguns
jornalistas, que queriam mostras sangue, destruição e
lágrimas. As edições dos jornais de 26 e 27 de novembro,
inclusive os telejornais em rede nacional, relatavam uma
tragédia sem precedentes, acompanhada pelo número de
mortos, desabrigados, estradas, pontes e ruas intransitáveis. A
partir do dia 28 de novembro, os meios de comunicação de
massa apresentaram informações que acalmaram a população
e, paralelamente, ajudaram a convocar os servidores públicos
da área de saúde, que ainda não estavam nos seus postos de
trabalho. A preocupação em não alarmar a população atingiu
até o prefeito João Paulo Kleinübing, que contraiu Leptospirose
no dia 23 de novembro, constatou-se clinicamente após dois
5. dias, mas o dado não foi divulgado, vazando a informação
apenas um mês depois.
A internet também teve importante participação na divulgação
das ações desenvolvidas nas áreas atingidas, com o sítio da
Prefeitura Municipal de Blumenau registrando acessos entre 7
a 40 mil internautas por dia. Essas informações foram
utilizadas pelos veículos de comunicação, para relatar a
situação da cidade.
Como a coordenação das ações de socorro às vítimas também
se localizou no prédio da prefeitura de Blumenau, os jornalistas
que transitavam pela assessoria de imprensa passaram
também a buscar informações no Centro de Comando das
Operações, o que exigiu uma definição de quem estava
autorizado a repassar os dados. De forma semelhante, foram
estabelecidos três horários diários para comunicação à
imprensa, além de entrevista coletiva, marcada para depois da
reunião diária da coordenação e dos secretários municipais, às
19 horas.
Como era intensa a busca de informações e imagens da
calamidade, a assessoria de imprensa fez a escala dos
jornalistas e repórteres cinematográficos para sobrevôo das
áreas atingidas em aeronaves militares, sempre que havia
disponibilidade, ou nos carros anfíbios do Exército.
No âmbito do governo do Estado, foram estabelecidas duas
coordenações dos serviço de imprensa, uma em Florianópolis
e outra em Navegantes, em sala anexa onde funcionou o
comando do Batalhão Aéreo da Polícia Militar de Santa
Catarina. Vinte jornalistas produziram matérias, fotografias,
imagens para TV, além de receber e encaminhar as
solicitações dos correspondentes que vieram de outras regiões.
Como fazer comunicação na calamidade
O papel assumido pelos meios de comunicação de massa na
cobertura da calamidade de novembro, mostra interesses não
explicitamente revelados, na busca de leitores e na ampliação
da audiência, em que os fatos são sacrificados em nome do
espetáculo. A informação fica atende à vontade da mídia, não
do público, em clara auto referência.
“Auto referência é o mesmo que fechamento do
círculo: os meios de comunicação falam de si
mesmos, criam as notícias que de fato deveriam ser
6. buscadas exteriormente, mantêm-se num
procedimento de se citarem mutuamente, em suma,
constroem um universo para si próprios e o colocam
no lugar do mundo esterno, de todo mundo”.
(Marcondes Filho,2000: p. 41)
A forma de fazer um programa de TV na Rede Globo, como o
Fantástico, os fatos são espetacularizados, conforme o
interesse do editor:
“A programação acompanha de perto os
acontecimentos nacionais, mas só em raras
ocasiões os menciona diretamente. Em lugar da
menção direta, as imagens e os textos oferecem
uma interpretação e um comentário direto”. (Chauí,
2006: p.17)
A imagem e o texto acompanham seguem a vontade do editor,
conforme o enfoque escolhido para dar significado ao
espetáculo. São descartados, neste enfoque:
“as características principais da notícia, que são: 1)
veracidade; 2) interesse público; 3) ocorrência
recente, e 4) proximidade com o destinatário. Estas
características remetem a outras questões
relacionadas com a notícia (tais como quem escolhe
o fato a ser noticiado, quem o declara verdadeiro e
de interesse público, a que público ele se destina)”.
(Formiga, 2007: p. 25)
No caso específico da calamidade de novembro no Médio Vale
do Itajaí, o enfoque escolhido foi o da destruição: de
residências, da infra estrutura viária, da aparente normalidade
cotidiana. Ou seja, o tema subjacente presente na mídia é a
necessidade de reconstrução, de utilização adequada do saque
do FGTS, a espera das verbas federal como redenção do
problema e, secundariamente, entender as diversas
determinações da calamidade (não apenas a chuva, o
deslizamento a enchente), para evitar repetir comportamentos
equivocados. Isto talvez não será possível se não tivermos a
possibilidade potencial de retratar a realidade próximo como ela
é, de relatar os fatos como eles são. Pois,
“(...) enquanto o jornalismo na rede procura suas
senhas de identidade, que encontrará cedo ou tarde,
seu valor principal é a liberdade. E que a liberdade é
7. o programa que faz os sábios, como dizia esse outro
sábio andante, Dom Quixote: ‘A liberdade, Sancho, é
um dos mais preciosos dons que os céus deram aos
homens; com ela não podem igualar-se os tesouros
que a terra esconde nem o mar encobre; Pela
liberdade, bem como pela honra, pode-se e deve
aventurar a vida e, ao contrário, o cativeiro é o maior
mal que pode vir aos homens’. (Vilches, 2006: p.188)
Torna-se presente a necessidade de liberdade para ter
informação contextualizada, crítica, que possibilite dar significação
concreta à realidade vivenciada.
(*) Aristheu José Formiga de Oliveira é mestre em Ciências da Comunicação pela USP,
jornalista e professor na FURB.
(O autor agradece à ex-secretária Municipal de Comunicação de Blumenau, Fabrícia
Durieux Zucco e à jornalista da Defesa Civil de Santa Catarina, Ana Paula Zenatti, pelas
informações prestadas)
Referências
BONNER, William. A notícia na TV: critérios de seleção e decisão no
telejornalismo, in Manual de Comunicação e meio ambiente, Marcello Vernet
de Beltrand (org.). São Paulo: Peirópolis, 2004;
CHAUÍ, Marilena. Simulacro e poder. São Paulo: Fundação Perseu Abramo,
2006.
FORMIGA, Aristheu. Vende-se a notícia: a notícia como mercadoria em
jornais catarinenses. Blumenau: Edifurb, 2007.
IANNI, Octavio. O príncipe eletrônico, in Desafios da comunicação, Hélio
Solva (org.). Petrópolis: Vozes, 2000
LUHMANN, Niklas. La realidad de los médios de massas. Rubi (Barcelona)/
Anthropos Editorial (México): Universidad Iberoamericana, 2000.
MARCONDES FILHO, Ciro. A saga dos cães perdidos. São Paulo: Hacker
Editores, 2000.
VILCHES, Lorenzo. Migrações midiáticas e criação de valor, in Sociedade
mediatizada, Denis de Moraes (org.). Rio de Janeiro: Mauad, 2006.