1. Este texto, parte do livro AUTOBIOGRAFIA, primeiro volume (ANTES DA FAMA), está
sendo publicado gratuitamente, a título de experiência. Ainda não foram feitas edição nem
correção ortográfica.
José de Abreu
Minha vida em Santa Rita do Passa Quatro - SP pode ser dividida em antes e depois
do falecimento do meu pai em 1955, quando eu tinha 9 anos. Uma parte dela com seu
salário e presença, e uma outra, muito dura, sem eles. Ele havia sido Delegado de Polícia
durante 22 anos na mesma cidade, coisa raríssima. Na época e agora. Toda vez que ele era
promovido conseguia, através de um amigo deputado poderoso, anular a promoção. Até
que uma vez não deu, ele tinha que ser promovido. O amigo então conseguiu promover a
delegacia da cidade para que ele pudesse continuar lá após sua promoção. Por isso até
hoje a delegacia de Santa Rita é de 3a classe enquanto em outras cidades maiores é de 4a.
Quando chegou perto de se aposentar, resolveu correr na carreira e finalmente foi para
São Paulo, chamada de “a Capital” - uma coisa longe, distante, importante – com minha
irmã Nenê, muito apegada ele. Moraram no Hotel Mathias, na esquina da Rua Santa
Efigênia com Rua Antônio de Godói. Logo que chegou na Capital dava plantão na Central
de Polícia e vivia trocando de plantão com seus colegas para trabalhar mais dias seguidos
e folgar para ir para casa, em Santa Rita, onde o resto da família ficara.
***Escala para o Plantão de Abril de 1952, Central de Polícia da Capital de São Paulo:
http://www.arquivoestado.sp.gov.br/uploads/acervo/textual/deops/boletins_informat
ivos/BR_SP_APESP_DEOPS_SSEP004_1952.pdf
Depois foi Delegado-Chefe da antiga Delegacia de Acidentes de Automóveis, a cara dele,
delegado bonachão que nunca usou uma arma e, para apaziguar casais briguentos,
marcava um brodo para conversarem. Sempre conseguia que o casal voltasse às boas.
Talvez por isso quando morreu tinha cerca de 60 afilhados de batismo e crisma, só em
Santa Rita.
Uma vez um marginal dos anos 40 apelidado de Chico “Pó-de-Arroz” porque usava
o pó para dar uma embranquecida na pele, entrou num baile a cavalo e queria que as
mulheres dançassem com o animal, chicote em punho. Foi um Deus nos acuda. Meu pai
chegou, mandou que ele descesse do cavalo, tirasse o animal do salão e o amarrasse num
2. poste em frente. Isso feito, mandou que o meliante fosse andando sozinho para a cadeia e
entrasse na primeira cela que estivesse aberta, que ele chegaria logo. Pois o Chico ““Pó-
de-Arroz” foi. Claro que não sozinho, porque muitos moradores da cidade o
acompanharam até a cadeia: quiseram ver de perto a autoridade do Dr. Abreu.
Não convivi muito com o meu pai porque quando eu nasci, em 1946, ele já estava
trabalhando fora, mais precisamente na cidade vizinha de São Simão. Minha mãe contava
que ele esperou até dia 23, mas eu resolvi nascer só no dia seguinte, 24 de maio, apesar
da torcida da família para que eu nascesse dia 22, dia da padroeira da cidade, Santa Rita
de Cássia. Ele então, assim que chegou em São Simão, recebeu um telefonema e voltou
para conhecer, enfim, o sonhado herdeiro varão.
Ele só veio definitivamente para Santa Rita, para ficar, quando se aposentou, em
1955, no início do ano, com 32 anos de serviço. Trabalhou 7 anos “de graça”, como se dizia,
já que podia se aposentar com 25.
Fui com ele para “a Capital” algumas vezes, como nos festejos do IV Centenário,
realizados entre 9 e 11 de julho de 1954 e não no dia do aniversário da cidade, que é 25
de janeiro. Acho que as obras não ficaram prontas e aproveitaram o 9 de Julho. Montaram
um parque de diversões imenso no Parque do Ibirapuera e meu pai, como delegado, tinha
“permanente”, uma espécie de passe livre, que me permitia entrar de graça. Me esbaldei
naqueles brinquedos todos. Nunca antes se tinha montado um parque daqueles em São
Paulo. O Ibirapuera (que foi construído por Niemeyer para a comemoração) era lindo e
grande, aliás, imenso na cabeça de um menino caipira de 8 anos.
Quando meu pai me levou para conhecer a Delegacia, todo mundo perguntava se
era seu neto. Apesar de ter pouco mais de 50, anos tinha aparência de bem mais velho.
No fim de 1954, ainda em São Paulo, e em processo de aposentadoria, teve um
problema de saúde, como sempre teve durante toda sua vida: cada vez era um pedaço do
corpo dele que dava mancada, o que o fazia tomar centenas de remédios, cada vez para o
pedaço doente. Apesar de nunca ter bebido “nem uma gota de álcool”, o fígado sempre
dava pau. Resultado: por ironia do destino, os remédios acabaram provocando nele uma
doença de bêbado, a cirrose. Estivemos todos lá em São Paulo para visitá-lo no hospital.
Ficamos hospedados na casa do meu tio rico Vicente Falco Papa – exportador de café -
casado com a tia Irene, na Av. Muniz de Souza, em frente do Parque da Aclimação. Eles
tinham dois filhos, a Gilda e o Walter. Esse meu primo, 15 anos mais velho que eu, era um
bon vivant. Tinha um MG inglês, lindo, conversível, de 2 lugares. Foi ele quem me
3. apresentou pela primeira vez a uma televisão. A gente sabia que tinham inventado um
rádio no qual a gente podia ver o “hominho lá dentro falando”, mas eu nunca tinha visto.
Levei um baita susto.
Tio Vicente tinha um escritório no centro velho de São Paulo, na rua Quintino
Bocaiuva, para seus negócios de café, eu adorava ira lá. Era entendido no assunto, ganhou
muito dinheiro e depois quebrou quando uma safra imensa provocou a queda
internacional do preço da fruta. Toneladas de café foram queimadas nas fazendas
provocando uma tristeza imensa na família.
Na Capital, tudo era novo para mim: edifício alto, elevador, bonde.
Quando meu pai voltou para Santa Rita, já com alta e aposentado oficialmente, é
que convivemos mais. Me lembro dele sentado numa cadeira de braço em baixo da
jabuticabeira, lendo jornal, me lembro dele me levando para jogar bola no Areão, um
campinho de futebol que tinha perto de casa, obviamente de areia ao invés de grama. Me
lembro muito bem de irmos ao Circo Teatro Irmãos Alciati, que vinha em Santa Rita todo
ano com o palhaço Mixirica. Tinha a tal “permanente” também para os circos que vinham
a cidade, sentávamos no camarote de 4 lugares, ao lado das cadeiras, mas no corredor
principal. O espetáculo sempre começava com as variedades, como trapézio, malabares,
etc., mas o ponto alto eram os palhaços Lolô e o Mixirica, o primeiro levantava a bola e o
segundo cortava. E como cortava bem, ele era um excelente palhaço. Tinha Globo da
Morte, e, durante a troca de cenários, o Mixirica, já sem cara de palhaço, entrava para
cantar o tango “Hoje quem paga sou eu” na versão em português. Eu nunca entendi bem a
parte da letra que dizia “hoje faço deste bar a sucursal / do meu lar, que atualmente não
existe”: se a matriz não existia mais, como ter sucursal?
Depois do intervalo, todo mundo pegava suas cadeiras e as colocava no picadeiro,
perto do palco, para ver o “drama”, como eram chamadas as peças de teatro. Era, quase
sempre,“Coração de Mãe”, inspirado na música de Vicente Celestino. Eles literalmente
dramatizavam a história contada na música. O coração da mãezinha era sempre um
coração de porco, comprado ou doado pelo açougueiro da cidade em troca de ingressos
para o circo. Me lembro daquele coração sangrando, pulando pelo palco ao escapar das
mãos do protagonista, que ao correr - depois de matar sua mãe e arrancar seu coração -
tropeçava e caia. Entrava pelo alto-falante a voz de uma velhinha, como se vinda do órgão,
pulsante ainda:
“Machucou –se, pobre filho meu?
4. Vem buscar-me, filho, aqui estou!
Vem buscar-me que ainda sou seu.”
A plateia soluçava alto. Eu também, eu não entendia como um filho podia matar sua mãe
e, ainda por cima, arrancar seu coração. Mas entendia o perdão da mãe ao dizer, como se
fosse o coração arrancado: “ainda sou seu”. Eu abraçava minha mãe, ela sempre estaria
ao meu lado, ela iria me amar e me proteger sempre e eu jamais, jamais a mataria como o
campônio fez a pedido da amada.
Aliás, eu ainda não sabia bem o significado de amada. Conhecia namorada, noiva,
mulher. “Amada” era muito estranho, distante.
https://www.letras.com/vicente-celestino-musicas/125746/
Foi muito bom conviver com meu pai, ele era uma pessoa muito legal. Calmo,
ponderado, o oposto da minha mãe italiana, grande, voz forte, espalhafatosa, briguenta.
Mas foram por poucos meses. Logo ele teve outro problema de saúde, dessa vez mais
grave: um rompimento da aorta. Era dia 5 de outubro de 1955 e ele estava na sala de
jantar ouvindo no rádio a apuração da eleição realizada no dia 3 e que elegeu JK
presidente do Brasil. Meu pai era goiano e sabia que JK poderia construir Brasília, o que
traria a seu estado natal grande progresso. Eu e a Maria Elvira, a irmã mais nova,
estávamos no Fórum da cidade acompanhando pessoalmente a apuração da eleição para
prefeito da cidade – um tio nosso concorria, o Jayme Nori, casado com tia Zita, fazendeiro
e produtor de cinema (!) – quando um funcionário veio nos avisar de que o meu pai havia
passado mal e fora internado na Santa Casa. Corremos para lá, mas não nos deixaram
entrar no quarto. Soube depois que ele estava se esvaindo em sangue e não conseguiam
estancar. Foram alguns dias de romaria na Santa Casa, o único hospital da cidade, todo
mundo querendo doar sangue para o Dr. Abreu. Dias depois entrei no quarto, mas ele não
me reconheceu. Não entendi direito, tinha 9 anos e a morte estava longe de minha
compreensão. No outro dia ele teve uma grande melhora, eu fui visita-lo, me reconheceu,
claro, brincou comigo e tudo. Fui dormir tranquilo.
“Coitado do Zé Junior, tão novinho e já sem pai”, gritava a Nenê pelos corredores
da casa onde morávamos, no bairro do Belenzinho, na rua José Bonifácio, 721, “antigo
5. 713”, como minha mãe sempre dizia ao dar o endereço a alguém. Acordei com aqueles
gritos e fiz um esforço imenso para voltar a dormir. Não queria mais acordar, nunca mais.
Eu acabara de saber, de modo trágico, o que era “a melhora da morte”, aqueles momentos
que Deus dá ao moribundo para se despedir dos seus. Na cama dos meus pais, onde eu
dormia com minha mãe sempre que ele estava fora, eu morria um pouquinho.