1. Elísio Estanque*
Jornal PÚBLICO, 16.09.2014
O ‘partidismo’ ufano de Francisco Assis
Seja na Europa ou na América Latina, em Portugal ou no Brasil, o mais sofisticado
dos nossos teóricos do aparelhismo é incapaz de ver o que quer que seja de
responsabilidades próprias dos partidos no divórcio dos cidadãos em relação à política.
Compreende-se porquê. Esperar de um produto direto do aparelhismo uma análise
crítica do sistema que o gerou é como entregar o galinheiro à guarda da raposa e
esperar que resulte. Depois de projetado para a fama a partir de um infeliz incidente em
Felgueiras, Francisco Assis (FA), antes adversário e hoje aliado incondicional de A. J.
Seguro, aperfeiçoou os seus dotes de retórica sem precisar de ir a Paris fazer
mestrado em filosofia e exercita-os regularmente à frente de todos nós, no seu estilo
“grilo falante”. As suas crónicas, sobre o decrépito “conservadorismo” marxista, a
“esquerda messiânica”, o “populismo” ou os malefícios dos movimentos sociais são
autênticos tratados de “republicanismo” conservador, sob as roupagens de uma
“esquerda responsável”.
Cinjo-me aqui a uma crónica recente onde FA vitupera num caso contra Marina
Silva (MS) e noutro contra o Podemos, em Espanha (PÚBLICO, 04.09.2014). Diga-se
que em relação a Marina Silva, concordo em geral com o que diz mas discordo em
absoluto dos pressupostos em que se baseia. Afirma FA que MS apesar de ser “uma
mulher inteligente, com uma vida extraordinária e provida de inegáveis capacidades
(…), o que a está a catapultar para uma hipotética vitória são as facetas menos
brilhantes da sua personalidade pública: a adesão por motivos religiosos, a valorização
de um ecologismo nos limites do irracionalismo, a afirmação de uma pretensa pureza
pré-política ou até mesmo anti-política”, subscrevendo assim a mesma perspetiva das
hostes do PT no Brasil. De resto, pelo que sei, o “petismo” está a ficar cada vez mais
igual ao PS em Portugal (em especial quando este está no Governo) na defesa do
statu quo e da nova “classe política” que controla o aparelho de Estado.
Pelo contrário, a crítica de esquerda ao programa de Marina Silva é dirigida contra
o “ecocapitalismo” e as linhas programáticas que aproximam a candidata das políticas
2. neoliberais. Já FA preocupa-se sobretudo com o seu “ecologismo nos limites do
irracionalismo” e critica a pretensa “pureza” do discurso “anti -política”, confundindo
“anti-política” com a denúncia de um sistema partidário corroído e fortemente corrupto
como é o do Brasil. Embora concorde com as críticas de esquerda ao populismo e à
influência do lobby evangélico, cujo moralismo conservador já tive ocasião de
denunciar (veja-se “A evangelização da política”, PÚBLICO, 22.05.2013) e partilhe em
geral da desconfiança quanto aos perigos de uma vitória eleitoral de Marina, os à priori
de Assis situam-se nos antípodas dos meus. São reflexo de uma retórica e de um
ethos do exercício público completamente descolados da realidade social de hoje e
que, do meu ponto de vista, representam, eles sim, a verdadeira perversão e perigo
para o futuro da democracia. Será realmente Marina que se “recusa a falar do mundo,
na sua opção por abstrações quiméricas”? Ou é antes a obsessão dos políticos
instalados que, na altivez da sua eloquência, se limitam a defender pragmaticamente o
conforto dos seus lugares e protagonismo nos aparelhos/ governos, ignorando a razão
profunda dos sentimentos e necessidades do povo? A “partidocracia” hoje dominante
no PS (e nos partidos em geral), é incapaz de ver para além do seu próprio umbigo, ou
seja, jamais consegue admitir que ou as estruturas partidárias reformam
profundamente o sistema (e a si próprias) ou empurram-no para a entropia e o
esgotamento, que é exatamente o que está a acontecer.
O outro ponto da crítica de FA é o novo movimento eleitoral “Podemos”, surgido
recentemente em Espanha (e que está a abalar os velhos partidos), considerado “um
misto de movimento social e de partido político assente na retórica da denúncia e da
contestação…, não se sabe bem o que propõem (…) e não conseguem esconder uma
certa pulsão messiânica que os inspira”. Não se trata de defender qualquer papel
salvífico para esse ou outros movimentos, mas tão só de constatar um facto: as atuais
fórmulas partidárias entraram em declínio e já não convencem a maioria dos cidadãos.
Ou reformam-se e renovam-se internamente ou irão colapsar a médio prazo. Com isso
pode colapsar também o sistema democrático, é verdade. Daí que, a necessária (e
urgente) renovação terá de passar por ruturas e reconstruções já que a reforma
paulatina nunca ocorrerá vinda de dentro. Seguramente não ocorrerá enquanto
pensadores da estirpe de Assis dominarem os aparelhos. As pressões para futuros
rearranjos no atual leque partidário terão sem dúvida de surgir de fora: de uma
sociedade civil que toma consciência dos bloqueios do sistema. Recorde-se que foi o
“realismo pragmático” de Blair, Sócrates e outros que levou à total rendição da social-democracia
europeia às virtudes da globalização e cuja “terceira via” abriu as portas ao
neoliberalismo. Mas essa é uma leitura que está para lá do máximo de consciência
possível de qualquer representante do aparelhismo.
Por fim, o que é absolutamente bizarro é a conclusão que FA retira deste
panorama: o problema das nossas democracias, afirma ele, “não reside numa
3. insuficiência de transparência, num excessivo distanciamento no interior dos
mecanismos de representação, num défice de sufrágio e de fiscalização públicos”.
Impoluto e intrépido, proclama que isso é a “conversa dos demagogos”. Depois
acrescenta (sem qualquer espécie de demagogia…) que “assistimos a um recuo da
dimensão política, enquanto esfera autónoma da socialização humana, com dramáticas
consequências. Em nome da proximidade e da transparência tem-se observado uma
progressiva castração do discurso e da ação políticos (…)”. etc., blá, blá. E não lhe
ocorre perguntar: “porque raio isso acontece?”… Se não é, como diz FA, por falta de
transparência nem excesso de distanciamento, será por excesso de transparência e
défice de distanciamento?... Se a culpa não é dos políticos que temos, então teremos
de mudar de povo!?...
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* Professor da Faculdade de Economia e investigador do Centro de Estudos Sociais
da Universidade de Coimbra.