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TransAlp 2014 - Diário de Bordo
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7 etapas - 581 km
19.227m de ascensão
20 a 26 de julho de 2014
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ETAPA 1 - Oberammergau a Imst - 97,8 km, 2215m
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E o bicho pegou mesmo. Hoje foram "só" 97km, com 2215m de ascensão. Saímos da
Alemanha e entramos na Áustria. É exatamente como a gente imagina. Montanhas
de 4000m de altura, campos verdes, casas em estilo enxaimel. E loiras e mais loiras.
Todas lindas. Acho que não vou voltar. Ah, quase esqueci das vaquinhas com sinos
no pescoço. Parece até uma sinfonia. E a corrida? Foi um detalhe. Largamos com 28
graus. Imaginem uma fila de 1200 ciclistas! Era isso mesmo. Não acabava nunca.
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" A g o r a p e n s a n a
d e s c i d a … P e n s a e
multiplica! Uma hora
subindo e valeu cada
segundo. Foram uns
20min de descida. Uma
das mais fantásticas que
já fiz. O ouvido doía com a
diferença de pressão igual
no avião”.
Largamos em lotes. No primeiro dia os lotes são por número de inscrição. Estávamos
no lote "C". Por 30km a prova foi muito rápida, por asfalto plano. Asfalto alemão,
claro, sem buracos. Depois entramos numa trilha um pouco mais fechada. Cabiam
duas bikes lado a lado. E aí veio um dos grandes choques culturais desta viagem.
Ninguém ultrapassava ninguém, porque mais à frente sabiam que embolaria tudo.
1200 ciclistas! Até esbocei tentar um ataque na subida, mas meu parceiro Zach me
colocou na linha. Rodamos por esta trilha por alguns quilômetros e acho que respirei
muita poeira, porque comecei a tossir. Entramos numa região de um lago gigantesco,
com águas azuis. Coisa de cinema. 28 graus. Mas tinha vento. Muito vento. O Zach
puxou forte, lembrei do amigo Jhon, que é forte pra burro, e aproveitei o vácuo, mas
foi difícil. Me desgastei bastante. 24 graus. Entrou uma sombra. Passamos por mais
uma cidade dessas de cinema. Uma subida forte começou. Forcei mas o Zach pediu
pra eu segurar. Fomos na parceria. Sobe e desce e de repente uma placa avisando:
enduro! Era uma descida extremamente técnica, pouca coisa mais leve que o nosso
Jardim de Pedras. Mas tinha uns 2km. Não deviam chamareEnduro, mas sim
Desafio da Caramanhola. Quem mantiver a sua até o final, ganha. Vi umas 20
garrafas pelo chão. Fiquei de olho na minha, porque ficar sem água ali seria morte
certa. Mais trilhas, mais ciclovias, mais vento. E o tempo fechando. Calma, vou
chegar no final. Entramos então numa estação de esqui. No verão vira parque.
Famílias. Muitas. O teleférico leva os turistas lá para o alto e muitos descem de bike.
Nós subimos de bike. Era a maior subida do dia. Acho que deu uns 800m de
acumulado. Só ela. Ziguezague pela trilha. Levamos mais de uma hora. Comecei bem,
mas cansei no meio, talvez também pela altimetria: estávamos nos aproximando de
2000m acima do nível do mar. O Zach também estava cansado, mas devia ter 1w de
potência a mais que eu. 20 graus. Vaquinhas com sinos, centenas delas. E veio a
chuva. Chuva nos Alpes é sinônimo de frio. Obrigado à Giro Bike pela jaqueta
impermeável. Me salvou! 30 minutos debaixo da chuva e estávamos no topo. Não
deu pra bater foto. Neblina grossa… Agora pensa na descida… Pensa e multiplica!
Uma hora subindo e valeu cada segundo. Foram uns 20min de descida. Uma das
mais fantásticas que já fiz. O ouvido doía com a diferença de pressão igual no avião.
Achei que acabava ali. Mas tinha mais 30km. Moleza. Zach foi pra dianteira e socou a
bota. Fiquei ali o quanto pude. A descida me cansou um monte. Chegamos. Imst é o
nome da cidade. "Feia" que dá dó. Na chegada uns 30 estandes dos patrocinadores.
Comida e bebida. De alemón, claro! E chegamos no acampamento de hoje (foto)!
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ETAPA 2 - Imst a Nauders - 87 km, 2917m
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Achei que tinha sido difícil ontem. Hoje foi pesado também. Ainda bem que o Sidnei
e o Tito me ajudaram a treinar hipotermia. Eram 8h40 quando começou a chover. E
choveu pesado. E choveu pesado durante todo o percurso! A chuva era tão forte que
tive que colocar óculos escuros (o único que leve: sempre levem duas lentes!) pra não
doer os olhos. E começou a corrida. Ontem nosso tempo final foi de 5h17. Começou
subindo, pelo asfalto. Subindo por uma hora, sem parar. Me controlei e fui bem.
Depois começou um longo trecho de uns 20km de sobe e desce, com mais sobe que
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"Passamos por túneis,
mais estradas rurais
(asfaltadas) e por trilhas
a b s u r d a s . A b s u r d a
significa com um visual
fantástico e mais um nível
de dificuldade muito forte.
Curti cada momento.
Pessoas aplaudiam nas
ruas.
desce. E a chuva apertou. E o frio alpino chegou. Verão aqui, e chegamos no topo da
primeira montanha com 5ºC. A descida foi monstruosa. Longa e linda. Demais! Só
vendo o vídeo. Estábulos para aquelas vaquinhas com sinos, pastagem verde e -
pasmem - um asfalto impecável no interior da Áustria. Seguimos. Descidas e mais
descidas. Muitas difíceis. Algumas impossíveis. Esperamos uns 10min numa fila
porque todos passavam empurrando a bike num ponto com muitas pedras.
Aproveitei e coloquei os pernitos. Estava começando a tremermos queixo de frio.
5ºC. O corpo esfriou. Comecei a sonhar com a próxima subida, que me aqueceria um
pouco. Paramos no ponto de apoio. Serviram chá quente. Tomei dois copões de uma
vez só. E chovia. Uma subida forte e mais descidas e depois de algum tempo, a longa
subida do dia. Não era tão íngreme, mas era longa. Estava me sentindo muito bem e
mantive o passo controlado nesta subida. Passamos por túneis, mais estradas rurais
(asfaltadas) e por trilhas absurdas. Absurda significa com um visual fantástico e mais
um nível de dificuldade muito forte. Curti cada momento. Pessoas aplaudiam nas
ruas. As equipes mais organizadas tinham apoio no meio do caminho. Depois desta
miúda subida, óbvio, tinha uma descida. Só que os dedos estavam gelados! Eu não
conseguia passar as marchas. Os dedos não obedeciam. A opção foi trocar as
marchas com a palma da mão. Empurrava os passadores. Deu certo. Filosofei: parece
uma guerra; e parece que sempre gostamos de uma boa guerra! Forcei um pouco no
sprint de montanha e chegamos. 6h08. 87km. 2917m acumulados. Cheguei bem.
Inteiro e pronto para os 100km de amanhã. A bike se comportou bem. Os freios já
eram. Mas tem um estande da Magura (fábrica dos freios) e o cara vai trocar pra
mim. Agora estamos jantando numa estação de esqui. Cerveja Edelweiss de trigo
grátis. Boa comida. 2500m de altitude. Que tal? Quem vem na próxima? PS. Na foto,
sapatilhas dos que estão no camping. Só pode entrar no ginásio descalço.
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ETAPA 3 - Nauders a Naturns - 100,23 km, 3365m
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Superlativo deveria ter outra definição no dicionário. “TransAlp, estágio 3", deveria
estar lá. Hoje foi tudo superlativo. Etapa rainha. 100,97km. 3365m de elevação total.
10 subidas fortes, duas delas monstruosas. Os primeiros 10km foram morro acima,
com 800m de elevação já de cara. Chegamos no km 25 a 1900 sobre o nível do mar.
O ponto mais alto de Santa Catarina fica a 1827! Quando achei que seria moleza a
descida, depois da primeira monstruosidade, quebrei a cara. A descida era muito
técnica, por trilhas, num capricho só. A marcação é bem menos intensa do que a que
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Marzonalm era o nome do
segundo monstro. Uma
montanha de 15km, com
até 12% de inclinação.
Levamos mais de duas
horas, acho. Quando
suspirei no topo, achando
que só seria descida, veio
a maior descida que eu já
fiz. Uns 12km descendo
por trilhas fechadas,
pedras, single tracks, tudo
o que se pode imaginar.
estamos acostumados aí. Não tem seta no chão, só umas poucas placas. Queria ver se
virarem aqui os malas que só sabem reclamar da marcação. Depois entramos numa
área rural. Muitas vaquinhas. Temperatura subindo. Parada para tirar casacos. Logo
veio o ponto de hidratação. Seguimos adiante e se formou um grupo de uns 20
ciclistas numa ciclovia. A velocidade era absurda. 48km/h. Fizemos uma curva e o
vento veio contra. 35km/h. Consegui me manter. Na subida seguinte estava bem.
Passei o Zach e parei pra tirar mais uma camada de roupa. Esqueci de dizer que
começou com chuva e frio. Ao meio-dia já estava 20 graus, com sol. Marzonalm era o
nome do segundo monstro. 15km morro acima, com uns 8% a 12% de inclinação.
Levamos mais de duas horas, acho. Quando suspirei no topo, achando que só seria
descida, veio a maior descida que eu já fiz. Uns 12km descendo por trilhas fechadas,
pedras, single tracks, tudo o que se pode imaginar. O Everton teria se saído bem. Eu
fui cauteloso. Achei que ia gastar a pastilha de freio nova toda. Que nada. Cheguei
cansado, mas com uma boa sensação. Amanhã será mais leve. 73km.
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Interlúdio # 1 - Nem tudo por aqui é bicicleta
Nem tudo aqui é bicicleta. Também se faz amigos. Tudo
favorece. No camping, todos os dias nossas malas são
organizadas aleatoriamente lado a lado para que possamos
passar a noite ao lado de um estranho que vai se tornar
amigo em menos de duas horas. O assunto sempre é o
mesmo no começo. Como foi o seu dia? De onde você é? O
que você faz? E aí começam todos os outros assuntos. Já
não consigo contar nos dedos as pessoas com quem
conversei. Além do Zach, meu parceiro, que mora em
Heidelberg, Alemanha, mas vem dos EUA, logo no trem já
conheci três americanos: Josh, Jeff e Brod. Todos de
Houston, no Texas. Trabalham com exploração de
plataformas de petróleo.
Geógrafo e engenheiros.
Conhecem a Petrobras, mas
têm a impressão de que é uma empresa pouco
transparente. Fiquei neutro nessa. Sei pouco a respeito.
Foi engraçado quando pediram para eu ensinar algumas
frases em alemão. Logo de cara mandei o "Ich liebe
dich" (Eu amo você), já que são todos solteiros e
comentaram sobre a beleza das loiras daqui. Um deles ao
invés de pronunciar "dich", falava "dick", que em inglês
significa "pênis". Ele estava falando "eu amo pênis" e foi
geral a palhaçada. Almoçamos juntos. Depois veio o Zach.
Ele é engenheiro mecânico em Heidelberg e trabalha com
metrologia aeroespacial. "Caramba!!", falei, e ele explicou
7
Zach Rogers
que ele "mede coisas grandes", como asas de avião, trens, estruturas espaciais e até
de guerra. Deixei a brincadeira de lado porque afinal de contas só conhecia o cara a
no máximo uns 30 minutos. A sorte absurda que eu tive em tê-lo como parceiro não
vai dar pra explicar aqui, mas só pra ter uma ideia, eu ele pedalamos praticamente no
mesmo ritmo. Ele é um pouco mais forte no plano e no vento e eu nas subidas, mas
estamos absolutamente em equilíbrio. Depois dormimos ao lado do casal Bastin e
Sanne, da Holanda. Moram numa cidade de 1200 habitantes. Minúscula. Ela é
ciclista profissional e ele trabalha com caminhões que fazem áreas VIPs para eventos
ciclísticos. Tour de France, Giro di Italia, em todos ele já foi e viu de camarote. Ela é
baixinha e risonha, e dá umas gargalhadas incomuns para o padrão alemão. E todos
adoram! O Bastin também é uma simpatia, e tem a maior curiosidade sobre a
América Latina. Quando eu falei
que tínhamos uns 5000km de
litoral ele pirou. Detalhe, ela
empurra ele na subida, e ele não
é nada fraco! Quem me tirou
uma onda logo de cara pelo
Mineiraço foi o Frederique, um
francês que mora numa colônia
francesa perto de Madagascar,
chamada Ile de la Réunion.
Colônia mesmo. Eles só cultivam
cana de açúcar pra servir à
França. O parceiro dele é o
Fabien e ambos são engenheiros.
Tem os portugueses, Josué
Duarte e Nuno que são muito
engraçados, principalmente pelo
sotaque. São de Cintra. Falam rápido como se fossem de Floripa. Uma dupla Grand
Masters (mais de 100 anos somados) jantou conosco. Estávamos cansados por
termos feitos o percurso em umas 6h. Eles chegaram só 20min depois de nós! No
lava bike de hoje conheci também um sueco e um português que vive na Noruega. Se
conheceram só aqui, como eu e o Zach. O sueco tinha uma bicicleta Canyon, que só é
vendida pela internet. Com rodas Mavic Slr e câmbio X9, quadro todo de carbono,
full, pesando 12kg, custou 2800 euros, o que dá uns 9000 reais. Rodas Mavic Slr! No
Brasil só elas custam uns 5500 reais! Por falar em marcas de bicicleta, aqui tem tanta
variedade que nem consigo lembrar todos os nomes. Acho lindas as Cube. Rocky
Mountain e Scott são a maioria, e essas marcas patrocinam a corrida. Quem tem uma
Scott ou um Rocky, chega e larga a bike para os mecânicos. Fazem a limpeza e uma
revisão básica e te entregam no outro dia. Poucas Specialized, que são "caras" aqui
pra eles, comparadas às outras. Mas mostrei a minha e o kit Swat e ficaram
fascinados. O canivete de ferramentas debaixo do quadro fez o Jeff dar um pulo!
Focus, BMC, Niner, Cannondale, e várias outras. Bom, já estou falando de bicicleta
de novo. Deixei o melhor pro final. As calcinhas das européias são horríveis. Querem
saber como eu sei? Só na próxima postagem. Agora vou jantar.
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David, Bradley, Geoffrey e Josh
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ETAPA 4 - Naturns a Sarntal - 73,20 km, 2646m
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Acima da linha das árvores e o temido Setor das Cabras. Céu de brigadeiro hoje. Azul
da cor do mar. Perfeito. E quente. Largamos com 30 graus ao sol. Com o movimento
a temperatura baixou para uns 24. Estava bem quente. Passamos por vilarejos e
infinitas plantações de maçã. E logo começou uma subida. Dei sorte com a roupa.
Levei um manguito de verão, branco, bem leve. Foi perfeito! Saímos de 500 acima do
nível do mar e chegaríamos, em algumas horas e milhões de pedaladas depois, a
2027m. 23km de subida. Que tal? Lá no alto a maravilhosa vista desta cordilheira de
montanhas que chamam de Alpes. Tão alto que não há árvores. "Acima da linha das
árvores", é a expressão que se usa para dizer onde estamos. Como é verão aqui,
encontramos dezenas de famílias fazendo trilhas e caminhadas no meio do caminho.
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Refiro-me ao Setor das
Cabras, um lugar tão
cheio de pedras e tão
íngreme, com pelo menos
20%, que só as cabras
dariam conta. Nem as
motos de trilha sobem por
ali. Não foi fácil. Ok, estou
e c o n o m i z a n d o m a s
palavras: foi ultrahiper-
maximegasuperfoda, pra
caralho!
Crianças de 3 a 90 anos fazendo trekking. Fabuloso! Mas chegar até ali, se não
bastassem os 23km morro acima, não era fácil. Um trecho pedregoso de uns 5km
completava o desafio e fazia a vista lá de cima parecer melhor ainda. Faltava ainda
metade da subida quando ele apareceu. Refiro-me ao Setor das Cabras, um lugar tão
cheio de pedras e tão íngreme, com pelo menos 20%, que só as cabras dariam conta.
Nem as motos de trilha sobem por ali. Não foi fácil. Ok, estou economizando mas
palavras: foi ultrahipermaximegasuperfoda, pra caralho! Mas fui curtindo, cada
momento. Lá de cima, uma vista fantástica da região do Tirol, norte da Itália, onde
estamos. 17 graus. O manguito ajudou tanto no sol quanto no topo. Bom. Tudo que
sobe, desce. E descemos por 13km. Trilhas, o setor de enduro, mais trilhas, cruzamos
riozinhos de água gelada e clara, e mais trilhas. Trilhas que não acabavam mais.
Lembrei de poupar a bike e de como é importante manutenção constante. Lembrei
do nosso mecânico, o Tonto. Ele deixaria minha bike zerada hoje depois desta
pauleira. A Sanne e o namorado Bastin, os holandeses, estavam parados no último
ponto de apoio. Ele estava desidratado. Entrou no carro-médico e ela seguiu. Logo
nos alcançou e arrancou forte pra caramba, descendo aquelas trilhas cheias de
pedras. Só a encontrei de volta na linha de chegada. Ela nem parecia ter suado. Eu
devia estar destruído. 6h de pedalada de novo hoje, pra cumprir os 73 km e 2646m
acumulados da quarta etapa. Lavei minha bike e, como a Nádia mandou eu me
alimentar bem, comi dois hambúrgueres típicos e dois canecos de chope, com os
franceses de Ile de La Réunion e com o Rob, um britânico de Winchester. Estamos
em Sarnthein, Sarntal ou Sarentino, como queiram. Apesar de ser território italiano,
a maioria das pessoas tem o alemão como primeiro idioma. Então: Auf Wiedersehen
ou Arrivederci! 
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ETAPA 5 - Sarntal a Caldaro - 67,42 km, 2785m
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Quinto dia. Previsão do tempo indicando chuva e frio ou nublado e quente. O que
fazer? Levar tudo, e torcer para não chover. Não choveu. Algumas gotas, mas o
tempo ficou bom. Deixamos hoje Sarentino em direção a Caldaro. Nesta parte da
Itália, todos falam alemão. No ginásio em que estamos, o placar eletrônico registra
Heim x Gast, ou algo como Locais x Visitantes. Hoje a pedalada foi mais curta, mas
igualmente exigente e bonita. Já na largada começamos uma subida constante de
11km, em que saímos de 971m para 2000m acima do nível do mar. Eu estava me
sentindo forte, apesar de um peso no estômago. Provavelmente exagerei no café da
manhã. Nada de preocupante. Olhei para o Zach e ele disse "vai que eu te alcanço na
descida". Fui. Acho que passei umas duzentas pessoas. Era uma estrada larga, de uns
20m, mas tinha que ficar encontrando espaço no meio de tanta gente pra passar. E
fui passando. Bem perto do topo, faltando uns 2km, percebi que o meu ritmo estava
ficando igual ao dos demais. Pronto. Achei o grupo com o meu ritmo. E segui
adiante, sem nem ver mais o Zach. Lá no alto, novamente aquela paisagem lunar,
cheia de pedras, de trilhas, mas desta vez com um gramado molhado pela chuva que,
só fui saber horas depois, derrubou o Zach. Coloquei minha jaqueta e comecei a
longa descida com cautela. Acho que foi a mais fantástica até agora. Deve ter sido
mais de uma hora descendo por estradinhas rurais, trilhas, estradas de asfalto de uns
10m de largura no máximo, e mais trilhas, mais gramados, mais tudo. Foi
espetacular. Frederic, o francês, disse "magnífico", em português. Ele passou
algumas semanas surfando no Brasil 20 anos atrás e ainda lembra umas palavras.
Depois de tanto descer, paramos no ponto de alimentação. Muita gente aplaudia hoje
ao longo das estradas. Me imaginei no Tour de France. Mais uma longa subida e
depois andamos por um bom tempo no alto da montanha. Passamos dois castelos
medievais, plantações de uva, ainda verdes, e paisagens estonteantes. Lá de cima
dava pra ver o Vale de Sarentino, que bem podia ser chamado de Vale da Maçã. Lá
embaixo milhares de hectares de macieiras. No alto, parreiras. Um detalhe que me
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Estamos na 201ª posição
g e r a l . C o m i u m a
bratwurst com chope na
chegada. Isso aqui está
perfeito! Felicidade tem
nome: TransAlp!
chamou a atenção foi a espessura do asfalto nas estradas rurais. É mais ou menos
como se TODAS as estradas rurais de Xanxerê fossem asfaltadas, com pistas de 8 a
12m de largura. Só que a espessura era algumas vezes seguramente de mais de 10cm,
com proteção contra erosão, com calhas, com bocas de lobo. Se a estrada pra
Xavantina, que tem uns 5cm de espessura, fosse como as estradas rurais daqui...
Bom, melhor não entrar em depressão. Depois de pedalar um bom trecho lá nas
alturas entramos numa trilha que me fez lembrar a Trilha da Lagoa do Peri, que fiz
com o meu irmão no verão. Era um desafio para os braços e não para as pernas.
Passávamos por árvores, raízes, pedras, tudo levantando a bike nas costas. Foi duro.
800m assim, mas acho que levou uns 30min. Depois deste trecho, faltando uns
20km para o final, o Zach finalmente me alcançou. Estava com o capacete quebrado
e a canela toda ralada. Em poucas palavras ele só disse que tinha escorregado na
grama molhada e batido a roda numa pedra lisa. A bike girou e ele caiu no chão.
Estava bem, mas pelo visto o susto foi grande. Etapa concluída em 5h14. Foi o
primeiro dia que não pegamos fila nas trilhas mais difíceis, porque ultrapassamos
muita gente no começo. Estamos na 201ª posição geral. Comi uma bratwurst com
chope na chegada. Isso aqui está perfeito! Felicidade tem nome: TransAlp!
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INTERLÚDIO # 2 - PELADO, PELADO
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Pelado, pelado. Quem acha que os alemães são
sisudos   não imagina como é a vida num
camping. Na verdade são ginásios em que todos
dormimos lado a lado. No primeiro dia para me
trocar fui até o vestiário com as minhas coisas e
me preocupei em ver se a porta estava fechada.
Quando voltei, tinha um cara pelado no meio do
ginásio, trocando de roupa. Ele simplesmente
abaixou a bermuda, ficou de cueca por alguns
instantes e depois tirou o resto. Claro, em
questão de segundos vestiu a bermuda de
ciclismo e respirei aliviado. Mas ver um pinto
balangandando na sua frente não é muito a
minha praia. Depois outro cara se deitou, tirou
a bermuda e a cueca, e fez a mesma coisa.
Prefiro não lembrar dos detalhes, mas do meu
ponto de vista dava pra ver mais do que eu
queria ter visto. No segundo dia desfilar só de
cueca já era normal. Parece que a regra é: não
quer ver, não olha. E parei de olhar. E começou
a parecer normal. Minha primeira tentativa
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fora do vestiário foi daquele jeito que fazemos na praia. Enrolei a toalha, tirei a
bermuda e coloquei a cueca e a outra bermuda. Mas perdi com o tempo os pudores.
Já estou me alemanizando.  Ontem e hoje já balangandei um pouco, coisa rápida,
mais foi interessante. Acho que ninguém olhou. Nem fotografou. Tomara. Foi assim
que descobri que as européias não têm bom gosto para calcinhas. O acampamento é
misto, sempre com uns 10% de mulheres, e elas também entraram no esquema.
Sempre tem uma ou outra desfilando de calcinha. Mas são umas calcinhas estranhas,
grandes demais, parecendo uma cueca. Não sei se é pra que ninguém olhe, talvez
seja. E funciona. 
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ETAPA 6 - Caldaro a Trento - 98,25km, 2894m
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Entramos num setor
lindo, talvez dos mais
bonitos até aqui, com o
vale do Trento abaixo.
Uma região rica, linda e
com uma cordilheira de
até 4000m de altitude ao
fundo. Coisa de cinema.
Imagina com neve!
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Estamos em Trento, uma cidade de 120 mil habitantes aqui no norte da Itália. Etapa
de hoje: 98km. Um catatau de metros de elevação. Calor. O Zach caiu ontem então
pedalou mais devagar hoje, com dor. Antes da largada percebi que a válvula do pneu
dianteiro vazava. Levei na Maxxis e o cara consertou em 5min. Colocou muita
pressão, pedi pra tirar. Com medo de algum problema, mandei deixar com 25lb, o
que é muito para o meu peso ainda. Foi o meu erro. O dia começou lento, com uma
fila de uns 2km. Muita gente. Seguimos depois por uma estrada em que passava uma
antiga linha férrea. Isso significa pouca inclinação e vários túneis. A inclinação devia
ser de 2 a 4%, mas sempre positiva, o que dificultava um pouco. A velocidade era de
15km/h e estávamos forçando um pouco. Em seguida começou uma subida mais
forte, a primeira do dia. E o calor aumentou. Andamos por trilhas novamente. E aí
chegou a conseqüência do meu erro: no km 50, numa descida forte, cheia de
cascalho, errei a tangência e caí. Foi um tombo pequeno, com velocidade baixa, mas
foi suficiente para ralar a coxa e dois dedos da mão. Mas o pior é que fiquei com a
mão doendo. E faltavam mais 48km!!!!! Bati o capacete no chão, de frente. Não doeu
nada na cabeça, mas senti que o capacete protegeu bem. Se não fosse ele a coisa teria
mudado de figura. Levantei rápido, tirei a bike do caminho, me recuperei e segui
viagem. Dor na não do #!@&*#. Reduzi a velocidade. Entramos num setor lindo,
talvez dos mais bonitos até aqui, com o vale do Trento abaixo. Uma região rica, linda
e com uma cordilheira de até 4000m de altitude ao fundo. Coisa de cinema. Imagina
com neve! A dor foi diminuindo. Seguimos assim até o final, que acabava numa trilha
de uns 50cm de largura muito legal. Filmei toda! O Zach mostrou categoria. Eu fiquei
na maciota. Chegamos em Trento. Cidade linda, antiga, com vielas. A chegada era
neutralizada pra não dar problema com o trânsito. A linha de chegada cronometrada
acabava fora da cidade. Na cidade, só festa pra nos receber. A meta ficava numa rua
de paralelepípedos com várias lojas de perfume. Que cheiro delicioso naquela rua!
Fui ao atendimento médico e tudo bem. Nada demais. Saí pra comprar outro
capacete e aproveitei pra gastar uma grana com produtos da Castelli. Agora são 6h42
aqui. Vou pro camping descansar porque amanhã tem mais 67km!
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INTERLÚDIO # 3 - Alimentação
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Ainda não vi no Strava, mas certamente gastamos perto de 4000kcal por etapa. Isso
é quase o dobro do que uma pessoa normal gasta em 24h. No café da manhã eu
costumava tomar umas três xícaras de café, dois pães, um com presunto, queijo e
manteiga e outro com mel. Mais um prato de mingau de aveia, uma maçã (que eu
levava da noite anterior e comia logo que acordava, pra não chegar no café da manhã
com muita fome). Iogurte e uma outra fruta, banana, p. ex. Depois das corridas
sempre serviam frutas, mas eu atacava as barraquinhas de comida. Hambúrguer,
salsicha alemã, doces. Em uma ou duas horas vinha o jantar e sempre tinha
macarrão com pão, salada e iogurte de sobremesa. Bem pobre a alimentação,
comparado ao TransAndes, em que servem truta, vários tipos de massa, carne,
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frango. No percurso, serviam laranja, melancia, banana, amendoim salgado e
castanha com ameixa seca. Sempre tinha também pão de ló (que chamam aqui de
cuca: "kuchen") e umas barras de cereal do patrocinador. Pra beber ofereciam
isotônico e água. Nos dias frios, sopa e chá quente. Não tomei nenhum tipo de
suplemento, de gel, de shake ou pílula para regeneração. Nada. Tomei quatro bagas
de ibuprofeno para a dor na mão, que o médico receitou. E me senti recuperado
todos os dias e cada dia melhor. Não tive cãibras, nem desidratação. Nada. Vi
durante o percurso a galera tomando gel, garrafas com isotônico, com maltodextrina,
etc. Não sei como aguentam tanta porcaria. Sinceramente, parece que se sair numa
revista de ciclismo que comer areia com catchup aumenta 10% da potência, numa
reportagem paga pelo fabricante, todos os atletas vão comer. E vão achar que está
fazendo toda a diferença.
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ETAPA 7 - Trento a Riva del Garda - 62,74km, 2325m
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Não é só pela pedalada; é
pela amizade que a gente
gosta de bike. Pelas
r i s a d a s , p e l a s
b e r g a m o t a s , p e l o s
momentos de paz. Pelas
piadas, pela aventura.
Por voltar a ser menino
depois de ter crescido. E
faz toda diferença ter um
grande amigo aqui.
Lembrei de todos.
!
Sétima etapa concluída! TransAlp 2014, você é meu! Desafio superado! A última
etapa foi especialmente difícil. Largamos debaixo de muita chuva, mas muita mesmo.
E ela seguiu forte por metade da prova, até ultrapassarmos as duas montanhas que
nos esperavam hoje. Poças de lama enormes. Água escorrendo pelas ladeiras. O Zach
pediu e hoje eu obedeci. Ele disse "full gas to the end": gás total até o final. Como de
praxe, subidas enormes logo de início. Hoje tínhamos "só" uns 15km de subida.
Obedeci e forcei. O Zach disse que me alcançaria na descida. Chovia tão forte que os
pingos doíam. Logo que acabou o asfalto começou a lama. Aquela lama pastosa,
terrível, que entra em todos os lugares. Lembrei do Duatlo de Joaçaba. Uns 3km
depois da primeira subida, que acabava no km 19, cheguei ao local de alimentação.
Logo vi porque serviam sopa quente. Eu já estava começando a ficar com muito frio.
Caramba, foram 12km descendo com muito frio, com chuva e lama, até começar a
subir de novo. Eu gritava e tremia de frio! Torci pela subida, que era a única chance
de eu me aquecer. Chegou! Ufa. Mas a chuva continuava. 8ºC. Nada de o Zach me
alcançar. Forcei novamente na segunda subida. Esta tinha mais 10km. Lama. Parei
no segundo ponto de alimentação. Um figura, que sempre lubrificava as bikes neste
segundo ponto, brincava com todos: "última banana do TransAlp, última banana!" E
era mesmo. Começou a dar saudade. Comi mais umas três bananas. As minhas
últimas no TransAlp. Veio o sprint de montanha e nem tentei nada. Estava
começando a ficar preocupado. O Zach não aparecia. Segui no meu ritmo. As
descidas estavam deliciosas. Parou a chuva, mas tinha lama. Fui na manha e passei
bastante gente. Tentei filmar. Parei mais uma ou duas vezes à espera do Zach. Nada.
Segui meu rumo. Nessa hora senti falta de um parceiro de verdade. Lembrei do meu
amigão lá de Floripa, o Giovani, e dos parceiros de pedal e prosa: Davi, Tito, Sidnei,
Mulinari, Tonto, Alex, Rony, Willian. Não é só pela pedalada; é pela amizade que a
gente gosta de bike. Pelas risadas, pelas bergamotas, pelos momentos de paz. Pelas
piadas, pela aventura. Por voltar a ser menino depois de ter crescido. E faz toda
diferença ter um grande amigo aqui. Lembrei de todos. Douglas e Luana, das
meninas de Xanxerê, Patricia, Jaque, Eliete, Daiane. Dos novatos do nosso grupo, de
todos. Melhor parar de citar nomes. Vamos voltar ao que interessa. A descida para
Riva del Garda é algo além de fascinante. É uma espécie de ciclovia com montanhas
de 3500 por todos os lados, descendo suave. Muita gente faz cicloturismo aqui.
Reduzi a velocidade, deixei todos me passarem. A penalidade para largar o
companheiro de dupla por mais de 2min é de 30min. Parei mais uma vez. Nada do
Zach. Merda! 10km para o final, 5km, 1km. Parei ao lado de um guarda de trânsito.
Simpatia pura. Puxou conversa. Esperei conversando com ele por 15min até que o
Zach chegou. Ele apenas disse: "tive o meu pior dia nas subidas". Eu tinha tido umas
das melhores semanas da minha vida! Cruzamos a linha de chegada. Medalha no
peito. Coração na boca. Vontade de abraçar o Lucas e a Nádia. Vontade de voltar pra
casa e de... Pedalar por aí! Alguém aí a fim de um pedalzinho leve esta semana?
100km? PS: o mais velho a completar tem hoje 68 anos. O campeão das montanhas
21. A dupla mais distante é de Porto Alegre. O melhor brasileiro? Este que vos fala!
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TransAlp 2014 - Relato de Viagem de um brasileiro na maior ultramaratona de mountain bike do mundo!

  • 1. ! ! TransAlp 2014 - Diário de Bordo ! ! ! ! ! ! 7 etapas - 581 km 19.227m de ascensão 20 a 26 de julho de 2014 ! ! ! 1
  • 2. ! ETAPA 1 - Oberammergau a Imst - 97,8 km, 2215m ! ! E o bicho pegou mesmo. Hoje foram "só" 97km, com 2215m de ascensão. Saímos da Alemanha e entramos na Áustria. É exatamente como a gente imagina. Montanhas de 4000m de altura, campos verdes, casas em estilo enxaimel. E loiras e mais loiras. Todas lindas. Acho que não vou voltar. Ah, quase esqueci das vaquinhas com sinos no pescoço. Parece até uma sinfonia. E a corrida? Foi um detalhe. Largamos com 28 graus. Imaginem uma fila de 1200 ciclistas! Era isso mesmo. Não acabava nunca. 2 ! " A g o r a p e n s a n a d e s c i d a … P e n s a e multiplica! Uma hora subindo e valeu cada segundo. Foram uns 20min de descida. Uma das mais fantásticas que já fiz. O ouvido doía com a diferença de pressão igual no avião”.
  • 3. Largamos em lotes. No primeiro dia os lotes são por número de inscrição. Estávamos no lote "C". Por 30km a prova foi muito rápida, por asfalto plano. Asfalto alemão, claro, sem buracos. Depois entramos numa trilha um pouco mais fechada. Cabiam duas bikes lado a lado. E aí veio um dos grandes choques culturais desta viagem. Ninguém ultrapassava ninguém, porque mais à frente sabiam que embolaria tudo. 1200 ciclistas! Até esbocei tentar um ataque na subida, mas meu parceiro Zach me colocou na linha. Rodamos por esta trilha por alguns quilômetros e acho que respirei muita poeira, porque comecei a tossir. Entramos numa região de um lago gigantesco, com águas azuis. Coisa de cinema. 28 graus. Mas tinha vento. Muito vento. O Zach puxou forte, lembrei do amigo Jhon, que é forte pra burro, e aproveitei o vácuo, mas foi difícil. Me desgastei bastante. 24 graus. Entrou uma sombra. Passamos por mais uma cidade dessas de cinema. Uma subida forte começou. Forcei mas o Zach pediu pra eu segurar. Fomos na parceria. Sobe e desce e de repente uma placa avisando: enduro! Era uma descida extremamente técnica, pouca coisa mais leve que o nosso Jardim de Pedras. Mas tinha uns 2km. Não deviam chamareEnduro, mas sim Desafio da Caramanhola. Quem mantiver a sua até o final, ganha. Vi umas 20 garrafas pelo chão. Fiquei de olho na minha, porque ficar sem água ali seria morte certa. Mais trilhas, mais ciclovias, mais vento. E o tempo fechando. Calma, vou chegar no final. Entramos então numa estação de esqui. No verão vira parque. Famílias. Muitas. O teleférico leva os turistas lá para o alto e muitos descem de bike. Nós subimos de bike. Era a maior subida do dia. Acho que deu uns 800m de acumulado. Só ela. Ziguezague pela trilha. Levamos mais de uma hora. Comecei bem, mas cansei no meio, talvez também pela altimetria: estávamos nos aproximando de 2000m acima do nível do mar. O Zach também estava cansado, mas devia ter 1w de potência a mais que eu. 20 graus. Vaquinhas com sinos, centenas delas. E veio a chuva. Chuva nos Alpes é sinônimo de frio. Obrigado à Giro Bike pela jaqueta impermeável. Me salvou! 30 minutos debaixo da chuva e estávamos no topo. Não deu pra bater foto. Neblina grossa… Agora pensa na descida… Pensa e multiplica! Uma hora subindo e valeu cada segundo. Foram uns 20min de descida. Uma das mais fantásticas que já fiz. O ouvido doía com a diferença de pressão igual no avião. Achei que acabava ali. Mas tinha mais 30km. Moleza. Zach foi pra dianteira e socou a bota. Fiquei ali o quanto pude. A descida me cansou um monte. Chegamos. Imst é o nome da cidade. "Feia" que dá dó. Na chegada uns 30 estandes dos patrocinadores. Comida e bebida. De alemón, claro! E chegamos no acampamento de hoje (foto)! ! ! 3
  • 4. ! ETAPA 2 - Imst a Nauders - 87 km, 2917m ! Achei que tinha sido difícil ontem. Hoje foi pesado também. Ainda bem que o Sidnei e o Tito me ajudaram a treinar hipotermia. Eram 8h40 quando começou a chover. E choveu pesado. E choveu pesado durante todo o percurso! A chuva era tão forte que tive que colocar óculos escuros (o único que leve: sempre levem duas lentes!) pra não doer os olhos. E começou a corrida. Ontem nosso tempo final foi de 5h17. Começou subindo, pelo asfalto. Subindo por uma hora, sem parar. Me controlei e fui bem. Depois começou um longo trecho de uns 20km de sobe e desce, com mais sobe que 4 ! "Passamos por túneis, mais estradas rurais (asfaltadas) e por trilhas a b s u r d a s . A b s u r d a significa com um visual fantástico e mais um nível de dificuldade muito forte. Curti cada momento. Pessoas aplaudiam nas ruas.
  • 5. desce. E a chuva apertou. E o frio alpino chegou. Verão aqui, e chegamos no topo da primeira montanha com 5ºC. A descida foi monstruosa. Longa e linda. Demais! Só vendo o vídeo. Estábulos para aquelas vaquinhas com sinos, pastagem verde e - pasmem - um asfalto impecável no interior da Áustria. Seguimos. Descidas e mais descidas. Muitas difíceis. Algumas impossíveis. Esperamos uns 10min numa fila porque todos passavam empurrando a bike num ponto com muitas pedras. Aproveitei e coloquei os pernitos. Estava começando a tremermos queixo de frio. 5ºC. O corpo esfriou. Comecei a sonhar com a próxima subida, que me aqueceria um pouco. Paramos no ponto de apoio. Serviram chá quente. Tomei dois copões de uma vez só. E chovia. Uma subida forte e mais descidas e depois de algum tempo, a longa subida do dia. Não era tão íngreme, mas era longa. Estava me sentindo muito bem e mantive o passo controlado nesta subida. Passamos por túneis, mais estradas rurais (asfaltadas) e por trilhas absurdas. Absurda significa com um visual fantástico e mais um nível de dificuldade muito forte. Curti cada momento. Pessoas aplaudiam nas ruas. As equipes mais organizadas tinham apoio no meio do caminho. Depois desta miúda subida, óbvio, tinha uma descida. Só que os dedos estavam gelados! Eu não conseguia passar as marchas. Os dedos não obedeciam. A opção foi trocar as marchas com a palma da mão. Empurrava os passadores. Deu certo. Filosofei: parece uma guerra; e parece que sempre gostamos de uma boa guerra! Forcei um pouco no sprint de montanha e chegamos. 6h08. 87km. 2917m acumulados. Cheguei bem. Inteiro e pronto para os 100km de amanhã. A bike se comportou bem. Os freios já eram. Mas tem um estande da Magura (fábrica dos freios) e o cara vai trocar pra mim. Agora estamos jantando numa estação de esqui. Cerveja Edelweiss de trigo grátis. Boa comida. 2500m de altitude. Que tal? Quem vem na próxima? PS. Na foto, sapatilhas dos que estão no camping. Só pode entrar no ginásio descalço. ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! 5
  • 6. ! ! ETAPA 3 - Nauders a Naturns - 100,23 km, 3365m ! ! Superlativo deveria ter outra definição no dicionário. “TransAlp, estágio 3", deveria estar lá. Hoje foi tudo superlativo. Etapa rainha. 100,97km. 3365m de elevação total. 10 subidas fortes, duas delas monstruosas. Os primeiros 10km foram morro acima, com 800m de elevação já de cara. Chegamos no km 25 a 1900 sobre o nível do mar. O ponto mais alto de Santa Catarina fica a 1827! Quando achei que seria moleza a descida, depois da primeira monstruosidade, quebrei a cara. A descida era muito técnica, por trilhas, num capricho só. A marcação é bem menos intensa do que a que 6 Marzonalm era o nome do segundo monstro. Uma montanha de 15km, com até 12% de inclinação. Levamos mais de duas horas, acho. Quando suspirei no topo, achando que só seria descida, veio a maior descida que eu já fiz. Uns 12km descendo por trilhas fechadas, pedras, single tracks, tudo o que se pode imaginar.
  • 7. estamos acostumados aí. Não tem seta no chão, só umas poucas placas. Queria ver se virarem aqui os malas que só sabem reclamar da marcação. Depois entramos numa área rural. Muitas vaquinhas. Temperatura subindo. Parada para tirar casacos. Logo veio o ponto de hidratação. Seguimos adiante e se formou um grupo de uns 20 ciclistas numa ciclovia. A velocidade era absurda. 48km/h. Fizemos uma curva e o vento veio contra. 35km/h. Consegui me manter. Na subida seguinte estava bem. Passei o Zach e parei pra tirar mais uma camada de roupa. Esqueci de dizer que começou com chuva e frio. Ao meio-dia já estava 20 graus, com sol. Marzonalm era o nome do segundo monstro. 15km morro acima, com uns 8% a 12% de inclinação. Levamos mais de duas horas, acho. Quando suspirei no topo, achando que só seria descida, veio a maior descida que eu já fiz. Uns 12km descendo por trilhas fechadas, pedras, single tracks, tudo o que se pode imaginar. O Everton teria se saído bem. Eu fui cauteloso. Achei que ia gastar a pastilha de freio nova toda. Que nada. Cheguei cansado, mas com uma boa sensação. Amanhã será mais leve. 73km. ! ! Interlúdio # 1 - Nem tudo por aqui é bicicleta Nem tudo aqui é bicicleta. Também se faz amigos. Tudo favorece. No camping, todos os dias nossas malas são organizadas aleatoriamente lado a lado para que possamos passar a noite ao lado de um estranho que vai se tornar amigo em menos de duas horas. O assunto sempre é o mesmo no começo. Como foi o seu dia? De onde você é? O que você faz? E aí começam todos os outros assuntos. Já não consigo contar nos dedos as pessoas com quem conversei. Além do Zach, meu parceiro, que mora em Heidelberg, Alemanha, mas vem dos EUA, logo no trem já conheci três americanos: Josh, Jeff e Brod. Todos de Houston, no Texas. Trabalham com exploração de plataformas de petróleo. Geógrafo e engenheiros. Conhecem a Petrobras, mas têm a impressão de que é uma empresa pouco transparente. Fiquei neutro nessa. Sei pouco a respeito. Foi engraçado quando pediram para eu ensinar algumas frases em alemão. Logo de cara mandei o "Ich liebe dich" (Eu amo você), já que são todos solteiros e comentaram sobre a beleza das loiras daqui. Um deles ao invés de pronunciar "dich", falava "dick", que em inglês significa "pênis". Ele estava falando "eu amo pênis" e foi geral a palhaçada. Almoçamos juntos. Depois veio o Zach. Ele é engenheiro mecânico em Heidelberg e trabalha com metrologia aeroespacial. "Caramba!!", falei, e ele explicou 7 Zach Rogers
  • 8. que ele "mede coisas grandes", como asas de avião, trens, estruturas espaciais e até de guerra. Deixei a brincadeira de lado porque afinal de contas só conhecia o cara a no máximo uns 30 minutos. A sorte absurda que eu tive em tê-lo como parceiro não vai dar pra explicar aqui, mas só pra ter uma ideia, eu ele pedalamos praticamente no mesmo ritmo. Ele é um pouco mais forte no plano e no vento e eu nas subidas, mas estamos absolutamente em equilíbrio. Depois dormimos ao lado do casal Bastin e Sanne, da Holanda. Moram numa cidade de 1200 habitantes. Minúscula. Ela é ciclista profissional e ele trabalha com caminhões que fazem áreas VIPs para eventos ciclísticos. Tour de France, Giro di Italia, em todos ele já foi e viu de camarote. Ela é baixinha e risonha, e dá umas gargalhadas incomuns para o padrão alemão. E todos adoram! O Bastin também é uma simpatia, e tem a maior curiosidade sobre a América Latina. Quando eu falei que tínhamos uns 5000km de litoral ele pirou. Detalhe, ela empurra ele na subida, e ele não é nada fraco! Quem me tirou uma onda logo de cara pelo Mineiraço foi o Frederique, um francês que mora numa colônia francesa perto de Madagascar, chamada Ile de la Réunion. Colônia mesmo. Eles só cultivam cana de açúcar pra servir à França. O parceiro dele é o Fabien e ambos são engenheiros. Tem os portugueses, Josué Duarte e Nuno que são muito engraçados, principalmente pelo sotaque. São de Cintra. Falam rápido como se fossem de Floripa. Uma dupla Grand Masters (mais de 100 anos somados) jantou conosco. Estávamos cansados por termos feitos o percurso em umas 6h. Eles chegaram só 20min depois de nós! No lava bike de hoje conheci também um sueco e um português que vive na Noruega. Se conheceram só aqui, como eu e o Zach. O sueco tinha uma bicicleta Canyon, que só é vendida pela internet. Com rodas Mavic Slr e câmbio X9, quadro todo de carbono, full, pesando 12kg, custou 2800 euros, o que dá uns 9000 reais. Rodas Mavic Slr! No Brasil só elas custam uns 5500 reais! Por falar em marcas de bicicleta, aqui tem tanta variedade que nem consigo lembrar todos os nomes. Acho lindas as Cube. Rocky Mountain e Scott são a maioria, e essas marcas patrocinam a corrida. Quem tem uma Scott ou um Rocky, chega e larga a bike para os mecânicos. Fazem a limpeza e uma revisão básica e te entregam no outro dia. Poucas Specialized, que são "caras" aqui pra eles, comparadas às outras. Mas mostrei a minha e o kit Swat e ficaram fascinados. O canivete de ferramentas debaixo do quadro fez o Jeff dar um pulo! Focus, BMC, Niner, Cannondale, e várias outras. Bom, já estou falando de bicicleta de novo. Deixei o melhor pro final. As calcinhas das européias são horríveis. Querem saber como eu sei? Só na próxima postagem. Agora vou jantar. ! ! ! ! 8 David, Bradley, Geoffrey e Josh
  • 9. ! ! ETAPA 4 - Naturns a Sarntal - 73,20 km, 2646m ! ! Acima da linha das árvores e o temido Setor das Cabras. Céu de brigadeiro hoje. Azul da cor do mar. Perfeito. E quente. Largamos com 30 graus ao sol. Com o movimento a temperatura baixou para uns 24. Estava bem quente. Passamos por vilarejos e infinitas plantações de maçã. E logo começou uma subida. Dei sorte com a roupa. Levei um manguito de verão, branco, bem leve. Foi perfeito! Saímos de 500 acima do nível do mar e chegaríamos, em algumas horas e milhões de pedaladas depois, a 2027m. 23km de subida. Que tal? Lá no alto a maravilhosa vista desta cordilheira de montanhas que chamam de Alpes. Tão alto que não há árvores. "Acima da linha das árvores", é a expressão que se usa para dizer onde estamos. Como é verão aqui, encontramos dezenas de famílias fazendo trilhas e caminhadas no meio do caminho. 9 ! Refiro-me ao Setor das Cabras, um lugar tão cheio de pedras e tão íngreme, com pelo menos 20%, que só as cabras dariam conta. Nem as motos de trilha sobem por ali. Não foi fácil. Ok, estou e c o n o m i z a n d o m a s palavras: foi ultrahiper- maximegasuperfoda, pra caralho!
  • 10. Crianças de 3 a 90 anos fazendo trekking. Fabuloso! Mas chegar até ali, se não bastassem os 23km morro acima, não era fácil. Um trecho pedregoso de uns 5km completava o desafio e fazia a vista lá de cima parecer melhor ainda. Faltava ainda metade da subida quando ele apareceu. Refiro-me ao Setor das Cabras, um lugar tão cheio de pedras e tão íngreme, com pelo menos 20%, que só as cabras dariam conta. Nem as motos de trilha sobem por ali. Não foi fácil. Ok, estou economizando mas palavras: foi ultrahipermaximegasuperfoda, pra caralho! Mas fui curtindo, cada momento. Lá de cima, uma vista fantástica da região do Tirol, norte da Itália, onde estamos. 17 graus. O manguito ajudou tanto no sol quanto no topo. Bom. Tudo que sobe, desce. E descemos por 13km. Trilhas, o setor de enduro, mais trilhas, cruzamos riozinhos de água gelada e clara, e mais trilhas. Trilhas que não acabavam mais. Lembrei de poupar a bike e de como é importante manutenção constante. Lembrei do nosso mecânico, o Tonto. Ele deixaria minha bike zerada hoje depois desta pauleira. A Sanne e o namorado Bastin, os holandeses, estavam parados no último ponto de apoio. Ele estava desidratado. Entrou no carro-médico e ela seguiu. Logo nos alcançou e arrancou forte pra caramba, descendo aquelas trilhas cheias de pedras. Só a encontrei de volta na linha de chegada. Ela nem parecia ter suado. Eu devia estar destruído. 6h de pedalada de novo hoje, pra cumprir os 73 km e 2646m acumulados da quarta etapa. Lavei minha bike e, como a Nádia mandou eu me alimentar bem, comi dois hambúrgueres típicos e dois canecos de chope, com os franceses de Ile de La Réunion e com o Rob, um britânico de Winchester. Estamos em Sarnthein, Sarntal ou Sarentino, como queiram. Apesar de ser território italiano, a maioria das pessoas tem o alemão como primeiro idioma. Então: Auf Wiedersehen ou Arrivederci!  ! ! ! ETAPA 5 - Sarntal a Caldaro - 67,42 km, 2785m ! ! 10
  • 11. ! ! ! Quinto dia. Previsão do tempo indicando chuva e frio ou nublado e quente. O que fazer? Levar tudo, e torcer para não chover. Não choveu. Algumas gotas, mas o tempo ficou bom. Deixamos hoje Sarentino em direção a Caldaro. Nesta parte da Itália, todos falam alemão. No ginásio em que estamos, o placar eletrônico registra Heim x Gast, ou algo como Locais x Visitantes. Hoje a pedalada foi mais curta, mas igualmente exigente e bonita. Já na largada começamos uma subida constante de 11km, em que saímos de 971m para 2000m acima do nível do mar. Eu estava me sentindo forte, apesar de um peso no estômago. Provavelmente exagerei no café da manhã. Nada de preocupante. Olhei para o Zach e ele disse "vai que eu te alcanço na descida". Fui. Acho que passei umas duzentas pessoas. Era uma estrada larga, de uns 20m, mas tinha que ficar encontrando espaço no meio de tanta gente pra passar. E fui passando. Bem perto do topo, faltando uns 2km, percebi que o meu ritmo estava ficando igual ao dos demais. Pronto. Achei o grupo com o meu ritmo. E segui adiante, sem nem ver mais o Zach. Lá no alto, novamente aquela paisagem lunar, cheia de pedras, de trilhas, mas desta vez com um gramado molhado pela chuva que, só fui saber horas depois, derrubou o Zach. Coloquei minha jaqueta e comecei a longa descida com cautela. Acho que foi a mais fantástica até agora. Deve ter sido mais de uma hora descendo por estradinhas rurais, trilhas, estradas de asfalto de uns 10m de largura no máximo, e mais trilhas, mais gramados, mais tudo. Foi espetacular. Frederic, o francês, disse "magnífico", em português. Ele passou algumas semanas surfando no Brasil 20 anos atrás e ainda lembra umas palavras. Depois de tanto descer, paramos no ponto de alimentação. Muita gente aplaudia hoje ao longo das estradas. Me imaginei no Tour de France. Mais uma longa subida e depois andamos por um bom tempo no alto da montanha. Passamos dois castelos medievais, plantações de uva, ainda verdes, e paisagens estonteantes. Lá de cima dava pra ver o Vale de Sarentino, que bem podia ser chamado de Vale da Maçã. Lá embaixo milhares de hectares de macieiras. No alto, parreiras. Um detalhe que me 11 ! ! Estamos na 201ª posição g e r a l . C o m i u m a bratwurst com chope na chegada. Isso aqui está perfeito! Felicidade tem nome: TransAlp!
  • 12. chamou a atenção foi a espessura do asfalto nas estradas rurais. É mais ou menos como se TODAS as estradas rurais de Xanxerê fossem asfaltadas, com pistas de 8 a 12m de largura. Só que a espessura era algumas vezes seguramente de mais de 10cm, com proteção contra erosão, com calhas, com bocas de lobo. Se a estrada pra Xavantina, que tem uns 5cm de espessura, fosse como as estradas rurais daqui... Bom, melhor não entrar em depressão. Depois de pedalar um bom trecho lá nas alturas entramos numa trilha que me fez lembrar a Trilha da Lagoa do Peri, que fiz com o meu irmão no verão. Era um desafio para os braços e não para as pernas. Passávamos por árvores, raízes, pedras, tudo levantando a bike nas costas. Foi duro. 800m assim, mas acho que levou uns 30min. Depois deste trecho, faltando uns 20km para o final, o Zach finalmente me alcançou. Estava com o capacete quebrado e a canela toda ralada. Em poucas palavras ele só disse que tinha escorregado na grama molhada e batido a roda numa pedra lisa. A bike girou e ele caiu no chão. Estava bem, mas pelo visto o susto foi grande. Etapa concluída em 5h14. Foi o primeiro dia que não pegamos fila nas trilhas mais difíceis, porque ultrapassamos muita gente no começo. Estamos na 201ª posição geral. Comi uma bratwurst com chope na chegada. Isso aqui está perfeito! Felicidade tem nome: TransAlp! ! ! ! ! ! INTERLÚDIO # 2 - PELADO, PELADO ! ! Pelado, pelado. Quem acha que os alemães são sisudos   não imagina como é a vida num camping. Na verdade são ginásios em que todos dormimos lado a lado. No primeiro dia para me trocar fui até o vestiário com as minhas coisas e me preocupei em ver se a porta estava fechada. Quando voltei, tinha um cara pelado no meio do ginásio, trocando de roupa. Ele simplesmente abaixou a bermuda, ficou de cueca por alguns instantes e depois tirou o resto. Claro, em questão de segundos vestiu a bermuda de ciclismo e respirei aliviado. Mas ver um pinto balangandando na sua frente não é muito a minha praia. Depois outro cara se deitou, tirou a bermuda e a cueca, e fez a mesma coisa. Prefiro não lembrar dos detalhes, mas do meu ponto de vista dava pra ver mais do que eu queria ter visto. No segundo dia desfilar só de cueca já era normal. Parece que a regra é: não quer ver, não olha. E parei de olhar. E começou a parecer normal. Minha primeira tentativa 12
  • 13. fora do vestiário foi daquele jeito que fazemos na praia. Enrolei a toalha, tirei a bermuda e coloquei a cueca e a outra bermuda. Mas perdi com o tempo os pudores. Já estou me alemanizando.  Ontem e hoje já balangandei um pouco, coisa rápida, mais foi interessante. Acho que ninguém olhou. Nem fotografou. Tomara. Foi assim que descobri que as européias não têm bom gosto para calcinhas. O acampamento é misto, sempre com uns 10% de mulheres, e elas também entraram no esquema. Sempre tem uma ou outra desfilando de calcinha. Mas são umas calcinhas estranhas, grandes demais, parecendo uma cueca. Não sei se é pra que ninguém olhe, talvez seja. E funciona.  ! ! ETAPA 6 - Caldaro a Trento - 98,25km, 2894m ! ! 13 ! ! Entramos num setor lindo, talvez dos mais bonitos até aqui, com o vale do Trento abaixo. Uma região rica, linda e com uma cordilheira de até 4000m de altitude ao fundo. Coisa de cinema. Imagina com neve!
  • 14. ! ! Estamos em Trento, uma cidade de 120 mil habitantes aqui no norte da Itália. Etapa de hoje: 98km. Um catatau de metros de elevação. Calor. O Zach caiu ontem então pedalou mais devagar hoje, com dor. Antes da largada percebi que a válvula do pneu dianteiro vazava. Levei na Maxxis e o cara consertou em 5min. Colocou muita pressão, pedi pra tirar. Com medo de algum problema, mandei deixar com 25lb, o que é muito para o meu peso ainda. Foi o meu erro. O dia começou lento, com uma fila de uns 2km. Muita gente. Seguimos depois por uma estrada em que passava uma antiga linha férrea. Isso significa pouca inclinação e vários túneis. A inclinação devia ser de 2 a 4%, mas sempre positiva, o que dificultava um pouco. A velocidade era de 15km/h e estávamos forçando um pouco. Em seguida começou uma subida mais forte, a primeira do dia. E o calor aumentou. Andamos por trilhas novamente. E aí chegou a conseqüência do meu erro: no km 50, numa descida forte, cheia de cascalho, errei a tangência e caí. Foi um tombo pequeno, com velocidade baixa, mas foi suficiente para ralar a coxa e dois dedos da mão. Mas o pior é que fiquei com a mão doendo. E faltavam mais 48km!!!!! Bati o capacete no chão, de frente. Não doeu nada na cabeça, mas senti que o capacete protegeu bem. Se não fosse ele a coisa teria mudado de figura. Levantei rápido, tirei a bike do caminho, me recuperei e segui viagem. Dor na não do #!@&*#. Reduzi a velocidade. Entramos num setor lindo, talvez dos mais bonitos até aqui, com o vale do Trento abaixo. Uma região rica, linda e com uma cordilheira de até 4000m de altitude ao fundo. Coisa de cinema. Imagina com neve! A dor foi diminuindo. Seguimos assim até o final, que acabava numa trilha de uns 50cm de largura muito legal. Filmei toda! O Zach mostrou categoria. Eu fiquei na maciota. Chegamos em Trento. Cidade linda, antiga, com vielas. A chegada era neutralizada pra não dar problema com o trânsito. A linha de chegada cronometrada acabava fora da cidade. Na cidade, só festa pra nos receber. A meta ficava numa rua de paralelepípedos com várias lojas de perfume. Que cheiro delicioso naquela rua! Fui ao atendimento médico e tudo bem. Nada demais. Saí pra comprar outro capacete e aproveitei pra gastar uma grana com produtos da Castelli. Agora são 6h42 aqui. Vou pro camping descansar porque amanhã tem mais 67km! ! ! ! INTERLÚDIO # 3 - Alimentação ! ! Ainda não vi no Strava, mas certamente gastamos perto de 4000kcal por etapa. Isso é quase o dobro do que uma pessoa normal gasta em 24h. No café da manhã eu costumava tomar umas três xícaras de café, dois pães, um com presunto, queijo e manteiga e outro com mel. Mais um prato de mingau de aveia, uma maçã (que eu levava da noite anterior e comia logo que acordava, pra não chegar no café da manhã com muita fome). Iogurte e uma outra fruta, banana, p. ex. Depois das corridas sempre serviam frutas, mas eu atacava as barraquinhas de comida. Hambúrguer, salsicha alemã, doces. Em uma ou duas horas vinha o jantar e sempre tinha macarrão com pão, salada e iogurte de sobremesa. Bem pobre a alimentação, comparado ao TransAndes, em que servem truta, vários tipos de massa, carne, 14
  • 15. frango. No percurso, serviam laranja, melancia, banana, amendoim salgado e castanha com ameixa seca. Sempre tinha também pão de ló (que chamam aqui de cuca: "kuchen") e umas barras de cereal do patrocinador. Pra beber ofereciam isotônico e água. Nos dias frios, sopa e chá quente. Não tomei nenhum tipo de suplemento, de gel, de shake ou pílula para regeneração. Nada. Tomei quatro bagas de ibuprofeno para a dor na mão, que o médico receitou. E me senti recuperado todos os dias e cada dia melhor. Não tive cãibras, nem desidratação. Nada. Vi durante o percurso a galera tomando gel, garrafas com isotônico, com maltodextrina, etc. Não sei como aguentam tanta porcaria. Sinceramente, parece que se sair numa revista de ciclismo que comer areia com catchup aumenta 10% da potência, numa reportagem paga pelo fabricante, todos os atletas vão comer. E vão achar que está fazendo toda a diferença. ! ! ETAPA 7 - Trento a Riva del Garda - 62,74km, 2325m 15 ! Não é só pela pedalada; é pela amizade que a gente gosta de bike. Pelas r i s a d a s , p e l a s b e r g a m o t a s , p e l o s momentos de paz. Pelas piadas, pela aventura. Por voltar a ser menino depois de ter crescido. E faz toda diferença ter um grande amigo aqui. Lembrei de todos.
  • 16. ! Sétima etapa concluída! TransAlp 2014, você é meu! Desafio superado! A última etapa foi especialmente difícil. Largamos debaixo de muita chuva, mas muita mesmo. E ela seguiu forte por metade da prova, até ultrapassarmos as duas montanhas que nos esperavam hoje. Poças de lama enormes. Água escorrendo pelas ladeiras. O Zach pediu e hoje eu obedeci. Ele disse "full gas to the end": gás total até o final. Como de praxe, subidas enormes logo de início. Hoje tínhamos "só" uns 15km de subida. Obedeci e forcei. O Zach disse que me alcançaria na descida. Chovia tão forte que os pingos doíam. Logo que acabou o asfalto começou a lama. Aquela lama pastosa, terrível, que entra em todos os lugares. Lembrei do Duatlo de Joaçaba. Uns 3km depois da primeira subida, que acabava no km 19, cheguei ao local de alimentação. Logo vi porque serviam sopa quente. Eu já estava começando a ficar com muito frio. Caramba, foram 12km descendo com muito frio, com chuva e lama, até começar a subir de novo. Eu gritava e tremia de frio! Torci pela subida, que era a única chance de eu me aquecer. Chegou! Ufa. Mas a chuva continuava. 8ºC. Nada de o Zach me alcançar. Forcei novamente na segunda subida. Esta tinha mais 10km. Lama. Parei no segundo ponto de alimentação. Um figura, que sempre lubrificava as bikes neste segundo ponto, brincava com todos: "última banana do TransAlp, última banana!" E era mesmo. Começou a dar saudade. Comi mais umas três bananas. As minhas últimas no TransAlp. Veio o sprint de montanha e nem tentei nada. Estava começando a ficar preocupado. O Zach não aparecia. Segui no meu ritmo. As descidas estavam deliciosas. Parou a chuva, mas tinha lama. Fui na manha e passei bastante gente. Tentei filmar. Parei mais uma ou duas vezes à espera do Zach. Nada. Segui meu rumo. Nessa hora senti falta de um parceiro de verdade. Lembrei do meu amigão lá de Floripa, o Giovani, e dos parceiros de pedal e prosa: Davi, Tito, Sidnei, Mulinari, Tonto, Alex, Rony, Willian. Não é só pela pedalada; é pela amizade que a gente gosta de bike. Pelas risadas, pelas bergamotas, pelos momentos de paz. Pelas piadas, pela aventura. Por voltar a ser menino depois de ter crescido. E faz toda diferença ter um grande amigo aqui. Lembrei de todos. Douglas e Luana, das meninas de Xanxerê, Patricia, Jaque, Eliete, Daiane. Dos novatos do nosso grupo, de todos. Melhor parar de citar nomes. Vamos voltar ao que interessa. A descida para Riva del Garda é algo além de fascinante. É uma espécie de ciclovia com montanhas de 3500 por todos os lados, descendo suave. Muita gente faz cicloturismo aqui. Reduzi a velocidade, deixei todos me passarem. A penalidade para largar o companheiro de dupla por mais de 2min é de 30min. Parei mais uma vez. Nada do Zach. Merda! 10km para o final, 5km, 1km. Parei ao lado de um guarda de trânsito. Simpatia pura. Puxou conversa. Esperei conversando com ele por 15min até que o Zach chegou. Ele apenas disse: "tive o meu pior dia nas subidas". Eu tinha tido umas das melhores semanas da minha vida! Cruzamos a linha de chegada. Medalha no peito. Coração na boca. Vontade de abraçar o Lucas e a Nádia. Vontade de voltar pra casa e de... Pedalar por aí! Alguém aí a fim de um pedalzinho leve esta semana? 100km? PS: o mais velho a completar tem hoje 68 anos. O campeão das montanhas 21. A dupla mais distante é de Porto Alegre. O melhor brasileiro? Este que vos fala! 16