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FSB
A DOR DOS
QUE SENTEM
Diário dos abandonados
pela felicidade
Por Fabio da Silva Barbosa
Editora Merda na Mão
- Publicando os Impublicáveis -
março de 2023
Apresentação
Fabio da Silva Barbosa é daqueles autores que a gente
nunca sabe o que esperar. O cara já lançou poesia, contos,
distopia, sagas urbanas... E os formatos de seus trabalhos
também variam. São e-books, jornais, zines, livros... Ter de citar
todos os estilos e formatos seria promover uma lista
desnecessária para quem acompanha a extensa obra deste autor
do submundo.
A DOR DOS QUE SENTEM - DIÁRIO DOS
ABANDONADOS PELA FELICIDADE me foi enviado por
ele e devorei em algumas horas. Passei minhas impressões logo
a seguir e ele pediu para que fizesse uma pequena apresentação.
Disse que estava mesmo querendo escrever sobre e que faria de
uma tacada só, como um jorro. Orientei que depois fizesse a
revisão. Ele me respondeu: “Que revisão? Manda e pronto. Esse
livro é o próprio jorro ao qual você se referiu” Em menos de
uma hora digitei e enviei para seu e-mail.
O livro é tenso, obscuro e direto, características sempre
presentes nas construções do autor e que desta vez nos leva
para dentro dos labirintos do cérebro de um paciente em uma
clínica psiquiátrica. O paciente em questão está sofrendo de
depressão e podemos acompanhar o diário de seu suplício em
busca de recuperação.
Fabio mantém o pensamento humano como é, sem
embelezar. O personagem escreve em seu diário de acordo com
o momento. Tem relatos em forma de registros simples, assim
como, por vezes, a comunicação se dá através de verdadeiros
poemas ou reflexões. Não poderia ser diferente, já que o
personagem autor se trata de um poeta encharcado de depressão
e dor.
Fui completamente sugado para o interior deste espírito
atormentado e seus dias de tédio e agonia, onde as vezes vê
alguma chance de melhora e em outras acredita que está tudo
perdido. Fui para baixo de seus cobertores quando estava
.
tentando se isolar do mundo e andei com ele de seu quarto para
o refeitório, que também funcionava como sala de atividades.
Acredito que a A DOR DOS QUE SENTEM é um livro
fundamental para entender a depressão, esse mal que afeta a
tantos hoje em dia, do ponto de vista de quem está sofrendo da
enfermidade. Também é uma oportunidade para sabermos o que
se passa no interior dos pacientes durante a internação e como
eles sentem o tratamento.
Preparem-se, pois o que está por vir é coisa forte.
Se você não se sensibilizar, é porque está morto.
Índio Louco
Março de 2023
Em algum lugar do centro oeste do Brasil
Este livro é dedicado a
todos que lutam corajosamente
contra a depressão e em memória dos que
infelizmente perderam a batalha
9
Carta a um amigo
Querido amigo
Na última vez em que nos falamos, mandei a mensagem dizendo
que tentaria uma internação, pois não estava aguentando mais e
perdendo feito a luta contra a depressão. Lembro que você
respondeu caramba, ou algo assim. Já faz tempo, né? Não
lembro exatamente quanto. Nem sei que dia é hoje. Não sei
qual dia da semana ou do mês. Lembro que foi em uma
manhãzinha dos últimos dias de janeiro.
Como tenho a mania de não colocar data nas coisas, também
não saberei quando escrevi esta carta, mas, quando voltar, levarei
comigo este monte de palavras que começo a escrever. Nestas
páginas, tentarei descrever a agonia e o desespero dos que lutam
contra os suplícios psíquicos.
Os textos não estarão divididos necessariamente em dias, mas
em pausas. Como já comecei a escrever alguma coisa antes
desta carta que será de abertura, já senti o clima da coisa. Por
vezes paro e recomeço três vezes em uma mesma manhã. Ia
escrevendo quando me dava na telha. Cada três pontinhos
marcará uma pausa. Explico para que fique minimante possível,
para você e os demais que vão ler, entenderem a lógica que
usei.
Uma pausa podia durar dias ou minutos então?
Sim. O importante neste trabalho é acompanhar o processo que
ocorre entre cada pausa, após o tempo passado, o tempo para
cada um e o fluir dentro da mente do enfermo.
Gostaria também de estender esta carta a todos que acompanham
meu infortúnio e tentam ajudar de alguma forma. Um grande
salve a todos vocês.
Ah, sim... E como poderia esquecer. Um grande foda-se para os
que me viram caído e se aproveitaram para pisar em cima. Vocês
são uns merdas!
...
10
indo cada vez mais fundo
no poço sem fundo
que nos engole, degola e tritura
caindo já fragmentado no labirinto infinito
aquele labirinto já conhecido
de corredores sem saída
e portas trancadas
corredores estreitos e escuros
muros altos e escorregadios
impossível transpor ou ver o que tem do outro lado
os casulos não permitem
a entrada de uma gota de luz que seja
apenas o cheiro da carniça
o odor da putrefação
o odor do futuro sombrio
que nos aguarda
suga e perfura
podemos ainda reconhecer
algo de nossos restos
entre a carne disforme
que se amontoa pelos cantos
servindo de alimento e ninho
para seres abjetos
o buraco em espiral regurgita
cada parte do que poderia fazer algum sentido
mistura, embaralha, destrói
podemos reconhecer então
alguns detritos de ossos partidos
e nada mais
...
11
De novo alguém me acordando.
Não sei se é manhã
tarde
ou noite.
Tento me localizar.
Olho para o fundo do copo que me entregam.
Tem um laranja, um branco e um amarelo.
Jogo o conteúdo do copo em minha boca e tomo a água que
vem junto.
Não consigo associar com clareza, ligar o que está sendo servido
com a hora.
Alguém diz que já está na hora do café e que depois vai rolar
banho. Então inicia outro dia.
Por vezes até eu consigo ver algo de positivo na vida.
Afinal, se vai começar outro dia
é porque falta um a menos
...
O espaço é bem simples. Em cada quarto cabem três e tem um
banheiro. Saindo do quarto é um corredor onde não se pode
ficar parado. Ele é apenas passagem dos quartos para o refeitório
e sala de televisão. O refeitório também serve como sala de
atividades e o pessoal se reúne ali para conversar, jogar cartas e
coisa e tal. Nestes primeiros dias tenho usado muito pouco os
espaços, a não ser quando é hora de alguma coisa específica,
como me alimentar. Fico bastante na cama, de preferência
embaixo dos cobertores para me isolar do mundo. Não tenho
vontade de travar amizades.Agora que estou escrevendo, tenho
saído mais do quarto, pois o lápis só pode ser usado na área do
refeitório, quando não estão sendo servidas as refeições. Como
escrever é uma atividade solitária, continuo sem fazer contatos.
Como o pessoal do meu quarto também não é de muito papo,
está ótimo assim. Pelo menos recebo os adesivos de nicotina,
já que não se pode fumar. Dizem que estes adesivos não
12
funcionam e que é psicológico. Para mim está funcionando bem.
Não é legal no dia que por algum motivo não me dão. Os banhos
são sempre pela manhã.
Agora está bom de escrever. Estou cansado. Mas não é o cansaço
como a maioria conhece. É um cansaço diferente. Nem sei se é
cansaço isso.
Vou voltar para o cobertor.
...
Duas coisas difíceis por aqui são a falta que fazem meus óculos
e conseguir um lápis. Só fornecem o lápis com algum enfermeiro
no ambiente e tenho de devolver logo após o uso. Como nunca
lembro pra quem devolvi, fica difícil quando vou pegar de novo.
Essas medicações deixam minha mente mais confusa que já é.
Mas entendo a coisa de devolver o lápis. Esta pequena
ferramenta feita para escrever, tem outras utilidades. Já vi um
cara arrancar o olho do outro durante um jogo de dados
...
Ou estou escrevendo, ou embaixo dos cobertores. Já troquei
algumas palavras com alguns companheiros de suplício, mas
continuo muito deprimido para me relacionar. Prefiro ficar
submerso nos cobertores torcendo para o sono chegar. Quando
a angústia e a ansiedade ficam muito intensas, posso pedir a
medicação extra para apagar. Meu companheiro de quarto que
deu o toque. Ele sempre pede uma. Hoje está uma agonia só.
Talvez seja o dia de pedir a minha.
...
A chuva começou a cair lá fora com um barulho calmante. Os
pacientes conversam tranquilos pelos cantos. Um dedilha o
devido a algumas discordâncias
quanto as anotações.
13
violão de forma completamente desconexa com a letra que
murmura sem sentido. Alguns falam em jogar cartas, mas não
conseguem chegar a conclusão sobre qual seria o jogo. Resolvi
parar de escrever e apreciar as estranhas formas das gotas que
escorrem pela janela. Nosso único contato com o mundo exterior
são as duas janelas do refeitório. Elas não abrem. Foram feitas
para ficar sempre fechadas. Senti falta de ar fresco e vento. Ficar
respirando vinte e quatro horas de ar condicionado, todos os
dias, não é agradável. Mas pelo menos conseguimos ter algum
contato com o mundo através daqueles dois vidros retangulares.
Parece que estamos em um aquário.
Até daqui a pouco. Ou amanhã. Ainda não sei.
Mas agora preciso ir. A chuva me chama.
...
Encostado na parede, contemplo o que está rolando a minha
volta, ao mesmo tempo em que retrocedo até um passado
recente... E tudo com temperos medicamentosos.
Antes de parar na clínica, estava em uma espécie de central,
onde todos que passavam por algum distúrbio mental ficavam
aguardando vaga para o local que melhor atendesse a sua
dificuldade. Cada uma daquelas pessoas daria um livro. Entre
todos que lembrei, por algum motivo que não sei qual, resolvi
escrever sobre uma senhora que todo dia se esticava em uma
cadeira depois do almoço e cochilava. Dizia que era o momento
de ter suas visões. Todo mundo evitava fazer barulho, porque
ela acordava aborrecida. Resmungava que a acordavam bem na
hora da revelação. Uma vez, outro paciente sugeriu que ela
voltasse a dormir para dar continuidade a revelação. Ela ficou
ainda mais irritada, dizendo que não era assim que funcionava.
Eram muitos casos curiosos e só de terminar de contar esse já
me vem uma enxurrada de outros que trariam luz a aspectos
humanos que vem a tona em certas circunstâncias. Algum dia,
se estes casos continuarem a rondar minha memória, como estão
14
neste momento, falo mais sobre minha passagem neste local.
...
Agora não quero perder o foco das gotas que continuam
escorrendo pelos vidros da janela.
Não há nada de romântico, belo ou engraçado na tristeza, na
loucura. É algo terrível, feio demais, que vai nos incapacitando
de fazer as coisas mais simples e básicas. Vai nos afastando dos
demais e os demais não desejam nossa companhia. Fica-se
completamente só. É horrível ser tomado pela melancolia dessa
forma tão extrema. Fico deitado por horas, de olhos fechados,
apenas desejando o silêncio. É como desejar o sono e muitas
vezes a morte. E você ali, deitado, coberto dos pés a cabeça,
como se estivesse enterrado. Muitas vezes nem pensamos nisso,
pois também não queremos pensar. Ficamos apenas ali, deitados,
encolhidos em nós mesmos.
...
Uma das piores coisas de estar aqui é a vontade de fumar. Tem
momentos em que estou fazendo algo, ou até não fazendo nada,
como na maior parte do tempo, e chego a me ver dando uma
tragada daquelas no meu cigarro predileto. É como se estivesse
vendo a coisa em um telão. A fumaça quente e cancerosa
enchendo meus pulmões. Dou um leve sorriso de satisfação e
saem os rolos de fumaça pelos meus lábios. Pareço estar pleno,
atingindo o nirvana. Consigo sentir.
Vício desgraçado.
...
Depois de alguns dias de chuva (um, dois, três... Não saberia
dizer quantos), temos um final de tarde sem. Embora sinta falta
da melancolia chuvosa, gosto do por do sol visto daqui. O céu e
suas nuvens adquirem um tom laranja avermelhado que lembra
15
o fogo. Os barracos ao longe vão acendendo as luzes.Aos poucos
o morro vira um mar iluminado. Manto de pedras preciosas.
E quanto mais o céu escurece, mas a luz toma conta de tudo.
...
Estou começando a ficar um pouco mais fora da cama. Devo
estar começando a reagir melhor ao tratamento. Não volto mais
tão rapidamente para debaixo dos cobertores. Não que já esteja
uma beleza, mas... É só que dou uma circulada pelo refeitório/
sala de atividades, troco olhares significativos com os
companheiros de infortúnio e estou escrevendo sempre que
consigo um lápis. Só de sair mais do quarto, caminhar pelo
corredor e chegar a salão onde funciona a sala de TV e o
refeitório/sala, já é algo muito diferente na rotina de alguém
que está nesse universo. Mesmo que seja por pouco tempo.
Comecei também a lembrar dos sonhos que tenho tido.
No início da internação eram apenas apagões, agora entro no
acordar saindo suavemente dos braços de Morfeu. Inclusive
amanheci com um RAP pronto, voando em meu crânio, mas a
maldita dificuldade em conseguir um lápis fez a coisa dispersar.
Comecei a tentar conseguir a ferramenta não eram oito horas.
Ele me chegou as mãos já haviam passado das dezesseis.
Ficou apenas o refrão:
Tem dias que é prosa
tem dias que é poesia
tem dias que é só tédio e melancolia
...
Hoje foi o dia de fazer a barba. Na verdade, foi o dia de tentar
fazer a barba. Descobri que os aparelhos que nos são oferecidos
são muito ruins, principalmente para barbas como a minha,
muito espessas. Resolvi que só voltarei a esta atividade após o
retorno para casa.Até lá... uma longa couraça de pelos irá cobrir
minha face já há muito carcomida pelos dissabores da vida.
16
...
Não sei se é sexta ou sábado e ainda não encontrei quem
soubesse informar. Não me animava travar qualquer tipo de
contato com as pessoas que poderiam responder ao enigma com
precisão.
- Aí fica difícil, não é Fabio? – Ouvi dentro de minha cabeça.
- Sim... Sempre foi assim. Ser fácil ou difícil nunca foi a questão.
– Respondi para o meu cérebro.
Acabei descobrindo, mas... Sejamos sinceros... Que diferença
faz.
O importante é que o calor que atravessa o vidro da janela está
aconchegante e aliviando as dores dos meus velhos ossos. A
claridade solar que atingia uma pequena parte da mesa
demarcava onde o calor atuava. Era uma pequena região onde
podíamos nos refugiar do gelo maldito daquele ar condicionado.
Olhei para a sombra que cobria a maior parte do espaço.
Penumbra que sempre tive como única companheira. Ela estava
sem a minha companhia dessa vez. Hoje me reúno com o dia, a
luz.
Que sujeito traiçoeiro e vil eu sou.
Que apunhala sem compaixão
as costas da amada escuridão.
Mas também não prometi nada
e, se prometi, outra vez menti.
Que canalha ordinário eu sou.
Sempre o velho egoísta.
...
Agora que descobri, tenho sempre buscado este cantinho para
escrever. Mudo apenas quando já está ocupado. Quando isso
acontece, fico de olho para reocupá-lo assim que possível. Dá
para me aquecer enquanto escrevo e posso ver o céu quando
levanto a cabeça. Um céu lindo, cheio de nuvens psicodélicas,
17
unindo a luz e a escuridão. Por estes dias tenho apreciado este
espetáculo. A luz que atravessa o vidro também ajuda muito na
falta do óculos de leitura. Ficamos como cegos apertados para
mijar, tentando desesperadoramente não molhar os próprios pés.
Qualquer rastro de luz ajuda.
...
Cansado de olhar o céu, pois até as mais belas visões tem a
capacidade de me entediar rapidamente, estico o pescoço e
vislumbro os prédios, favelas e áreas verdes que se misturam
em meu campo de visão. Como a clínica fica no alto, estas
janelas podem captar uma vista bem ampla da cidade. Alguns
pássaros típicos da regiam cortam a paisagem com alegria.
Parecem gargalhar enquanto surfam no céu.
Ficando de pé, observo os telhados que cercam o lugar, seus
detalhes e o lixo que se acumula no terreno baldio ao lado.
Na tv passa um jogo de futebol. Parece uma partida importante.
...
Em dias como hoje volto a ficar submerso nos cobertores,
sem ânimo para nada. Ultrapassar o corretor para chegar ao
refeitório/sala e escrever estas linhas é um ato que exige extrema
força. Já tem uma rapaziada acostumada a me ver silencioso
em meu posto, escrevendo. Quando não apareço por lá, alguns
que estão se aproximando aparecem na porta do meu quarto
avisando que o lápis já pode ser liberado, em uma clara tentativa
de me animar. Um deles é o Mago, também do Rio de Janeiro e
que em suas andanças veio parar no Sul. O outro não lembro o
nome, mas sei que gosta de passar seu tempo colorindo desenhos
que escolhe e pede para imprimir. Ele é muito bom nessa coisa
de colorir. Com os escassos materiais que temos por aqui,
consegue dar várias tonalidades de acordo com a pressão ou
Coisa que nunca me interessou
18
posição do lápis sobre o papel. Cada um encontra sua forma de
não ser engolido pelo tédio.
Chegou um cara novo que é bom no violão. Até então o
instrumento ficava parado de canto e por vezes alguém pegava
e fazia um animado noise, Mas este novo conviva embalou aos
que estavam presentes com sons que iam de Deep Purple até
Bob Marley e Legião Urbana sem perder a energia. Tinha música
que ele não tocava inteira e algumas, como a do Deep Purple,
era só a introdução. Mas tudo bem. Foi o suficiente para o
momento. Brincou que ia tocar uma do Dead Kennedys, mas
era só brincadeira. Uma pena. Tocou então algumas do Raul,
que o Mago acompanhou cantando para ajudar.Atendeu a alguns
pedidos que sabia. Ele e oMago já se conheciam de outras
internações. Seu nome era Vinho. Na verdade, estou inventando
estes nomes para evitar expor alguém que não queira.
Enquanto isso me dividia entre apreciar a apresentação
e escrever estas linhas que você está lendo. Por vezes alguém
encostava curioso ao meu lado e perguntava “Que carta é essa
que nunca acaba?”, ou então “O que você tanto escreve aí?”.
Daí explico, da forma mais resumida possível, sobre minha
obsessão pela escrita e como isso ajuda a me organizar
internamente, a dar um sentido para as coisas. Digo que ainda
não sei se estou escrevendo um novo livro, apenas exercitando
as ideias, passando o tempo ou criando lixo. Por vezes me olham
como se não houvesse a menor diferença entre as opções dadas.
Penso que somos autores personagens de nós mesmos.
Uma mescla fusão. Coisa que não me sinto interessado em
divagar sobre no momento. Isso não é o mais importante.
... de fato.
Talvez nada seja
Quando a depressão está nos rondando bem de perto, ao
ponto de sentirmos seu hálito de carniça aquecendo nossa nuca,
fica tudo mais difícil. Todo cuidado é preciso para que ela não
19
retire mais um naco, deixando outro contorno gangrenando,
necrosando. A depressão é o tipo de predador que após sentir o
sabor de sua presa, fica sempre na volta, querendo mais.
É sempre bom lembrar.
...
Hoje foi um dia especialmente difícil. Daqueles em que para se
virar na cama já é um esforço descomunal. Levantar-se então...
fica impossível. Estou nestes altos e baixos. Há dias e dias.
Nestes momentos, onde a depressão fica profunda, podemos
observar detalhadamente cada pedacinho de tudo que nos cerca.
Você fica íntimo de cada mancha de mofo, de cada pedaço mal
pintado.
Quando abri os olhos, estava em decúbito lateral e assim fiquei
até o ombro começar a doer. Estes colchões ajudam nesse
processo de fazer doer quando se fica muito tempo em
determinada posição. Quando a dor ficou insuportável, fiz um
esforço descomunal e mudei o campo de visão. Fiquei assim
até o próprio infinito. Passado esse tempo virei para o outro
lado. Daí a ficar de pé foi a própria Guerra dos Cem Anos.
...
Peguei a tarde para ler tudo que escrevi até aqui. Risquei umas
partes e mudei outras. É realmente muito difícil escrever neste
estado. Achei que estava perdendo um pouco o rumo e a coisa
foi ficando meio patética, mas retomei o fio da meada. Nem
preciso lembrar o que foi fazer isso sem meus óculos. Fiquei
com náuseas e dores de cabeça com o esforço.
Chega de trabalho por hoje.
...
Minha relação com os sonhos voltou a mudar. Agora eles
acontecem cada vez mais vivos, reais, e quando acordo no
ambiente branco e repetitivo da clínica, fico em dúvida do que
20
é realmente real, qual é a verdadeira verdade. É uma confusão
que dura pouco. Logo a dureza gélida do branco se impõe como
o frio verídico a despedaçar nossos sonhos coloridos.
Ao menos já faz uma
temporada que não tenho
pesadelos.
...
Tem um pessoal recebendo alta. Não estou com a menor pressa.
Não que aqui seja uma beleza (longe disso). É um monte de
merda, como qualquer lugar que se vá, como todo lugar desse
mundo desgraçado. Sair daqui seria ir ou voltar para onde, quem
ou quando? É como não ter destino além daqui, mesmo
teoricamente tendo. Esse papo mexe com meu lado mais
emotivo e fico sensível. Os olhos se enchem d’água.
...
A chegada dos novos pacientes não tem sido legal. Tem muito
jovenzinho que gosta de ficar com cara de durão. Isso me dá
uma vontade incrível de desmanchar aquelas caras a socos.
Cambadas de bundas moles.
Mas isso não é culpa deles. Se não fosse isso, seria outra coisa
a me incomodar.
Toda essa confusão de sentimentos.
Não é fácil estar enlouquecendo.
Nem eu mesmo me entendo.
Passou um helicóptero na tv.
Olhei para o céu tentando encontrar.
...
Os últimos dias tem sido difíceis. Parece que nada que penso
faz sentido. Só tristeza e amargura. Muita melancolia. A beira
do precipício voltando a avançar em minha direção. Volto a
ficar o máximo de tempo sob os cobertores, saindo apenas para
21
as necessidades básicas. Quando consigo escrevo um pouco.
Vai aumentando aquela sensação que mistura tristeza, frustração,
angústia, raiva, dor e vai saber mais o que. A vontade de fumar
ainda é forte. Os adesivos de nicotina ajudam, mas quem é
fumante sabe que a nicotina é apenas parte do problema.
Tem um senhor aqui pedindo insistentemente um sedativo mais
forte ao enfermeiro.
Sei bem como é.
Também queria passar mais tempo dormindo.
Se possível, o tempo todo
...
Tem horas em que a dor psicológica é tanta
que vira física.
Que a angústia domina cada membro
e vira aflição.
...
Hoje o Rei do Noise voltou a dominar o violão. De todos que
pegam o instrumento para fazer um barulho, ele é o que mais
me agrada. Não estou falando dos que pegam para tocar, mas
dos que realmente curtem fazer uma arruaça sonora. Acho que
sou o único que curte quando ele começa a espancar as cordas,
murmurando em sua língua estranha. Também curto quando
Vinho, que tem alguma noção da coisa, faz suas apresentações.
Tudo tem o seu momento.
Ou quase tudo, na verdade.
O que que há?
...
A essa hora
com a cidade assim
já escura
22
botecos, bocas e quebradas
devem estar
com a vida a borbulhar
Os vapores da loucura
fermentando criaturas como muitas das que aqui estão
me atraem
me fascinam
Como será depois que sair daqui?
Por enquanto
me sinto como uma abelha
presa em um pote de vidro
vendo ao longe
seu campo florido
Na verdade
ainda tento entender
qual o problema
ou se existe algum
...
Acredito já estar há mais de duas semanas aqui. Agora
começaram a fazer uma dinâmica chamada grupo. Não
perguntei, mas obviamente tem esse nome por ser feita em grupo.
Existem vários tipos de grupos. Existem uns de assuntos livres
e outros mais específicos.Além dos assuntos, as formas de fazer
também variam bastante.Amaioria gira em torno de conversas.
É algo que preenche o espaço e anima alguns a saírem da frente
da tv para construir algo coletivo e na base da troca de idéias.
Alimenta o hábito do debate e o convívio com as diferenças.
Alguns destes grupos são iniciativas dos funcionários e outros
dos próprios pacientes. O Mago, por exemplo, adorava fazer
um para leitura de textos e falar sobre magia e o sobrenatural.
Daí tirei esse nome pra ele. Alguns dão muito certo, outros vão
passando por um rápido esvaziamento. Tudo depende de vários
fatores. Se o pessoal estiver muito pra baixo, ou se não for um
23
assunto de interesse da maioria, a coisa não rende. Tem também
uma técnica de condução e a pessoa precisa ter o mínimo de
conhecimento de como se conduz a atividade proposta.
...
Era um fundo colorido, com flocos de várias cores
gritantes vagando diante dele. Passando uns pelos outros. Cores
que nem concebemos a existência e, por isso mesmo, não
seríamos capazes de nomeá-las. Por vezes, quando se
atravessavam, os flocos geravam novas cores. Enquanto este
ballet flutuante, cheio de ternura, acontecia em sua lentidão
hipnótica, eu ouvia a voz da meiga professora orientando as
pequenas crianças em uma apresentação. Só não me perguntem
como eu sabia se tratar de uma professora, já que em nenhum
momento houve uma pista se quer a esse respeito. Poderia ser
mãe, tia, madrinha... Mas eu sabia exatamente do que se tratava,
mesmo vendo apenas aquele show calmante de cores. E as
pequenas apresentavam uma sequência de peças teatrais que
igualmente não conseguia ver. Sabia que eram peças muito
alegres e que haviam alguns adultos assistindo com satisfação.
Eles estavam ungidos do mesmo espírito fraternal. Era tudo
cheio de luz. Algo que poderia ser considerado santo.
Eu estava em um cômodo ao lado e só podia ouvir as
falas e risadinhas em um tom muito agradável e baixo. Estava
deitado, muito sonolento, e não conseguia abrir os olhos ou me
mexer. Mesmo com os olhos fechados, conseguia ver o cenário
descrito inicialmente, de fundo colorido e com os flocos de cores
berrantes flutuando, se cruzando, se fundindo e embelezando
cada vez mais. E encantando... e trazendo paz...As cores fluíam
como as mais belas notas musicais. O resto eu só podia ouvir e,
de alguma forma misteriosa, ter conhecimento do que se tratava.
Sem ver o ambiente onde estava, pude reconhecer que estava
em meu quarto da clínica e meus dois companheiros de quarto
estavam adormecidos em seus respectivos leitos.
Caso contrário, só resta contar com a sorte.
24
Por vezes sentia que a professora e uma graciosa
menininha, que não devia ter mais de cinco anos, me animavam
a participar da apresentação. Foi nesse momento que começou
a maior parte do sonho. Eu tentava abrir os olhos, levantar e
interagir. Não conseguia ter o mínimo de coordenação necessária
para isso. Meu mergulho naquele torpor de cores não permitia.
Contudo, estas tentativas mal sucedidas não eram angustiantes
ou frustrantes. Estes sentimentos que tanto me assombravam
cotidianamente não estavam presentes. OTentar era tão saboroso
quanto o permanecer banhado em toda aquela cor e luz. E as
risadinhas da professora e da guriazinha eram ondas de bem
estar. Todas as vezes que eu não conseguia, elas davam aquelas
risadas miraculosas. E isso durou até que uma voz áspera
chamou meu nome e me sacudiu. Eu resisti, não queria acordar.
E a voz me tirou dos cobertores. Entreabri os olhos e reconheci
o enfermeiro me chamando para o café da tarde. Falei que não
queria e fechei os olhos rapidamente para não perder o fio que
ainda me prendia ao caminho para aquele mundo encantado e
maravilhoso. Mas ele não se deu por satisfeito até eu abrir bem
os olhos e dizer claramente que não queria tomar café.
Nem preciso dizer que o fio foi rompido e não consegui voltar
para aquele setor do meu sonho ou para qualquer outro.
Desisti de voltar a dormir depois
de algumas tentativas
e sentei injuriado.
...
Não sei há quanto tempo estou por aqui e não tenho mais a
menor preocupação com isso. Antes, quando perdia a noção
do tempo, perguntava a um ou a outro, mas agora não me
interessa mais. Não penso no dia de ir ou algo que o valha.
Aquela sensação de não ter para onde ir, voltar, chegar ou
ficar já virou uma convicção. É como se aqui fosse o meu
lugar.
O NADAABSOLUTO.
25
O FRUTO DO NADA
VINDO DO NADA
DE ONDE NÃO EXISTE
DE ONDE NADA EXISTE
IR, VOLTAR, FICAR – NADA DISSO FAZ SENTIDO
QUANDO DEIXA DE EXISTIR O ONDE, O PORQUE
(AQUI, ALI, QUANDO, NAQUELE...)
ESTAR ALI É TÃO DESINPORTANTE QUANTO ESTAR
AQUI
O ÚLTIMO E O PRIMEIRO SÃO MENTIRAS
SANTIFICADAS COMO DEUSES E DEMÔNIOS
SÃO APENAS FACES DA MESMA MOEDA
Mesmo tendo contemplado estas questões anteriormente,
dando até certa importância a elas, como se fossem realmente
relevantes, sinto que posso descer a velha urna funerária no
buraco e escrever na cripta.
AQUI JAZ TUDO
POIS NADA PRESTA
POIS NADA É OU ESTÁ
POIS NADA VAI, FICA OU VOLTA
JÁ QUE NADA EXISTE
NEM MESMO OS LUGARES
OU OS ESPAÇOS
PELO MENOS COMO CONSIDERAMOS
E MESMO DE OUTRAS FORMAS
...
As chuvas não têm passado por aqui.
Isso é bom para aquecer um pouco a parte de fora
mas deixa a casaca seca e coberta de poeira
enquanto o frio continua cortando por dentro
como lâminas afiadas de gelo.
As gotas de chuva já não estão presentes para observarmos as
estranhas formas no vidro.
26
Vejo as janelas cobertas de poeira e merda de passarinho seca
enquanto congelamos dentro de blocos de solidão e angústia.
...
Hoje o Rei do Noise surpreendeu a todos. Pegou o violão,
olhou em volta e meteu um belo dedilhado.
Senti falta dele espancar as cordas, pois essa parte mais
convencional o outro mano já faz muito bem.
...
Agora os funcionários já estão mais acostumados a me entregar
o lápis quando solicito e alguns ainda têm o esmero de me
arrumar um com a ponta bem feita. Quando preciso de papel
também me entregam uma quantidade legal. Hoje a enfermeira
me emprestou uma caneta. Facilitou bastante identificar as letras
que estavam saindo. Muito legal da parte dela. Aí ficou uma
loucura a mistura de lápis e caneta. O problema é a falta dos
óculos.Avista vai ficando cada vez mais cansada com o esforço,
então uso a técnica do fluxo contínuo da mente.Vou escrevendo,
sem precisar parar para ler ou reescrever. Pretendo manter tudo
assim, desse jeito. Se a ideia destes escritos é passar exatamente
este momento, não tenho que ficar ajeitando isso ou aquilo.
Tenho que valorizar tudo como está saindo. Tenho pensado
bastante na possibilidade dessa coisa virar um livro. Seria legal
mesmo se saísse do jeito que foi concebido, escrito a mão, com
todas as rasuras. Estou achando muito bonito esse caos sobre
as folhas que já dobrei ao meio e estão em um formato livro.
Fazia muito tempo que não produzia a mão deste jeito que está
sendo. Na verdade, igualzinho, da maneira que estou
concebendo, no estado em que estou, nessa situação, nunca fiz,
nem conheço alguém que tenha feito. Comecei sem saber ao
certo o que era e ainda não sei. Seria um verdadeiro estudo
deste momento que estou vivendo? Mas vamos ver as
27
possibilidades depois. De repente, quando chegar em casa, faço
uma fogueira, queimo tudo e pronto. Por enquanto é só escrever,
escrever e escrever. É o que importa hoje.
...
Pela primeira vez, desde a minha internação, consegui chegar
ao psicólogo. Não foi muito fácil, mas conseguimos. Digo
conseguimos porque eu e um dos meus companheiros de quarto,
que precisava tanto quanto eu, fizemos todo um esquema para
sermos atendidos de pronto. E vou te dizer que por anos e anos
achei psicólogo o profissional mais dispensável do mundo. Mas
nesse momento eu sentia que precisava. Quem se conhece, sabe
do que precisa e quando. Foi assim com a internação. Senti que
precisava, peguei minhas coisas, avisei a quem deu e fui pedir
meu encaminhamento. Foi sobre isso que estava conversando
com meu companheiro, quando arquitetamos todo e plano e
fomos em busca do atendimento. Ele entrou primeiro. Quando
ele saiu, eu já estava na espreita para não deixar o psicólogo se
envolver em outros afazeres e atendimentos. O Psicólogo meteu
a cabeça de fora e viu que eu aguardava. Acenou para minha
entrada em sua sala e viu o homem bomba apertar o play e não
parar de falar. Falei três vezes mais que você possa imaginar e
quando chegava a uma conclusão, logo expunha exatamente o
oposto com a mesma precisão. Estava completamente
enlouquecido em minha verborragia infinita. Ele me olhava
fixamente e, pasmem, entendia tudo. Quando não entendia,
pedia para pausar, reorganizava suas ideias e eu as minhas. Por
vezes me vinha com uma pergunta, que tinha tudo a ver, para
continuarmos exatamente de onde paramos. E ele encerrou o
atendimento com uma pergunta chave. Respondi e por sua
expressão facial vi que a conexão para o próximo atendimento
estava feita. Marcou em sua agenda o nosso próximo encontro,
se mostrando disponível para se eu precisasse antes.
Foi uma experiência incrível.
...
~ 28 ~
Estava “brincando” com alguns farelos de pão que ficaram
esquecidos sobre a mesa. Totalmente mergulhado na tristeza,
pensava sobre quantas pessoas no mundo realmente sabem sobre
a dor de se estar derretendo na mais sombria melancolia.
...
O melhor grupo que tem rolado, tem sido os organizados pela
Assistente Social. Ela realmente sabe fazer o lance. Nada
pretensioso ou arrogante. Apenas informações baseadas em
dados, sem meras opiniões ou achismos. A coisa sendo feita de
forma científica, como precisa ser para ter o mínimo de
credibilidade. Sem julgamentos morais. A ideia sendo
apresentada de forma interessante para todos. É o segundo grupo
que temos com ela. O de hoje foi sobre redução de danos.
Assunto importantíssimo e pouco conhecido em sua
profundidade.
...
Desde o sonho colorido, não consigo mais lembrar o que rola
desenfreado por minha cabeça enquanto durmo. Por vezes me
vem algumas partes, mas nada consistente.
...
Alguns caras jogam cartas em uma mesa ao fundo. Em outra
estão em volta do rádio ouvindo um som. Nas cadeiras laterais
estão pulando sem parar de canal em canal na tv. Quando
parecem ter encontrado algo, tem sempre alguém que pega o
controle e os canais voltam a saltar. Tem um que fica olhando
para ver se vem o enfermeiro, porque só os funcionários podem
mudar de canal. A regra é pedir. Não me perguntem como
estavam de posse do controle. Por vezes alguém passa por trás
de mim tentando ler meus garranchos. Olho com cara de poucos
amigos e mando para longe só com a força do olhar. Reparo
que minhas unhas estão enormes. Quando estiver com energia
o suficiente, pergunto quando é o dia e horário de aparar as
garras do gárgula.
...
~ 29 ~
Fico vendo os companheiros correndo os olhares pelo janelão
de vidro, tentando capturar algo de vida, alguma coisa que esteja
viva, no exterior
Caminhando como borboletas
se chocando contra as paredes,
o fundo e a tampa do pote que as prende.
As belas asas se machucando
e virando pó.
Os vôos cada vez mais atrapalhados
virando quedas.
Os potes
Prisões ou proteções
Viram túmulos porões
...
As lagartixas sempre saem para caçar nos parapeitos, do lado
de fora das janelas feitas para não abrir.
Fico apreciando pelo lado de dentro.
Ainda não apreciei um bote perfeito por parte das lagartixas,
mas em algum momento elas conseguem.
Com certeza conseguem.
O oposto não as deixaria tão espertas e gordinhas.
Se mexem com a velocidade necessária para um predador.
O grande caso é a precisão.
Ficarei aqui passando o tempo com essa incógnita.
Talvez distraia meu pensamento de que hoje é sexta e os bares
estão lotados e eu não estarei navegando nas correntezas da
loucura, tentando amenizar a amargura e a solidão.
Não é um pensamento que vem a todo o momento, mas por
vezes vem.
...
Já fazem algumas noites que não durmo bem. Volta e meia
acordando e ficando em meu casulo de cobertores. Quando isso
30
acontece, a hora se arrasta. Isso costuma me deixar mais
angustiado, irritado e ansioso. O dia demora mais a passar.
Mas não tem outro jeito
a não ser suportar
...
Hoje, pela primeira vez, vi nascer o dia. Não curti. Não chega
aos pés do espetáculo do fim de tarde. Aí sim. As nuvens
incendiárias e o negro véu se apossando de tudo.
...
Essa noite fui brindado com um sonho. Os sonhos são
importantes para, de alguma forma, nos tirar daqui. Pelo menos
mentalmente conseguimos ir para longe, passar outras
experiências diferentes da rotina imposta. Neste encontrei uma
velha amiga, militante que usa o reggae como arma de combate
contra este sistema cruel que nos extermina e transforma em
meras engrenagens da terrível máquina de moer. Ela é uma das
poucas pessoas que utiliza a tal good vibes de forma
efetivamente producente. Tenho grande desprezo por esta forma
de atuação e acho, inclusive, que esta ideia desmobiliza formas
de combate realmente eficientes, como a raiva e a ação direta.
Mas ela sabe fazer as coisas desse jeito. Quando ela faz, é
diferente. Foi muito bom nosso role e troca de ideias.
Volte sempre, irmã
...
Já tem uma rapaziada ligada nesse trampo que estou fazendo e
eu mesmo já vejo como algo a mais, mesmo tratando a criatura
da mesma forma que no início. Daí ficam querendo saber se
vão aparecer no livro. Como meu trabalho corre pelo circuito
underground, pelo submundo/subterrâneo, eles não fazem a
menor idéia do que é a literatura para um ser bestial como eu.
31
Não me dou o trabalho de explicar do que se trata. Retribuo
apenas com um sorriso vazio, daqueles que não querem dizer
nada, e continuo trabalhando.
...
Estar fazendo parte deste tipo de processo, em uma clínica e
tal, para tentar recobrar o foco e tratar das mazelas psíquicas
que se acumularam no decorrer das diversas batalhas travadas
pela vida, não é fácil. Primeiro de tudo temos de estar abertos e
dispostos a reavaliar certos pontos que nos são importantes.
Neste exame temos de permitir que estes pontos, por mais
valiosos que sejam, por mais tempo que estejam em nosso
pedestal interior, caiam como ruínas se não nos servem mais.
Tirar do caminho o que está impedindo de ir além. O orgulho
inútil de nada nos serve nestes momentos.
Pensando bem
Não nos serve em nenhum momento
...
Desde que cheguei à clínica não tive um pesadelo. Pelo menos,
não que me lembre. Só se aconteceu e ele ficou soterrado pelos
escombros do inconsciente. Mas hoje foi e me lembro bem.
Acho que o último ajuste medicamentoso trouxe de volta minha
produção de sonhos terríveis. Espero que não. Espero que tenha
sido apenas um berro perdido do meu antigo modus operandi e
os próximos sonhos sigam a linha que vinham seguindo. Ao
menos me levavam para passear em locais agradáveis fora dessas
paredes. Era um pesadelo até meio sem graça, que não vale a
pena escrever, mas que deu pra perturbar. Resumindo, eu mexi
em um carro e um celular que estava dentro desse e uma
multidão veio atrás me espancando com paus, pedras e facão.
Quando acordei, ainda levei um tempo para me situar e posso
dizer que foi a primeira vez que fiquei feliz de estar neste gélido
32
ambiente branco. Olhava para mim buscando as chagas que
não existiam.
Não teria escapado ileso dessa.
...
Hoje a cor do por do sol está diferente. O vermelhão deu lugar
a um amarelo mais ameno e isso mudou toda a paisagem a qual
estou acostumado. A alteração na coloração do céu nos
presenteou com um novo cenário. Coisa que podia ter passado
despercebido em outra ocasião. Mas aqui, tudo de mais
importante consiste nos pequenos detalhes. É aí que se quebra
a rotina que nos massacra em um ambiente institucional.
...
O pessoal anda dificultando o acesso ao violão para o Rei do
Noise. Isso tem deixado ele mais agitado e constantemente
falando sozinho.
O Garoto contou sobre suas fugas em várias instituições
psiquiátricas por onde esteve. Nesse momento está lendo o que
escrevo por cima do meu ombro. Está elétrico por eu ter citado
o nome dele no livro, mas desanimou quando disse que é
praticamente certo que eu mude todos os nomes quando for
digitar a versão final e que possivelmente algumas partes serão
suprimidas ou alteradas.
As conversas com o psicólogo continuam muito produtivas, o
que vence por completo a resistência que sempre tive a este
tipo de profissional, mesmo tendo grandes amigos e amigas
que atuam na área.
Gosto bastante das paredes grafitadas que contrastam com a
maioria branca. Não sei se em todas as alas são assim.
Se não são, deveriam,
pelo menos ao meu ver.
...
33
É como a fúnebre dança com a areia movediça
Um par fatal
Uma dançarina que envolve
Seu corpo o puxa para baixo
Independente se é um breack, valsa ou sapateado
Ela determinará seus passsos
Pode ser twist, lambado ou um pogo irado
A areia irá engoli-lo
Palmo a palmo
Até seu corpo totalmente esgotado
Morrer completamente asfixiado
...
Talvez já tenha passado uma semana que não escrevo nada.
Nunca sei ao certo, porque isso de ficar contando o tempo só
me deixa mais ansioso. Então não penso sobre isso e fico meio
perdidão assim mesmo. De boa. Além disso, aqui é um lugar
difícil de saber os dias, já que todos são iguais. Prefiro ficar
escrevendo e reescrevendo minhas merdas que ter esse tipo de
preocupação. Me ajuda a organizar meus pensamentos e a
encontrar algum sentido para essa bobagem chamada vida. Neste
intervalo em que larguei um pouco meu jogo com as letras, me
aproximei mais de outros pacientes com os quais já vinha me
relacionando. Para dizer a verdade, na maior parte do tempo,
passei submerso em meus cobertores. Em algumas ocasiões
também ficava sentado em frente a tv, sem prestar atenção em
nenhuma programação. Era apenas um canto onde podia ficar
olhando para nada, mergulhado em mim mesmo, sem ser
interrompido.
Fora isso, uma nova leva de pacientes se foram e outros vieram,
as lagartixas continuam suas caçadas nos parapeitos externos
das janelas, o por do Sol continua um show a parte, alguns grupos
são excelentes e outros como bosta batendo na água, os
jogadores de carta não param de aumentar seu número... E por
aí vai.
34
Tem aparecido alguns enfermeiros novos também. Acho que
estão cobrindo folga. Não sei ao certo. Quando falo enfermeiros,
falo tanto técnicos em enfermagem, quanto os com nível
superior. Só os que já foram internados muitas vezes usam este
nome com diferença entre os cargos. Para estes o tratamento é
técnico e enfermeiro. Embora entenda as diferenças entre as
funções, pra mim e pra muitos dos que estão aqui, a forma de
tratar os dois cargos é a mesma. Entre estes novos profissionais
existem uns muito bons e uns que são um verdadeiro chá de
merda.
Meus sonhos, volta e meia, são intercalados com pesadelos ou
com aqueles dias que não lembro nada do que se passou pela
mente enquanto dormia. Meros apagões. Aquela situação em
que a pessoa diz simplesmente que não sonhou.
...
Como falei a cima sobre o despreparo de alguns profissionais
que trabalham com a gente, resolvi entrar um pouco mais nisso.
Tem uns que acreditam ter um dom natural, algo mágico, do
reino da fantasia, que já nasceu com eles. Não entendem que
toda profissão depende de um aprendizado técnico, onde se
adquire metodologia de trabalho, a ciência do fazer. Há também
os que trazem seus conceitos e experiências de vida como algo
que por si só servem necessariamente para todos. Estes não
conseguem ver toda a diversidade humana e as inúmeras
situações possíveis. São limitados apenas ao que sabem ou que
pensam que sabem. Ainda existem aqueles submissos a um
sistema de crenças, muitas vezes religiosas. Estes são um
subgrupo dos que já chegam com seus conceitos e experiências
como a verdade absoluta, mas que merecem um destaque por
ter uma dificuldade maior ainda em desenvolver um bom
trabalho. Em todos estes casos, falta ver o trabalho como uma
ciência e não como algo onde cada um faz do seu jeito. E o pior
é que além de acharem que cada um deve fazer do seu jeito,
35
eles ainda têm a convicção de que o jeito deles é o certo. Falta
um conhecimento organizado para orientar ao trabalhador.Algo
que vá além da fé, opiniões e achismos. Ah... Temos também
os que fazem do jeito mais fácil para ter o menor trabalho
possível. Se pensarmos bem, encontraremos outros grupos e
subgrupos. Pegando o exemplo daqui da clínica, todos os
enfermeiros tem os conhecimentos de aferir pressão, aplicar
injeção ou ministrar medicações, por exemplo. Mas suas funções
vão muito além do que isso, pois eles lidam com gente. Pessoas
que estão em sofrimento, passando por distúrbios, perturbadas
e por aí vai. Então acabam atuando em várias áreas que vão
além de dar remédio. E é aí que o bicho pega. Isso deveria ser
uma parte tão sólida, quanto todas as outras durante a formação.
Mas existem os bons, ótimos e excelentes profissionais nesta
mesma área e tive a felicidade de serem maioria aqui onde estou.
Valeu, galera.
Vocês são os melhores.
...
Fios elétricos carregam
a força para iluminar a artificialidade
uma cidade de mentiras ilusórias
enquanto olho pela mesma janela de sempre
outro entardecer
querendo apenas estar
para além das estruturas metálicas
naquela antiga varanda de madeira podre
na companhia daquele sábio homem negro
que gostava de conversar sobre as coisas da vida
tomando seu café sem açúcar
e batucando Bezerra, Nelson, Cartola
e outros bambas da fina flor
Espero reencontrá-lo quando sair
...
36
Soube agora que estou na reta final e que meu plano de prolongar
minha estadia dificilmente vai rolar. Nos próximos dias
começarei a estudar com a equipe o que vai ser a sequência do
meu tratamento após a alta, no mundo externo, para evitar ser
novamente engolido pela depressão.
Se é que isso é possível.
...
Estar pronto para tudo o que der e vier
é só mais uma das grandes mentiras
Mas fazemos o que podemos
para ser capaz de ir em frente
Sem passar os dias em posição fetal
vendo as partes caírem
como lepra existencial
que suga nosso vigor
como um vampiro letal
sem alma e sem amor
passando os dias ardendo no sal
vendo os olhos murcharem
por não suportarem
sua farsa banal
...
Finalmente consegui usar o cortador de unhas. O negócio é
pior que o barbeador.
...
Estava folheando a esmo este trabalho e vi o efeito que estas
folhas rasuradas e escritas manualmente dão enquanto passo
daqui pra lá e de lá pra cá.Fico deslumbrado com um trampo
100% manual como este, feito de forma totalmente analógica.
É um processo completamente diferente de algo nascido em
37
frente a fria tela do computador. O ideal seria reproduzir tudo
como estou vendo enquanto passo as páginas. Aí seria um
primor. Até para esse monte de garranchos e letras sobrepostas
manterem mais vivas as coisas como são. Quem sabe? Tudo
pode ser.
Vejamos no que dá.
Nada está no controle.
Nem acho legal que sempre
esteja.
Tem horas que olho para isso tudo e penso
e rasgar e por no lixo.
Quem sabe o que vai passar em minha cabeça quando
estiver trabalhando a coisa?
...
Hoje me mudaram de quarto e nem tiveram a delicadeza de
avisar. Cheguei na minha cama para entrar na velha gruta de
panos, buscando sumir um pouco do mundo, quando bati os
olhos em um coroa recém chegado nela.
Tudo bem...
Entendi que o coroa estava na última da de pressão e minha
cama ficava em um lugar de mais fácil acesso para observarem.
O que não dava para entender é não me avisarem.
Meu companheiro de quarto, que estava comigo desde a minha
chegada, localizou minhas coisas em um quarto mais a diante e
deu o toque. Entrei e vi meu nome em cima da cama. Era ali
mesmo.
Só para registrar, me acomodei em meu novo
quarto e até agora ninguém falou no assunto. Deixaram-me
descobrir sozinho e pronto. Caso resolvido.
Descobri que o quarto era legal. Logo em seguida, Mago, com
quem eu já vinha trocando umas ideias, apareceu no quarto e
me deu as boas vindas. Fiquei em uma cama do canto, embaixo
de uma daquelas janelas feitas para não abrir. Só que esta tinha
38
um agravante que a do refeitório/sala não tinha. Era pintada, ou
botaram algo no vidro, para que ninguém visse o outro lado e
vice-versa. Praticamente nem passava claridade.Acama do meio
era do Coveiro, um cara super de boa, mas que também estava
muito deprimido. Passava os dias deitado de barriga pra cima
olhando o teto. Cortava a visão do teto entre um cochilo e outro.
A noite dormia na mesma posição. Levantava-se apenas na hora
de refeição e mesmo assim quase não comia.Acama que ficava
encostada na outra parede, ao lado da porta, era a do Mago, de
quem já falei a respeito e com quem estava fazendo alguns
grupos de leitura. A mudança apertou os laços com Mago e me
permitiu conhecer mais o Coveiro, figura que mal via antes da
mudança e me pareceu um grande cara passando por uma
situação ruim.
...
Quando as coisas
paravam de fazer sentido ao meu redor
Quando as pessoas
paravam de fazer sentido ao meu redor
Quando tudo
não para de ficar pior
E a ciranda macabra
não parava de rodar
e de matar
Trouxeram livros
com páginas em branco
Trouxeram cegos
se contorcendo em prantos
Mas se as coisas ainda não fazem sentido
e as coisas não param de ficar pior
e tudo vira lama e pó
e a ciranda não para de rodar
e a macabra não para de matar
39
e o sofrer não para de gemar
e o que não para de por que
Morrer
...
Conforme vai chegando o dia de sair, os medos tomam
proporções titânicas.O maior, talvez seja o de não dar conta de
tudo o que está por vir.
Mas quem daria?
Ninguém daria conta de tantos horrores oferecidos pela vida. O
importante é manter o foco e fazer da melhor maneira possível
o que sabe que tem de ser feito porque sabe que se preparou
para isso durante a internação.
O importante é
manter o foco
saber o que tem de ser feito
e agir de acordo com seu proceder.
O SOFRIMENTO E A DOR SÃO INEVITÁVEIS.
Está mais que na hora de parar de se distrair e começar a se
concentrar no que importa. Chega de distrações inúteis e
choraminganhas que apenas roubam a energia do guerreiro.
Usemos nossas energias nas batalhas que valem a pena. Com
foco, sabendo o que tem de ser feito e agindo de acordo com o
proceder, o resto é bobagem de menino mimado.
E isso não é autoajuda ou qualquer bobagem do tipo. Odeio
essas merdas. Isso virou um rótulo para um tipo de parasitismo
que está longe do que o termo deveria significar. É apenas a
observação do real. Uma coisinha que aprendi nessa passagem
por aqui e que tenho de manter forte em meu interior quando
sair. Não posso cair nas mesmas armadilhas. Tenho de manter
isso bem interiorizado para travar as batalhas que me aguardam
quando eu sair daqui.
...
Tenho de conseguir.
Não me darei outra opção.
40
Li e reli algumas vezes a parte acima, assim como algumas
partes que, segundo meu julgamento, preciso ter bem
interiorizado. Tipo um mantra poderoso para quando eu sair.
Continuarei a reler até o dia de ir embora.
Ou até meus olhos caírem das órbitas.
Que falta fazem meus óculos de leitura.
...
Lendo e relendo isso, fico pensando o quanto é óbvio o que
deve ser feito. Os problemas são as armadilhas e os discursos
prontos sendo repetidos e plantados por todo o caminho, durante
toda a vida para nos sabotar e confundir, para nos fragilizar. Só
que uma vez recobrando nosso foco, agindo de acordo com
nosso proceder, sabendo o que tem de ser feito... Já era. Não
seremos postos novamente em tal estado de vulnerabilidade. A
dor e o sofrer são inevitáveis e já sabemos disso. É encará-los
como guerreiros e seguir sempre em frente.
Chega de repetir sobre isso.
A lição é curta
e não precisamos
repetir tantas vezes.
Sigamos em frente.
O lance é fazer.
...
Tenho conversado com o Coveiro quando ele se dispõe a trocar
uma ideia. Ele disse que não se sente ele mesmo e que gostaria
de ficar legal para voltar a ser quem sempre foi. Falei com ele
que também me sentia assim, mas que estava bem mais próximo
de mim mesmo. Que isso tinha a ver com a depressão, mal que
assolava quase a totalidade da ala psiquiátrica em que nos
encontrávamos. Falei com ele sobre o esquema que tinha feito
(manter foco + saber o que tem de ser feito + agir sempre de
acordo com seu proceder e nunca esquecer que a dor e o
41
sofrimento são inevitáveis). Pareceu fazer sentido para ele
também. Um recém chegado aproximou-se e disse já ter visto
essa ideia, ou parte dela, em algum lugar. Falei com ele que era
bem possível e que as coisas que vemos por aí ficam em nossa
cabeça fermentando, como um caldo cultural, e vem a tona
quando precisamos. Não faz diferença se quem falou foi um
mendigo ou o ministro da cultura.
- Não é questão de quem inventou a pólvora, meu chapa, mas
de saber que ela existe e de como fazê-la explodir quando
preciso.
Respondi meio que já achando que estava socializando demais.
...
Realmente, desde a mudança de quarto, tenho interagido mais
e isso nunca foi coisa muito do meu agrado. Nunca tive vocação
para ser o legalzão. As pessoas, em sua maioria, sempre me
passaram certa sensação ruim e irritação, quando não de
imediato, depois de certo tempo de convivência. Poucas e raras
exceções fazem parte do meu círculo de amizades por um longo
tempo. Muitas também não me suportam por muito tempo.
Também tem isso.
Parece que tenho de praticar mais a parte que fala sobre agir de
acordo com meu proceder.
Que nesse caso seria manter distância
da maioria das pessoas.
Ou será que estava havendo uma mudança no proceder?
...
Os funcionários também estão ficando mais próximos. Tem uns
que são gentis e estão sempre dispostos a ajudar. Sempre que
peço um lápis, eles fazem questão de apontar antes de me
entregar e quando preciso de papel eles não economizam.
Reparam em todos os pacientes e sabem quando algum não
está bem, criam grupos e atividades interessantes.
42
Mesmo tendo estes que estão sempre dispostos a ajudar e
conversar, como em todo agrupamento humano, temos os que
se revelam uns grandes sacos de merdas. Nesse grupo tem alguns
dos novos e alguns dos antigos. Preguiçosos e com má vontade,
cumprem mal e porcamente seu tempo de trabalho apenas para
receber o salário. Estes não possuem sensibilidade ou
conhecimentos mais profundos. Isto só piora o que já não é
fácil. Afinal, estar internado não é moleza e em qualquer
ambiente onde se tenha de viver institucionalizado ninguém
que tenha o mínimo de razão consegue estar bem. Imagina ter
hora para tudo. Hora do banho, dia da barba... Pessoas o dia
inteiro te vigiando e dizendo o que pode ou não fazer...
Mas não vou me demorar muito nisso porque já passei por este
caminho anteriormente. Mas bom para quem ler isso, se é que
alguém vai ler, ver que não foi coisa só de um dia.
Mas os bons são muito bons.
Gratidão pela existência destes.
...
Depois de melhorar, a depressão volta com tudo. Somado isso
ao intuito de me distanciar dos demais, volto a ficar a maior
parte do tempo na cama. Realmente sempre me foi muito
prazeroso esse distanciamento, somando a depressão então...
Se tivesse meus óculos, faria uma busca entre os livros que
temos por aqui. Com certeza deve ter algo que preste entre o
lixo religioso e de autoajuda que pode ser observado em
abundância.
Como minha hérnia de disco começa a reclamar dos colchões
que temos, levanto para esticar um pouco as costas. Tento fazer
alguns exercícios e dou uma caminhada pelo ambiente.
A única caminhada possível é aquela de sempre: Sair do
quarto, pegar o corredor e chegar no refeitório.
Fui até a salinha onde fica a tv, que é bem ao lado do refeitório.
E adivinha só:
Tava passando merda.
43
Sentei na mesa do refeitório onde Vinho e Mago estavam em
volta do rádio. Eles colocaram uma sequência de Raul.
Assim se foi meu
projeto de isolamento por hohe.
...
Como escrever é uma boa forma de se isolar sem deixar a cabeça
parar, estava aqui desenvolvendo minha lógica de conduta onde
o sofrer e a dor são inevitáveis. Isso mesmo. Voltei a falar sobre
isso.
Deparei-me com a questão: Se faça o que fizer a dor e o
sofrimento estarão presentes,como não entrar pelo caminho do
desespero? Tudo é possível, inclusive seguir este rumo. Agora,
se você tem a consciência de que estes dois elementos existem,
estão aí independente de qualquer coisa, não tem a fantasia de
um mundo sem isso, então não será pego de surpresa. O que
resta é saber o que tem de fazer. Daí entram manter o foco e
agir de acordo com seu proceder. Isso o manterá forte o suficiente
para aguentar o tranco e seguir em frente sem as inúteis crises
histéricas de desespero. Você saberá como demolir estes
elementos com um bom soco nas ventas (Linguagem figurada,
por favor. Estamos falando do mundo psíquico, da mente frente
aos problemas do mundo concreto) quando quiserem dar o ar
da graça.
Claro que para quem quer questionar, sempre há espaço. Eu
como bom questionador que o diga. Podem dizer que expressões
como “manter o foco” são vazias e vir com perguntas como
“Mas manter o foco em que?” ou sobre o proceder vir com
“Que proceder é esse?” Mas essa parte é pessoal e, sendo assim,
só o próprio poderá responder. Só e só você pode saber. Afinal,
para atuar dessa forma a pessoa tem de ter um mínimo de
autoconhecimento – Saber exatamente quem é, o que quer e ter
ao menos uma vaga ideia de para onde vai. Quanto maiores
estes conhecimentos sobre você, melhor desempenhará estes
44
passos e terá maior poder sobre si próprio.
...
Tentando escrever alguma coisa para passar o tempo, só que
hoje está difícil. O vazio está tão grande que não permite. Desde
que comecei a escrever por aqui, essa é a primeira vez que
acontece. Havia conseguido recuperar essa capacidade de bastar
sentar na frente do papel e abracadabra.
Mas a vida é assim.
Nem sempre a magia funciona.
...
Hoje a tristeza, a angústia e a irritação estão possuindo cada
parte do meu ser. Um mal estar medonho. Um dos piores dias.
Muita depressão. Chego a conclusão que caí em mais uma
armadilha vindo para cá. Que o que sinto tão tem cura e que
serei apenas rotulado, carimbado e estarei cada vez mais no
sistema. Isso está me deixando muito mal. Esse monte de veneno
que eles estão me entupindo não pode me curar do que sinto e
do que sou. Quanta irresponsabilidade estar escrevendo isso
sem nenhum embasamento. Um idiota qualquer pode ler e sair
repetindo por aí. Mas não estou nem aí e não tenho compromisso
com nada nem com ninguém. Se a pessoa não tem cabeça para
pensar por si, então foda-se. Só de escrever essa ressalva, penso
se realmente acredito no que estou dizendo. Não sei. Estou muito
confuso, a deriva nesse mar de melancolia e frustração. Mas é o
que estou sentindo. Vou me meter sob os cobertores e me asfixiar
o suficiente até o amanhecer. Ficar sufocado nessa maldita
depressão. O lance desse documento é registrar o que um cara
sente nessas condições e é isso que sinto nesse momento. Me
sinto no mesmo infortúnio, no mesmo inferno, só que os
remédios deixam pior. Tirei folga de alguns dias devido a
mudança de ambiente, mas estou de volta a antiga forma. Esta
é a minha verdade e não tenho como fugir dela. É o que estou
45
sentindo, embora preferisse sentir outra coisa.
...
Acordei cedo e tentei dar uma volta pelo restrito espaço que
temos liberado para caminhar. Tentei conseguir um lápis, mas
ainda era muito cedo para adquirir tal artefato. Há pouco tinha
clareado o dia e aqui se tem hora para tudo. No telejornal matinal
só passava bobagem. Parece que nada sério acontece no mundo.
E viva o carnaval, anunciava o apresentador. Parece que
reuniram os funcionários mais preguiçosos para trabalhar
naquele dia. Prepararam o café deles e nós esperando o nosso.
Disseram que o nosso é responsabilidade das cozinheiras e que
estavam esperando trazerem. Ao invés de ficarem esperando,
podiam ligar para o setor reclamando que o nosso café estava
atrasado, mas não se dariam ao trabalho. Nós que esperássemos.
Então a coisa de tudo ter hora era uma questão de conveniência
para eles? Ficavam jogando conversa fora e dando risadas em
volta de suas xícaras fumegando, enquanto os pacientes que já
haviam acordado morriam de tédio. Recém acordados,
estávamos em um verdadeiro estado zumbi. Isso foi ampliando
minha situação depressiva que se instalou com força total. Voltei
para a cama e me cobri, ficando assim, sem ingerir nada além
da medicação, até a hora do almoço, quando consegui comer
um pouco. Nesse momento passei pelo psicólogo e falei
rapidamente sobre meu estado de espírito atual. Ele falou que
amanhã sentaríamos para conversarmos melhor. Como as
conversas com ele tem surtido um ótimo efeito, o negócio é
segurar firme até lá.
...
Não está fácil a coisa. Não consigo ficar bem sentado, deitado
ou em pé. O desconforto é extremo. O vazio do lugar não ajuda
e reflete muito do meu vazio interno. Muitos receberam alta e
outros que podiam desistir do tratamento pediram para ir
46
embora. O cara que se interna sozinho, sem ninguém levar, assim
como eu, pode fazer isso. Mais eu não queria fazer isso. Ainda
mais naquele estado de espírito. Mas não demorou muito para
começarem a chegar os novatos e pude matar o tempo
observando cada um. Alguns livros foram distribuídos pela
enfermagem, o que ocupou os pacientes de forma saudável.
Eram livros de boa qualidade e conteúdo relevante. Coisas que
valiam a pena ser lidas. A pior coisa é quando este tipo de local
recebe de doação só livros inúteis, que servem apenas para papel
reciclado.
Mas não foi o caso.
Na mesa de fundo o carteado estava animado ao som de algo
que tocava no radinho. No setor de tv o pessoal assistia a um
programa qualquer.
A confusão de sons naquele ambiente já não causava o caos
auditivo de antes. Muitas vezes estava rolando a tv, o rádio, o
violão, mas as vozes se esforçando para serem entendidas...
Realmente nos adaptamos a tudo.
...
Hoje acordei seis horas, muito bem disposto. Fazia tempos que
não acordava assim. Tive alguns sonhos rotineiros. Nada que
valha a pena ou que tenha causado algum efeito benéfico sobre
mim. O Mago acordou quase simultaneamente. Ficamos
conversando, deitados por algum tempo e depois levamos nosso
papo filosófico para o refeitório, deixando o coveiro dormir
mais um pouco.
Entre os vários assuntos debatidos, discutimos sobre o termo
maturidade.Aque propósito servia? o que exatamente queríamos
dizer com isso? Um exemplo seria quando falamos sobre um
bem ajustado no sistema de trabalho - produção e consumo.
Outro exemplo seria falar sobre aquele que perdeu a libido e o
frescor juvenil. Esses são os maduros? Fomos tecendo os casos
em que a expressão é usada e chegamos a conclusão que
47
substituiríamos a expressão por outras mais adequadas, abolindo
a tal maturidade do nosso vocabulário. Assim não correríamos
risco de sermos mal interpretados.
Estávamos assim, em nossos devaneios, até chegar a hora do
café. Depois de colocarmos algo na barriga e tomarmos um
banho, pedi um lápis e comecei este escrito. Hoje tudo estava
funcionando bem, dos funcionários a rotina local.
Impressionante como tudo
melhora quando tiramos o
barro dos olhos.
. Ou ao contrário?
...
A conversa com o psicólogo teve de ficar para outro dia. Ele
esteve por aqui de manhã, mas tinha uma verdadeira legião para
ele atender e alguns ficaram de fora, entre eles, eu. Queria poder
falar sobre o dia bom que estava tendo, como tudo virou de
repente, de um dia para outro. Tinha algo bom para contar, para
variar.
Ficará para a próxima.
Espero que tenha.
...
estilo de vida suicida
detalhe difícil entender
pelos caretas bem ajustados
escravos do sistema
submissos
escravos do poder
não conseguem acompanhar
não podem compreender
só abaixam a cabeça
só sabem obedecer
mas cuidado pelas ruas
quando a gente se cruzar
pois seus frágeis muros
não irão nos separar
pois suas gaiolas
não irão nos trancar
não terão tantas covas
para nos enterrar
...
48
“Tudo tem seu tempo certo de duração. Nada é para sempre.”
Me disse Toni Platão em uma inesquecível entrevista que fiz
com ele em um boteco do Jardim Botânico, no Rio de Janeiro.
“Sou a favor que as coisas acabem.” Disse no meio de sua
reflexão. Pois é bem assim que me sinto no momento. Estou
me sentindo ótimo e meu tempo na clínica já serviu a seu
propósito. E agora é cuidar dos meus demônios internos e do
mundo que me aguarda com tantos outros demônios. Fazer o
acompanhamento sugerido pela equipe. Faltam poucos dias.
Estou naquela coisa da contagem regressiva. Tanto evitei cair
nessa e aqui estou. Mas é que quando se está bem e não há mais
porque ficar aqui dentro, o cara quer sair. Sair do ambiente
institucional e voltar a fazer as coisas na hora que quero, não
quando mandam. Sair desse ambiente com ar condicionado
congelando os ossos vinte e quatro horas. Voltar a sentir um
vento no rosto, um ar fresco. Sem o ar condicionado o dia todo
entrando até pelo nosso nariz. É horrível só respirar esse tipo
de ar.
...
Mais um fim de tarde bonito visto pela janela da clínica. Parece
que sou o espectador mais assíduo deste espetáculo. Hoje as
nuvens estão escurecendo mais rápido e tem pequenos pássaros
voando para todos os lados. As luzes seguem acendendo
enquanto a escuridão desce pelas ruas.
Parece uma repetição, mas os detalhes fazem a diferença por
aqui, como já disse. Saber buscar isso é importante para quebrar
a rotina que nos massacra cotidianamente. Cada forma de
escurecer produz um novo espetáculo. Pegamos os pequenos
detalhes como ouro no garimpo. Isso nos impede de enlouquecer
nestes ambientes de confinamento. Isso nos mantém vivos e dá
certa sensação de estarmos livres.
Voam outros pássaros dando um rasante e subindo rumo ao céu.
Já está completamente escuro no momento
...
Esse gelo faz parte de uma das muitas coisas que não sentirei falta daqui.
49
Consegui passar o dia inteiro sem o menor sinal de depressão,
estou escrevendo bastante e ainda interagi com os outros
pacientes.
Tem um cara novo que curti bastante. Mago e Vinho já
conheciam ele.
Por vezes batia algum tédio devido as longas lacunas sem nada
para fazer. Infelizmente, coisa muito comum por aqui.
O não querer ficar por aqui, nem passar os dias sob os cobertores
e estar mais ativo é um bom sinal. Querer mais coisas para fazer
é querer estar atuante na vida, é saúde mental. Mais um ponto
positivo. Espero que continue tudo assim.
Já estava na hora do horizonte não
permanecer tão sombrio.
...
Eu
e eu sozinho
caminho sempre sem me encontrar
Eu
e eu sozinho
perambulo por aí sem me importar
Mas os seu lixo me parece vômito
Mas os seus restos estão em decomposição
Eu
e eu sozinho
com a raiva que me sustenta
Eu
e eu sozinho
e os caminhos que não sigo
Eu não sigo
Eu não ligo
E vou sempre sozinho
...
50
Já vão apagar as luzes e todos temos de dormir. É uma pena,
pois foi um bom dia e ainda estou cheio de energia. Por mim,
ficava até altas horas escrevendo poesias, relatos, pequenas
observações ou histórias corriqueiras. Enfim... Engordaria um
pouco mais essa... Engordaria essa coisa que estou fazendo.
Foi um dia realmente muito produtivo. Pena que já está tão
perto do fim. Quando abri os olhos às seis horas, vi que estava
tudo diferente. Ao despertar, percebi o quanto estava bem.
Que venham mais dias assim.
Tem horas que ficar só se fodendo na vida cansa. Não tem nada
de legal em se foder tanto na vida. Podem acreditar.
Não tem mesmo.
...
Queria estar deitado
Tendo apenas o céu como teto
O
vento batendo
Longe desse frio que dói nos ossos
...
Mais um dia que acordei legal. Acho importante explicar que,
para mim, estar bem não é estar distribuindo flores e vendo
tudo com óculos de lentes cor de rosa. Se me verem por aí desse
jeito, podem me mandar de volta para a clínica. Minha luta é
contra essa depressão monstra que me assalta e toma conta de
mim. O troço imobiliza e deixa o cara como um fiapo velho,
atirado e sem esboçar qualquer reação. É uma batalha infernal
contra esse demônio. Com os outros vivo bem. Hoje mesmo
estou me sentindo ótimo, mas cheio de raiva e rancor de certas
situações do mundo que não me transmitem qualquer outro
sentimento. Isso faz parte do meu estar se sentindo ótimo. Estar
são o suficiente para olhar em volta e ver este mundo desgraçado
51
em que vivemos como ele é. Ou então perceber o quanto as
pessoas se tornam socialmente desprezíveis enquanto tentam
ser socialmente aceitas, se enquadrar bem no sistema e ser o
chamado bem sucedido.
Para isso tudo fica o meu mais saudável desprezo.
...
A lua parecendo uma risada
Mas que por vezes também chora
Com uma fome canibal
O vampiro sedento e marginal
Por trás dos muros
Oculto pelo nevoeiro
Tantos mortos
Tantos assassinos
Vão encher as páginas do jornal
Tantas vítimas
Tanto sangue
Vão tingir as páginas matinais
...
Tem uma enfermeira nova que está bem dentro do padrão de
beleza aceito pela maioria. Fico impressionado como os homens,
tanto funcionários quanto pacientes, começam suas patéticas
danças do acasalamento, com débeis trejeitos que matariam um
orangotango de vergonha. Não que tenha algo contra as
paqueras, mas é o ridículo do ser humano em si que me cansa.
Como ele se move, como age e, principalmente, quando se acha
importante.
...
As psiquiatras estão fazendo um bom trabalho com as
medicações. Não são muito boas com as consultas e conversas,
mas estão usando as drogas certas para ajustarem meu cérebro.
52
Parecem estar chegando cada dia mais perto do meu equilíbrio,
sem neutralizar minha personalidade. Continuo ácido, amargo
e revoltado com a sociedade e visceralmente crítico, mas sem
deixar a maldita depressão me transformar em um monte de
lixo. Estou achando perfeito assim. Só espero não depender
destes medicamentos por muito tempo, pois o cérebro não
funciona do mesmo jeito com eles. Percebo a diferença. Mesmo
de uma forma sutil, consigo perceber. Me falaram que é só no
período de adaptação.
Vamos ver
Entre os grupos e as rotinas do dia, o tempo vago faz o dia
parecer eterno e enche tudo de tédio. A sensação de vazio é
angustiante e torna os dias de pessoas mais ativas insuportáveis.
Muitos ficam andando de um lado para outro ou insistem para
ganhar medicações extras para dormir. Não há jogo de cartas,
violão ou tv que dure pra sempre. Agora que estou melhor e
não quero passar os dias soterrado nos lençóis e cobertores,
escrevo até cansar a mão e os dedos doerem. Não sei se vou
usar tudo que estou escrevendo, ou como organizarei isso, mas
não encontro nada melhor para fazer no momento. Por vezes
interajo um pouco com os demais, mas minha paciência é pouca
para as pessoas.Tem alguns com quem consigo um pouco mais,
contudo também tem um limite. Não é culpa das pessoas. Esse
negócio chato e cristão de culpa não cabe no papo. É questão
da minha natureza. Os botequins que frequento são os únicos
lugares onde encontro pessoas com quem consigo conviver. Não
sei como será agora ao sair da internação, já que pretendo ficar
um bom tempo sem álcool. São lugares que, em sua maioria,
vendem apenas produtos alcoólicos. Provavelmente não
comparecerei a estes locais. Não sei se conseguirei isso ou se
existe uma pequena possibilidade disso acontecer. Talvez tenha
de construir um novo mundo, uma nova vida. Uma realidade
...
53
que ainda não faço a menor ideia de qual será.
Mas vamos uma coisa de cada vez.
Ainda terei de passar pelos últimos dias.
...
A noite anterior a internação foi algo muito além da tristeza
extrema. Estava me sentindo muito deprimido. Desci até os bares
e encontrei o pessoal todo reunido. Meu rosto estava a réplica
da lápide. Trataram logo de encher um copo e me passar. A
cerveja era o puro sabor da tristeza. Tentei empurrar uns goles e
a coisa não descia. Os amigos vinham me animar, mas por mais
que forçasse um sorriso, a impressão de quem me olhava é que
tinha tomado uma talagada de fel. Esperei se distraírem e saí
saindo. Dois mais ligados perceberam minha retirada estratégica
e falei que já voltava. Cheguei em casa, fui para o quarto e
pensei sobre a batalha que já travava há muito tempo contra o
mal que me afligia. Não conseguia mais lutar contra aquilo
sozinho. Já faziam anos que tentava vencer a depressão e estava
perdendo feio. Não suportava mais a dor, a angústia e tudo que
vem junto. Era muito sofrimento pesando sobre minha carcaça
e estava desistindo de viver.
No dia seguinte, depois de uma noite horrível e mal dormida,
levantei logo cedo e fui em busca de ajuda. Cheguei ao serviço
onde já sabia que conseguiria um encaminhamento para
internação e expliquei sobre meu caso. Daí já fui levado para o
setor que funciona como uma internação provisória, enquanto
você espera a vaga em uma clínica ou algo que o valha. Ali eles
vão te distribuindo para os locais adequados, mas enquanto isso
você já vai recebendo as medicações e certo acompanhamento.
Fiquei três ou quatro dias neste setor, se não me engano. Dali
fui transferido para a clínica onde estou.
É bom lembrar isso agora que estou me sentindo muito melhor
e já chegando na reta final. Dentro de pouco tempo estarei
54
passando pela mesma porta por onde entrei. Parece que fazem
meses.
...
Acordei com uma enfermeira me chamando para medir meus
sinais vitais. Era uma rotina que se repetia algumas vezes no
dia, em intervalos regulares.Acordei bem. Estava tudo ok. Para
melhorar, ela era uma das enfermeiras legais e fazia parte da
equipe do dia. Tive uma boa noite de sono. Dormi até mais que
de costume. Enquanto ela encaixava o oximetro em meu dedo,
lembrava do sonho que tive. Nele eu estava tomando uma
cerveja no bar do Moa e um vocalista de uma banda que curto
bastante tomava um traçado na outra ponta do balcão. O Bar do
Moa era maior que na vida real e aconteciam várias situações
divertidas enquanto interagíamos.Achecagem dos meus sinais
vitais deu tudo certo e meus companheiros de quarto foram
sendo chamados para passarem pelo mesmo processo. Fui dar
aquela caminhada de sempre até o refeitório enquanto lembrava
mais detalhes do sonho. Pelos enfermeiros que passei pelo
caminho, pude observar que o plantão seria composto em quase
sua totalidade por uma equipe gentil, que compreendia bem o
seu trabalho. Isso era realmente um bom presságio. Olhei pela
janela e vi o que parecia uma pintura de tão bonito.
Pena que as malditas janelas não abriam.
Mas não ia deixar que nada estragasse o meu
domingo perfeito.
...
Gritos pelo dia
Gritos pela noite
Nada consegue nos parar
Nem as correntes
Nem os muros
Se matarem vinte
55
virão quinhentos
Nem as baratas
têm um exército tão eficiente
Nos multiplicamos nas sombras
Criados pelos seus escombros
Somos frutos de suas mentiras e traições
Somos os gemidos de sua sociedade decadente
que adoece os irmãos
Doença que vem dessa perversa competição
...
É de se pensar que quanto mais sai, mais chega. Parece existir
uma fila gigantesca esperando para se tratar dos mais diversos
males psíquicos. Neste momento a depressão não é mais a
maioria por aqui. Temos uma diversidade maior de problemas.
Existem alguns que já passaram por várias internações e ainda
retornam buscando ajuda. Várias idades e classes sociais. A
maioria estaria por aí, vagando em seu sofrimento, se não
existisse um serviço público que lhes desse apoio. Muitos destes
males são causados pela própria sociedade. Daí não vejo estes
serviços públicos como caridade ou bondade, como muitos
vêem. São uma obrigação social.
UMA SOCIEDADE MAIS SAUDÁVEL SE FAZ
NECESSÁRIA COM URGÊNCIA!
...
Uma das preocupações que tive quando decidi pela internação,
foi de mexerem na minha cabeça e me deixarem como aquelas
figuras que acham todo mundo bom e que tudo são flores. Mas
deu certo. Mexeram só no que devia. Continuo ácido e corrosivo,
mas sem a maldita depressão paralisante. Que coisa boa estar
sem a companhia dessa doença desgraçada. Faz realmente muito
tempo que não me sinto como nestes últimos dias. Tiraram só o
que me atrapalhava. Estou só um pouco ansioso para ver como
56
isso vai funcionar lá fora. Estou meio confuso na contabilidade
e não sei se é hoje ou amanhã meu último dia. Como não temos
médicos aqui aos domingos, terei de esperar até amanhã parar
tirar a dúvida sobre minha alta.
...
Mais um dia passa
com o tempo passando na minha mente
contando os segundos
para voltar
só não sei para onde
mesmo assim quero voltar
talvez para onde nunca estive
Tomara que exista um lugar
para onde possa voltar
onde possa estar
e possa ficar
Muitos aqui não tem
e é aí que mora o perigo
do vazio voltar
e a lágrima jorrar
mas é preciso acreditar
e seguir em frente
e fazer o que tem de ser feito
e nunca parar
Tem tantos jovens
já sofrendo o abandono do ser
sem nunca ter conhecido
o aconchego existencial
mas não podemos nos entregar
pois nos destruir é o que eles querem
É preciso estar de pé
e sempre continuar
e não desistir Não sejamos mais um a tombar
...
57
Levantei ansioso em um dia que mal havia despertado. Refiz as
contas junto aos companheiros de quarto e confirmamos. Era
meu vigésimo primeiro dia de internação. Fui para um local da
sala onde via a porta de acesso e fiquei esperando uma das
psiquiatras ou a assistente social chegar. Uma enfermeira,
daquelas que primam pela ótima qualidade de seu trabalho,
perguntou como estava e veio medir meus sinais vitais. Respondi
que estava mal do estômago devido a algo que não havia caído
bem no jantar. Enfatizei que o pior, o que estava pegando mesmo,
era a vontade de falar com alguém sobre minha alta. Ela foi à
sala de enfermagem e voltou com a notícia que eu realmente
cheguei ao vigésimo primeiro dia de internação, então amanhã,
no vigésimo segundo, eu seria liberado. Vinte um dias ali, com
mais três ou quatro esperando a vaga... Vinte e quatro ou vinte
e cinco... Não iria entrar em desespero por mais um dia. Mas o
que não dava para entender é porque algum dos outros plantões,
vendo minha ansiedade, não fez o que essa pessoa fez agora.
Daí eu já saberia o dia certo e evitaria ansiedade e frustração
desnecessária. Era só gastar menos de dez minutos, como ela,
para olhar algo que simplesmente estava escrito em algum lugar
pela salinha deles.
É realmente frustrante quando estamos em confinamento e chega
a notícia que ficaremos mais cinco minutos que sejam. Imagina
mais vinte e quatro horas. Só quem está na situação que sabe.
Mas tudo bem
Que venham as próximas vinte e quatro então.
Mais um round.
...
BLING BLING
Queria dizer
o indizível
que está preso
em minha garganta
e você nem imagina
e se espanta
Soltando a bílis
A hemorragia não estanca
O ciclo se rompe
mas a fala não tranca
58
A psiquiatra e a assistente social chegaram e começaram a
organizar as altas, entradas, entre outras coisas. Embora a
enfermeira já tivesse adiantado a notícia, ainda não tinha ouvido
da própria médica e a menos de uma semana tive uma crise
terrível, uma das piores. Passei o dia embaixo dos cobertores e
não comi ou bebi praticamente nada.Apenas tristeza, amargura
e pensamentos negativos. Sabia que isso podia por em cheque
minha saída.
Eu já estava bem e o problema de permanecer mais tempo que
o necessário em uma internação é que, á partir do momento em
que estamos bem, sentimos a necessidade de retomar nossa vida
e o espaço começa a ficar cada vez mais tedioso porque você
está ativo. Quando o cara está mal, a cama dele é todo o espaço
que precisa, mas recuperado o papo é outro.
Contudo ocorreu tudo bem. A princípio ela demonstrou o já
esperado receio, mas depois viu que os últimos dias foram
suficientes para minha recuperação. Ela havia feito um novo
ajuste nas medicações e tal... Saí da sala com a combinação que
no dia seguinte, pela manhã, seria liberado.
Estava muito satisfeito, mas ainda tinha o dia pela frente.
Queria que passasse o mais rápido possível.
...
O tempo até a conversa parecia nunca passar. Depois, não andou
mais rápido. Conversei um pouco com os colegas de quarto e
tentei dormir para ver se acordava já no final do dia. Não deu
certo. Levantei e encontrei Vinho e pedregulho, um cara que
chegou fazia pouco tempo e com quem tinha muito em comum.
Eles estavam tocando uma viola no refeitório. Sentei junto e
fiquei por ali. Depois de não ter mais o que inventar para fazer,
a noite começou a chegar. Tomei a medicação e me deitei assim
que pude.
...
59
Levantei cedo e fiquei na espera.Após um tempo que me pareceu
exagerado, eis que chegou minha hora. Já estava com tudo
pronto. Este livretinho escrito a mão em um bolso, a escova e
pasta de dentes no outro, e as roupas separadas. Saí por aquela
porta pensando em nunca mais voltar, mas com a consciência
de que foi importante pra mim a decisão de me internar. Estava
saindo como há muito não me sentia. O tratamento havia sido
muito bom pra mim.Agora é mergulhar no mundo e ver no que
dá.
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Este zine ganhou o prêmio Fanzine
2016, no segundo Gibifest de Alvorada,
em 2017. O Reboco Caído circula em
versão impressa e digital, já conta com
mais de dez anos de existência e passou
do número 60. Além do trabalho solo,
Fabio atua em coletivos e fundou com
Diego El Khouri a Editora Merda na
Mão.
Livros:
*Um Ano de Berro – 365 dias de fúria
Editora Independente, Brasília, 2010
*Reboco Caído – Reflexos e Reflexões
Coisa Edições, Rio Grande do Sul, 2014
*Salada Cascuda
Candeeiro Cartonera, Pernambuco, 2016
*Palavras Marginais
Porto de Lenha, Rio Grande do Sul, 2016.
*Vomitando sangue
Candeeiro Cartonera, Pernambuco, 2018
*Futuro Cemitério
*Poesia Podre
Editora Merda na Mão, Sistema Solar, 2020 e 2021
Armazém de Quinquilharias e Utopias, Rio de Janeiro, 2019
*Linhas Indigestas – coisa forte e direta
Lumos, Curitiba, 2020
*Fábrica de Cadáveres – Do forno ao moedor

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  • 2. A DOR DOS QUE SENTEM Diário dos abandonados pela felicidade Por Fabio da Silva Barbosa Editora Merda na Mão - Publicando os Impublicáveis - março de 2023
  • 3. Apresentação Fabio da Silva Barbosa é daqueles autores que a gente nunca sabe o que esperar. O cara já lançou poesia, contos, distopia, sagas urbanas... E os formatos de seus trabalhos também variam. São e-books, jornais, zines, livros... Ter de citar todos os estilos e formatos seria promover uma lista desnecessária para quem acompanha a extensa obra deste autor do submundo. A DOR DOS QUE SENTEM - DIÁRIO DOS ABANDONADOS PELA FELICIDADE me foi enviado por ele e devorei em algumas horas. Passei minhas impressões logo a seguir e ele pediu para que fizesse uma pequena apresentação. Disse que estava mesmo querendo escrever sobre e que faria de uma tacada só, como um jorro. Orientei que depois fizesse a revisão. Ele me respondeu: “Que revisão? Manda e pronto. Esse livro é o próprio jorro ao qual você se referiu” Em menos de uma hora digitei e enviei para seu e-mail. O livro é tenso, obscuro e direto, características sempre presentes nas construções do autor e que desta vez nos leva para dentro dos labirintos do cérebro de um paciente em uma clínica psiquiátrica. O paciente em questão está sofrendo de depressão e podemos acompanhar o diário de seu suplício em busca de recuperação. Fabio mantém o pensamento humano como é, sem embelezar. O personagem escreve em seu diário de acordo com o momento. Tem relatos em forma de registros simples, assim como, por vezes, a comunicação se dá através de verdadeiros poemas ou reflexões. Não poderia ser diferente, já que o personagem autor se trata de um poeta encharcado de depressão e dor. Fui completamente sugado para o interior deste espírito atormentado e seus dias de tédio e agonia, onde as vezes vê alguma chance de melhora e em outras acredita que está tudo perdido. Fui para baixo de seus cobertores quando estava
  • 4. . tentando se isolar do mundo e andei com ele de seu quarto para o refeitório, que também funcionava como sala de atividades. Acredito que a A DOR DOS QUE SENTEM é um livro fundamental para entender a depressão, esse mal que afeta a tantos hoje em dia, do ponto de vista de quem está sofrendo da enfermidade. Também é uma oportunidade para sabermos o que se passa no interior dos pacientes durante a internação e como eles sentem o tratamento. Preparem-se, pois o que está por vir é coisa forte. Se você não se sensibilizar, é porque está morto. Índio Louco Março de 2023 Em algum lugar do centro oeste do Brasil
  • 5. Este livro é dedicado a todos que lutam corajosamente contra a depressão e em memória dos que infelizmente perderam a batalha
  • 6. 9 Carta a um amigo Querido amigo Na última vez em que nos falamos, mandei a mensagem dizendo que tentaria uma internação, pois não estava aguentando mais e perdendo feito a luta contra a depressão. Lembro que você respondeu caramba, ou algo assim. Já faz tempo, né? Não lembro exatamente quanto. Nem sei que dia é hoje. Não sei qual dia da semana ou do mês. Lembro que foi em uma manhãzinha dos últimos dias de janeiro. Como tenho a mania de não colocar data nas coisas, também não saberei quando escrevi esta carta, mas, quando voltar, levarei comigo este monte de palavras que começo a escrever. Nestas páginas, tentarei descrever a agonia e o desespero dos que lutam contra os suplícios psíquicos. Os textos não estarão divididos necessariamente em dias, mas em pausas. Como já comecei a escrever alguma coisa antes desta carta que será de abertura, já senti o clima da coisa. Por vezes paro e recomeço três vezes em uma mesma manhã. Ia escrevendo quando me dava na telha. Cada três pontinhos marcará uma pausa. Explico para que fique minimante possível, para você e os demais que vão ler, entenderem a lógica que usei. Uma pausa podia durar dias ou minutos então? Sim. O importante neste trabalho é acompanhar o processo que ocorre entre cada pausa, após o tempo passado, o tempo para cada um e o fluir dentro da mente do enfermo. Gostaria também de estender esta carta a todos que acompanham meu infortúnio e tentam ajudar de alguma forma. Um grande salve a todos vocês. Ah, sim... E como poderia esquecer. Um grande foda-se para os que me viram caído e se aproveitaram para pisar em cima. Vocês são uns merdas! ...
  • 7. 10 indo cada vez mais fundo no poço sem fundo que nos engole, degola e tritura caindo já fragmentado no labirinto infinito aquele labirinto já conhecido de corredores sem saída e portas trancadas corredores estreitos e escuros muros altos e escorregadios impossível transpor ou ver o que tem do outro lado os casulos não permitem a entrada de uma gota de luz que seja apenas o cheiro da carniça o odor da putrefação o odor do futuro sombrio que nos aguarda suga e perfura podemos ainda reconhecer algo de nossos restos entre a carne disforme que se amontoa pelos cantos servindo de alimento e ninho para seres abjetos o buraco em espiral regurgita cada parte do que poderia fazer algum sentido mistura, embaralha, destrói podemos reconhecer então alguns detritos de ossos partidos e nada mais ...
  • 8. 11 De novo alguém me acordando. Não sei se é manhã tarde ou noite. Tento me localizar. Olho para o fundo do copo que me entregam. Tem um laranja, um branco e um amarelo. Jogo o conteúdo do copo em minha boca e tomo a água que vem junto. Não consigo associar com clareza, ligar o que está sendo servido com a hora. Alguém diz que já está na hora do café e que depois vai rolar banho. Então inicia outro dia. Por vezes até eu consigo ver algo de positivo na vida. Afinal, se vai começar outro dia é porque falta um a menos ... O espaço é bem simples. Em cada quarto cabem três e tem um banheiro. Saindo do quarto é um corredor onde não se pode ficar parado. Ele é apenas passagem dos quartos para o refeitório e sala de televisão. O refeitório também serve como sala de atividades e o pessoal se reúne ali para conversar, jogar cartas e coisa e tal. Nestes primeiros dias tenho usado muito pouco os espaços, a não ser quando é hora de alguma coisa específica, como me alimentar. Fico bastante na cama, de preferência embaixo dos cobertores para me isolar do mundo. Não tenho vontade de travar amizades.Agora que estou escrevendo, tenho saído mais do quarto, pois o lápis só pode ser usado na área do refeitório, quando não estão sendo servidas as refeições. Como escrever é uma atividade solitária, continuo sem fazer contatos. Como o pessoal do meu quarto também não é de muito papo, está ótimo assim. Pelo menos recebo os adesivos de nicotina, já que não se pode fumar. Dizem que estes adesivos não
  • 9. 12 funcionam e que é psicológico. Para mim está funcionando bem. Não é legal no dia que por algum motivo não me dão. Os banhos são sempre pela manhã. Agora está bom de escrever. Estou cansado. Mas não é o cansaço como a maioria conhece. É um cansaço diferente. Nem sei se é cansaço isso. Vou voltar para o cobertor. ... Duas coisas difíceis por aqui são a falta que fazem meus óculos e conseguir um lápis. Só fornecem o lápis com algum enfermeiro no ambiente e tenho de devolver logo após o uso. Como nunca lembro pra quem devolvi, fica difícil quando vou pegar de novo. Essas medicações deixam minha mente mais confusa que já é. Mas entendo a coisa de devolver o lápis. Esta pequena ferramenta feita para escrever, tem outras utilidades. Já vi um cara arrancar o olho do outro durante um jogo de dados ... Ou estou escrevendo, ou embaixo dos cobertores. Já troquei algumas palavras com alguns companheiros de suplício, mas continuo muito deprimido para me relacionar. Prefiro ficar submerso nos cobertores torcendo para o sono chegar. Quando a angústia e a ansiedade ficam muito intensas, posso pedir a medicação extra para apagar. Meu companheiro de quarto que deu o toque. Ele sempre pede uma. Hoje está uma agonia só. Talvez seja o dia de pedir a minha. ... A chuva começou a cair lá fora com um barulho calmante. Os pacientes conversam tranquilos pelos cantos. Um dedilha o devido a algumas discordâncias quanto as anotações.
  • 10. 13 violão de forma completamente desconexa com a letra que murmura sem sentido. Alguns falam em jogar cartas, mas não conseguem chegar a conclusão sobre qual seria o jogo. Resolvi parar de escrever e apreciar as estranhas formas das gotas que escorrem pela janela. Nosso único contato com o mundo exterior são as duas janelas do refeitório. Elas não abrem. Foram feitas para ficar sempre fechadas. Senti falta de ar fresco e vento. Ficar respirando vinte e quatro horas de ar condicionado, todos os dias, não é agradável. Mas pelo menos conseguimos ter algum contato com o mundo através daqueles dois vidros retangulares. Parece que estamos em um aquário. Até daqui a pouco. Ou amanhã. Ainda não sei. Mas agora preciso ir. A chuva me chama. ... Encostado na parede, contemplo o que está rolando a minha volta, ao mesmo tempo em que retrocedo até um passado recente... E tudo com temperos medicamentosos. Antes de parar na clínica, estava em uma espécie de central, onde todos que passavam por algum distúrbio mental ficavam aguardando vaga para o local que melhor atendesse a sua dificuldade. Cada uma daquelas pessoas daria um livro. Entre todos que lembrei, por algum motivo que não sei qual, resolvi escrever sobre uma senhora que todo dia se esticava em uma cadeira depois do almoço e cochilava. Dizia que era o momento de ter suas visões. Todo mundo evitava fazer barulho, porque ela acordava aborrecida. Resmungava que a acordavam bem na hora da revelação. Uma vez, outro paciente sugeriu que ela voltasse a dormir para dar continuidade a revelação. Ela ficou ainda mais irritada, dizendo que não era assim que funcionava. Eram muitos casos curiosos e só de terminar de contar esse já me vem uma enxurrada de outros que trariam luz a aspectos humanos que vem a tona em certas circunstâncias. Algum dia, se estes casos continuarem a rondar minha memória, como estão
  • 11. 14 neste momento, falo mais sobre minha passagem neste local. ... Agora não quero perder o foco das gotas que continuam escorrendo pelos vidros da janela. Não há nada de romântico, belo ou engraçado na tristeza, na loucura. É algo terrível, feio demais, que vai nos incapacitando de fazer as coisas mais simples e básicas. Vai nos afastando dos demais e os demais não desejam nossa companhia. Fica-se completamente só. É horrível ser tomado pela melancolia dessa forma tão extrema. Fico deitado por horas, de olhos fechados, apenas desejando o silêncio. É como desejar o sono e muitas vezes a morte. E você ali, deitado, coberto dos pés a cabeça, como se estivesse enterrado. Muitas vezes nem pensamos nisso, pois também não queremos pensar. Ficamos apenas ali, deitados, encolhidos em nós mesmos. ... Uma das piores coisas de estar aqui é a vontade de fumar. Tem momentos em que estou fazendo algo, ou até não fazendo nada, como na maior parte do tempo, e chego a me ver dando uma tragada daquelas no meu cigarro predileto. É como se estivesse vendo a coisa em um telão. A fumaça quente e cancerosa enchendo meus pulmões. Dou um leve sorriso de satisfação e saem os rolos de fumaça pelos meus lábios. Pareço estar pleno, atingindo o nirvana. Consigo sentir. Vício desgraçado. ... Depois de alguns dias de chuva (um, dois, três... Não saberia dizer quantos), temos um final de tarde sem. Embora sinta falta da melancolia chuvosa, gosto do por do sol visto daqui. O céu e suas nuvens adquirem um tom laranja avermelhado que lembra
  • 12. 15 o fogo. Os barracos ao longe vão acendendo as luzes.Aos poucos o morro vira um mar iluminado. Manto de pedras preciosas. E quanto mais o céu escurece, mas a luz toma conta de tudo. ... Estou começando a ficar um pouco mais fora da cama. Devo estar começando a reagir melhor ao tratamento. Não volto mais tão rapidamente para debaixo dos cobertores. Não que já esteja uma beleza, mas... É só que dou uma circulada pelo refeitório/ sala de atividades, troco olhares significativos com os companheiros de infortúnio e estou escrevendo sempre que consigo um lápis. Só de sair mais do quarto, caminhar pelo corredor e chegar a salão onde funciona a sala de TV e o refeitório/sala, já é algo muito diferente na rotina de alguém que está nesse universo. Mesmo que seja por pouco tempo. Comecei também a lembrar dos sonhos que tenho tido. No início da internação eram apenas apagões, agora entro no acordar saindo suavemente dos braços de Morfeu. Inclusive amanheci com um RAP pronto, voando em meu crânio, mas a maldita dificuldade em conseguir um lápis fez a coisa dispersar. Comecei a tentar conseguir a ferramenta não eram oito horas. Ele me chegou as mãos já haviam passado das dezesseis. Ficou apenas o refrão: Tem dias que é prosa tem dias que é poesia tem dias que é só tédio e melancolia ... Hoje foi o dia de fazer a barba. Na verdade, foi o dia de tentar fazer a barba. Descobri que os aparelhos que nos são oferecidos são muito ruins, principalmente para barbas como a minha, muito espessas. Resolvi que só voltarei a esta atividade após o retorno para casa.Até lá... uma longa couraça de pelos irá cobrir minha face já há muito carcomida pelos dissabores da vida.
  • 13. 16 ... Não sei se é sexta ou sábado e ainda não encontrei quem soubesse informar. Não me animava travar qualquer tipo de contato com as pessoas que poderiam responder ao enigma com precisão. - Aí fica difícil, não é Fabio? – Ouvi dentro de minha cabeça. - Sim... Sempre foi assim. Ser fácil ou difícil nunca foi a questão. – Respondi para o meu cérebro. Acabei descobrindo, mas... Sejamos sinceros... Que diferença faz. O importante é que o calor que atravessa o vidro da janela está aconchegante e aliviando as dores dos meus velhos ossos. A claridade solar que atingia uma pequena parte da mesa demarcava onde o calor atuava. Era uma pequena região onde podíamos nos refugiar do gelo maldito daquele ar condicionado. Olhei para a sombra que cobria a maior parte do espaço. Penumbra que sempre tive como única companheira. Ela estava sem a minha companhia dessa vez. Hoje me reúno com o dia, a luz. Que sujeito traiçoeiro e vil eu sou. Que apunhala sem compaixão as costas da amada escuridão. Mas também não prometi nada e, se prometi, outra vez menti. Que canalha ordinário eu sou. Sempre o velho egoísta. ... Agora que descobri, tenho sempre buscado este cantinho para escrever. Mudo apenas quando já está ocupado. Quando isso acontece, fico de olho para reocupá-lo assim que possível. Dá para me aquecer enquanto escrevo e posso ver o céu quando levanto a cabeça. Um céu lindo, cheio de nuvens psicodélicas,
  • 14. 17 unindo a luz e a escuridão. Por estes dias tenho apreciado este espetáculo. A luz que atravessa o vidro também ajuda muito na falta do óculos de leitura. Ficamos como cegos apertados para mijar, tentando desesperadoramente não molhar os próprios pés. Qualquer rastro de luz ajuda. ... Cansado de olhar o céu, pois até as mais belas visões tem a capacidade de me entediar rapidamente, estico o pescoço e vislumbro os prédios, favelas e áreas verdes que se misturam em meu campo de visão. Como a clínica fica no alto, estas janelas podem captar uma vista bem ampla da cidade. Alguns pássaros típicos da regiam cortam a paisagem com alegria. Parecem gargalhar enquanto surfam no céu. Ficando de pé, observo os telhados que cercam o lugar, seus detalhes e o lixo que se acumula no terreno baldio ao lado. Na tv passa um jogo de futebol. Parece uma partida importante. ... Em dias como hoje volto a ficar submerso nos cobertores, sem ânimo para nada. Ultrapassar o corretor para chegar ao refeitório/sala e escrever estas linhas é um ato que exige extrema força. Já tem uma rapaziada acostumada a me ver silencioso em meu posto, escrevendo. Quando não apareço por lá, alguns que estão se aproximando aparecem na porta do meu quarto avisando que o lápis já pode ser liberado, em uma clara tentativa de me animar. Um deles é o Mago, também do Rio de Janeiro e que em suas andanças veio parar no Sul. O outro não lembro o nome, mas sei que gosta de passar seu tempo colorindo desenhos que escolhe e pede para imprimir. Ele é muito bom nessa coisa de colorir. Com os escassos materiais que temos por aqui, consegue dar várias tonalidades de acordo com a pressão ou Coisa que nunca me interessou
  • 15. 18 posição do lápis sobre o papel. Cada um encontra sua forma de não ser engolido pelo tédio. Chegou um cara novo que é bom no violão. Até então o instrumento ficava parado de canto e por vezes alguém pegava e fazia um animado noise, Mas este novo conviva embalou aos que estavam presentes com sons que iam de Deep Purple até Bob Marley e Legião Urbana sem perder a energia. Tinha música que ele não tocava inteira e algumas, como a do Deep Purple, era só a introdução. Mas tudo bem. Foi o suficiente para o momento. Brincou que ia tocar uma do Dead Kennedys, mas era só brincadeira. Uma pena. Tocou então algumas do Raul, que o Mago acompanhou cantando para ajudar.Atendeu a alguns pedidos que sabia. Ele e oMago já se conheciam de outras internações. Seu nome era Vinho. Na verdade, estou inventando estes nomes para evitar expor alguém que não queira. Enquanto isso me dividia entre apreciar a apresentação e escrever estas linhas que você está lendo. Por vezes alguém encostava curioso ao meu lado e perguntava “Que carta é essa que nunca acaba?”, ou então “O que você tanto escreve aí?”. Daí explico, da forma mais resumida possível, sobre minha obsessão pela escrita e como isso ajuda a me organizar internamente, a dar um sentido para as coisas. Digo que ainda não sei se estou escrevendo um novo livro, apenas exercitando as ideias, passando o tempo ou criando lixo. Por vezes me olham como se não houvesse a menor diferença entre as opções dadas. Penso que somos autores personagens de nós mesmos. Uma mescla fusão. Coisa que não me sinto interessado em divagar sobre no momento. Isso não é o mais importante. ... de fato. Talvez nada seja Quando a depressão está nos rondando bem de perto, ao ponto de sentirmos seu hálito de carniça aquecendo nossa nuca, fica tudo mais difícil. Todo cuidado é preciso para que ela não
  • 16. 19 retire mais um naco, deixando outro contorno gangrenando, necrosando. A depressão é o tipo de predador que após sentir o sabor de sua presa, fica sempre na volta, querendo mais. É sempre bom lembrar. ... Hoje foi um dia especialmente difícil. Daqueles em que para se virar na cama já é um esforço descomunal. Levantar-se então... fica impossível. Estou nestes altos e baixos. Há dias e dias. Nestes momentos, onde a depressão fica profunda, podemos observar detalhadamente cada pedacinho de tudo que nos cerca. Você fica íntimo de cada mancha de mofo, de cada pedaço mal pintado. Quando abri os olhos, estava em decúbito lateral e assim fiquei até o ombro começar a doer. Estes colchões ajudam nesse processo de fazer doer quando se fica muito tempo em determinada posição. Quando a dor ficou insuportável, fiz um esforço descomunal e mudei o campo de visão. Fiquei assim até o próprio infinito. Passado esse tempo virei para o outro lado. Daí a ficar de pé foi a própria Guerra dos Cem Anos. ... Peguei a tarde para ler tudo que escrevi até aqui. Risquei umas partes e mudei outras. É realmente muito difícil escrever neste estado. Achei que estava perdendo um pouco o rumo e a coisa foi ficando meio patética, mas retomei o fio da meada. Nem preciso lembrar o que foi fazer isso sem meus óculos. Fiquei com náuseas e dores de cabeça com o esforço. Chega de trabalho por hoje. ... Minha relação com os sonhos voltou a mudar. Agora eles acontecem cada vez mais vivos, reais, e quando acordo no ambiente branco e repetitivo da clínica, fico em dúvida do que
  • 17. 20 é realmente real, qual é a verdadeira verdade. É uma confusão que dura pouco. Logo a dureza gélida do branco se impõe como o frio verídico a despedaçar nossos sonhos coloridos. Ao menos já faz uma temporada que não tenho pesadelos. ... Tem um pessoal recebendo alta. Não estou com a menor pressa. Não que aqui seja uma beleza (longe disso). É um monte de merda, como qualquer lugar que se vá, como todo lugar desse mundo desgraçado. Sair daqui seria ir ou voltar para onde, quem ou quando? É como não ter destino além daqui, mesmo teoricamente tendo. Esse papo mexe com meu lado mais emotivo e fico sensível. Os olhos se enchem d’água. ... A chegada dos novos pacientes não tem sido legal. Tem muito jovenzinho que gosta de ficar com cara de durão. Isso me dá uma vontade incrível de desmanchar aquelas caras a socos. Cambadas de bundas moles. Mas isso não é culpa deles. Se não fosse isso, seria outra coisa a me incomodar. Toda essa confusão de sentimentos. Não é fácil estar enlouquecendo. Nem eu mesmo me entendo. Passou um helicóptero na tv. Olhei para o céu tentando encontrar. ... Os últimos dias tem sido difíceis. Parece que nada que penso faz sentido. Só tristeza e amargura. Muita melancolia. A beira do precipício voltando a avançar em minha direção. Volto a ficar o máximo de tempo sob os cobertores, saindo apenas para
  • 18. 21 as necessidades básicas. Quando consigo escrevo um pouco. Vai aumentando aquela sensação que mistura tristeza, frustração, angústia, raiva, dor e vai saber mais o que. A vontade de fumar ainda é forte. Os adesivos de nicotina ajudam, mas quem é fumante sabe que a nicotina é apenas parte do problema. Tem um senhor aqui pedindo insistentemente um sedativo mais forte ao enfermeiro. Sei bem como é. Também queria passar mais tempo dormindo. Se possível, o tempo todo ... Tem horas em que a dor psicológica é tanta que vira física. Que a angústia domina cada membro e vira aflição. ... Hoje o Rei do Noise voltou a dominar o violão. De todos que pegam o instrumento para fazer um barulho, ele é o que mais me agrada. Não estou falando dos que pegam para tocar, mas dos que realmente curtem fazer uma arruaça sonora. Acho que sou o único que curte quando ele começa a espancar as cordas, murmurando em sua língua estranha. Também curto quando Vinho, que tem alguma noção da coisa, faz suas apresentações. Tudo tem o seu momento. Ou quase tudo, na verdade. O que que há? ... A essa hora com a cidade assim já escura
  • 19. 22 botecos, bocas e quebradas devem estar com a vida a borbulhar Os vapores da loucura fermentando criaturas como muitas das que aqui estão me atraem me fascinam Como será depois que sair daqui? Por enquanto me sinto como uma abelha presa em um pote de vidro vendo ao longe seu campo florido Na verdade ainda tento entender qual o problema ou se existe algum ... Acredito já estar há mais de duas semanas aqui. Agora começaram a fazer uma dinâmica chamada grupo. Não perguntei, mas obviamente tem esse nome por ser feita em grupo. Existem vários tipos de grupos. Existem uns de assuntos livres e outros mais específicos.Além dos assuntos, as formas de fazer também variam bastante.Amaioria gira em torno de conversas. É algo que preenche o espaço e anima alguns a saírem da frente da tv para construir algo coletivo e na base da troca de idéias. Alimenta o hábito do debate e o convívio com as diferenças. Alguns destes grupos são iniciativas dos funcionários e outros dos próprios pacientes. O Mago, por exemplo, adorava fazer um para leitura de textos e falar sobre magia e o sobrenatural. Daí tirei esse nome pra ele. Alguns dão muito certo, outros vão passando por um rápido esvaziamento. Tudo depende de vários fatores. Se o pessoal estiver muito pra baixo, ou se não for um
  • 20. 23 assunto de interesse da maioria, a coisa não rende. Tem também uma técnica de condução e a pessoa precisa ter o mínimo de conhecimento de como se conduz a atividade proposta. ... Era um fundo colorido, com flocos de várias cores gritantes vagando diante dele. Passando uns pelos outros. Cores que nem concebemos a existência e, por isso mesmo, não seríamos capazes de nomeá-las. Por vezes, quando se atravessavam, os flocos geravam novas cores. Enquanto este ballet flutuante, cheio de ternura, acontecia em sua lentidão hipnótica, eu ouvia a voz da meiga professora orientando as pequenas crianças em uma apresentação. Só não me perguntem como eu sabia se tratar de uma professora, já que em nenhum momento houve uma pista se quer a esse respeito. Poderia ser mãe, tia, madrinha... Mas eu sabia exatamente do que se tratava, mesmo vendo apenas aquele show calmante de cores. E as pequenas apresentavam uma sequência de peças teatrais que igualmente não conseguia ver. Sabia que eram peças muito alegres e que haviam alguns adultos assistindo com satisfação. Eles estavam ungidos do mesmo espírito fraternal. Era tudo cheio de luz. Algo que poderia ser considerado santo. Eu estava em um cômodo ao lado e só podia ouvir as falas e risadinhas em um tom muito agradável e baixo. Estava deitado, muito sonolento, e não conseguia abrir os olhos ou me mexer. Mesmo com os olhos fechados, conseguia ver o cenário descrito inicialmente, de fundo colorido e com os flocos de cores berrantes flutuando, se cruzando, se fundindo e embelezando cada vez mais. E encantando... e trazendo paz...As cores fluíam como as mais belas notas musicais. O resto eu só podia ouvir e, de alguma forma misteriosa, ter conhecimento do que se tratava. Sem ver o ambiente onde estava, pude reconhecer que estava em meu quarto da clínica e meus dois companheiros de quarto estavam adormecidos em seus respectivos leitos. Caso contrário, só resta contar com a sorte.
  • 21. 24 Por vezes sentia que a professora e uma graciosa menininha, que não devia ter mais de cinco anos, me animavam a participar da apresentação. Foi nesse momento que começou a maior parte do sonho. Eu tentava abrir os olhos, levantar e interagir. Não conseguia ter o mínimo de coordenação necessária para isso. Meu mergulho naquele torpor de cores não permitia. Contudo, estas tentativas mal sucedidas não eram angustiantes ou frustrantes. Estes sentimentos que tanto me assombravam cotidianamente não estavam presentes. OTentar era tão saboroso quanto o permanecer banhado em toda aquela cor e luz. E as risadinhas da professora e da guriazinha eram ondas de bem estar. Todas as vezes que eu não conseguia, elas davam aquelas risadas miraculosas. E isso durou até que uma voz áspera chamou meu nome e me sacudiu. Eu resisti, não queria acordar. E a voz me tirou dos cobertores. Entreabri os olhos e reconheci o enfermeiro me chamando para o café da tarde. Falei que não queria e fechei os olhos rapidamente para não perder o fio que ainda me prendia ao caminho para aquele mundo encantado e maravilhoso. Mas ele não se deu por satisfeito até eu abrir bem os olhos e dizer claramente que não queria tomar café. Nem preciso dizer que o fio foi rompido e não consegui voltar para aquele setor do meu sonho ou para qualquer outro. Desisti de voltar a dormir depois de algumas tentativas e sentei injuriado. ... Não sei há quanto tempo estou por aqui e não tenho mais a menor preocupação com isso. Antes, quando perdia a noção do tempo, perguntava a um ou a outro, mas agora não me interessa mais. Não penso no dia de ir ou algo que o valha. Aquela sensação de não ter para onde ir, voltar, chegar ou ficar já virou uma convicção. É como se aqui fosse o meu lugar. O NADAABSOLUTO.
  • 22. 25 O FRUTO DO NADA VINDO DO NADA DE ONDE NÃO EXISTE DE ONDE NADA EXISTE IR, VOLTAR, FICAR – NADA DISSO FAZ SENTIDO QUANDO DEIXA DE EXISTIR O ONDE, O PORQUE (AQUI, ALI, QUANDO, NAQUELE...) ESTAR ALI É TÃO DESINPORTANTE QUANTO ESTAR AQUI O ÚLTIMO E O PRIMEIRO SÃO MENTIRAS SANTIFICADAS COMO DEUSES E DEMÔNIOS SÃO APENAS FACES DA MESMA MOEDA Mesmo tendo contemplado estas questões anteriormente, dando até certa importância a elas, como se fossem realmente relevantes, sinto que posso descer a velha urna funerária no buraco e escrever na cripta. AQUI JAZ TUDO POIS NADA PRESTA POIS NADA É OU ESTÁ POIS NADA VAI, FICA OU VOLTA JÁ QUE NADA EXISTE NEM MESMO OS LUGARES OU OS ESPAÇOS PELO MENOS COMO CONSIDERAMOS E MESMO DE OUTRAS FORMAS ... As chuvas não têm passado por aqui. Isso é bom para aquecer um pouco a parte de fora mas deixa a casaca seca e coberta de poeira enquanto o frio continua cortando por dentro como lâminas afiadas de gelo. As gotas de chuva já não estão presentes para observarmos as estranhas formas no vidro.
  • 23. 26 Vejo as janelas cobertas de poeira e merda de passarinho seca enquanto congelamos dentro de blocos de solidão e angústia. ... Hoje o Rei do Noise surpreendeu a todos. Pegou o violão, olhou em volta e meteu um belo dedilhado. Senti falta dele espancar as cordas, pois essa parte mais convencional o outro mano já faz muito bem. ... Agora os funcionários já estão mais acostumados a me entregar o lápis quando solicito e alguns ainda têm o esmero de me arrumar um com a ponta bem feita. Quando preciso de papel também me entregam uma quantidade legal. Hoje a enfermeira me emprestou uma caneta. Facilitou bastante identificar as letras que estavam saindo. Muito legal da parte dela. Aí ficou uma loucura a mistura de lápis e caneta. O problema é a falta dos óculos.Avista vai ficando cada vez mais cansada com o esforço, então uso a técnica do fluxo contínuo da mente.Vou escrevendo, sem precisar parar para ler ou reescrever. Pretendo manter tudo assim, desse jeito. Se a ideia destes escritos é passar exatamente este momento, não tenho que ficar ajeitando isso ou aquilo. Tenho que valorizar tudo como está saindo. Tenho pensado bastante na possibilidade dessa coisa virar um livro. Seria legal mesmo se saísse do jeito que foi concebido, escrito a mão, com todas as rasuras. Estou achando muito bonito esse caos sobre as folhas que já dobrei ao meio e estão em um formato livro. Fazia muito tempo que não produzia a mão deste jeito que está sendo. Na verdade, igualzinho, da maneira que estou concebendo, no estado em que estou, nessa situação, nunca fiz, nem conheço alguém que tenha feito. Comecei sem saber ao certo o que era e ainda não sei. Seria um verdadeiro estudo deste momento que estou vivendo? Mas vamos ver as
  • 24. 27 possibilidades depois. De repente, quando chegar em casa, faço uma fogueira, queimo tudo e pronto. Por enquanto é só escrever, escrever e escrever. É o que importa hoje. ... Pela primeira vez, desde a minha internação, consegui chegar ao psicólogo. Não foi muito fácil, mas conseguimos. Digo conseguimos porque eu e um dos meus companheiros de quarto, que precisava tanto quanto eu, fizemos todo um esquema para sermos atendidos de pronto. E vou te dizer que por anos e anos achei psicólogo o profissional mais dispensável do mundo. Mas nesse momento eu sentia que precisava. Quem se conhece, sabe do que precisa e quando. Foi assim com a internação. Senti que precisava, peguei minhas coisas, avisei a quem deu e fui pedir meu encaminhamento. Foi sobre isso que estava conversando com meu companheiro, quando arquitetamos todo e plano e fomos em busca do atendimento. Ele entrou primeiro. Quando ele saiu, eu já estava na espreita para não deixar o psicólogo se envolver em outros afazeres e atendimentos. O Psicólogo meteu a cabeça de fora e viu que eu aguardava. Acenou para minha entrada em sua sala e viu o homem bomba apertar o play e não parar de falar. Falei três vezes mais que você possa imaginar e quando chegava a uma conclusão, logo expunha exatamente o oposto com a mesma precisão. Estava completamente enlouquecido em minha verborragia infinita. Ele me olhava fixamente e, pasmem, entendia tudo. Quando não entendia, pedia para pausar, reorganizava suas ideias e eu as minhas. Por vezes me vinha com uma pergunta, que tinha tudo a ver, para continuarmos exatamente de onde paramos. E ele encerrou o atendimento com uma pergunta chave. Respondi e por sua expressão facial vi que a conexão para o próximo atendimento estava feita. Marcou em sua agenda o nosso próximo encontro, se mostrando disponível para se eu precisasse antes. Foi uma experiência incrível. ...
  • 25. ~ 28 ~ Estava “brincando” com alguns farelos de pão que ficaram esquecidos sobre a mesa. Totalmente mergulhado na tristeza, pensava sobre quantas pessoas no mundo realmente sabem sobre a dor de se estar derretendo na mais sombria melancolia. ... O melhor grupo que tem rolado, tem sido os organizados pela Assistente Social. Ela realmente sabe fazer o lance. Nada pretensioso ou arrogante. Apenas informações baseadas em dados, sem meras opiniões ou achismos. A coisa sendo feita de forma científica, como precisa ser para ter o mínimo de credibilidade. Sem julgamentos morais. A ideia sendo apresentada de forma interessante para todos. É o segundo grupo que temos com ela. O de hoje foi sobre redução de danos. Assunto importantíssimo e pouco conhecido em sua profundidade. ... Desde o sonho colorido, não consigo mais lembrar o que rola desenfreado por minha cabeça enquanto durmo. Por vezes me vem algumas partes, mas nada consistente. ... Alguns caras jogam cartas em uma mesa ao fundo. Em outra estão em volta do rádio ouvindo um som. Nas cadeiras laterais estão pulando sem parar de canal em canal na tv. Quando parecem ter encontrado algo, tem sempre alguém que pega o controle e os canais voltam a saltar. Tem um que fica olhando para ver se vem o enfermeiro, porque só os funcionários podem mudar de canal. A regra é pedir. Não me perguntem como estavam de posse do controle. Por vezes alguém passa por trás de mim tentando ler meus garranchos. Olho com cara de poucos amigos e mando para longe só com a força do olhar. Reparo que minhas unhas estão enormes. Quando estiver com energia o suficiente, pergunto quando é o dia e horário de aparar as garras do gárgula. ...
  • 26. ~ 29 ~ Fico vendo os companheiros correndo os olhares pelo janelão de vidro, tentando capturar algo de vida, alguma coisa que esteja viva, no exterior Caminhando como borboletas se chocando contra as paredes, o fundo e a tampa do pote que as prende. As belas asas se machucando e virando pó. Os vôos cada vez mais atrapalhados virando quedas. Os potes Prisões ou proteções Viram túmulos porões ... As lagartixas sempre saem para caçar nos parapeitos, do lado de fora das janelas feitas para não abrir. Fico apreciando pelo lado de dentro. Ainda não apreciei um bote perfeito por parte das lagartixas, mas em algum momento elas conseguem. Com certeza conseguem. O oposto não as deixaria tão espertas e gordinhas. Se mexem com a velocidade necessária para um predador. O grande caso é a precisão. Ficarei aqui passando o tempo com essa incógnita. Talvez distraia meu pensamento de que hoje é sexta e os bares estão lotados e eu não estarei navegando nas correntezas da loucura, tentando amenizar a amargura e a solidão. Não é um pensamento que vem a todo o momento, mas por vezes vem. ... Já fazem algumas noites que não durmo bem. Volta e meia acordando e ficando em meu casulo de cobertores. Quando isso
  • 27. 30 acontece, a hora se arrasta. Isso costuma me deixar mais angustiado, irritado e ansioso. O dia demora mais a passar. Mas não tem outro jeito a não ser suportar ... Hoje, pela primeira vez, vi nascer o dia. Não curti. Não chega aos pés do espetáculo do fim de tarde. Aí sim. As nuvens incendiárias e o negro véu se apossando de tudo. ... Essa noite fui brindado com um sonho. Os sonhos são importantes para, de alguma forma, nos tirar daqui. Pelo menos mentalmente conseguimos ir para longe, passar outras experiências diferentes da rotina imposta. Neste encontrei uma velha amiga, militante que usa o reggae como arma de combate contra este sistema cruel que nos extermina e transforma em meras engrenagens da terrível máquina de moer. Ela é uma das poucas pessoas que utiliza a tal good vibes de forma efetivamente producente. Tenho grande desprezo por esta forma de atuação e acho, inclusive, que esta ideia desmobiliza formas de combate realmente eficientes, como a raiva e a ação direta. Mas ela sabe fazer as coisas desse jeito. Quando ela faz, é diferente. Foi muito bom nosso role e troca de ideias. Volte sempre, irmã ... Já tem uma rapaziada ligada nesse trampo que estou fazendo e eu mesmo já vejo como algo a mais, mesmo tratando a criatura da mesma forma que no início. Daí ficam querendo saber se vão aparecer no livro. Como meu trabalho corre pelo circuito underground, pelo submundo/subterrâneo, eles não fazem a menor idéia do que é a literatura para um ser bestial como eu.
  • 28. 31 Não me dou o trabalho de explicar do que se trata. Retribuo apenas com um sorriso vazio, daqueles que não querem dizer nada, e continuo trabalhando. ... Estar fazendo parte deste tipo de processo, em uma clínica e tal, para tentar recobrar o foco e tratar das mazelas psíquicas que se acumularam no decorrer das diversas batalhas travadas pela vida, não é fácil. Primeiro de tudo temos de estar abertos e dispostos a reavaliar certos pontos que nos são importantes. Neste exame temos de permitir que estes pontos, por mais valiosos que sejam, por mais tempo que estejam em nosso pedestal interior, caiam como ruínas se não nos servem mais. Tirar do caminho o que está impedindo de ir além. O orgulho inútil de nada nos serve nestes momentos. Pensando bem Não nos serve em nenhum momento ... Desde que cheguei à clínica não tive um pesadelo. Pelo menos, não que me lembre. Só se aconteceu e ele ficou soterrado pelos escombros do inconsciente. Mas hoje foi e me lembro bem. Acho que o último ajuste medicamentoso trouxe de volta minha produção de sonhos terríveis. Espero que não. Espero que tenha sido apenas um berro perdido do meu antigo modus operandi e os próximos sonhos sigam a linha que vinham seguindo. Ao menos me levavam para passear em locais agradáveis fora dessas paredes. Era um pesadelo até meio sem graça, que não vale a pena escrever, mas que deu pra perturbar. Resumindo, eu mexi em um carro e um celular que estava dentro desse e uma multidão veio atrás me espancando com paus, pedras e facão. Quando acordei, ainda levei um tempo para me situar e posso dizer que foi a primeira vez que fiquei feliz de estar neste gélido
  • 29. 32 ambiente branco. Olhava para mim buscando as chagas que não existiam. Não teria escapado ileso dessa. ... Hoje a cor do por do sol está diferente. O vermelhão deu lugar a um amarelo mais ameno e isso mudou toda a paisagem a qual estou acostumado. A alteração na coloração do céu nos presenteou com um novo cenário. Coisa que podia ter passado despercebido em outra ocasião. Mas aqui, tudo de mais importante consiste nos pequenos detalhes. É aí que se quebra a rotina que nos massacra em um ambiente institucional. ... O pessoal anda dificultando o acesso ao violão para o Rei do Noise. Isso tem deixado ele mais agitado e constantemente falando sozinho. O Garoto contou sobre suas fugas em várias instituições psiquiátricas por onde esteve. Nesse momento está lendo o que escrevo por cima do meu ombro. Está elétrico por eu ter citado o nome dele no livro, mas desanimou quando disse que é praticamente certo que eu mude todos os nomes quando for digitar a versão final e que possivelmente algumas partes serão suprimidas ou alteradas. As conversas com o psicólogo continuam muito produtivas, o que vence por completo a resistência que sempre tive a este tipo de profissional, mesmo tendo grandes amigos e amigas que atuam na área. Gosto bastante das paredes grafitadas que contrastam com a maioria branca. Não sei se em todas as alas são assim. Se não são, deveriam, pelo menos ao meu ver. ...
  • 30. 33 É como a fúnebre dança com a areia movediça Um par fatal Uma dançarina que envolve Seu corpo o puxa para baixo Independente se é um breack, valsa ou sapateado Ela determinará seus passsos Pode ser twist, lambado ou um pogo irado A areia irá engoli-lo Palmo a palmo Até seu corpo totalmente esgotado Morrer completamente asfixiado ... Talvez já tenha passado uma semana que não escrevo nada. Nunca sei ao certo, porque isso de ficar contando o tempo só me deixa mais ansioso. Então não penso sobre isso e fico meio perdidão assim mesmo. De boa. Além disso, aqui é um lugar difícil de saber os dias, já que todos são iguais. Prefiro ficar escrevendo e reescrevendo minhas merdas que ter esse tipo de preocupação. Me ajuda a organizar meus pensamentos e a encontrar algum sentido para essa bobagem chamada vida. Neste intervalo em que larguei um pouco meu jogo com as letras, me aproximei mais de outros pacientes com os quais já vinha me relacionando. Para dizer a verdade, na maior parte do tempo, passei submerso em meus cobertores. Em algumas ocasiões também ficava sentado em frente a tv, sem prestar atenção em nenhuma programação. Era apenas um canto onde podia ficar olhando para nada, mergulhado em mim mesmo, sem ser interrompido. Fora isso, uma nova leva de pacientes se foram e outros vieram, as lagartixas continuam suas caçadas nos parapeitos externos das janelas, o por do Sol continua um show a parte, alguns grupos são excelentes e outros como bosta batendo na água, os jogadores de carta não param de aumentar seu número... E por aí vai.
  • 31. 34 Tem aparecido alguns enfermeiros novos também. Acho que estão cobrindo folga. Não sei ao certo. Quando falo enfermeiros, falo tanto técnicos em enfermagem, quanto os com nível superior. Só os que já foram internados muitas vezes usam este nome com diferença entre os cargos. Para estes o tratamento é técnico e enfermeiro. Embora entenda as diferenças entre as funções, pra mim e pra muitos dos que estão aqui, a forma de tratar os dois cargos é a mesma. Entre estes novos profissionais existem uns muito bons e uns que são um verdadeiro chá de merda. Meus sonhos, volta e meia, são intercalados com pesadelos ou com aqueles dias que não lembro nada do que se passou pela mente enquanto dormia. Meros apagões. Aquela situação em que a pessoa diz simplesmente que não sonhou. ... Como falei a cima sobre o despreparo de alguns profissionais que trabalham com a gente, resolvi entrar um pouco mais nisso. Tem uns que acreditam ter um dom natural, algo mágico, do reino da fantasia, que já nasceu com eles. Não entendem que toda profissão depende de um aprendizado técnico, onde se adquire metodologia de trabalho, a ciência do fazer. Há também os que trazem seus conceitos e experiências de vida como algo que por si só servem necessariamente para todos. Estes não conseguem ver toda a diversidade humana e as inúmeras situações possíveis. São limitados apenas ao que sabem ou que pensam que sabem. Ainda existem aqueles submissos a um sistema de crenças, muitas vezes religiosas. Estes são um subgrupo dos que já chegam com seus conceitos e experiências como a verdade absoluta, mas que merecem um destaque por ter uma dificuldade maior ainda em desenvolver um bom trabalho. Em todos estes casos, falta ver o trabalho como uma ciência e não como algo onde cada um faz do seu jeito. E o pior é que além de acharem que cada um deve fazer do seu jeito,
  • 32. 35 eles ainda têm a convicção de que o jeito deles é o certo. Falta um conhecimento organizado para orientar ao trabalhador.Algo que vá além da fé, opiniões e achismos. Ah... Temos também os que fazem do jeito mais fácil para ter o menor trabalho possível. Se pensarmos bem, encontraremos outros grupos e subgrupos. Pegando o exemplo daqui da clínica, todos os enfermeiros tem os conhecimentos de aferir pressão, aplicar injeção ou ministrar medicações, por exemplo. Mas suas funções vão muito além do que isso, pois eles lidam com gente. Pessoas que estão em sofrimento, passando por distúrbios, perturbadas e por aí vai. Então acabam atuando em várias áreas que vão além de dar remédio. E é aí que o bicho pega. Isso deveria ser uma parte tão sólida, quanto todas as outras durante a formação. Mas existem os bons, ótimos e excelentes profissionais nesta mesma área e tive a felicidade de serem maioria aqui onde estou. Valeu, galera. Vocês são os melhores. ... Fios elétricos carregam a força para iluminar a artificialidade uma cidade de mentiras ilusórias enquanto olho pela mesma janela de sempre outro entardecer querendo apenas estar para além das estruturas metálicas naquela antiga varanda de madeira podre na companhia daquele sábio homem negro que gostava de conversar sobre as coisas da vida tomando seu café sem açúcar e batucando Bezerra, Nelson, Cartola e outros bambas da fina flor Espero reencontrá-lo quando sair ...
  • 33. 36 Soube agora que estou na reta final e que meu plano de prolongar minha estadia dificilmente vai rolar. Nos próximos dias começarei a estudar com a equipe o que vai ser a sequência do meu tratamento após a alta, no mundo externo, para evitar ser novamente engolido pela depressão. Se é que isso é possível. ... Estar pronto para tudo o que der e vier é só mais uma das grandes mentiras Mas fazemos o que podemos para ser capaz de ir em frente Sem passar os dias em posição fetal vendo as partes caírem como lepra existencial que suga nosso vigor como um vampiro letal sem alma e sem amor passando os dias ardendo no sal vendo os olhos murcharem por não suportarem sua farsa banal ... Finalmente consegui usar o cortador de unhas. O negócio é pior que o barbeador. ... Estava folheando a esmo este trabalho e vi o efeito que estas folhas rasuradas e escritas manualmente dão enquanto passo daqui pra lá e de lá pra cá.Fico deslumbrado com um trampo 100% manual como este, feito de forma totalmente analógica. É um processo completamente diferente de algo nascido em
  • 34. 37 frente a fria tela do computador. O ideal seria reproduzir tudo como estou vendo enquanto passo as páginas. Aí seria um primor. Até para esse monte de garranchos e letras sobrepostas manterem mais vivas as coisas como são. Quem sabe? Tudo pode ser. Vejamos no que dá. Nada está no controle. Nem acho legal que sempre esteja. Tem horas que olho para isso tudo e penso e rasgar e por no lixo. Quem sabe o que vai passar em minha cabeça quando estiver trabalhando a coisa? ... Hoje me mudaram de quarto e nem tiveram a delicadeza de avisar. Cheguei na minha cama para entrar na velha gruta de panos, buscando sumir um pouco do mundo, quando bati os olhos em um coroa recém chegado nela. Tudo bem... Entendi que o coroa estava na última da de pressão e minha cama ficava em um lugar de mais fácil acesso para observarem. O que não dava para entender é não me avisarem. Meu companheiro de quarto, que estava comigo desde a minha chegada, localizou minhas coisas em um quarto mais a diante e deu o toque. Entrei e vi meu nome em cima da cama. Era ali mesmo. Só para registrar, me acomodei em meu novo quarto e até agora ninguém falou no assunto. Deixaram-me descobrir sozinho e pronto. Caso resolvido. Descobri que o quarto era legal. Logo em seguida, Mago, com quem eu já vinha trocando umas ideias, apareceu no quarto e me deu as boas vindas. Fiquei em uma cama do canto, embaixo de uma daquelas janelas feitas para não abrir. Só que esta tinha
  • 35. 38 um agravante que a do refeitório/sala não tinha. Era pintada, ou botaram algo no vidro, para que ninguém visse o outro lado e vice-versa. Praticamente nem passava claridade.Acama do meio era do Coveiro, um cara super de boa, mas que também estava muito deprimido. Passava os dias deitado de barriga pra cima olhando o teto. Cortava a visão do teto entre um cochilo e outro. A noite dormia na mesma posição. Levantava-se apenas na hora de refeição e mesmo assim quase não comia.Acama que ficava encostada na outra parede, ao lado da porta, era a do Mago, de quem já falei a respeito e com quem estava fazendo alguns grupos de leitura. A mudança apertou os laços com Mago e me permitiu conhecer mais o Coveiro, figura que mal via antes da mudança e me pareceu um grande cara passando por uma situação ruim. ... Quando as coisas paravam de fazer sentido ao meu redor Quando as pessoas paravam de fazer sentido ao meu redor Quando tudo não para de ficar pior E a ciranda macabra não parava de rodar e de matar Trouxeram livros com páginas em branco Trouxeram cegos se contorcendo em prantos Mas se as coisas ainda não fazem sentido e as coisas não param de ficar pior e tudo vira lama e pó e a ciranda não para de rodar e a macabra não para de matar
  • 36. 39 e o sofrer não para de gemar e o que não para de por que Morrer ... Conforme vai chegando o dia de sair, os medos tomam proporções titânicas.O maior, talvez seja o de não dar conta de tudo o que está por vir. Mas quem daria? Ninguém daria conta de tantos horrores oferecidos pela vida. O importante é manter o foco e fazer da melhor maneira possível o que sabe que tem de ser feito porque sabe que se preparou para isso durante a internação. O importante é manter o foco saber o que tem de ser feito e agir de acordo com seu proceder. O SOFRIMENTO E A DOR SÃO INEVITÁVEIS. Está mais que na hora de parar de se distrair e começar a se concentrar no que importa. Chega de distrações inúteis e choraminganhas que apenas roubam a energia do guerreiro. Usemos nossas energias nas batalhas que valem a pena. Com foco, sabendo o que tem de ser feito e agindo de acordo com o proceder, o resto é bobagem de menino mimado. E isso não é autoajuda ou qualquer bobagem do tipo. Odeio essas merdas. Isso virou um rótulo para um tipo de parasitismo que está longe do que o termo deveria significar. É apenas a observação do real. Uma coisinha que aprendi nessa passagem por aqui e que tenho de manter forte em meu interior quando sair. Não posso cair nas mesmas armadilhas. Tenho de manter isso bem interiorizado para travar as batalhas que me aguardam quando eu sair daqui. ... Tenho de conseguir. Não me darei outra opção.
  • 37. 40 Li e reli algumas vezes a parte acima, assim como algumas partes que, segundo meu julgamento, preciso ter bem interiorizado. Tipo um mantra poderoso para quando eu sair. Continuarei a reler até o dia de ir embora. Ou até meus olhos caírem das órbitas. Que falta fazem meus óculos de leitura. ... Lendo e relendo isso, fico pensando o quanto é óbvio o que deve ser feito. Os problemas são as armadilhas e os discursos prontos sendo repetidos e plantados por todo o caminho, durante toda a vida para nos sabotar e confundir, para nos fragilizar. Só que uma vez recobrando nosso foco, agindo de acordo com nosso proceder, sabendo o que tem de ser feito... Já era. Não seremos postos novamente em tal estado de vulnerabilidade. A dor e o sofrer são inevitáveis e já sabemos disso. É encará-los como guerreiros e seguir sempre em frente. Chega de repetir sobre isso. A lição é curta e não precisamos repetir tantas vezes. Sigamos em frente. O lance é fazer. ... Tenho conversado com o Coveiro quando ele se dispõe a trocar uma ideia. Ele disse que não se sente ele mesmo e que gostaria de ficar legal para voltar a ser quem sempre foi. Falei com ele que também me sentia assim, mas que estava bem mais próximo de mim mesmo. Que isso tinha a ver com a depressão, mal que assolava quase a totalidade da ala psiquiátrica em que nos encontrávamos. Falei com ele sobre o esquema que tinha feito (manter foco + saber o que tem de ser feito + agir sempre de acordo com seu proceder e nunca esquecer que a dor e o
  • 38. 41 sofrimento são inevitáveis). Pareceu fazer sentido para ele também. Um recém chegado aproximou-se e disse já ter visto essa ideia, ou parte dela, em algum lugar. Falei com ele que era bem possível e que as coisas que vemos por aí ficam em nossa cabeça fermentando, como um caldo cultural, e vem a tona quando precisamos. Não faz diferença se quem falou foi um mendigo ou o ministro da cultura. - Não é questão de quem inventou a pólvora, meu chapa, mas de saber que ela existe e de como fazê-la explodir quando preciso. Respondi meio que já achando que estava socializando demais. ... Realmente, desde a mudança de quarto, tenho interagido mais e isso nunca foi coisa muito do meu agrado. Nunca tive vocação para ser o legalzão. As pessoas, em sua maioria, sempre me passaram certa sensação ruim e irritação, quando não de imediato, depois de certo tempo de convivência. Poucas e raras exceções fazem parte do meu círculo de amizades por um longo tempo. Muitas também não me suportam por muito tempo. Também tem isso. Parece que tenho de praticar mais a parte que fala sobre agir de acordo com meu proceder. Que nesse caso seria manter distância da maioria das pessoas. Ou será que estava havendo uma mudança no proceder? ... Os funcionários também estão ficando mais próximos. Tem uns que são gentis e estão sempre dispostos a ajudar. Sempre que peço um lápis, eles fazem questão de apontar antes de me entregar e quando preciso de papel eles não economizam. Reparam em todos os pacientes e sabem quando algum não está bem, criam grupos e atividades interessantes.
  • 39. 42 Mesmo tendo estes que estão sempre dispostos a ajudar e conversar, como em todo agrupamento humano, temos os que se revelam uns grandes sacos de merdas. Nesse grupo tem alguns dos novos e alguns dos antigos. Preguiçosos e com má vontade, cumprem mal e porcamente seu tempo de trabalho apenas para receber o salário. Estes não possuem sensibilidade ou conhecimentos mais profundos. Isto só piora o que já não é fácil. Afinal, estar internado não é moleza e em qualquer ambiente onde se tenha de viver institucionalizado ninguém que tenha o mínimo de razão consegue estar bem. Imagina ter hora para tudo. Hora do banho, dia da barba... Pessoas o dia inteiro te vigiando e dizendo o que pode ou não fazer... Mas não vou me demorar muito nisso porque já passei por este caminho anteriormente. Mas bom para quem ler isso, se é que alguém vai ler, ver que não foi coisa só de um dia. Mas os bons são muito bons. Gratidão pela existência destes. ... Depois de melhorar, a depressão volta com tudo. Somado isso ao intuito de me distanciar dos demais, volto a ficar a maior parte do tempo na cama. Realmente sempre me foi muito prazeroso esse distanciamento, somando a depressão então... Se tivesse meus óculos, faria uma busca entre os livros que temos por aqui. Com certeza deve ter algo que preste entre o lixo religioso e de autoajuda que pode ser observado em abundância. Como minha hérnia de disco começa a reclamar dos colchões que temos, levanto para esticar um pouco as costas. Tento fazer alguns exercícios e dou uma caminhada pelo ambiente. A única caminhada possível é aquela de sempre: Sair do quarto, pegar o corredor e chegar no refeitório. Fui até a salinha onde fica a tv, que é bem ao lado do refeitório. E adivinha só: Tava passando merda.
  • 40. 43 Sentei na mesa do refeitório onde Vinho e Mago estavam em volta do rádio. Eles colocaram uma sequência de Raul. Assim se foi meu projeto de isolamento por hohe. ... Como escrever é uma boa forma de se isolar sem deixar a cabeça parar, estava aqui desenvolvendo minha lógica de conduta onde o sofrer e a dor são inevitáveis. Isso mesmo. Voltei a falar sobre isso. Deparei-me com a questão: Se faça o que fizer a dor e o sofrimento estarão presentes,como não entrar pelo caminho do desespero? Tudo é possível, inclusive seguir este rumo. Agora, se você tem a consciência de que estes dois elementos existem, estão aí independente de qualquer coisa, não tem a fantasia de um mundo sem isso, então não será pego de surpresa. O que resta é saber o que tem de fazer. Daí entram manter o foco e agir de acordo com seu proceder. Isso o manterá forte o suficiente para aguentar o tranco e seguir em frente sem as inúteis crises histéricas de desespero. Você saberá como demolir estes elementos com um bom soco nas ventas (Linguagem figurada, por favor. Estamos falando do mundo psíquico, da mente frente aos problemas do mundo concreto) quando quiserem dar o ar da graça. Claro que para quem quer questionar, sempre há espaço. Eu como bom questionador que o diga. Podem dizer que expressões como “manter o foco” são vazias e vir com perguntas como “Mas manter o foco em que?” ou sobre o proceder vir com “Que proceder é esse?” Mas essa parte é pessoal e, sendo assim, só o próprio poderá responder. Só e só você pode saber. Afinal, para atuar dessa forma a pessoa tem de ter um mínimo de autoconhecimento – Saber exatamente quem é, o que quer e ter ao menos uma vaga ideia de para onde vai. Quanto maiores estes conhecimentos sobre você, melhor desempenhará estes
  • 41. 44 passos e terá maior poder sobre si próprio. ... Tentando escrever alguma coisa para passar o tempo, só que hoje está difícil. O vazio está tão grande que não permite. Desde que comecei a escrever por aqui, essa é a primeira vez que acontece. Havia conseguido recuperar essa capacidade de bastar sentar na frente do papel e abracadabra. Mas a vida é assim. Nem sempre a magia funciona. ... Hoje a tristeza, a angústia e a irritação estão possuindo cada parte do meu ser. Um mal estar medonho. Um dos piores dias. Muita depressão. Chego a conclusão que caí em mais uma armadilha vindo para cá. Que o que sinto tão tem cura e que serei apenas rotulado, carimbado e estarei cada vez mais no sistema. Isso está me deixando muito mal. Esse monte de veneno que eles estão me entupindo não pode me curar do que sinto e do que sou. Quanta irresponsabilidade estar escrevendo isso sem nenhum embasamento. Um idiota qualquer pode ler e sair repetindo por aí. Mas não estou nem aí e não tenho compromisso com nada nem com ninguém. Se a pessoa não tem cabeça para pensar por si, então foda-se. Só de escrever essa ressalva, penso se realmente acredito no que estou dizendo. Não sei. Estou muito confuso, a deriva nesse mar de melancolia e frustração. Mas é o que estou sentindo. Vou me meter sob os cobertores e me asfixiar o suficiente até o amanhecer. Ficar sufocado nessa maldita depressão. O lance desse documento é registrar o que um cara sente nessas condições e é isso que sinto nesse momento. Me sinto no mesmo infortúnio, no mesmo inferno, só que os remédios deixam pior. Tirei folga de alguns dias devido a mudança de ambiente, mas estou de volta a antiga forma. Esta é a minha verdade e não tenho como fugir dela. É o que estou
  • 42. 45 sentindo, embora preferisse sentir outra coisa. ... Acordei cedo e tentei dar uma volta pelo restrito espaço que temos liberado para caminhar. Tentei conseguir um lápis, mas ainda era muito cedo para adquirir tal artefato. Há pouco tinha clareado o dia e aqui se tem hora para tudo. No telejornal matinal só passava bobagem. Parece que nada sério acontece no mundo. E viva o carnaval, anunciava o apresentador. Parece que reuniram os funcionários mais preguiçosos para trabalhar naquele dia. Prepararam o café deles e nós esperando o nosso. Disseram que o nosso é responsabilidade das cozinheiras e que estavam esperando trazerem. Ao invés de ficarem esperando, podiam ligar para o setor reclamando que o nosso café estava atrasado, mas não se dariam ao trabalho. Nós que esperássemos. Então a coisa de tudo ter hora era uma questão de conveniência para eles? Ficavam jogando conversa fora e dando risadas em volta de suas xícaras fumegando, enquanto os pacientes que já haviam acordado morriam de tédio. Recém acordados, estávamos em um verdadeiro estado zumbi. Isso foi ampliando minha situação depressiva que se instalou com força total. Voltei para a cama e me cobri, ficando assim, sem ingerir nada além da medicação, até a hora do almoço, quando consegui comer um pouco. Nesse momento passei pelo psicólogo e falei rapidamente sobre meu estado de espírito atual. Ele falou que amanhã sentaríamos para conversarmos melhor. Como as conversas com ele tem surtido um ótimo efeito, o negócio é segurar firme até lá. ... Não está fácil a coisa. Não consigo ficar bem sentado, deitado ou em pé. O desconforto é extremo. O vazio do lugar não ajuda e reflete muito do meu vazio interno. Muitos receberam alta e outros que podiam desistir do tratamento pediram para ir
  • 43. 46 embora. O cara que se interna sozinho, sem ninguém levar, assim como eu, pode fazer isso. Mais eu não queria fazer isso. Ainda mais naquele estado de espírito. Mas não demorou muito para começarem a chegar os novatos e pude matar o tempo observando cada um. Alguns livros foram distribuídos pela enfermagem, o que ocupou os pacientes de forma saudável. Eram livros de boa qualidade e conteúdo relevante. Coisas que valiam a pena ser lidas. A pior coisa é quando este tipo de local recebe de doação só livros inúteis, que servem apenas para papel reciclado. Mas não foi o caso. Na mesa de fundo o carteado estava animado ao som de algo que tocava no radinho. No setor de tv o pessoal assistia a um programa qualquer. A confusão de sons naquele ambiente já não causava o caos auditivo de antes. Muitas vezes estava rolando a tv, o rádio, o violão, mas as vozes se esforçando para serem entendidas... Realmente nos adaptamos a tudo. ... Hoje acordei seis horas, muito bem disposto. Fazia tempos que não acordava assim. Tive alguns sonhos rotineiros. Nada que valha a pena ou que tenha causado algum efeito benéfico sobre mim. O Mago acordou quase simultaneamente. Ficamos conversando, deitados por algum tempo e depois levamos nosso papo filosófico para o refeitório, deixando o coveiro dormir mais um pouco. Entre os vários assuntos debatidos, discutimos sobre o termo maturidade.Aque propósito servia? o que exatamente queríamos dizer com isso? Um exemplo seria quando falamos sobre um bem ajustado no sistema de trabalho - produção e consumo. Outro exemplo seria falar sobre aquele que perdeu a libido e o frescor juvenil. Esses são os maduros? Fomos tecendo os casos em que a expressão é usada e chegamos a conclusão que
  • 44. 47 substituiríamos a expressão por outras mais adequadas, abolindo a tal maturidade do nosso vocabulário. Assim não correríamos risco de sermos mal interpretados. Estávamos assim, em nossos devaneios, até chegar a hora do café. Depois de colocarmos algo na barriga e tomarmos um banho, pedi um lápis e comecei este escrito. Hoje tudo estava funcionando bem, dos funcionários a rotina local. Impressionante como tudo melhora quando tiramos o barro dos olhos. . Ou ao contrário? ... A conversa com o psicólogo teve de ficar para outro dia. Ele esteve por aqui de manhã, mas tinha uma verdadeira legião para ele atender e alguns ficaram de fora, entre eles, eu. Queria poder falar sobre o dia bom que estava tendo, como tudo virou de repente, de um dia para outro. Tinha algo bom para contar, para variar. Ficará para a próxima. Espero que tenha. ... estilo de vida suicida detalhe difícil entender pelos caretas bem ajustados escravos do sistema submissos escravos do poder não conseguem acompanhar não podem compreender só abaixam a cabeça só sabem obedecer mas cuidado pelas ruas quando a gente se cruzar pois seus frágeis muros não irão nos separar pois suas gaiolas não irão nos trancar não terão tantas covas para nos enterrar ...
  • 45. 48 “Tudo tem seu tempo certo de duração. Nada é para sempre.” Me disse Toni Platão em uma inesquecível entrevista que fiz com ele em um boteco do Jardim Botânico, no Rio de Janeiro. “Sou a favor que as coisas acabem.” Disse no meio de sua reflexão. Pois é bem assim que me sinto no momento. Estou me sentindo ótimo e meu tempo na clínica já serviu a seu propósito. E agora é cuidar dos meus demônios internos e do mundo que me aguarda com tantos outros demônios. Fazer o acompanhamento sugerido pela equipe. Faltam poucos dias. Estou naquela coisa da contagem regressiva. Tanto evitei cair nessa e aqui estou. Mas é que quando se está bem e não há mais porque ficar aqui dentro, o cara quer sair. Sair do ambiente institucional e voltar a fazer as coisas na hora que quero, não quando mandam. Sair desse ambiente com ar condicionado congelando os ossos vinte e quatro horas. Voltar a sentir um vento no rosto, um ar fresco. Sem o ar condicionado o dia todo entrando até pelo nosso nariz. É horrível só respirar esse tipo de ar. ... Mais um fim de tarde bonito visto pela janela da clínica. Parece que sou o espectador mais assíduo deste espetáculo. Hoje as nuvens estão escurecendo mais rápido e tem pequenos pássaros voando para todos os lados. As luzes seguem acendendo enquanto a escuridão desce pelas ruas. Parece uma repetição, mas os detalhes fazem a diferença por aqui, como já disse. Saber buscar isso é importante para quebrar a rotina que nos massacra cotidianamente. Cada forma de escurecer produz um novo espetáculo. Pegamos os pequenos detalhes como ouro no garimpo. Isso nos impede de enlouquecer nestes ambientes de confinamento. Isso nos mantém vivos e dá certa sensação de estarmos livres. Voam outros pássaros dando um rasante e subindo rumo ao céu. Já está completamente escuro no momento ... Esse gelo faz parte de uma das muitas coisas que não sentirei falta daqui.
  • 46. 49 Consegui passar o dia inteiro sem o menor sinal de depressão, estou escrevendo bastante e ainda interagi com os outros pacientes. Tem um cara novo que curti bastante. Mago e Vinho já conheciam ele. Por vezes batia algum tédio devido as longas lacunas sem nada para fazer. Infelizmente, coisa muito comum por aqui. O não querer ficar por aqui, nem passar os dias sob os cobertores e estar mais ativo é um bom sinal. Querer mais coisas para fazer é querer estar atuante na vida, é saúde mental. Mais um ponto positivo. Espero que continue tudo assim. Já estava na hora do horizonte não permanecer tão sombrio. ... Eu e eu sozinho caminho sempre sem me encontrar Eu e eu sozinho perambulo por aí sem me importar Mas os seu lixo me parece vômito Mas os seus restos estão em decomposição Eu e eu sozinho com a raiva que me sustenta Eu e eu sozinho e os caminhos que não sigo Eu não sigo Eu não ligo E vou sempre sozinho ...
  • 47. 50 Já vão apagar as luzes e todos temos de dormir. É uma pena, pois foi um bom dia e ainda estou cheio de energia. Por mim, ficava até altas horas escrevendo poesias, relatos, pequenas observações ou histórias corriqueiras. Enfim... Engordaria um pouco mais essa... Engordaria essa coisa que estou fazendo. Foi um dia realmente muito produtivo. Pena que já está tão perto do fim. Quando abri os olhos às seis horas, vi que estava tudo diferente. Ao despertar, percebi o quanto estava bem. Que venham mais dias assim. Tem horas que ficar só se fodendo na vida cansa. Não tem nada de legal em se foder tanto na vida. Podem acreditar. Não tem mesmo. ... Queria estar deitado Tendo apenas o céu como teto O vento batendo Longe desse frio que dói nos ossos ... Mais um dia que acordei legal. Acho importante explicar que, para mim, estar bem não é estar distribuindo flores e vendo tudo com óculos de lentes cor de rosa. Se me verem por aí desse jeito, podem me mandar de volta para a clínica. Minha luta é contra essa depressão monstra que me assalta e toma conta de mim. O troço imobiliza e deixa o cara como um fiapo velho, atirado e sem esboçar qualquer reação. É uma batalha infernal contra esse demônio. Com os outros vivo bem. Hoje mesmo estou me sentindo ótimo, mas cheio de raiva e rancor de certas situações do mundo que não me transmitem qualquer outro sentimento. Isso faz parte do meu estar se sentindo ótimo. Estar são o suficiente para olhar em volta e ver este mundo desgraçado
  • 48. 51 em que vivemos como ele é. Ou então perceber o quanto as pessoas se tornam socialmente desprezíveis enquanto tentam ser socialmente aceitas, se enquadrar bem no sistema e ser o chamado bem sucedido. Para isso tudo fica o meu mais saudável desprezo. ... A lua parecendo uma risada Mas que por vezes também chora Com uma fome canibal O vampiro sedento e marginal Por trás dos muros Oculto pelo nevoeiro Tantos mortos Tantos assassinos Vão encher as páginas do jornal Tantas vítimas Tanto sangue Vão tingir as páginas matinais ... Tem uma enfermeira nova que está bem dentro do padrão de beleza aceito pela maioria. Fico impressionado como os homens, tanto funcionários quanto pacientes, começam suas patéticas danças do acasalamento, com débeis trejeitos que matariam um orangotango de vergonha. Não que tenha algo contra as paqueras, mas é o ridículo do ser humano em si que me cansa. Como ele se move, como age e, principalmente, quando se acha importante. ... As psiquiatras estão fazendo um bom trabalho com as medicações. Não são muito boas com as consultas e conversas, mas estão usando as drogas certas para ajustarem meu cérebro.
  • 49. 52 Parecem estar chegando cada dia mais perto do meu equilíbrio, sem neutralizar minha personalidade. Continuo ácido, amargo e revoltado com a sociedade e visceralmente crítico, mas sem deixar a maldita depressão me transformar em um monte de lixo. Estou achando perfeito assim. Só espero não depender destes medicamentos por muito tempo, pois o cérebro não funciona do mesmo jeito com eles. Percebo a diferença. Mesmo de uma forma sutil, consigo perceber. Me falaram que é só no período de adaptação. Vamos ver Entre os grupos e as rotinas do dia, o tempo vago faz o dia parecer eterno e enche tudo de tédio. A sensação de vazio é angustiante e torna os dias de pessoas mais ativas insuportáveis. Muitos ficam andando de um lado para outro ou insistem para ganhar medicações extras para dormir. Não há jogo de cartas, violão ou tv que dure pra sempre. Agora que estou melhor e não quero passar os dias soterrado nos lençóis e cobertores, escrevo até cansar a mão e os dedos doerem. Não sei se vou usar tudo que estou escrevendo, ou como organizarei isso, mas não encontro nada melhor para fazer no momento. Por vezes interajo um pouco com os demais, mas minha paciência é pouca para as pessoas.Tem alguns com quem consigo um pouco mais, contudo também tem um limite. Não é culpa das pessoas. Esse negócio chato e cristão de culpa não cabe no papo. É questão da minha natureza. Os botequins que frequento são os únicos lugares onde encontro pessoas com quem consigo conviver. Não sei como será agora ao sair da internação, já que pretendo ficar um bom tempo sem álcool. São lugares que, em sua maioria, vendem apenas produtos alcoólicos. Provavelmente não comparecerei a estes locais. Não sei se conseguirei isso ou se existe uma pequena possibilidade disso acontecer. Talvez tenha de construir um novo mundo, uma nova vida. Uma realidade ...
  • 50. 53 que ainda não faço a menor ideia de qual será. Mas vamos uma coisa de cada vez. Ainda terei de passar pelos últimos dias. ... A noite anterior a internação foi algo muito além da tristeza extrema. Estava me sentindo muito deprimido. Desci até os bares e encontrei o pessoal todo reunido. Meu rosto estava a réplica da lápide. Trataram logo de encher um copo e me passar. A cerveja era o puro sabor da tristeza. Tentei empurrar uns goles e a coisa não descia. Os amigos vinham me animar, mas por mais que forçasse um sorriso, a impressão de quem me olhava é que tinha tomado uma talagada de fel. Esperei se distraírem e saí saindo. Dois mais ligados perceberam minha retirada estratégica e falei que já voltava. Cheguei em casa, fui para o quarto e pensei sobre a batalha que já travava há muito tempo contra o mal que me afligia. Não conseguia mais lutar contra aquilo sozinho. Já faziam anos que tentava vencer a depressão e estava perdendo feio. Não suportava mais a dor, a angústia e tudo que vem junto. Era muito sofrimento pesando sobre minha carcaça e estava desistindo de viver. No dia seguinte, depois de uma noite horrível e mal dormida, levantei logo cedo e fui em busca de ajuda. Cheguei ao serviço onde já sabia que conseguiria um encaminhamento para internação e expliquei sobre meu caso. Daí já fui levado para o setor que funciona como uma internação provisória, enquanto você espera a vaga em uma clínica ou algo que o valha. Ali eles vão te distribuindo para os locais adequados, mas enquanto isso você já vai recebendo as medicações e certo acompanhamento. Fiquei três ou quatro dias neste setor, se não me engano. Dali fui transferido para a clínica onde estou. É bom lembrar isso agora que estou me sentindo muito melhor e já chegando na reta final. Dentro de pouco tempo estarei
  • 51. 54 passando pela mesma porta por onde entrei. Parece que fazem meses. ... Acordei com uma enfermeira me chamando para medir meus sinais vitais. Era uma rotina que se repetia algumas vezes no dia, em intervalos regulares.Acordei bem. Estava tudo ok. Para melhorar, ela era uma das enfermeiras legais e fazia parte da equipe do dia. Tive uma boa noite de sono. Dormi até mais que de costume. Enquanto ela encaixava o oximetro em meu dedo, lembrava do sonho que tive. Nele eu estava tomando uma cerveja no bar do Moa e um vocalista de uma banda que curto bastante tomava um traçado na outra ponta do balcão. O Bar do Moa era maior que na vida real e aconteciam várias situações divertidas enquanto interagíamos.Achecagem dos meus sinais vitais deu tudo certo e meus companheiros de quarto foram sendo chamados para passarem pelo mesmo processo. Fui dar aquela caminhada de sempre até o refeitório enquanto lembrava mais detalhes do sonho. Pelos enfermeiros que passei pelo caminho, pude observar que o plantão seria composto em quase sua totalidade por uma equipe gentil, que compreendia bem o seu trabalho. Isso era realmente um bom presságio. Olhei pela janela e vi o que parecia uma pintura de tão bonito. Pena que as malditas janelas não abriam. Mas não ia deixar que nada estragasse o meu domingo perfeito. ... Gritos pelo dia Gritos pela noite Nada consegue nos parar Nem as correntes Nem os muros Se matarem vinte
  • 52. 55 virão quinhentos Nem as baratas têm um exército tão eficiente Nos multiplicamos nas sombras Criados pelos seus escombros Somos frutos de suas mentiras e traições Somos os gemidos de sua sociedade decadente que adoece os irmãos Doença que vem dessa perversa competição ... É de se pensar que quanto mais sai, mais chega. Parece existir uma fila gigantesca esperando para se tratar dos mais diversos males psíquicos. Neste momento a depressão não é mais a maioria por aqui. Temos uma diversidade maior de problemas. Existem alguns que já passaram por várias internações e ainda retornam buscando ajuda. Várias idades e classes sociais. A maioria estaria por aí, vagando em seu sofrimento, se não existisse um serviço público que lhes desse apoio. Muitos destes males são causados pela própria sociedade. Daí não vejo estes serviços públicos como caridade ou bondade, como muitos vêem. São uma obrigação social. UMA SOCIEDADE MAIS SAUDÁVEL SE FAZ NECESSÁRIA COM URGÊNCIA! ... Uma das preocupações que tive quando decidi pela internação, foi de mexerem na minha cabeça e me deixarem como aquelas figuras que acham todo mundo bom e que tudo são flores. Mas deu certo. Mexeram só no que devia. Continuo ácido e corrosivo, mas sem a maldita depressão paralisante. Que coisa boa estar sem a companhia dessa doença desgraçada. Faz realmente muito tempo que não me sinto como nestes últimos dias. Tiraram só o que me atrapalhava. Estou só um pouco ansioso para ver como
  • 53. 56 isso vai funcionar lá fora. Estou meio confuso na contabilidade e não sei se é hoje ou amanhã meu último dia. Como não temos médicos aqui aos domingos, terei de esperar até amanhã parar tirar a dúvida sobre minha alta. ... Mais um dia passa com o tempo passando na minha mente contando os segundos para voltar só não sei para onde mesmo assim quero voltar talvez para onde nunca estive Tomara que exista um lugar para onde possa voltar onde possa estar e possa ficar Muitos aqui não tem e é aí que mora o perigo do vazio voltar e a lágrima jorrar mas é preciso acreditar e seguir em frente e fazer o que tem de ser feito e nunca parar Tem tantos jovens já sofrendo o abandono do ser sem nunca ter conhecido o aconchego existencial mas não podemos nos entregar pois nos destruir é o que eles querem É preciso estar de pé e sempre continuar e não desistir Não sejamos mais um a tombar ...
  • 54. 57 Levantei ansioso em um dia que mal havia despertado. Refiz as contas junto aos companheiros de quarto e confirmamos. Era meu vigésimo primeiro dia de internação. Fui para um local da sala onde via a porta de acesso e fiquei esperando uma das psiquiatras ou a assistente social chegar. Uma enfermeira, daquelas que primam pela ótima qualidade de seu trabalho, perguntou como estava e veio medir meus sinais vitais. Respondi que estava mal do estômago devido a algo que não havia caído bem no jantar. Enfatizei que o pior, o que estava pegando mesmo, era a vontade de falar com alguém sobre minha alta. Ela foi à sala de enfermagem e voltou com a notícia que eu realmente cheguei ao vigésimo primeiro dia de internação, então amanhã, no vigésimo segundo, eu seria liberado. Vinte um dias ali, com mais três ou quatro esperando a vaga... Vinte e quatro ou vinte e cinco... Não iria entrar em desespero por mais um dia. Mas o que não dava para entender é porque algum dos outros plantões, vendo minha ansiedade, não fez o que essa pessoa fez agora. Daí eu já saberia o dia certo e evitaria ansiedade e frustração desnecessária. Era só gastar menos de dez minutos, como ela, para olhar algo que simplesmente estava escrito em algum lugar pela salinha deles. É realmente frustrante quando estamos em confinamento e chega a notícia que ficaremos mais cinco minutos que sejam. Imagina mais vinte e quatro horas. Só quem está na situação que sabe. Mas tudo bem Que venham as próximas vinte e quatro então. Mais um round. ... BLING BLING Queria dizer o indizível que está preso em minha garganta e você nem imagina e se espanta Soltando a bílis A hemorragia não estanca O ciclo se rompe mas a fala não tranca
  • 55. 58 A psiquiatra e a assistente social chegaram e começaram a organizar as altas, entradas, entre outras coisas. Embora a enfermeira já tivesse adiantado a notícia, ainda não tinha ouvido da própria médica e a menos de uma semana tive uma crise terrível, uma das piores. Passei o dia embaixo dos cobertores e não comi ou bebi praticamente nada.Apenas tristeza, amargura e pensamentos negativos. Sabia que isso podia por em cheque minha saída. Eu já estava bem e o problema de permanecer mais tempo que o necessário em uma internação é que, á partir do momento em que estamos bem, sentimos a necessidade de retomar nossa vida e o espaço começa a ficar cada vez mais tedioso porque você está ativo. Quando o cara está mal, a cama dele é todo o espaço que precisa, mas recuperado o papo é outro. Contudo ocorreu tudo bem. A princípio ela demonstrou o já esperado receio, mas depois viu que os últimos dias foram suficientes para minha recuperação. Ela havia feito um novo ajuste nas medicações e tal... Saí da sala com a combinação que no dia seguinte, pela manhã, seria liberado. Estava muito satisfeito, mas ainda tinha o dia pela frente. Queria que passasse o mais rápido possível. ... O tempo até a conversa parecia nunca passar. Depois, não andou mais rápido. Conversei um pouco com os colegas de quarto e tentei dormir para ver se acordava já no final do dia. Não deu certo. Levantei e encontrei Vinho e pedregulho, um cara que chegou fazia pouco tempo e com quem tinha muito em comum. Eles estavam tocando uma viola no refeitório. Sentei junto e fiquei por ali. Depois de não ter mais o que inventar para fazer, a noite começou a chegar. Tomei a medicação e me deitei assim que pude. ...
  • 56. 59 Levantei cedo e fiquei na espera.Após um tempo que me pareceu exagerado, eis que chegou minha hora. Já estava com tudo pronto. Este livretinho escrito a mão em um bolso, a escova e pasta de dentes no outro, e as roupas separadas. Saí por aquela porta pensando em nunca mais voltar, mas com a consciência de que foi importante pra mim a decisão de me internar. Estava saindo como há muito não me sentia. O tratamento havia sido muito bom pra mim.Agora é mergulhar no mundo e ver no que dá.
  • 57. PUBLICANDO OS IMPUBLICÁVEIS Entre em contato e mergulhe no mundo da EMNM
  • 58. Nosso Blog: www.editoramerdanamao.blogspot.com No canto direito de quem olha temos nossos catálogos de poesia, contos e textos diversos, zines, HQs e nossa parte dedicada ao som exetremo com nosso selo, o Ruídos Absur- dos, e nossa distro. Visite também nossas redes no instagram, facebook e twitter. Acompanhe nosso canal do youtube e assista nossas produções audiovisuais. São programas, divulgações, clipes e muito mais. Você também pode entrar em contato pelo nosso e-mail editoramerdanamao@yahoo.com
  • 59. Fabio da Silva Barbosa atua em diversas frentes. Lançou e-books, livros, zines, jornais, PDFs... veículos de comunicação em vários formatos. Organizou eventos, faz programas de rádio, produziu vídeos... Entre suas realizações está o zine Reboco Caído. Este zine ganhou o prêmio Fanzine 2016, no segundo Gibifest de Alvorada, em 2017. O Reboco Caído circula em versão impressa e digital, já conta com mais de dez anos de existência e passou do número 60. Além do trabalho solo, Fabio atua em coletivos e fundou com Diego El Khouri a Editora Merda na Mão. Livros: *Um Ano de Berro – 365 dias de fúria Editora Independente, Brasília, 2010 *Reboco Caído – Reflexos e Reflexões Coisa Edições, Rio Grande do Sul, 2014 *Salada Cascuda Candeeiro Cartonera, Pernambuco, 2016 *Palavras Marginais Porto de Lenha, Rio Grande do Sul, 2016. *Vomitando sangue Candeeiro Cartonera, Pernambuco, 2018 *Futuro Cemitério *Poesia Podre Editora Merda na Mão, Sistema Solar, 2020 e 2021 Armazém de Quinquilharias e Utopias, Rio de Janeiro, 2019 *Linhas Indigestas – coisa forte e direta Lumos, Curitiba, 2020 *Fábrica de Cadáveres – Do forno ao moedor