1. “Por mais brutal e poderoso que seja, o imperialismo não é invencível”,
Entrevista dada por José Reinaldo Carvalho aos jornalistas Priscila Lobregatte e José Carlos
Ruy, julho 2007.
1) Estamos observando neste momento uma espécie de
retomada da iniciativa norte-americana para a América Latina, que a Casa Branca vem
chamando de política “de povo para povo”. Como você vê essa nova tentativa de
intervenção política no continente e que medidas devem ser tomadas para evitar que os
EUA aumentem sua influência na América Latina?
José Reinaldo Carvalho – A Casa Branca proclamou 2007 como “ano do engajamento na
América Latina”. Trata-se de uma tentativa de retomar o controle da situação, depois de
seguidas derrotas eleitorais de candidatos das oligarquias pró-estadunidenses e do fracasso do
plano neocolonialista da ALCA. A América Latina está vivendo um período singular em sua
história, com a instauração de governos progressistas em muitos países, uma conquista
política ainda a consolidar. Em um caso particular, a Venezuela, a idéia do antiimperialismo,
da revolução e do socialismo volta à ordem do dia e isto influencia fortemente o rumo dos
acontecimentos. Na raiz desse fenômeno está o esgotamento do modelo neoliberal e da
capacidade de as classes dominantes locais estruturarem um sistema político que possa conter
as lutas populares. Os Estados Unidos nada têm a oferecer aos povos da América Latina.
Bush já é tratado como “pato manco”, está em fim de mandato e já não tem a credibilidade
necessária para agir num cenário tão complexo. O expediente a que recorrem agora é essa
tentativa de explorar as diferenças políticas entre os processos venezuelano e brasileiro. O
“engajamento” de Bush com a América Latina é uma tentativa de recobrar influência política,
mas tende ao fracasso, pois os problemas sociais na região são muito graves para encontrar
uma solução fácil na chamada política “de povo para povo”, que distribui migalhas e
corrompe governos, lideranças e organizações não governamentais. A sede de justiça e
progresso social não será satisfeita com discursos vazios, lisonjas e esmolas. Ao esforço de
Bush para aumentar a influência norte-americana na América Latina, as forças progressistas
têm de responder com a luta antiimperialista, da qual faz parte o fortalecimento das formas
propostas de integração – Alba, Unasul, Mercosul.
2 – A imprensa vem noticiando a existência de uma “briga” entre Lula e Chavez, por
conta dos últimos desentendimentos entre o presidente venezuelano e o congresso
brasileiro. Que tipo de riscos o desentendimento entre os dois chefes de Estado poderia
trazer para a integração latino-americana? Como esfriar o clima que se instalou? Qual
o significado desta ofensiva da direita neoliberal contra a Venezuela, o Mercosul e a
integração latino-americana?
José Reinaldo Carvalho - Não vejo a situação criada como uma “briga” entre Lula e Chavez
nem como um antagonismo entre o Brasil e a Venezuela. É preciso encarar o conflito que se
estabeleceu entre o presidente Chavez e a direita brasileira com naturalidade. E ter clareza
sobre o lado em que devemos estar. Doravante, contenciosos como este farão parte do
cenário político, porquanto a Venezuela emite claros sinais de que avançará no caminho da
luta antiimperialista e isto vai gerar reação. Quanto à direita brasileira já a conhecemos bem,
2. é a expressão política e ideológica de uma classe dominante retrógrada cujos interesses se
confrontam não apenas com os do movimento antiimperialista geral, mas em primeiro lugar
com as aspirações do povo brasileiro. Os fatos demonstram que a direita brasileira, através da
mídia e de algumas lideranças políticas no Congresso Nacional, decidiu pôr o governo do
presidente Chavez na sua alça de mira. E o fez da pior forma, ultrapassando os limites do
respeito à soberania nacional. É a mesma direita que tentou decretar o impedimento do
presidente Lula durante a crise política de 2005. O presidente Chavez reagiu à sua maneira e
de vítima foi transformado em culpado. Quando as coisas pareciam estar se acomodando,
depois de declarações conciliatórias dos dois presidentes, eis que a aprovação do ingresso da
Venezuela no Mercosul pelo Senado passou a ser condicionada a um pedido de desculpas.
Esta foi a origem do chamado ultimato, que foi também uma reação do presidente
venezuelano a uma exigência impertinente. Se há problemas envolvendo interesses
comerciais determinando que se tenha mais paciência e mais tempo nas negociações até que
amadureçam as condições para a completa incorporação da Venezuela no Mercosul, creio
que a diplomacia, o elevado nível das relações bilaterais e os mecanismos do Mercosul são
suficientes para encontrar e encaminhar soluções. É normal que existam dificuldades
objetivas, que residem em interesses concretos de setores empresariais dos dois países e nas
assimetrias entre as economias dos países do Mercosul. Há dificuldades também
relativamente às estratégias de médio e longo prazos de ambos os governos e às opções de
caminhos distintos de como se inserir na ordem mundial. Isto se reflete em concepções
divergentes sobre a integração. Mas as duas partes não podem fugir de uma evidência: o
Mercosul é uma alavanca importante para promover a integração continental e é útil numa
estratégia de luta por um novo modelo econômico voltado para o desenvolvimento. Não
deveríamos considerar o Mercosul com a mesma ótica das classes dominantes, cujo valor
consistiria apenas em “cativar” mercados. Um Mercosul restrito aos aspectos meramente
mercantis já não corresponde às exigências da luta pelo desenvolvimento com soberania e
progresso social. A integração deve ter abrangência política, econômica, cultural e social,
deve ser uma opção verdadeiramente estratégica e não um expediente conjuntural. É sobre
esta base que os dois governos deveriam se entender. E eu acredito que se entenderão. A
atitude de rixa que alguns senadores adotaram, contrastada com esses objetivos maiores, não
terá maior significado, ficará apenas como a expressão do caráter mesquinho de quem a
adota.
3 – A população norte-americana já deixou claro que deseja a retirada das tropas
americanas do Iraque. O Congresso do país, de maioria democrata, também tem
pressionado Bush. Já começam a aparecer em círculos do Partido Republicano e em
setores do governo Bush avaliações de que os EUA estão sendo derrotados no Iraque.
No entanto, Bush continua obstinado em sua posição de manter suas tropas de ocupação
no país. Como você analisa este cenário?
José Reinaldo Carvalho - Nada que os Estados Unidos façam alterará a dura realidade. A
ocupação do Iraque, assim como a do Afeganistão pelo imperialismo estadunidense, e
também os ataques israelenses no Líbano e na Palestina, inscrevem-se no quadro da política
chamada de “reestruturação do Oriente Médio”, que por sua vez serve o objetivo dos Estados
Unidos de controlar essa região estratégica rica em recursos energéticos. Em seu afã de
assegurar a hegemonia planetária, os Estados Unidos não se detêm, fazem-no percorrendo
prioritariamente o caminho das guerras de agressão, acarretando grandes sofrimentos para os
3. povos e tornando letra morta as noções de soberania nacional, diplomacia, multilateralismo e
direito internacional. Com o que não contavam era a encarniçada Resistência dos patriotas
iraquianos, como Israel não contava com a Resistência dos patriotas libaneses. Achavam que
seriam recebidos no Iraque como libertadores, mas estão sendo escorraçados como agressores
e inimigos da paz e da liberdade. Agora a situação chegou ao impasse. Se os quase 160 mil
soldados norte-americanos permanecerem no Iraque, só continuará aumentando o número de
mortos, o que causa profunda consternação e revolta na população estadunidense, maior
resistência no terreno e o aumento da consciência antiimperialista em todo o mundo. Se
baterem em retirada, como ponderáveis setores políticos e da opinião pública dos Estados
Unidos exigem, a humilhação será evidente. Está patente que, por mais brutal e poderoso que
seja, o imperialismo não é invencível.
4 - Em relação à Palestina, a crise se agravou nas últimas semanas, com a profunda
divisão entre o Fatah e o Hamas e a interferência direta de Israel em favor do líder
M.Abbas e atacando as forças do Hamas na Faixa de Gaza Em sua opinião, qual a
evolução possível para essa crise?
José Reinaldo Carvalho – O problema palestino só encontrará solução justa com a criação
do Estado Nacional, com governo próprio, Forças Armadas nacionais, soberania sobre um
território íntegro, repatriamento dos refugiados e devolução dos territórios ocupados à força
pelos sionistas israelenses. As trágicas divisões entre as forças palestinas, estimuladas pelo
imperialismo, têm a ver com perspectivas e estratégias distintas de libertação nacional. Nada
têm a ver com luta entre secularistas e fundamentalistas. Todos os planos de “paz”
apresentados pelo imperialismo constituíram uma burla dos interesses desse povo. Do mesmo
modo, as pregações “democráticas” dos Estados Unidos, que pressionam para que se
realizem eleições, mas não aceitam o veredicto das urnas. A questão de fundo é saber se
haverá uma paz justa ou uma contrafação de paz e de estado nacional. A unidade das forças
palestinas contra o inimigo comum sionista e imperialista é necessária e decisiva para o êxito
da causa nacional.
5 – A “crise dos mísseis” na Europa é mais uma etapa das dificuldades crescentes que o
imperialismo vem enfrentando. E uma das conseqüências dessa tentativa dos Estados Unidos
de instalar mísseis na República Tcheca e na Polônia foi a volta da Rússia ao cenário político
internacional com uma posição de força, de certa forma colocando em cheque a
unipolaridade criada desde o final da guerra fria. Que desdobramentos podem surgir disto?
José Reinaldo Carvalho - A rigor, salvo no momento da capitulação, sob Gorbatchev, e
durante o governo de Boris Yeltsin, a Rússia nunca deixou de exercer algum protagonismo
na cena internacional. O ex-secretário de Estado dos Estados Unidos, Henry Kissinger, um
dos principais formuladores da política externa republicana, chegou a dizer que não bastava
derrotar o comunismo, era necessário impedir a existência de uma Rússia forte. Ora, apesar
das diferenças políticas e ideológicas, tudo o que Vladimir Putin fez foi fortalecer a Rússia e
sua posição no cenário mundial. Hoje a Rússia tem uma parceria estratégica com a China, no
quadro da Organização de Cooperação de Xangai. Tal como se apresenta o tabuleiro mundial,
as contradições geopolíticas, algumas de natureza interimperialista, são inevitáveis. Um dos
aparentes paradoxos dos dias que correm é que os Estados Unidos querem impor pela força
uma política unilateral num mundo em que objetivamente já existem em gestação outros
4. pólos de poder. Mesmo entre os aliados dos Estados Unidos, há forças emergentes que
contestam a hegemonia de Washington. Essas contradições ajudam a minar o poderio do
imperialismo. Mas, na luta por um mundo de paz, democracia, cooperação, desenvolvimento
e respeito à soberania nacional, não se pode ter a ilusão de que a existência de vários pólos de
poder em competição entre si vá “domesticar” o imperialismo e de que o mundo que vem
será a expressão do equilíbrio de poder, de interdependência recíproca, de boa governança,
de políticas multilaterais, de vigência do direito internacional ou de coexistência tranqüila
entre o imperialismo e as forças antiimperialistas. Ao contrário, quanto mais os Estados
Unidos sentirem ameaçada a sua hegemonia, tanto maior será sua agressividade. Os Estados
Unidos têm em conta dois cenários para o exercício da sua hegemonia. Ou o fazem de
maneira unilateral, como agora, ou através do que chamam de multilateralismo assertivo, sob
sua liderança. O que não cogitam é o compartilhamento da hegemonia, o que por si só gera
conflitos.