Lord David Trimble foi um líder político fundamental no processo de paz na Irlanda do Norte. Ele liderou o Partido Unionista do Ulster nas negociações que resultaram no Acordo da Sexta-Feira Santa em 1998, estabelecendo um governo de compartilhamento de poder na província. Trimble recebeu o Prêmio Nobel da Paz por seu papel nas negociações. No entanto, ele expressa preocupação com o uso indevido da Irlanda do Norte como um "modelo" para outros conflitos, sem considerar adequadamente os contextos ú
2. David Trimble recebeu o Prêmio Nobel da Paz em 1998 e é amplamente
reconhecido como um dos principais responsáveis pelo processo de paz
na Irlanda do Norte. Como líder do Partido Unionista do Ulster, o
maior grupo político da Irlanda do Norte, desempenhou papel crucial
nas negociações do Acordo de Belfast [também chamado Acordo da
Sexta-Feira Santa], a fórmula de compartilhamento do poder, que, em
1998, permitiu à província seguir o caminho da paz, no qual perma-
nece até hoje.
Trimble foi eleito parlamentar em 1990 e líder do Partido
Unionista do Ulster em 1995. Nas eleições históricas para a Assem-
bléia da Irlanda do Norte em 1999, elegeu-se primeiro-ministro do
primeiro governo de conciliação da Irlanda do Norte. Sua liderança
prenunciou uma nova era de participação política na região. Além de
adotar a postura inédita de negociar com os nacionalistas do Sinn
Fein, Trimble estabeleceu relações com todos os partidos políticos bri-
tânicos, foi o primeiro líder unionista em uma geração a reunir-se
com o taoiseach (primeiro-ministro irlandês) e o primeiro a se encon-
trar com o presidente dos EUA.
A contribuição de David Trimble para a paz e o progresso polí-
tico na Irlanda do Norte foi reconhecida no país e no exterior. Além de
ganhar o Prêmio Nobel da Paz em 1998, com John Hume, do partido
nacionalista SDLP, foi nomeado Parlamentar do Ano por seus colegas
na Câmara dos Comuns britânica em 2000 e, no ano seguinte, agraciado
com um dos prêmios a parlamentares concedido pela revista Spectator.
Recebeu diversos títulos de doutor honoris causa de universidades do
Reino Unido, Estados Unidos, Canadá e Israel.
3. Lord David Trimble
L IÇÕES E RRADAS SOBRE
A I RLANDA DO N ORTE
Prefácio ..... 31
Introdução ..... 33
1. Porque o processo de paz emergiu nos anos 1990? ..... 35
2. Pré-condições: as bases para um diálogo inclusivo ..... 38
3. O Acordo da Sexta-Feira Santa: paz em quais termos? ..... 41
4. Falha em sustentar os fundamentos do processo ..... 43
Conclusão: os limites da analogia ..... 47
Apêndice: O Processo de Paz da Irlanda do Norte: Momentos Chaves ..... 49
Agradecimentos ..... 51
Prefácio
Por quase três décadas, o nome Irlanda prestada uma frase popular, é o “único
do Norte foi sinônimo de violentos con- jogo na cidade”. Políticos de todas as ver-
flitos. Os problemas que arruinaram a tentes na Irlanda do Norte agora operam
região foram vistos por muitos como dentro da estrutura criada naquelas ne-
intratáveis e aspectos permanentes da gociações. E parece que não há nenhum
vida do território. Mas, hoje, a campa- apetite, em nenhuma parte da comuni-
nha violenta do IRA terminou e as solu- dade, para um retorno à violência. Um
ções políticas estão se consolidando. capítulo negro em nossa história foi fe-
Com uma percepção tardia do que de- chado. Para chegar a esse ponto, foi ne-
via ter sido feito, todos vêem agora que cessário – e justificado por pacifistas e
o fim começou com cessar-fogo parami- democratas – correr riscos. O acordo
litar no meio dos anos 1990. No período, não foi fácil de ser fechado e exigiu deter-
um momento-chave foi o acordo multi- minação para aderir a ele em face à fre-
partidário conseguido em 10 de abril de qüente e feroz oposição e aos momentos
1998 – agora comumente chamado de de desespero.
“Acordo da Sexta-Feira Santa”. Mesmo O processo de paz não foi uma apos-
os maiores inimigos daquele diálogo ta ou um golpe no escuro. Ao contrário,
percebem agora que não havia – e não foi elaborado com base em uma leitura
há – nenhuma alternativa: tomando em- calculada da situação política, econômi-
Ajudamos você a reduzir custos, cuidando da natureza. Fale conosco. 31
4. Lord David Trimble
ca e de segurança na Irlanda do Norte. É para além de um pequeno e questionado
claro, houve perigos e dificuldades em canto do Reino Unido?
fazê-lo e o caminho para a paz não foi Minha finalidade em escrever este
necessariamente aquele que os pacifis- texto é dupla. Em primeiro lugar, fazer
tas tinham previsto. Houve eventos que uma prestação de contas do processo
contribuíram para enfraquecimento dos de paz, bem como do seu desenvolvi-
partidos políticos de centro e para uma mento ao longo dos anos 1990 e do início
migração de apoio em direção àqueles no novo século. Tive uma longa carreira
que tradicionalmente têm sido os extre- na política, que remonta ao início dos
mistas. Ao mesmo tempo, aqueles extre- anos 1970 – abrangendo alguns dos mais
mistas acabaram por se reposicionar de violentos e amargos períodos, uma época
um modo que rompia com o seu passa- que ficou conhecida como The Troubles
do. Após muitos anos de erros de cálculo (Anos Problemáticos). Testemunhei trá-
pelos partidos locais, e também com a gicos enganos em termos de política go-
passagem pelo poder de várias e diferen- vernamental ao longo desse caminho.
tes administrações britânicas de dife- Quando o processo de paz dos anos
rentes orientações, no fim fica a impres- 1990 começou a ganhar força, eu me vi
são de que nós acabamos fazendo tudo no papel de líder do Partido Unionista
certo. do Ulster (UUP), naquela época a maior
A natureza da conquista, no entan- legenda independente na Irlanda do Nor-
to, tem se tornado cada vez mais obscu- te. Por isso, desde o começo, tive acesso
recida pela falta de entendimento. Hoje aos principais protagonistas, antes e de-
em dia, é comum ouvir que o caso da pois do Acordo de Belfast na Páscoa de
Irlanda do Norte constitui um exemplo 1998. Ao deixar registrada neste traba-
para o resto do mundo, como um farol lho a minha leitura dos eventos, espero
de paz e uma luz-guia para áreas onde a contribuir para uma compreensão mais
violência domina a vida política. As li- profunda do que realmente aconteceu
ções da Sexta-Feira Santa têm sido men- na Irlanda do Norte.
cionadas como respostas para situações A segunda razão para escrever o tex-
como a do Sri Lanka e da Espanha, da to é expressar um alerta sobre a tendên-
questão Palestina-Israel e mesmo em cia de se colocar a Irlanda do Norte como
relação ao Iraque. Recentemente, fui en- modelo para a resolução de conflitos,
corajado a acompanhar uma delegação sem considerar corretamente o contex-
política da Irlanda do Norte que se en- to no qual o processo de paz está ocor-
controu com representantes de partidos rendo. Ao longo do último ano, tenho
políticos do Iraque. Participei do evento, ficado cada vez mais preocupado que
que ocorreu na Finlândia em setembro isso esteja acontecendo. Ou seja, mui-
de 2007, mas não pude deixar de achar tos têm usado nossa experiência de um
um tanto divertido que o grupo incluísse modo que não representa o que realmen-
a presença de um oponente da imple- te aconteceu. Por exemplo, quanto mais
mentação do acordo de 1998. Ao mes- ouço falar sobre as “lições” da Irlanda do
mo tempo, também fiquei intrigado e Norte aplicadas ao Oriente Médio, me-
preocupado em saber quão equilibrada nos tenho certeza de que esses ensina-
foi a mensagem que o Iraque recebeu. mentos foram compreendidos.
Quais as lições do processo de paz da Tem havido muito falatório sobre a
Irlanda do Norte? Serve para todos ou necessidade, ou não, de se manter con-
depende de com quem você fala? Essas tato com aqueles que consideramos ter-
lições podem realmente ser aplicadas roristas. Essas pessoas usam a seguinte
32 Ajudamos você a reduzir custos, cuidando da natureza. Fale conosco.
5. Lord David Trimble
lógica: se as negociações com o IRA leva- vre pode oferecer uma saída para o que
ram a um acordo de paz na Irlanda do julgamos serem conflitos aparentemen-
Norte, Israel tem de estar preparado para te sem solução. Os governos deveriam
tentar a mesma aproximação com o Ha- iniciar tais diálogos, dizem esses argu-
mas. É muito tentador supor que esse mentos, com todas as partes de um dado
tipo de discurso é sempre bom. E que, so- conflito, sem pré-condições e com ên-
bre essa suposição, deve-se pôr de lado fase em trazer para o diálogo os extre-
objeções pessoais e morais e mágoas mistas, porque somente assim a paz
passadas em nome do bem maior. Essa duradoura pode ser alcançada.
abstração freqüentemente vem junto Os que aderem a tal ponto de vista
com o sentimento de que o “diálogo é o consideram inevitável o processo de
único caminho para avançar”. Por isso, paz incluir aqueles que poderiam ser ro-
é de fundamental importância deixar tulados de terroristas. Em resumo: se
claro o que “conversar” e “dialogar” na eles são parte do problema, é razoável
verdade significam. E lembrar que tempo que façam parte da solução. Nessa li-
certo e contexto são elementos críticos nha de raciocínio, faz-se muito esforço
para qualquer iniciativa. Infelizmente, para encontrar terroristas aparentemen-
isso raramente é feito e os possíveis ris- te moderados com os quais se possa “fa-
cos não são seriamente considerados. Eu zer negócios”. Como Hain colocou, “o
espero que este texto ajude a corrigir tal principal desafio para o governo foi
engano. identificar os elementos receptivos den-
tro das comunidades, encorajá-los e
apoiá-los. Identificar líderes com esse
Introdução
perfil é essencial para o sucesso.”
Em uma audiência na Chatham House Esse tipo de “modelo” tem sido ado-
(Real Instituto de Assuntos Internaciona- tado e aplicado a conflitos fora da Irlan-
is), em junho de 2007, Peter Hain, então da do Norte. Discursando em Londres,
secretário de Estado da Irlanda do Norte, recentemente, por exemplo, o general
apresentou a província como um “mode- David Petraeus – o homem encarregado
lo de resolução de conflitos”. O processo de comandar as tropas americanas no
de paz ali, afirmou ele durante sua fra- Iraque – falou da influência que o para-
cassada campanha para tornar-se líder digma da Irlanda do Norte tinha tido na
do Partido Trabalhista no Parlamento, política americana, particularmente em
deveria permanecer “como uma inspira- relação ao esforço de reconciliar os ira-
ção e talvez um guia para outros na reso- quianos (especificamente, os sheiks suni-
lução de conflitos”. O ponto central da tas do movimento “Despertar Anbar”)
tese de Hain era a sua compreensão do envolvido numa revolta anticoalizão.
fator principal do sucesso na Irlanda do Muitas das ações de inteligência, disse,
Norte: a boa vontade do governo britâni- tinham sido inspiradas na experiência
co em “dialogar com os terroristas”. Em britânica na Irlanda do norte. Por outro
suas palavras: “o cerne desse processo – lado, no Iraque, o conselheiro de Segu-
e seu objetivo último – foi o desenvolvi- rança Nacional, Muaffaq Al-Rubaie, e
mento do diálogo em todos os níveis”. um tenente de confiança do líder da Al
Em seu discurso, o secretário de Esta- Qaeda no Iraque, Abu Mussab Zarkawi
do articulou um conjunto de princípios- (entrevistado no início de 2005 pela re-
guias que tem se tornado incrivelmente vista Time) tinham uma visão diferente
na moda em tempos atuais. No centro dos eventos na Irlanda do Norte (e
está a noção de que somente o diálogo li- Al-Rubaie ainda visitou a província pes-
Ajudamos você a reduzir custos, cuidando da natureza. Fale conosco. 33
6. Lord David Trimble
soalmente): para ambos, o processo fora Forum (Fóruns de Conflitos), um grupo
um exemplo de como movimentos in- de pesquisas interdisciplinares dirigido
surgentes poderiam simultaneamente pelo primeiro oficial de inteligência bri-
se integrar ao sistema político democrá- tânica, Alistair Crooke. A organização
tico e manter pressão por concessões incentiva os governos ocidentais a se en-
por meio do contínuo uso de ameaças gajarem politicamente com o Hamas e
ou violência. Na visão de Rubaie, o pre- outros movimentos islâmicos sem um
cedente da Irlanda do Norte era obvia- conjunto rígido de pré-condições. Um
mente negativo; na visão jihadista, era membro do conselho do CF, Gabrielle
encorajador. Rifkind, argumentou em recente artigo
Em nenhum outro lugar, entretanto, político para o Oxford Research Group,
a analogia com a Irlanda do Norte é apli- que as atuais exigências do Ocidente
cada tão vigorosamente quanto no caso para a aproximação com o Hamas são
do conflito Israel-Palestina. As lições do contraproducentes. Para confirmar o ar-
território europeu são freqüentemente gumento, ela citou o processo no Ulster,
citadas como uma inspiração. Uma vi- onde “certo número de assuntos espi-
são equivocada cada vez mais comum nhosos” foi postergado para facilitar as
sustenta que a paz somente poderá ser negociações entre o governo britânico e
alcançada se as pré-condições para o o IRA. Para Rifkind, a mesma estratégia
diálogo forem diluídas significantemen- tem de ser usada com o Hamas.
te, tornando mais fácil trazer o Hamas Uma linha similar de pensamento
para o processo. Por essa razão, muitos pode ser vista no trabalho do Forward
se empenham em identificar os elemen- Thinking, uma instituição fundada em
tos moderados do movimento, a fim de abril de 2004 por Willian Siegharte Oliver
escolher aqueles que poderiam ser fa- McTernan, que lista entre seus objetivos
voráveis a um futuro processo de paz. o desejo de “promover um processo de
Também aqui, o paralelo é supostamen- paz mais inclusivo no Oriente Médio”. A
te inspirado no caminho de paz do Sinn iniciativa divulga como meta promover
Fein/IRA e da Irlanda do Norte. um ambiente de diálogo entre israelen-
Obviamente, a procura por “extremis- ses e palestinos, implementando para
tas dóceis” é tentadora, mas a armadilha isso uma série de conversações entre lí-
em potencial de tal esforço é freqüente- deres políticos conservadores e de moti-
mente ignorada. O maior problema des- vação religiosa de ambos os lados.
sa ação é tende a ser colocar em posição A lógica desse discurso é clara. A ver-
central aqueles que são ou foram grande dade é que as facções religiosas israelen-
parte do problema – o que geralmente ses nunca foram excluídas de qualquer
enfraquece aqueles gastaram o mesmo diálogo – particularmente por serem
tempo na procura de soluções. Nesse membros do governo (como é hoje o caso
ponto, existe ainda a tentação de pagar do partido político Sephardi, o Shas). As
para se livrar das importunações dos referências a líderes de “motivação reli-
mais bombásticos e faladores. Contudo, giosa” e a “ambos os lados” cabem prin-
apesar das evidências de que tais movi- cipalmente em relação ao Hamas. Eles
mentos podem ter efeito contrário, esse são os “líderes políticos conservadores”
modelo de estratégia resiste e a Irlanda cuja entrada no processo de paz a orga-
do Norte é considerada como exemplo nização procura encorajar. Mais uma
de sucesso de sua aplicação. vez, o eco nesse caso é a suposição de
Um defensor desse tipo de aproxi- que tal foi a estratégia da aproximação
mação, por exemplo, são os Conflicts britânica na Irlanda do Norte.
34 Ajudamos você a reduzir custos, cuidando da natureza. Fale conosco.
7. Lord David Trimble
Lá, o governo foi cuidadoso em in- mente quinze anos. A primeira lição que
cluir extremistas de ambos os lados da aprendi na Irlanda do Norte é que, mes-
divisão política – tanto legalistas pró- mo que se possa conter militarmente
britânicos como republicanos antibritâ- movimentos nacionais terroristas, não
nicos. De fato, as eleições de 1996, que se consegue derrotá-los ou erradicá-los.
decidiram quem poderia fazer parte das No fim, você precisa se comprometer
conversações de paz, foram cuidadosa- com eles.”
mente desenhadas para assegurar que Para conseguir a paz no Oriente Mé-
partidos unionistas menores, como o dio, o Ocidente deve adotar uma estra-
Partido Unionista Progressista (PUP/ tégia semelhante, comprometendo-se
Progressive Unionist Party) e o Partido com o Hezbollah e o Hamas. O que
Unionista Democrático (UDP/Unionist Ancram não chegou a deixar claro, entre-
Democratic Party) ganhassem cadeiras tanto, é se o esperado engajamento de-
suficientes para participar. A estratégia veria se basear nas mesmas condições
assegurou ao governo a possibilidade de, existentes na Irlanda do Norte ou deve-
um dia, comprometer-se com o Sinn ria ser “incondicional”, como recomen-
Fein sob a bandeira de “conversar com dado por Hain e outros.
todos os lados”. Esse cenário permitiu Em meio a esse cenário, é certamen-
aos envolvidos relevar as discórdias e, te válido perguntar: Qual é a essência da
para o governo britânico, prosseguir experiência da Irlanda do Norte para um
com a sua verdadeira agenda: iniciar con- processo de paz? Há lições que podem
versações com representantes do IRA. ser derivadas da Irlanda e trabalhadas
Ou seja, conforme aconteceu naquela em um modelo coerente de resolução
época também acontece agora: essas re- de conflitos? E esse modelo se aplicaria
ferências à necessidade de incluir no a qualquer lugar – particularmente ao
processo os conservadores israelenses e Oriente Médio?
palestinos, na verdade, dizem respeito a É na esperança de conseguir algumas
legitimar a entrada do Hamas nas con- respostas que este texto reexamina o
versações de paz propostas. modelo do processo de paz da Irlanda
Em julho de 2007, Michael Ancram, do Norte. O objetivo é rever o que real-
um parlamentar sênior do Partido Con- mente aconteceu na Irlanda do Norte,
servador (membro da House of Com- questionar o que aconteceu no fim do
mons, instituição similar à Câmara dos processo e saber como a província está
Deputados no Brasil) e ex-ministro no hoje. Ao mesmo tempo em que essa é
gabinete da Irlanda do Norte, argumen- uma história de inegável sucesso, tam-
tou que os britânicos tinham dançado bém pode ser descrita como um caso
com lobos na Irlanda do Norte. O gover- cheio de erros. E é de igual importância
no britânico, disse ele, abriu conversa- estabelecer quando e por que ocorreram.
ções com o IRA, que, enquanto estava
dialogando, continuava a matar solda-
1
dos, além de assassinar e mutilar civis.
PORQUE O PROCESSO DE PAZ
Ancram afirmou que “nós continuamos
EMERGIU NOS ANOS 1990?
porque concluímos acertadamente que
não havia nenhuma solução ao conflito Um mito popular que surgiu em torno
na Irlanda do Norte que não viesse a in- das origens do processo de paz da Irlan-
cluir o republicanismo irlandês. Come- da do Norte é o de que o governo britâni-
cei a dialogar com fundamentalistas co mudou sua posição no final dos anos
republicanos irlandeses há aproximada- 1980 e começo dos anos 1990. A narrati-
Ajudamos você a reduzir custos, cuidando da natureza. Fale conosco. 35
8. Lord David Trimble
va diz que, percebendo que as forças de sido facilitado para a participação do
segurança não poderiam derrotar o IRA, IRA: o encontro teve lugar apenas pou-
o governo optou pela exploração do diá- cos dias depois de um tênue e temporá-
logo com a organização, algo que tinha rio cessar-fogo e Gerry Adams, o futuro
rejeitado anteriormente. Na melhor das líder do Sinn Fein, o braço político do
hipóteses, esse entendimento se baseia IRA, foi solto para que pudesse partici-
numa compreensão cronológica falha da par. Vendo a aproximação como um si-
política britânica em relação à Irlanda nal da fraqueza britânica, o IRA chegou,
do Norte nos últimos trinta anos. Na deixou um ultimato e foi embora. Quando
pior, tal ponto de vista é enganoso e fal- o cessar-fogo foi quebrado na seqüên-
so, como poderemos demonstrar. cia dos acontecimentos, o IRA lançou
No início dos anos 1990, surgiu a his- uma explosiva campanha de violência –
tória de que o governo britânico teria culminando no ataque da “Sexta San-
mantido comunicação com o IRA e men- grenta” (Bloody Friday), na qual 22 bom-
sagens teriam sido passadas às escondi- bas foram detonadas em uma hora e
das entre ambas as partes. Na época, a meia em Belfast. Nove pessoas foram
palavra que o governo de John Major mortas e mais de cem ficaram feridas na-
usou para descrever tal processo foi “con- quele que provou ser um dos mais horrí-
tato”. Em parte, isso foi feito para refu- veis ataques no conflito.
tar a idéia de que o governo tinha aberto Mais tarde, a Bloody Friday tornou-
diálogos formais com o ainda violento se apenas um incidente dentro do que
IRA; mas também refletia o fato de que seria o pior ano do período do The Trou-
não estavam engajados em negociações bles. Mais pessoas foram assassinadas
oficiais com os republicanos irlandeses. em 1972 do que em qualquer ano, pois a
É importante reconhecer que a deci- campanha do IRA teve resposta na for-
são de conversar com o IRA no começo ma de ataques ferozes de paramilitares
dos anos 1990 não representou uma legalistas.
mudança revolucionária na política bri- Em sua leitura na Chatham House,
tânica. Na verdade, sucessivos governos defendendo o diálogo como forma de
exploraram a possibilidade de engajar terminar um conflito, Peter Hain fez uma
os republicanos em algum processo de declaração amplamente aceita: “tentar
negociação. Isso fica evidente na discus- quase sempre vale a pena”. Francamen-
são que cercou o cessar-fogo do IRA em te, a experiência de trinta anos atrás na
1972. Na ocasião, os líderes do grupo fo- Irlanda do Norte sugere que não é neces-
ram convidados a falar diretamente com sariamente assim e pode ser perigoso
representantes do governo britânico acreditar nisso. “Tentar” pode ter boas
(embora ambos os lados tenham sido intenções, como foi o caso de 1972, mas
cuidadosos em não usar a palavra “nego- nem sempre vale a pena e pode, de fato,
ciação” para descrever o encontro). ser extremamente contraproducente.
Uma delegação de altos dirigentes É fundamental estabelecer, por essa
do IRA (incluindo Gerry Adams e Martin razão, que, se tal esforço é para ser tenta-
McGuiness) foi montada com o consenti- do, o mais importante é fazê-lo no tem-
mento do governo. Voaram secretamen- po e no contexto certos. O que, então,
te para Londres, em avião da Força Aérea, tinha mudado no fim dos anos 1980 e co-
para falar com o secretário da Irlanda do meço dos anos 1990, que permitiu ao go-
Norte, Willian Whitelaw. Embora bem- verno britânico testar essa via de novo,
intencionado, o movimento de Whitelaw eventualmente com mais sucesso? O
se provou desastroso. O cenário tinha cenário foi erguido para a participação
36 Ajudamos você a reduzir custos, cuidando da natureza. Fale conosco.
9. Lord David Trimble
direta do IRA no processo de paz que co- relaciona de modo muito próximo ao se-
meçou a emergir no começo dos anos gundo ponto de discussão deste texto, a
1990. questão das pré-condições.
O jornalismo investigativo recente- No início dos anos 1990, foi o IRA – e
mente tem sugerido que as origens do não o governo britânico – que foi força-
processo de paz podem remontar aos do a alterar sua estratégia de modo a as-
anos 1980. Contatos indiretos parecem segurar conversas inclusivas. E por que
ter sido feitos por volta de 1986-87 atra- isso aconteceu? Por causa da pressão mi-
vés de cartas trocadas entre o presidente litar. Cada vez mais militantes e seções
do Sinn Fein, Gerry Adams, o secretário ativas do IRA estavam sendo desmante-
britânico de estado Tom King, bem como lados pela lâmina afiada do aparato de
o Taoiseach (primeiro-ministro da Re- segurança do estado britânico na Irlan-
pública da Irlanda) Charles Haughey. da do Norte. O maior exemplo foi a em-
No entanto, logo ficou claro que havia boscada de Loughgall, em maio de 1987,
certas condições que teriam de ser al- que levou oito veteranos do IRA a serem
cançadas para os britânicos poderem se mortos pelo SAS (Special Air Service, ou
comprometer oficialmente em conver- forças especiais do Exército britânico),
sações com os representantes do IRA. na maior perda isolada do IRA durante o
Entre essas condições, havia a exigên- conflito. Loughgall, no entanto, não foi
cia básica que a violência do IRA fosse um episódio isolado. Durante o fim dos
contida. O governo britânico se recusou anos 1980 e começo dos anos 1990, uma
a conversar cara a cara com uma organiza- série de encontros violentos matou 21
ção que estava envolvida em uma ativa voluntários do IRA – a maioria das briga-
campanha militar. Além disso, os britâ- das Armagh e East Tyrone.
nicos também estavam convencidos de Na raiz do sucesso das operações con-
que não poderia haver nenhum resul- traterroristas, aparece a efetiva guerra de
tado predeterminado em qualquer ne- inteligência travada pelo governo britâ-
gociação envolvendo o IRA. O governo nico. Como as revelações nos anos re-
continuou a defender o princípio de con- centes das atividades de pessoas como
senso, segundo o qual o futuro da Irlanda Freddie Scappaticci e Denis Donaldson
do Norte poderia ser decidido somente mostraram, o IRA tinha sido amplamente
pelo povo da província. infiltrado por informantes. Era um fato
Esses dois princípios – que a conver- ao qual as lideranças do IRA estavam
sação deveria ser feita na ausência de vio- bem atentas. Havia um crescente senso
lência e que os resultados do diálogo entre os republicanos de que a luta ar-
poderiam não ser adotados – formaram mada da organização tinha alcançado
a base da posição britânica. Sem essas um beco sem saída. Os cálculos do ex-
condições atendidas, diálogos formais superintendente da divisão especial da
permaneciam inviáveis. Muitos acredi- RUC (Royal Ulster Constabulary, a força
tam que a recusa do IRA em aceitar as policial na Irlanda do Norte), Ian Phoenix,
condições britânicas em tal diálogo foi o comprovam isso. Em 1994, oito em dez
motivo do conflito entre 1972 e 1994 – operações planejadas pela brigada Bel-
essa intransigência só foi deixada de lado fast do IRA foram frustradas pela RUC.
no começo dos anos 1990. Quando pedi- Nenhum soldado britânico morreu em
ram o cessar-fogo de agosto de 1994, os serviço nas mãos do IRA em Belfast após
republicanos acabaram por aceitar os agosto de 1992. Além disso, o maior aten-
parâmetros definidos pelo estado britâ- tado a bomba contra alvos comerciais
nico para a conversa. Essa mudança se na cidade foi em maio de 1993. Era claro
Ajudamos você a reduzir custos, cuidando da natureza. Fale conosco. 37
10. Lord David Trimble
que, na capital da Irlanda do Norte, o Serviu como uma pedra fundamental
IRA estava sendo levado à imobilização. para o processo de paz que se seguiu.
Mesmo que mantivesse a capacidade Uma iniciativa conjunta, anunciada pe-
de um ataque espetacular ocasional los governos britânico e da República da
(como demonstrou com bombas pode- Irlanda, em 15 de dezembro de 1993, o
rosas no coração de Londres em 1992 e documento em seu Artigo 9º estabelecia
1993), a força operacional do IRA tinha que as condições para as negociações
sido derrotada. No entanto, o IRA jamais de paz eram as seguintes: “os governos
admitiria uma derrota, mas considera- britânico e irlandês reiteram que a reali-
ria um empate com as forças britânicas. zação da paz envolve o fim permanente
Na superfície, isso iria parecer uma con- de uso ou apoio à violência paramilitar.
quista da organização terrorista. Diferen- Nessas circunstâncias, partidos eleitos
temente do IRA, entretanto, o governo democraticamente, comprometidos com
não precisava da vitória completa para métodos exclusivamente pacíficos, que
alcançar progressos políticos. Os britâni- mostrem sua aceitação do processo de-
cos sempre estiveram prontos para ir ao mocrático, estão livres para participar
encontro do IRA; a questão era quando do diálogo entre os governos e os parti-
o IRA perceberia a vantagem trocar a dos políticos no caminho à frente.”
campanha terrorista por oportunidades Pré-condições foram estabelecidas,
políticas potenciais. portanto, mas estavam sujeitas a inter-
É essa realidade que compõe o pla- pretações. O que, em qualquer situação
no de fundo do cessar-fogo do IRA – em dada, constituíam “um permanente fim
ambos os casos, em 1994 e em 1997 – do uso ou apoio a violência paramilitar”
bem como o do processo de paz que se e “um compromisso com métodos ex-
seguiu. E é isso que a obsessão atual clusivamente pacíficos”?
com a retórica do “diálogo inclusivo” fre- Após o primeiro cessar-fogo do IRA
qüentemente deixa de considerar. Diálo- em 1994, as lideranças republicanas quei-
go inclusivo somente se tornou viável xaram-se amargamente de que tinham
quando o IRA mudou de posição e acei- sido logradas pelo estado britânico na
tou operar dentro dos parâmetros do go- proposta de paralisação das hostilida-
verno britânico. des pelo simples fato de pré-condições
terem sido inseridas – a saber, a remo-
ção prévia de armas para a entrada nas
2
conversações que envolveriam todos os
PRÉ-CONDIÇÕES: AS BASES
partidos. Os nacionalistas irlandeses se
PARA UM DIÁLOGO INCLUSIVO
mostraram amplamente favoráveis à quei-
A noção de que o governo britânico en- xa dos republicanos. A mídia e o governo
trou nas conversações com as lideran- do presidente dos EUA, Bill Clinton,
ças republicanas no começo dos anos também não mostravam muita simpa-
1990 sem pré-condições é, como já foi tia pela posição do governo conserva-
demonstrado, falsa. Antes que a questão dor de John Major. Além disso, face às
do desarmamento tivesse obscurecido a críticas, o governo de Major falhou em
agenda do processo de paz, a constru- fazer o seu próprio escudo de proteção
ção de uma série alicerces básicos para sobre suas intenções em negociar com
qualquer acordo potencial foi colocada o IRA no longo prazo. De fato, é fre-
em ação. Em relação à formação dessa qüentemente esquecido que, antes do
base, a Declaração de Downing Street, cessar-fogo de 1994, Adams tinha se quei-
de 1993, foi um momento importante. xado por meses que o governo britânico
38 Ajudamos você a reduzir custos, cuidando da natureza. Fale conosco.
11. Lord David Trimble
tinha demandado uma ação de remoção diálogo; o desarmamento era visto como
de armas. a maneira de contornar isso. Continuar
Foi, na verdade, o governo da Repú- com as conversações teria criado uma si-
blica da Irlanda quem primeiro insistiu tuação na qual um dos lados – no caso o
na questão da remoção. Em 15 de de- IRA – estaria na posição de negociar com
zembro de 1993, dia da publicação da armas sobre a mesa, com a opção de re-
declaração de Downing Street, o então tornar à violência se o diálogo falhasse.
Tanaiste (deputado primeiro-ministro O cessar-fogo do IRA foi, de fato, quebra-
da República da Irlanda, nomeado pelo do em 1996, com o IRA alegando uma
Taoiseach), Dick Spring, falou da impor- “inaceitável” falta de movimento no pro-
tância de os grupos paramilitares depo- cesso – confirmando que sua ansiedade
rem suas armas para chegar ao fim da nessa frente estava longe de ser infun-
violência. “Entre os questionamentos le- dada. Vendo que estavam falhando em
vantados estava o de como conseguir conquistar os ganhos antecipados por
um fim permanente da violência”, lem- eles através dos meios políticos, o movi-
brou. “Nós estamos falando sobre depor mento republicano retomou a violência.
as armas e insistimos que isso não seria Foi dito na época que o “obstáculo”
uma simples e temporária paralisação do desarmamento foi derrubado poste-
da violência só para ver o que o processo riormente em 1997 durante o novo go-
político tem a oferecer”, afirmou Spring. verno trabalhista de Tony Blair. De fato,
Assim sendo, por aceitar o cessar- antes de vencer a eleição geral daquele
fogo dentro desse contexto, o IRA pare- ano, Blair tinha declarado que o impas-
ceu indicar sua aceitação dos termos. A se em relação ao desarmamento não se-
ofensa que eles posteriormente expres- guraria mais o processo de paz. Além
saram sobre a remoção das armas foi disso, a liderança republicana entrou nas
uma tapeação. O secretário de imprensa conversações em setembro de 1997, im-
para o Taoiseach (governo da República buídos de um espírito que pode ser tradu-
da Irlanda), Albert Reynolds, registrou zido pelas palavras de um grafiteiro de
que, em 1994, “Martin McGuiness falou Belfast: not a bullet, not an ounce (algo
francamente sobre a necessidade de de- como “sem munição, sem avanço”).
por as armas” no escritório do próprio Nesse contexto, só uma visão sim-
Reynolds. “Nós sabemos que armas te- plista pode ignorar o papel chave que os
rão de ser eliminadas”, ele aceitou. Ape- princípios de Mitchell, apresentados no
sar das alegações posteriores, é falso outono de 1997, desempenharam naque-
dizer que a remoção foi um gesto pura- la época. O documento emergiu a partir
mente simbólico, insistido pelos legalis- de uma comissão de três homens, for-
tas, que estavam desnecessariamente mada em novembro de 1995 e dirigida
tentando criar a impressão de uma “ren- pelo senador americano George Mitchell,
dição” do IRA. para ajudar a organização e acompa-
O desarmamento se tornou tão im- nhar a remoção das armas terroristas.
portante porque providenciaria a evi- Em janeiro de 1996, a comissão produ-
dência tangível de que os republicanos ziu um relatório baseado na percepção
tinham desistido da violência por bem. de que o IRA discordava era de desistir
Mas, no fim de 1994 e no começo de das armas antes que fossem admitidas
1995, causava preocupação o fato de a dentro das negociações. Em vez disso, o
palavra “permanente” não ter sido incluí- relatório recomendou que cada um dos
da no cessar-fogo do IRA. Tal situação participantes havia de “afirmar seu total
criou um ambiente muito difícil para o e absoluto comprometimento” com os
Ajudamos você a reduzir custos, cuidando da natureza. Fale conosco. 39
12. Lord David Trimble
seguintes seis princípios, conforme lista- cada. Em primeiro lugar, planos de reto-
dos no parágrafo 20 do relatório: mada da campanha pelo IRA tinham
surgido muito antes de Mitchell produ-
a Em resolver as questões políticas zir seu relatório (que foi criticado seve-
através de meios democráticos e ramente entre os republicanos – uma
exclusivamente pacíficos. verdade que não condiz com o discurso
b No total desarmamento de todas do IRA de ter voltado à guerra devido à
as organizações paramilitares. desonra de Mitchell pelos britânicos).
c Em aceitar que tal desarmamento Se não houvesse o relatório, o retorno à
deve ser verificado por uma comis- violência provavelmente teria aconteci-
são independente. É interessante do antes, mas o desejo republicano de
notar que após concluir seu traba- manter os americanos ao seu lado os le-
lho na Irlanda do Norte, George vou a atrasar a operação até depois da vi-
Mitchell se mudou para o Oriente sita do presidente Clinton a Belfast em
Médio, onde aceitou convite do novembro de 1995.
presidente Clinton em novembro De qualquer modo, posteriormente
de 2000 para uma comandar uma ficou claro que o governo não tinha aban-
“missão de pesquisa de informa- donado Mitchell. Se a exigência do de-
ções” na questão da violência en- sarmamento tinha sido uma forma que
tre israelenses e palestinos. o IRA encontrou para evitar o “perma-
d Em renunciar para si próprio e se nente” fim da violência, os princípios de
opor a qualquer esforço de outros Mitchell eram, por sua vez, uma mano-
em usar força ou ameaçar usar for- bra para contornar a questão do bloqueio
ça para influenciar o curso dos re- das negociações por causa da remoção.
sultados das negociações gerais. A nova estratégia britânica era ten-
e Em aceitar os termos de qualquer tar promover o desarmamento em para-
acordo alcançado nas negocia- lelo com o processo de conversação. As
ções e, em caso de discordância, negociações seriam definidas, na verda-
recorrer a métodos exclusivamen- de, pelo processo eletivo: aqueles que
te democráticos e pacíficos na ten- deveriam tomar parte nas discussões ga-
tativa de alterar qualquer aspecto nhariam um mandato nas urnas. Assim,
com o qual não concordem. longe de abandonar Mitchell, o governo
f Em incentivar o fim de punição endossou seu modelo e convocou elei-
por assassinatos e violência física ções para a Irlanda do Norte como um
e implementar passos efetivos prelúdio para o início das conversações.
para prevenir tais ações. O Sinn Fein se viu bloqueado em rela-
ção às conversações interpartidárias,
Evidentemente o relatório Mitchell se que começaram em junho de 1996: foi
distanciou da insistência do governo uma decisão deles de recusar a se movi-
conservador de John Major de que a remo- mentar decisivamente para longe da vio-
ção de armas deveria preceder a entrada lência – como tinha definido Mitchell.
do IRA nas conversações. Os republica- Apesar das reviravoltas, os fundamen-
nos aproveitaram a oportunidade para tos – pré-condições e uma estrutura para
a volta da guerra em fevereiro daquele futuras negociações – permaneceram em
ano, alegando que o governo de Major evidência, ainda que em uma ordem di-
havia engavetado o relatório Mitchell ferente. Mais tarde, em setembro de 1997,
após sua publicação no início de 1996. A o Sinn Fein foi aceito nas conversações,
realidade, no entanto, foi mais compli- mas somente após o IRA ter restaurado
40 Ajudamos você a reduzir custos, cuidando da natureza. Fale conosco.
13. Lord David Trimble
o cessar-fogo. As lideranças republicanas te pilar para o Acordo da Sexta-Feira –
posteriormente acabaram anunciando mais tarde ratificado em um referendo –
que aceitavam os princípios de Mitchell. foi a noção de “consenso suficiente”. Este
Mas não sem resistências. Um porta- conceito, inicialmente emprestado da
voz do IRA declarou em entrevista a um África do Sul, foi colocado em cena du-
jornal republicano local que a organiza- rante as negociações de Brooke-Mayhew
ção não era signatária deles e, por isso, de 1991/92. Na idéia de “consenso su-
não participava das conversações – um ficiente”, a unanimidade em parte de
protesto que o governo ignorou, enten- todos os partidos não é necessária para
dendo que não havia nenhuma “mura- conseguir selar uma decisão. Desse
lha chinesa” entre Sinn Fein e o IRA e modo, foi “suficiente” ter o suporte de
o movimento como um todo era indi- dois governos (britânico e da República
visível. da Irlanda) e a maioria de legalistas e na-
Em termos práticos, não importava cionalistas. Com efeito, os legalistas po-
quão dura a liderança republicana tenta- deriam apoiar as negociações através da
va parecer – de olho na base republi- UUP, com o suporte de pequenos parti-
cana, que não era fácil de mudar – o en- dos legalistas, o PUP e o UDP, sem preci-
dosso aos princípios era um passo signi- sar do extremista DUP, de Ian Paisley.
ficante. A verdade dessa situação foi logo Igualmente, o SLDP, de John Hume, na-
reforçada por uma série de distúrbios quele ponto tinha mais apoio dentro da
internos dentro do movimento republi- base nacionalista do que o Sinn Fein e
cano. Críticos da estratégia Adams- poderia falar pelos republicanos em
McGuiness tentaram frustrá-los no en- qualquer acordo.
dosso aos princípios e, tendo falhado, Em outras palavras, o Sinn Fein e o
partiram para formar a dissidência Real DUP se acharam numa posição onde
IRA, em outubro de 1997. não poderiam exercer veto a nenhum
acordo. Retirando-se do processo políti-
co em julho de 1997, em protesto pela
3
perspectiva da admissão do Sinn Fein
O ACORDO DA SEXTA-FEIRA SANTA:
nas conversações, o DUP não conse-
PAZ EM QUAIS TERMOS?
guiu derrubar as conversações.
A chave para entender o acordo da Sexta- Como isso funcionou na prática? A
Feira Santa, na Páscoa de 1998, é reco- entrada dos republicanos do Sinn Fein
nhecer que o documento foi um triunfo no processo de paz no fim de 1997 tor-
da moderação sobre o extremismo. O su- nou as negociações mais difíceis. Mas é
cesso inicial do acordo, ratificado pela importante ressaltar o fato de que as ne-
maioria da população das Irlandas do gociações de paz poderiam prosseguir
norte e do sul, teve como base a tentati- independentemente de qualquer veto
va de juntar os moderados tanto dos le- do Sinn Fein. Isso se tornou óbvio nos
galistas quando dos nacionalistas. A eventos que precederam o acordo da
lógica era que isso proporcionaria uma Páscoa de 1998. Embora os eventuais re-
base sustentável na vida política local sultados fossem impossíveis de se prever,
ao criar um sistema de responsabilida- nós havíamos percebido que os elemen-
de partilhada. tos chaves do acordo tinham sido colo-
Enquanto os critérios de curto prazo cados em cena em anos anteriores. O
para o envolvimento dos republicanos mais importante entre todos era o “prin-
nas conversações foram baseados nos cípio de consenso”, termo usado para
princípios de Mitchell, o mais importan- descrever um princípio democrático bá-
Ajudamos você a reduzir custos, cuidando da natureza. Fale conosco. 41
14. Lord David Trimble
sico, ou seja, o direito de o povo da Irlan- As conversações pararam, em 16 de
da do Norte determinar o seu destino dezembro de 1997, para o Natal, sendo
constitucional. Ambos os lados, irlandês que nenhum acerto havia sido alcança-
e britânico, colocaram uma crescente do para a agenda futura. As últimas ses-
ênfase nessa questão com a aproxima- sões ocorreram em clima ruim. Tanto
ção da Páscoa de 1998. Nessa questão, que o negociador chefe do Sinn Fein,
Tony Blair fez significantes avanços em Martin McGuiness, teria dito a oficiais ir-
relação a seus antecessores. landeses que haveria “corpos nas ruas”
As conversações de Brooke-Mayhew se o grupo insistisse em discutir a cria-
de 1991/92 foram precedidas por uma ção de uma Assembléia. O SDLP, embo-
declaração na qual se definia que as con- ra a favor da criação da Assembléia,
versações focariam em três tipos de rela- estava relutante em forçar o assunto. É
ções. Nas palavras de Brooke, assim importante lembrar que a perspectiva
como declarou na House of Commons de um retorno à violência ainda pairava
em 26 de março de 1991: no ar. O IRA tinha entrado no processo
havia poucos meses e o medo de uma
Foi aceito que as discussões deveriam volta aos dias negros aumentou com o
focar em três relações principais: entre assassinato do líder legalista Billy Wright
aqueles dentro da Irlanda do Norte, na prisão, em 27 de dezembro.
incluindo o relacionamento entre qua- Na época, desconhecido do público
isquer novas instituições ali e o Parla- e da maioria dos participantes das con-
mento de Westminster; entre pessoas versações, o primeiro-ministro Tony Blair
das ilhas da Irlanda; e entre os dois go- havia começado a se interessar pela
vernos. É consenso entre todos os parti- questão irlandesa bem antes do recesso
dos que a esperança de alcançar um de Natal. Após as festas, Blair decidiu
novo acordo mais amplo reside em que as conversações precisavam de uma
achar um caminho para dar expressão injeção de força e resolveu produzir um
adequada para a totalidade das rela- esboço de documento para um acordo.
ções que eu mencionei. O governo de Dublin aderiu à idéia e fez su-
gestões a eventuais mudanças constitu-
Essa exposição garantiu aos irlandeses cionais irlandesas, bem como o possível
que eles teriam uma relação estruturada contorno de futuras relações norte/sul.
com qualquer nova instituição na Irlanda O texto do documento – que se tor-
do Norte (entretanto, dificuldades emer- nou conhecido como o Acordo dos Líde-
giram quando o governo irlandês tentou res – foi finalmente acertado após uma
predeterminar os detalhes desse relacio- série de conversações por telefone entre
namento negociando o chamado papel eu mesmo, Blair e o Taoiseach, Berti
estrutural diretamente com o gabinete Ahern, ao longo do fim de semana de 10
da Irlanda do Norte. Essa “estrutura” foi e 11 de janeiro de 1998. A determinação
a causa de problemas consideráveis e o de Blair era evidente: ele estava em Tó-
acordo somente se tornou possível após quio, no Japão, fazendo as chamadas no
sua drástica revisão). meio da noite. Eu me lembro de ter fica-
Mais abertamente, a estratégia dos do particularmente feliz na conversa
três territórios serviu como uma declara- com Ahern, tarde da noite de domingo,
ção definitiva dos parâmetros para futu- quando concordamos com a linha ado-
ras negociações e proveu o modelo para tada por um conselho ministerial do nor-
o grande acordo que viria à tona mais te/sul que antecipava precisamente o
tarde. que apareceria no acordo final.
42 Ajudamos você a reduzir custos, cuidando da natureza. Fale conosco.
15. Lord David Trimble
O que o documento colocava em evi- McGuiness. Embora as faces possam ter
dência era a crença firme de Blair – da mudado, os princípios básicos do acor-
qual eu compartilhava – que o princípio do permanecem inalterados.
de consenso tinha de ser a pedra funda- Olhando esse cenário, não se pode
mental de qualquer acordo. Desse modo, responder negativamente quando o go-
enquanto o Acordo dos Líderes era apre- verno britânico pergunta retoricamente
sentado como um documento dos go- “a Irlanda do Norte não é um lugar me-
vernos britânico e irlandês, o Sinn Fein lhor hoje que foi há dez, quinze ou vinte
sabia que, em razão do princípio de anos atrás?”. A resposta é sim. O Pacto e
“consenso suficiente”, não poderia im- o processo de paz que o envolveu salva-
pedir que as conversações prosseguissem ram vidas que de outra forma teriam
com base nesse texto. Eu considero esse sido perdidas se o conflito continuasse.
episódio como crucial para o sucesso Isso, no entanto, não significa que erros
das conversações que seguiram, bem não foram cometidos ao longo do cami-
como para impedir que o debate se tor- nho. A Irlanda do Norte pode ser uma
nasse focado nas necessidades dos terro- história de sucesso, mas não significa
ristas na corrida para a rodada final das que se pode simplesmente ler sobre ela
negociações. e adotar exatamente as mesmas medidas
O Pacto de Belfast então não emer- em qualquer lugar. Para citar Edmund
giu inesperadamente em abril de 1998. Burke:
Nem foi simples o resultado das conver-
sações de 1997-98. Na verdade, o formato Circunstâncias, na realidade de todo
foi claramente configurado pelos even- princípio político, significa distinguir
tos dos últimos oito anos. O esboço so- nuances e discriminar os efeitos. As
bre a mesa foi certamente uma dádiva circunstâncias são o que tornam qual-
em anos futuros. O Acordo dos Líderes quer plano civil ou político benéfico ou
deixou claro que os ajustes constitucio- nocivo à humanidade.
nais baseados na concordância e em uma
Assembléia da Irlanda do Norte seriam Os planos que nós adotamos se prova-
a essência de qualquer acerto, qualquer ram benéficos. Mas se forem introduzi-
que fosse a opinião do IRA sobre isso. dos em um contexto diferente, em um
tempo errado ou, ainda, se manuseados
desastrosamente, eles podem se provar
4
nocivos. Por isso, é importante reconhe-
FALHA EM SUSTENTAR OS
cer que o processo de paz foi cheio de er-
FUNDAMENTOS DO PROCESSO
ros ao longo da década passada.
O Pacto de Belfast de 1998 foi posterior- Várias questões surgiram após a Pás-
mente apresentado – muito rapidamen- coa de 1998. A remoção das armas havia
te – como o maior evento na história da sido deixada para mais tarde, mas ainda
Irlanda do Norte, bem como uma gran- tinha de ser feita. Como mencionado an-
de expansão no âmbito das relações anglo- tes, desarmamento era uma exigência
irlandesas. Em maio de 2007, finalmen- básica para todos os partidos que se
te se consolidaram as instituições esta- comprometeram a resolver os assuntos
belecidas pelo acordo (embora nove apenas por meios pacíficos, conforme
anos tenham se passado desde o even- definido pela declaração de Downing
to), com a criação do novo Executivo ba- Street de 1993. A exigência foi repetida
seado em uma partilha de poder, sob de novo. E novamente no Acordo da Sex-
as bênçãos de Ian Paisley e de Martin ta-Feira Santa. Como o pacto veio a ser
Ajudamos você a reduzir custos, cuidando da natureza. Fale conosco. 43
16. Lord David Trimble
implementado, o espaço para contornar Democrático Unionista (DUP), de Ian
a exigência se tornou mais limitado. Os Paisley, o único grande partido que se
republicanos pareciam pensar que a re- declarou abertamente contra o acordo,
moção poderia ser evitada, aliviando-os foi deixado numa posição de observa-
de ter de explicar para seus soldados dor. Permaneceram assim até mais tar-
que a luta armada estava agora termina- de mudarem de posição e aceitarem o
da e que o IRA adotaria a exigência em acordo. Embora os principais partidos
troca de um acordo que passava longe legalistas e nacionalistas que negocia-
dos seus objetivos de guerra. ram o pacto – o UUP e o SDLP – não tives-
Se o governo tivesse mantido suas di- sem previsto que Ian Paisley e Martin
retivas estratégicas, eu acredito que essa McGuiness terminariam no leme desse
questão teria sido trabalhada satisfatori- novo acordo, o fato é que eles estão ago-
amente após a Páscoa de 1998. Mas, por ra jogando dentro daquela estrutura
se afastar da estratégia original em nome que eles consideravam restritiva em
do progresso político, permitiu que o de- 1998.
sarmamento se tornasse uma chaga den- As coisas poderiam ter sido diferen-
tro do processo político e aos olhos do tes? Talvez. Nós havíamos concordado
eleitorado. que, com os planos de desarmamento
Assim, apesar de o fim da violência sendo efetivados em junho de 1998, “o
em larga escala parecer ter sido alcança- processo de desarmamento deveria co-
do em 1998, a “sombra do atirador” con- meçar corretamente”. Nessa questão, eu
tinuou sobre a Irlanda do Norte. Inevita- acredito que o primeiro-ministro errou
velmente a questão das armas serviu em não pressionar os republicanos so-
para desestabilizar o centro de gravida- bre a exigência. Ao mesmo tempo, a pers-
de político. Nos meses e anos após o pac- pectiva de libertação de prisioneiros
to, o governo lançou mão de uma série acertada no acordo causava fortes rea-
de negociações pontuais em relação às ções emocionais e preocupações. Como
armas e à governabilidade. Isso corroeu parte do pacto, legalistas e republicanos
o apoio popular ao acordo, enfraqueceu seriam soltos. Aos olhos da maioria do
partidos em ambos os lados e repetida- eleitorado, isso era, na melhor das hipó-
mente impediu o estabelecimento de teses, desagradável. Eu acredito que o
instituições duráveis na província. governo poderia e deveria ter usado as li-
Para um número cada vez maior de bertações de prisioneiros – algo que os
pessoas, o processo de paz apareceu paramilitares estavam desesperados
como uma negociação bilateral entre go- para conseguir – como condições para
verno e terroristas. O resultado foi uma o desarmamento.
hemorragia do apoio eleitoral aos parti- Assim, o governo britânico poderia
dos de centro. Sinn Fein/IRA não foram ter usado a estratégia de combinar a anis-
a força motora por trás do acordo. E ao fi- tia com a remoção. Quanto mais cedo
nal das negociações, eles se abstiveram ocorresse o desarmamento, mais cedo
de votar no documento que os partidos os prisioneiros seriam libertados. Isso te-
endossaram como o acordo final na ses- ria indicado claramente ao público que
são plenária em 10 de abril de 1998. os paramilitares estavam realmente mu-
Os republicanos foram os últimos dando. Havia uma ligação implícita no
parceiros da negociação a aceitar as acordo desses processos: o período de
questões. Sendo que o peso das negocia- dois anos para a libertação dos prisionei-
ções foi carregado pelos partidos mode- ros corria em paralelo com os dois anos
rados. Da mesma maneira, o Partido de completar o desarmamento. Se o go-
44 Ajudamos você a reduzir custos, cuidando da natureza. Fale conosco.
17. Lord David Trimble
verno tivesse insistido nessa ligação – e Após a Páscoa de 1998, entretanto,
o ambiente estava favorável para fazê-lo uma postura similar não foi mantida du-
– então, acredito eu, a implementação rante a formação do Executivo. Por ra-
do acordo teria sido mais suave. E o de- zões que somente podemos especular,
sarmamento teria começado muito an- Blair se mostrou sem vontade de excluir
tes que o Executivo de coalizão tivesse os republicanos quando o IRA se recu-
sido formado. sou a aderir ao desarmamento. E tendo
O eleitorado legalista, em particular, acelerado a libertação dos prisioneiros,
teria visto a entrega das armas como nenhum tipo de persuasão eloqüente de
uma declaração explícita que a campa- Blair faria os republicanos realizar algo
nha terrorista estava terminada e uma tão doloroso quanto admitir que sua
confissão implícita que tinha sido um “guerra” tinha terminado em fracasso.
erro. O que na verdade transpareceu Conseqüentemente, foi deixada para
provou ser muito diferente. Ao mesmo mim a tarefa de tentar alavancar os repu-
tempo em que republicanos e legalistas blicanos em relação ao desarmamento.
puderam cumprimentar triunfantemen- Se eles não poderiam ser excluídos do
te seus companheiros libertados, repeti- Executivo, eu resolvi condicionar a exis-
damente negavam que eles tinham a tência continuada do novo governo à de-
obrigação de se desarmar. posição das armas. Desse modo, na
No centro dessa questão, esteve o formação do Executivo no fim de 1999,
afastamento das linhas políticas gerais consegui a promessa de Blair e de ou-
que estruturaram o processo até 1998. tros que se o IRA não começasse o desar-
Em lugar disso, o estado se colocou na mamento no fim de janeiro de 2000,
posição de fazer coisas pelos terroristas nova legislação seria introduzida habili-
e conseguir pouco em troca. Além disso, tando o governo britânico a suspender a
uma vez que os prisioneiros foram liber- devolução da autonomia. Nessa instân-
tados, o governo irremediavelmente cia, tenho de dar o devido crédito à Bla-
perdeu uma oportunidade de ouro de ir, que manteve a promessa, ainda que
influenciar os ainda truculentos parami- virtualmente todos os partidos (e tam-
litares. E não precisaria ter sido desse bém os governos irlandês e americano)
modo. Evidências sugerem que o IRA já tenham procurado convencê-lo do con-
havia retrocedido em relação a um endu- trário. A ação, no entanto, produziu uma
recimento do governo na reta final do promessa do IRA em relação ao desar-
acordo em 1998. Em seu discurso em mamento, acatando medidas de ins-
Belfast em maio de 1997, Blair avisou peção internacional de alguns de seus
aos republicanos que o trem das negocia- depósitos de armas. Isso habilitou a re-
ções estava partindo, que ele os queria a forma do Executivo em maio de 2000.
bordo, mas que a composição sairia com De novo, permanecer firme rendeu re-
ou sem eles. A afirmação foi seguida pelo sultados.
segundo cessar-fogo do IRA e, posterior- Infelizmente, no entanto, o IRA não
mente, pela adesão dos republicanos manteve sua promessa e após ter dado a
aos princípios de Mitchell. E, em janeiro eles um ano inteiro para fazê-lo, eu de-
de 1998, Blair confrontou os republica- terminei que seria necessário agir mais
nos com o Acordo dos Líderes. O que o uma vez. De qualquer modo se tornou
habilitou a fazê-lo não foi seu charme e claro que alguns daqueles que deveriam
entusiasmo, mas a regra do “consenso defender o acordo não tinham estôma-
suficiente” e a posição minoritária do go para a briga. Além disso, em algum
Sinn Fein dentro do nacionalismo. momento por volta de 2000, elementos
Ajudamos você a reduzir custos, cuidando da natureza. Fale conosco. 45
18. Lord David Trimble
influentes dentro dos governos britâni- Poderia ser dito que a mudança de
cos, irlandês e americano se frustraram política foi justificada com o retorno das
com o fato de que o centro de gravidade instituições em maio de 2007, sob as
política na Irlanda do Norte visivelmen- bênçãos do DUP, de Ian Paisley, e do
te se tornava cada vez mais vulnerável. Sinn Fein, de Martin McGuiness: os
O apoio aos partidos moderados co- co-premiers da nova Irlanda do Norte.
meçou a minguar e gradualmente mu- Mas, além de arriscada, a mudança da
dou em direção a uma nova orientação: política causou a quebra dessas institui-
assegurar que Sinn Fein e o Partido ções de outubro de 2002 até 2007 – cinco
Democrático Unionista (DUP) fossem anos de vácuo. Uma política de aderên-
movidos para o palco central, a quase cia firme aos princípios do acordo teria
qualquer preço. A política que uma vez produzido mais estabilidade, se não em
procurou a “salvaguarda dos modera- 1998, então logo depois, e teria evitado o
dos” antes de 1998 agora mudara para que tem sido descrito com certa justiça
uma postura de “levar a extremos”. Um como o “Pacto Hitler/Stalin do Ulster” –
sussurro começou a ser ouvido nos cor- as conseqüências reais dessa aliança ain-
redores da Irlanda: o que se ouvia era da estão para serem vistas.
que o SDLP e o UUP tinham servido a Olhando para além da Irlanda do
seus propósitos de conseguir a aceita- Norte, poderia significar que não have-
ção do processo e o tempo tinha chega- ria nenhuma defesa daquilo que eu con-
do de trazer à baila o DUP e o Sinn Fein. sidero serem lições erradas da nossa
Tão rápido quanto se poderia perceber experiência. É claro, as questionamen-
esses sussurros, começaram a ecoar no tos a essas conclusões podem ser feitos:
gabinete da Irlanda do Norte e no depar- se o governo Blair estivesse seguindo a
tamento de Assuntos Estrangeiros de estratégia errada então porque os repu-
Dublin; e também em Washington. E blicanos decidiram pelo desarmamento,
então foi incorporado pelos secretários declarando que a guerra havia acabado
permanentes e o secretário de estado da e que eles agora apóiam a polícia? A res-
Irlanda do Norte. posta é que se tornou interesse dos pró-
Essa linha de pensamento reforçou prios republicanos soprar para longe o
a tendência de manter o Sinn Fein a bor- paramilitarismo. Tornou-se claro que
do prioritariamente. Isso significava que, sua criminalidade tinha se tornado um
quando os republicanos se comporta- impacto negativo nas suas ambições ele-
vam mal através da continuidade das ati- itorais na República da Irlanda. Os repu-
vidades paramilitares, havia relutância blicanos tinham altas expectativas para
em aplicar sanções, reduzindo o apoio as eleições gerais em 2007 e queriam um
aos partidos moderados. atestado de saúde política para entrar
Blair seria provavelmente o último a no governo em Belfast com a aprovação
aceitar totalmente esse tipo de mudan- dos governos britânicos e irlandês. A
ça de rumo. Mas ele claramente o fez a única surpresa nesse contexto era que o
partir do verão de 2003, quando prome- DUP não faria os republicanos pagarem
teu a certos partidos que haveria elei- um alto preço – os republicanos tinham
ções para a Assembléia naquele ano em efetivamente escolhido o DUP como seu
circunstâncias nas quais o DUP e o Sinn parceiro em 2003, presumidamente por-
Fein seriam os beneficiários. Aquela pro- que eles esperavam que Paisley fosse
messa foi feita escondida de mim. mais fácil de conviver do que eu mesmo.
46 Ajudamos você a reduzir custos, cuidando da natureza. Fale conosco.
19. Lord David Trimble
C ONCLUSÃO: OS LIMITES DA ANALOGIA
Como o descrito no início desse texto, últimos 25 anos. Isso habilitou o movi-
um crescente corpo de comentaristas, mento em buscar políticas com um grau
políticos e experts se sentem preparados de determinação de longo prazo. E tam-
para organizar as lições do processo de bém os distingue de outros grupos como
paz da Irlanda do Norte. De Peter Hain o ETA, cuja liderança fragmentada tem
a Michel Ancram, defender o modelo complicado as tentativas de se desenvol-
norte-irlandês se tornou popular com o ver um processo similar ao da Irlanda
passar do tempo. Ainda que nem todo do Norte. A questão é saber se os supos-
mundo esteja convencido. Escrevendo tos interlocutores do processo de paz no
no International Herald Tribune em Oriente Médio são tão coesos quanto o
agosto de 2007, por exemplo, o embaixa- IRA; ou se eles são mais parecidos como
dor israelense na Irlanda, ponderou se modelo do ETA. A resposta para tais
existiria um modelo norte-irlandês que questões – largamente ignoradas por
pudesse ser aplicado ao conflito Israel- aqueles que promovem o modelo nor-
Palestina. Ele escreveu o que se segue: te-irlandês – terão orientação essencial
na aplicabilidade do modelo.
Mesmo que haja similaridades entre es- Aliado a isso, é importante reconhe-
tes dois complexos e prolongados con- cer que outro fator chave sublinha o pro-
flitos – e de fato algumas lições podem cesso de paz norte-irlandês – que não
ser aprendidas – é perigoso concluir necessariamente pode ser replicado em
que eles são iguais porque suas circuns- qualquer lugar – diz respeito à atitude
tâncias históricas, geopolítica e cultu- dos governos em relação ao conflito. Os
ral são largamente diferentes. dois estados atores envolvidos no confli-
to mantinham interesses comuns em al-
O ponto central na divergência entre eles, cançar a estabilidade e terminar com a
argumenta o embaixador, é a contras- violência na Irlanda do Norte. O governo
tante motivação ideológica entre IRA e da República da Irlanda foi consistente
Hamas, que continua a alimentar o dese- com sua estratégia em dois importantes
jo de criar um estado islâmico baseado aspectos: sua oposição à violência e seu
na lei islâmica sobre toda a terra, não apoio aos nacionalistas moderados do
apenas na faixa ocidental de Gaza, mas SDLP.
em Israel também. Os oficiais do Hamas Como Garret Fitzgerald declarou
se recusam a reconhecer o direito de em 2007, “a violência do IRA forçou uma
Israel de existir. reavaliação fundamental da política pro-
É isso, conclui, que faz o início do vocativa e de não-participação política
diálogo com o Hamas impossível para às quais todos os nossos partidos políti-
Israel. cos tinham tolamente se comprometi-
É claro, há outras diferenças pertinen- do entre 1949 e 1969”. Também forçou o
tes, como, por exemplo, preocupações reconhecimento de que os interesses de
com a questão da volta da autonomia ad- segurança do estado irlandês requeriam
ministrativa. Desse modo, foi crucial na a estabilidade da política norte-irlande-
Irlanda do Norte que atrás de suas estru- sa dentro do Reino Unido. Se o governo
turas formais (Sinn Fein e IRA) o movi- irlandês tivesse dado seu apoio aos mili-
mento republicano irlandês tinha um tantes em lugar dos moderados – como
único comando paramilitar e político in- muitos governos fazem com freqüência
tegrado que permaneceu estável pelos em casos análogos aos da Irlanda do
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20. Lord David Trimble
Norte – é improvável que o processo de Hamas – é que pré-condições são essen-
paz tivesse acontecido como ocorreu. ciais para se acabar com a violência e
Além disso, outra crucial diferença produzir respostas.
existe na subestrutura dos conflitos res- Peter Hain com seu olho treinado
pectivos. É importante reconhecer a gran- no Oriente Médio tem argumentado
de discrepância de forças entre o estado que as “pré-condições podem estrangu-
britânico e seus adversários terroristas. lar o processo no nascimento”. Mas é di-
Ideologicamente, a posição do Reino fícil não concluir que são a única base
Unido ou da Irlanda do Norte tem sido com a qual o processo de paz teve suces-
legitimada repetidamente nos níveis do- so. É possível que Hain tenha falhado
méstico e internacional. Militarmente a em apreciar a verdadeira natureza do
verdade nunca dita é que o governo bri- processo da Irlanda do Norte, porque os
tânico poderia, se desejasse, organizar princípios básicos foram estabelecidos
forças esmagadoras sobre a província: pelo governo conservador de John Ma-
tem domínio total das águas territoriais jor e a confusão de Hain em relação à
ao redor da Irlanda do Norte, do espaço nossa experiência pode ter vindo da
aéreo e -salvo uma pequena área adja- atenção excessiva à questão do desarma-
cente perto da fronteira com a Irlanda mento.
onde prevalece o “país bandido” de Enquanto houve firmeza em relação
South Armagh – da terra também. O aos princípios básicos, existiu também
mesmo não pode ser dito sobre Israel maleabilidade em relação aos secundá-
em relação a seus inimigos. rios, essencialmente medidas técnicas.
É essencial reconhecer, por isso, que Em qualquer evento, como os mostra-
o processo de paz da Irlanda do Norte dos, a verdade é que quanto mais os
opera dentro de um contexto distinto – governos são flexíveis em relação às es-
e isso é pouco repetido. É muito fácil ab- truturas e pré-condições, mais dificulda-
sorver a idéia de que o fator chave na des eles enfrentam. Flexibilidade muito
busca da paz foi um processo bilateral generosa é como dar doces a uma crian-
entre os terroristas e o governo. Essa nar- ça mimada na esperança que isso irá me-
rativa tem sido exportada – freqüente- lhorar seu comportamento. Em geral,
mente sem críticas – para o Oriente resulta em um comportamento pior,
Médio, mas é fundamentalmente enga- como aconteceu com a Irlanda do Norte.
nosa sobre as verdadeiras conquistas no Nossa experiência sugere que enquanto
processo de paz irlandês – muito mais alguma flexibilidade é desejada deve ha-
um processo fundamentado em certos ver princípios claros e limites; quem
princípios e construído de longa data. não puder reconhecer isso corre o risco
Se há uma lição a aprender com a expe- de aprender as lições erradas da história
riência – ao contrário do que freqüente- recente da província e fundamental-
mente recomenda-se no diálogo com o mente não entender o Ulster.
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21. Lord David Trimble
A PÊNDICE
O PROCESSO DE PAZ DA IRLANDA DO NORTE:
MOMENTOS CHAVES
1990/92. Brooke-Mayhew dialogam en- sarmamento ocorreria em paralelo com
volvendo os governos britânicos e irlan- as negociações políticas.
dês, juntos com os principais partidos
da Irlanda do Norte (o Partido Legalista Fevereiro 1996. O IRA explode bombas
do Ulster/UUP, o Partido Democrático no shopping Canary Wharf, em Londres,
Legalista/DUP, o Partido Social Demo- rompendo o cessar-fogo.
crático Trabalhista/SDLP e o Partido da
Aliança da Irlanda do Norte/APNI); Junho 1996. A conversação envolvendo
Sinn Fein foi excluído em razão do avan- todos os partidos começa abrangendo
ço da campanha de violência do IRA. aquelas legendas eleitas para o Fórum
da Irlanda do Norte no mês anterior. O
Novembro 1993. É revelado que o black Sinn Fein é bloqueado nos diálogos em
channel (canal negro) de comunicação razão da retomada de violência do IRA.
secreto entre o governo britânico e o
IRA tem sido usado há três anos. Julho 1997. OIRA “restaura” seu cessar-
fogo.
Dezembro 1993. A Declaração de Dow-
ning Street é divulgada pelos governos Julho 1997. O DUP e o pequeno Partido
britânico e da República da Irlanda. Legalista do Reino Unido (UKUP) dei-
xam as conversações para não retorna-
Agosto 1994. O IRA anuncia a “comple- rem mais em protesto à admissão do
ta paralisação das operações militares”. Sinn Fein nas negociações de Stormont.
O governo britânico, no entanto, cobra
a ausência da palavra “permanente”. Setembro 1997. O Sinn Fein aceita os
princípios de Mitchell e o partido inte-
Outubro 1994. Comando Militar Legalis- gra oficialmente as conversações gerais.
ta Combinado (CLMC) anuncia um ces-
sar-fogo dos paramilitares legalistas. Outubro-Novembro 1997. O movimento
republicano se divide em relação à deci-
Fevereiro 1995. Os governos da Repúbli- são do Sinn Fein em aceitar os princípios
ca da Irlanda e do Reino Unido lançam os de Mitchell.
Documentos Estruturais para o diálogo.
Janeiro 1998. Os dois governos detalham
Março 1995. Patrick Mayhew articula o suas propostas para o Acordo dos Líde-
documento “Washington 3” de pré-con- res aos participantes das conversações
dições para a entrada do Sinn Fein nas gerais.
conversações.
Abril 1998. O Acordo de Belfast é fechado.
Janeiro 1996. O relatório Mitchell apre-
senta proposta de desarmamento. Inclui Maio 1998. O Acordo é ratificado por um
seis princípios de não-violência e convo- referendo realizado em ambos os lados
ca as partes para uma aproximação a da fronteira irlandesa. Os resultados: na
partir de um caminho duplo, onde o de- Irlanda do Norte, 71,12% disseram sim,
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