Maria João Franco CORPO TANGÍVEL A certa altura da vida, Maria João Franco sentiu o seu corpo partido em dois, entre um silêncio frio e um fact0 lancinante. Metade de si soçobrava com a morte de alguém. E a outra metade, ardente e tangível, teve de abraçar toda a vida já vivida, além da que estaria para se acercar de si, a cobrar-lhe as contas do presente e do futuro. O sonho de então foi simultaneamente tumular e sangrento, sobretudo através de uma pintura que tinha de ser feita, assim, segundo o protesto surdo do medo, na solidão e na intransigência das imagens. É por isso que ela parece ter fixado um estilo, um imparável modo de formar. Maria João vive, digamos assim, uma ancoragem inabalável à memória do corpo que ainda lhe resta e que representa, afinal, dos ângulos mais difíceis, na vertigem mais insuportável, assumindo todas as diferenças e todas as semelhanças com a matéria orgânica, os metais brutos, a pedra cinzelada de forma a sugerir diversos pontos de decomposição e restos ainda lisos da pele. Pele por vezes amaciando músculos aquém das mutilações pressentidas ou mesmo expostas. Esta prioridade conferida ao discurso matérico, de alguma violência, tem de se compreender a montante e na hora em que a escolha está contida num espaço restrito, no estreitamento da dor. Fazendo da sua metade anímica um projecto de vida, um modo de se exprimir pela totalidade, Maria João abriu à força das mãos um caminho ao mesmo tempo preciso mas quase insustentável nas insistentes dilacerações. O corpo era assunto e era tema, minuto dos instante tangíveis em que tudo se duplicava pelas entregas, um abraço de desejo, de partilha, exposto como nudez escultórica, bronze ou pedra, tudo vertido para a palpitação textural da pintura — medida, tempo, angústia. Os meios de instauração plástica traduziam, assim, uma ampla oratória dos gestos, grafias insondáveis, recortes perceptíveis, o habitual e antigo desafio da expressão aos limites da percepção. Mas o sofrimento e a grandeza destacam-se da massa, presos no campo como os contrastes da forma fingidamente inacabada dos «Escravos», de Miguel Ângelo. Os nomes intensos e humanos Maria João Franco não tem sido eleita entre os eleitos, apesar da sua obra juntar tradições modernas com nomes intensos, com valores de um profundo sentido do humano. Hoje voltam a ser louvadas as «histórias», em contradição com a anterior exigência incontrolável da forma abstracta: porque os restos figurativos da perplexidade e da revolta já só tinham lugar museológico e nenhum futuro à vista. Quem retratava ou representava, fazia bonecos, circunscrevia-se ao pior da tradição, pequeno discurso de narrativas ilustradas. Mas as ideologias da estética totalitária mão tinham verdadeiro cabimento no domínio das disciplinas de índole artística, porque, como já tenho sublinhado, a arte não se realiza sob o império dos dogmas nem se encerra num s