O documento discute as limitações da democracia representativa e como ela pode ser usada para legitimar a exploração capitalista. Argumenta que, apesar de melhor do que o fascismo, a democracia representativa não elimina fatores de exclusão e pode ser usada para tomar decisões contrárias à vontade popular entre eleições. Defende que é necessário "atacar o pulmão" da democracia representativa questionando sua legitimidade como única forma de governo democrático.
Exposição mandalas óbidos 2010 seminário cinema na escola
Propostas feias de Paulo Esperança
1. PROPOSTAS FEIAS
Paulo Esperança (in «Este nosso incómodo tornado mundo»)
1 – Vaca sagrada
Os anos que se seguiram ao 25 de Abril de 1974 traduziram‐se em grande capacidade
reivindicativa e de mudança. O movimento popular conseguiu – apesar das balizas que
sempre lhe quiseram impor – extravasar as competências pré‐determinadas avançando,
muitas vezes autonomamente, para o ataque directo aos resquícios do fascismo e aos
interesses do capitalismo que o havia suportado.
Neste país houve, de facto, processo revolucionário em curso sem que haja razões para
vergonhas dissimuladas. Os campos das “jornas” miseráveis passaram a produzir pão e a
terra chegou a ser de quem a trabalhava. As casas desabitadas foram ocupadas para albergar
quem delas precisava. Em muitas fábricas o controlo operário e auto ‐gestão provaram que a
exploração não tem de ser inevitável nem os patrões são insubstituíveis. Formaram ‐se
comissões de moradores, de trabalhadores, sindicais, de estudantes. A “poesia estava na
rua” e a rua era o palco de todas as vidas. O teatro, o cinema, a música eram do povo, as
artes reflectiam as suas vivências. Os sonhos eram lindos mas a “cidade sem muros nem
ameias com gente igual por dentro e gente igual por fora” não precisou de muito tempo para
se transformar em Pompeia. A temperança dos rancorosos foi mais forte.
“Depois da tempestade vem a bonança”: o capitalismo sabia que a “normalização
democrática” acabaria por sanear os excessos praticados restituindo a reverência devida aos
poderes, mesmo que novos. As eleições constituintes onde o “risco calculado” foi assumido,
a ligação dos partidos fundadores da “nova república” a interesses financeiros internos e
externos, a posterior produção legislativa “remediando” os excessos do PREC deram ao
“novo” capitalismo português alento e confiança suficiente para perceber que a tormenta
tinha acabado. Afinal, o poderio económico e financeiro centralizado numa dúzia de famílias
do regime estava de rastos e a democracia do investimento, logo do lucro, logo da
exploração, representava a sua própria “conquista de Abril”. Tudo a bem da Nação. Faltava,
porém, institucionalizar os mecanismos reguladores do funcionamento democrático.
O mundo que rejeitara o salazarismo tinha mercados abertos onde pululavam bancos,
seguradoras, bolsas e “marketing”. A indústria do capital sorria, democraticamente. A
aplicação do “voto secreto, directo e universal” demonstrara lá fora que a exploração era
possível, também democraticamente. A fórmula fora encontrada: a democracia
representativa tornar‐se‐ia na “cereja em cima do bolo”, na mezinha ideal para
responsabilizar os cidadãos, na “cenoura à frente do burro”.
O capitalismo, e o português não é diferente, se puder atingir os seus objectivos em paz não
busca a guerra. Os conflitos desencadeiam custos económicos e sociais que desestabilizam a
meta dos seus desígnios. Daí a temperança dos rancorosos. O que os tempos posteriores ao
“25 de Abril” permitiram em debate, iniciativa própria e decisão popular passou a ser alvo de
censura, porque anti ‐democrático, porque não respeitador do normal funcionamento das
instituições e da sua expressão eleitoral.
A “vaca sagrada” da representatividade pode promulgar o dever do ser humano morrer à
fome porque o governo responsável pelas causas que lhe deram origem foi
democraticamente eleito mas não reconhece o direito à rebelião porque é ilegal e não está
2. consagrado constitucionalmente. A democracia representativa é, indubitavelmente, melhor
que o fascismo mas não elimina os factores de exclusão. Comícios a horas certas, pantalha
com tempos de antena, partidos a terem o exclusivo da intervenção política, voto a horas
certas, resultados pré ‐anunciados a horas certas, cama depois dos resultados pré‐
anunciados às horas certas, discursos de agradecimento a horas certas, levantar para
trabalhar à hora certa, tomada de posse do novo governo à hora certa, continuar a ser
oprimido a todas as horas, silêncio até à próxima hora certa para votar. Depois da “hora
certa” desprograma ‐se o cidadão porque já lhe foi dada a suprema honra de se poder fazer
representar. Para o que der e vier – “santa paciência” que o voto é livre – a democracia é
quem mais ordena!
Em nome da democracia e do seu significado adere‐se a guerras imperialistas, provoca‐se
mais miséria nos desfavorecidos, distribui‐se a riqueza por alguns, A democracia
representativa foi transformada em nova “vaca sagrada” constituindo um eufemismo para
designar as novas faces do capitalismo neo‐liberal. “ (…) Converteu‐se numa palavra pouco
mais que oca (…) esvaziada de conteúdo ou significado. Pode ser o que se queira que ela
seja. A democracia é a puta do mundo livre, disposta a disfarçar‐se ou a despir‐se, disposta a
satisfazer uma gama completa de gostos, disponível para ser usada e abusada à vontade 184
“. A democracia que se conhece é o “pulmão” destes tempos de “fartar vilanagem “.
2 – Atacar o pulmão
As chamadas democracias modernas – umas melhor que outras – foram debitando no
imaginário do cidadão que a eleição significa procuração irrevogável até ao próximo
contrato e que há sempre tempo para tudo. E há, quando esse tempo é o tempo que querem
dar.
Poucas horas para se dormir, bastantes mais para produzir, quase nenhumas para lazer,
educação ou cultura e anos pré ‐estabelecidos para supostamente decidir, votando. A
eleição representa o sublime acto de escolha, o poder nas mãos do povo, a decisão possível
nas horas marcadas. Com mais ou menos propaganda, com maior ou menor manipulação,
com mais ou menos promessas demagógicas que não colhem apenas os incautos o
capitalismo “desce à terra” de quatro em quatro anos submetendo‐se estoicamente à prova
das feiras, dos comícios em terras inóspitas, dos beijos e abraços à saída das missas. Tem o
seu banho democrático, diz‐se orgulhoso por isso e afirma‐se posteriormente encartado para
decidir o que quiser decidir. Em certa medida tem razão. Os cidadãos conhecem o
pensamento do poder e de quem o assiste, a sua metodologia, os seus homens e a sua
prática ao longo dos tempos. Em rigor não se pode dizer que haja trapaça.
Onde as democracias representativas fazem trapaça é na extrapolação que assumem do
voto. Sendo um voto em cadeia uma pequena assembleia do partido, em Famalicão ou
Aljezur, pode eleger um candidato a candidato nas listas pelos círculos de Braga ou Faro –
obviamente comprometendo‐se a defender pequenas coisas – por exemplo ar condicionado
nas paragens de transportes públicos. Uma vez eleito o ex‐ candidato a candidato toma
posse na Assembleia da República, vota ordeiramente o programa do Governo que
prenuncia uma vocação nacionalista e anti‐ibérica. De seguida esse Governo ameaça
Espanha com medidas sancionatórias ao nível da regulação do comércio. A Espanha faz
exercícios militares na fronteira de Vilar Formoso, os seus homens confundem a delimitação
dos territórios e pisam solo português. O Governo com a autorização do Presidente da
República – depois de ouvido o Conselho de Estado (que tem grande parte dos seus
membros eleitos pelo parlamento) – declara guerra a Espanha. É feito um grande apelo à
incorporação voluntária nas Forças Armadas – a integridade nacional está em jogo – e o
3. Tribunal Constitucional (eleito directamente e por cooptação) pela Assembleia da República
sanciona os decretos excepcionais emanados do Governo e o Conselho Superior de
Magistratura (nomeado em grande parte pelos partidos com assento parlamentar) legitima
as escolhas para os órgãos de poder que vão instruir e julgar os processos judiciais
instaurados contra os cidadãos de Famalicão ou Aljezur que tendo votado no candidato do
“ar condicionado” se opõem activamente à estupidez resultante da cadeia da
representatividade. Passados quatro anos o “candidato do ar condicionado” faz novas
promessas, submete‐se “democraticamente” ao veredicto popular e aprova um novo
programa de governo que onera os impostos, faz descer os salários reais, aumenta o custo
de vida…quando em campanha havia prometido exactamente o contrário.
E assim sucessivamente até que a “oposição” ganha as eleições.
A “oposição” durante a sua “travessia no deserto” criticou, pateou, apresentou moções de
censura, requereu a presença de membros do governo, propôs comissões de inquérito,
apelou ao Presidente da Republica, desencadeou mecanismos de fiscalização sucessiva,
apresentou contra‐propostas às medidas aprovadas pelo sector do poder que derrotou nas
urnas. Algumas vezes de forma virulenta foi‐se insurgindo contra a miséria social, a desgraça
da saúde e a “guerra declarada a Espanha”. Seria portanto curial que uma vez no poder
legislativo e executivo revogasse aquilo que, combatido por si fora aprovado por quem tinha
a maioria. Nada disso acontece. Pequenas reformas, culpas atribuídas aos Governos
anteriores, reflexos da crise europeia e eis a “oposição” a governar alegremente com as leis
e decretos‐lei que os seus antecessores lhe forneceram com abundância. São as regras da
alternância a gerarem rotatividade na ocupação do aparelho de Estado. São os limites
impostos pelo capitalismo que não pode deixar que o seu “pulmão” se debilite seja qual for
do corpo que o transporta.
A vida política portuguesa, quase desde o “25 de Abril”, que se tem orientado em função
desse “pulmão”. A expressão da vontade popular foi sendo substituída pelo confronto
tribunício que elegeu a sua sede como palco privilegiado do dirimir das várias alternativas.
Independentemente das discordâncias ou contradições de princípio a organização
parlamentar vai permitindo o nascimento e o renascimento de sangue novo para cuidar da
estabilidade física e emocional da democracia representativa. O que hoje se coloca a quem
não se sente representado pelas farsas institucionais é saber como passar o capitalismo a
“elo mais fraco” e que “órgãos respiratórios”é preciso minar para que tal aconteça.
Ao longo da história muitos povos, sofrendo os efeitos dos “transplantes” que o capitalismo
ia impondo, não se adaptaram facilmente ao “tem que ser” nem tão pouco aceitaram a
submissão induzida por quem mandava “ter de ser”. Durante décadas povos explorados e
oprimidos rebelaram‐se contra o fascismo, o capitalismo, o colonialismo e o imperialismo
através de lutas ou guerras violentas, Face à brutalidade da repressão, exploração, opressão
ou invasão, quase todos se refugiaram na luta armada como forma última de sobrevivência
digna.
A história dessas lutas emancipadoras – principalmente no século XX – é uma história de
relativo sucesso prático ainda que parteira de muitas das aberrações humanas criadas em
nome da liberdade. De tal maneira o foram que o fascismo e o colonialismo que ainda
imperam nalguns pontos do planeta são hoje criticados pela comunidade internacional e os
regimes que os suportam objecto de algumas sanções na ONU. A repressão e violentação,
quando tornadas públicas, são incómodas para o “mundo civilizado”.
4. Também em Portugal, épocas houve, em que a fragilização do capitalismo foi tentada sob a
forma de lutas violentas que desembocaram quase sempre com muita gente a entrar nas
cadeias. Estes processos mereceram críticas, ódios, longas discussões sobre o seu carácter e
a sua justeza. Independentemente das suas motivações, métodos, resultados, justo será
reconhecer‐se que ninguém tem o património exclusivo do uso da violência. Se o capitalismo
e o imperialismo podem em nome da defesa dos seus interesses despoletar agressões ditas
dissuasoras e libertadoras ou lançar milhões de seres humanos na miséria quase absoluta os
que o rejeitam têm, igualmente, direito a utilizar a força como forma de combaterem esse
poder omnipotente e omnipresente.
Apesar de continuarem a “soprar tempos adversos” o “tudo ou nada” estará distante o que
não quer dizer que a acomodação deva ser teorizada.
Nas sociedades modernas a exploração violenta, desumana, arcaica e irracional que o
capitalismo exerce legalmente, resulta sem sofismas, dos plebiscitos eleitorais. Esta forma
de democracia – manipulada ou não – é o seu “salvo ‐conduto. O capitalismo pode e deve
ser confrontado com estas mistificações e as suas consequências.
Desde o “25 de Abril de 1974” o poder dominante tem sido “prendado” algumas vezes com
sinais de descrédito sintoma da atenção que os cidadãos vão dando aos golpes e
manigâncias levados a cabo em nome da representatividade. Sempre que a abstenção
alcança números não previsíveis torna‐se recorrente o apelo à participação cívica e ao
exercício do direito de cidadania. O “pulmão” está a meter água”. Por isso a classe política
analisa, discute, faz diagnósticos, encontra causas, arranja terapias, sublima erros – o
capitalismo sente‐se incómodo. Com mais ou menos “antibióticos” acaba por se ressarcir,
experimentar melhoras e manter ‐se “são que nem um pêro”.
Percebendo a importância eleitoral, ao longo das últimas três décadas várias, foram as
iniciativas – premeditadas ou não – que se foram mobilizando em torno da abstenção.
Nascidos de forças políticas minoritárias os apelos assemelharam ‐se quase sempre a
“descargo de consciência”. Não havendo campanhas públicas organizadas nem qualquer
sector a reivindicar resultados o poder foi‐se aproveitando disso para atribuir à “preguiça”,
ao “tempo de praia”, à “chuva diluviana”, à “abstenção técnica”, à não “limpeza dos
cadernos eleitorais”, à “mobilidade dos cidadãos” números por vezes incomodativos.
Este é um campo de promissora intervenção além do mais porque todas as correntes
políticas institucionais se unem veementemente no apelo ao voto e na sua particularidade
decisória.
O Estado, as normas institucionais, o respeito entre órgãos de soberania, o princípio da
separação de poderes, os jogos de alianças, as alternativas e soluções fizeram encostar a
“extrema ‐esquerda” e a “esquerda” à “direita” e parte da “direita”à “esquerda” e ao
“centro” juntando‐se todos no Parque das Nações a comer um caldo de maioridade e
sensatez. Nenhuma – mas mesmo nenhuma – força política equaciona sequer a possibilidade
dos cidadãos se sentirem defraudados com o que fazem do seu voto e todas se inquietam
quando um Prémio Nobel diz que o “voto em branco” pode ser uma forma de manifestar
desilusão com o funcionamento deste tipo de democracia.
Se o “rei vai nu” há que o colocar em frente do seu próprio espelho sem qualquer receio de
ataques soezes como se o “direito ao não voto” fosse menos constitucional que o “direito ao
voto”. Reduzir a participação eleitoral aos que se alimentam e alimentam o sistema,
transformá‐los em criadores, actores e espectadores do seu próprio espectáculo poderá ser
5. uma interessante tarefa revolucionária, potencializadora de carências nos órgãos vitais do
capitalismo e demonstrativa de que os serventuários da representatividade estariam a
deixar de ser impunes.
Este combate será inevitavelmente duro e eivado de profunda luta ideológica. Gente muito
boa que combateu duramente, anos a fio, pelo direito ao voto terá hoje dificuldade em
aceitar o “não voto” como forma de luta contra o capitalismo e seus sequazes julgando que
o aumento exponencial da abstenção poderá abrir caminho a perigosos populismos. E
poderá, se esse combate for abandonado a meio ou direccionado simplesmente na mira do
poder.
3 – Esbater o grupismo
A defesa pública, metódica, programada, “do voto pela abstenção” como forma de denegrir,
abalar e ajudar a apodrecer o capitalismo terá sempre de contemplar formas de organização
não compagináveis com a tradição sectária e utilitarista que foi enformando ao longo de
décadas a postura das forças que ideologicamente não se ajoelharam à opressão disfarçada.
Essa tradição sectária, utilitarista e grupista tem provocado, historicamente,
comportamentos ‐padrão: em refluxo, une‐se ou cinde‐se, desbragadamente.
A tradição política portuguesa – principalmente a partir do “25 de Abril de 1974” – mostra
que os múltiplos processos “construtivos”, “reconstrutivos”, “unificadores” nasceram
sempre em situações de refluxo com chantagens evidentes do elo menos fraco. As propostas
de unidade orgânica foram acompanhadas de pouco debate político, de quase nenhuma
ideia traduzindo‐se as mais das vezes na aplicação grosseira do “método de Hondt” para os
escalões dirigentes ou em estratégias de aproximação ao poder. Na sua antítese, grupos,
colectivos, organizações, em face da reconhecida dificuldade de intervenção massificada e
sem qualquer interesse de partilha nas migalhas institucionais, foram‐se enquistando,
criando camadas protectoras na sua concha e falando, quase sempre com bastante razão,
para o seu “inner circle”.
Às FEIAS – forças que enjeitam a institucionalização agindo sozinhas – cumpre, para já,
ajudar a desmantelar os malefícios do capitalismo sem recurso aos métodos conhecidos
provando que uma outra intervenção é possível. Porque essa intervenção possível enfrenta
uma conjuntura em que a oposição publicada se redime no Parlamento, porque essa
intervenção possível assenta em fortes asserções ideológicas, porque essa intervenção
possível nem sequer é capaz de marchar junta contra as manobras de Fraga Iribarne/Aznar
no “caso Prestige” na Galiza, porque essa intervenção possível não tem ainda coragem para
desafiar os seus medos é que se torna indispensável entender que a necessidade de acção
conjunta não poderá exigir um processo de “unitarismos sem princípios”. O que resta de
“sóbrio” tem décadas de resistência ao capitalismo ainda que pouco possa ter feito para sair
do “limbo”. Não seria portanto exequível qualquer proposta que visasse a respectiva perda
de identidade até porque seria ilusório pensar‐se que as divergências seriam esbatidas num
qualquer conglomerado de vontades.
Às FEIAS coloca ‐se o desafio não da unificação mas da federação para que cada estrutura ou
ser individualmente considerado possa manter a sua filosofia e a sua prática autónomas em
respeito à diversidade. É certo que nesta área restam poucas forças com intervenção pública
Há muitos anos que processos envolvendo correntes desidentificadas da lógica institucional
não têm discussão, trabalho e acção comuns – o movimento pela defesa da amnistia para os
implicados no “Caso FUP/FP‐25” terá sido o último. Mas não há alternativa à necessidade de
reincidir nem que seja preciso “ressuscitar da morte às arrecuas”.
6. 4 – Programa mínimo
No quadro actual de grande dificuldade para as forças que se não revêem no aparato
institucional federar vontades significará a adopção de estruturas informais, não centralistas
mas assembleiárias que, adoptando o consenso como método, possam configurar
intervenções, campanhas e publicações comuns utilizando todos os meios que a tecnologia
possa permitir.
Os alicerces duma iniciativa deste jaez só poderão ser incorruptíveis se assentarem num
programa mínimo desenhado desde início pelo entendimento de todas as forças colectivas e
individuais que nele intervierem. Esse programa, representando a “constituição” do
movimento, não poderá ser limitativo antes criador uma vez que a partir dele poderão e
deverão nascer outros ramos eventualmente alvos da preocupação dos seus aderentes.
Nessa “constituição” deverá ser insofismável a inclusão, com nome, do “inimigo principal” –
o capitalismo. A matriz programática passará pela rejeição deste sistema sem “dourar a
pílula” ou amenizar‐lhe os contornos: é fautor da opressão dos povos e ponto final. A dar‐lhe
vida está o seu “pulmão” que não pode ser tratado com “paninhos quentes”: a
representatividade imputada à democracia que conhecemos é um logro, um factor de
exclusão quotidiana da liberdade dos cidadãos, ponto final. A superintender sistema e
regime, o imperialismo que hoje não se reflecte só na boçalidade americana antes constitui
um jogo de interesses venais interligador de potências e hiperpotências, ponto final. Este
eixo central constituirá o pólo de aglutinação por excelência mas não terá razões para ser
único sob pena de se tornar repetitivo e a seguir, banalizado.
Na medida em que a crítica ao capitalismo se tornar pública e mobilizadora mais será
aviltada, ridicularizada e remetida para o rol da memória “demodée”. Sem vergonhas
estéreis, para que não restem dúvidas, haverá que insistir, pegando noutra questão
“fracturante”: o internacionalismo, a solidariedade mundial entre os povos, a tomada de
posição quanto às macrocefalias imperiais.
Na Europa, como noutros continentes, muitos povos têm visto o seu desejo de auto ‐
determinação e independência permanentemente coarctados pela imposição da lei do mais
forte. Com excessos de nacionalismo redutor que os coloca bastantes vezes a “olhar para o
umbigo”, assoberbados pela disputa de poder no território que outros controlam
indevidamente, fazendo de conta que o “seu caso” é único e incomparável, celebrando
alianças circunstanciais que “nem ao Diabo lembram”, muitos movimentos, frentes, grupos e
partidos têm desenvolvido durante décadas lutas árduas em prole dum mundo sem
opressão e sem exploração. Têm sido lutas difíceis, esmagadas sazonalmente pelo
maquiavelismo totalitário, com erros mas prenhes de anseio de liberdade. Às FEIAS estará
cometida a tarefa de não ter medo de entrar nesta discussão criticando o que entender não
constituir factor de desenvolvimento da natural universalidade do ser humano mas,
também, denunciando sem “meias palavras” os atentados aos povos que se vão
perpetrando por este mundo fora.
Euskadi e o direito à sua auto ‐determinação parece dever merecer atenção especial até
porque sobre as suas organizações legais, a sua imprensa autónoma e os seus presos são
exercidos, quotidianamente, actos anti ‐constitucionais, censura e a mais vil agressão nas
cadeias. Aos outros povos de Espanha – independentemente da ideologia de algumas forças
nacionalistas mais ou menos mancomunadas com a “coroa” – as FEIAS deverão prestar
solidariedade desenvolvendo laços que facilitem a aproximação, discussão e iniciativas
comuns.
7. Na Europa, a constituição etnocentrista, o silêncio perante as arbitrariedades, a imposição
de padrões de comportamento à escala modelar, a usurpação de riquezas autóctones em
face da injecção táctica de capitais não poderão passar à margem de um programa de
resistência, contradição e ruptura. América Latina e os “sem terra do Brasil”, o “problema
curdo”, a Palestina, continuando a representar todos eles casos aberrantes de repressão,
violentação massiva e genocídio legalizado serão alguns dos pontos do planeta a enquadrar
permanentemente no esforço de divulgação e de busca de cumplicidades.
Mas às FEIAS há ‐de impor ‐se muito mais: a denúncia da situação de muitos presos políticos
em países “civilizados”, a defesa do direito à cidadania para os presos sociais, a luta contra a
“pena de morte” seja onde for, a igualdade de direitos entre homem e mulher, a rejeição
absoluta de esquemas de funcionamento que, assentando na tradição ou na religiosidade
praticam as mais bárbaras sevícias sobre as mulheres como a excisão ou a lapidação, a crítica
do mundo separado por fronteiras que transformam o ser humano em emigrante ou
imigrante, a defesa intransigente dos direitos humanos – os que existem e os que deviam
existir, a demarcação inequívoca de métodos de acção política que utilizam a violência
gratuita e indiscriminada para afrontar inimigos legítimos.
Um projecto deste tipo, virado para fora, só fará sentido se tiver comprovação social. É
evidente que, talvez com excepção da posição eleitoral, muitos dos desafios que farão
seguramente parte do “programa mínimo” das FEIAS têm sido agarrados por gente que se
situará na sua área. Não é mau, mas não chega. Há que abordar esses desafios de forma
continuada, persistente, organizada correndo o risco de serem aqueles contra quem os
poderes foram avisando.
Em Portugal existem organizações e colectivos que há muitos anos desenvolvem a crítica
sistemática aos valores da sociedade dominante, cada uma para o seu lado, quase
clandestinamente O medo das “misturas”, a defesa “inviolável dos princípios”, o
historicismo académico, as glórias do passado como “medalhas”, o desprezo por iniciativas
oriundas de gente “com defeitos” tem caracterizado o trabalho de muitas das forças que
enjeitam a intervenção institucional agindo sozinhas, sempre sozinhas. Se é verdade que não
é mais tempo de ressuscitar a “palavra de ordem” – “o partido nasce da luta de massas”
deverá reconhecer‐se, no entanto, que a desmontagem das ideias do inimigo, para ganhar
eficácia, terá de desenvolver ‐se numa perspectiva que consagre a participação em todos os
meios em que ela se tornar desejável e possível.
A participação empenhada no Fórum Social Português teria sido desejável apesar da sua
formalização ter sido atípica, controlada, repetindo velhos erros, Hoje, serve mais para
“contar de espingardas” que para promover o debate e a ideia de “que um outro mundo é
possível”. A sua vida está dependente do soro que as organizações, partidárias ou delas
emanadas, lhe incutam. As suas realizações são espúrias e os cidadãos individualmente
considerados têm enorme dificuldade em nele se enquadrarem face à vista do peso e poder
decisório dos colectivos. As manifestações contra a invasão e ocupação do Iraque nasceram
sempre de concílios quase secretos presididos por grupos político ‐partidários (ainda que sob
a capa de múltiplas associações que não têm qualquer actividade pública regular) o que
ajuda a explicar a decrescente participação popular. O “charme discreto da burguesia”
contribuiu grandemente para a violação da pureza inicial do “movimento anti ‐globalização”
com diversos governos a investirem muito do seu capital financeiro e mediático nos fóruns
regionais e mundiais 185 que se foram realizando.
Todavia, o seu capital não pode ser ignorado como não pode ser ignorado que o movimento
anti ‐globalização acrescentou contornos novos à denúncia do capitalismo e do imperialismo
8. envolvendo muita gente, activa e solidária, até aí quase virgem nesse tipo de combate.
Seatle 1999, Washington, Praga, Melbourne e Nice no ano seguinte, Quebec, Buenos Aires,
Nápoles, Gotemburgo, Génova e Barcelona em 2001 ficarão para a história como marcos
determinantes na luta popular de massas, doa a quem doer. Não poderão, por isso, as FEIAS
alhear‐se duma iniciativa que, apesar de tudo, tem capacidade para mobilizar gente
interveniente em vários sectores da sociedade, indo à luta teórica e prática no seu seio
exigindo democratização e o abandono do secretismo que foi marcando, e continua a
marcar, muita da sua actividade.
Se o Fórum Social Português releva, porque representando um conjunto de dispares sectores
oferece a possibilidade de chegar a horizontes muito amplos não será menos importante
encarar a hipótese de intervenção noutros pequenos “fóruns”, nomeadamente o movimento
sindical e o associativismo cultural e recreativo.
Neste princípio do século XXI restam já poucas esperanças que os sindicatos e centrais
sindicais tenham uma concepção de sindicalismo reivindicativo, mobilizadora dos
trabalhadores e afrontosa para com o patronato e o seu sistema. Fruto da própria inércia e
comodismo de quem contribui diariamente para “encher os cofres” dos detentores dos
meios de produção os sindicatos foram‐se transformando em escritórios de resolução de
problemas que, de todo, não serão da sua competência.
As sucessivas derrotas nas negociações colectivas, a perda de poder de compra dos salários,
a limitação galopante dos direitos nos locais de trabalho, a precariedade do emprego,
obrigaram as organizações indicais, para que o abandono não fosse caótico, a descobrir
novas compensações. Seguros de saúde, férias a preços convidativos em Las Palmas ou Ibiza,
alguns apoios aos filhos dos associados. O resto é aquilo que se sabe; cada vez menos os
trabalhadores têm possibilidade de participar em plenários decisivos – porque não existem.
A luta sindical abandonou a filosofia de massas para se transferir para as greves e
concentrações convocadas por SMS, via Internet ou por anódinos comunicados remetidos
por “correio azul”. Aqui chegados, ou não há nada a fazer ou existirá um possível cadinho
para todos os que se revêem nas FEIAS.
Do mesmo modo o associativismo cultural e recreativo pode constituir um “altifalantes” de
difusão de ideias alternativas ao paradigma institucional.
O poder de Estado preconiza uma concepção de cultura e lazer elitista, vocacionada
sobretudo para a afirmação da espectacularidade social. Os subsídios que “generosamente”
vai distribuindo aos grupos e colectividades que agem no seu quadro de referência vão
servindo para “fazer de conta”. No entanto, por esse país fora, continuam a subsistir
inúmeras associações e outras pessoas colectivas esforçadas na divulgação, promoção,
produção e apoio de formas de intervenção artística, cultural e recreativa que, galgando os
limites da “voz do dono”, se dedicam a apostar na inquietação, no “contra ‐a ‐corrente ”, na
insubmissão, na possibilidade das coisas não serem como parecem. O espírito tertuliano que
subjaz a muitas delas pode constituir‐se como um outro cadinho de experiências únicas na
discussão e agitação sobre a sociedade que há ‐de vir.
Estas e muitas outras envolvências derivadas das preocupações parcelares de quem
constituir as FEIAS poderão significar, apenas, meios de difusão do inconformismo. Não
farão “incendiar a pradaria” mas ajudarão a planificar a contestação dando azo à rebeldia
perante a lei do “posso, quero e mando”. Às FEIAS estará – nos tempos mais próximos –
atribuída a tarefa histórica de demonstrar que a intervenção política não tem que ser toda
feita na lógica institucional e que o capitalismo pode ser desmascarado mesmo que as
9. alternativas de sociedade sejam ténues ou minimalistas. Este combate sendo ciclicamente
novo arrasta consigo séculos de luta contra a opressão e a exploração. Está na hora de o
reinventar, mesmo que seja repetido. Porque, como era dito no Maio francês, o ser humano
“não é estúpido ou inteligente, ou é livre ou não é”, por isso, “sejamos realistas, exijamos o
impossível”.
“Creio que a revolução vencerá, se conseguirmos sobreviver nos anos mais próximos.
Acredito que nessa altura gozaremos de um florescimento artístico, social e humano tão
formoso e profundo que toda a anterior história da humanidade me aparecerá como um
passado estúpido e insensato, o que talvez haja sido, de facto!”
“TULI KUPFERBERG‐THE FUGS” 186
Notas
73‐“Um estudo do economista Amatya Sem demonstrou que os afro ‐americanos, como grupo, têm
uma esperança de vida inferior às pessoas nascidas no Sri ‐Lanka, na Costa Rica ou mesmo no
Bangladesh “.
Só um dos parlamentares da Câmara dos Representantes e do Senado teve um filho destacado no
Iraque. Os afros ‐americanos representam 21% do total das forças armadas ainda que só constituam
12% da população.
ARUNDHATI ROY,“Democracia Imperial De Mezcla Instantânea”.
Fonte: http://www.rebelion.org/imperio/031021roy.htm
184‐ Autor o texto citados em 73.
185‐ Ao Fórum Social Mundial de 2002, em Porto Alegre, “acorreram mais de mil parlamentares de 40
países, a França enviou seis ministros e quatro conselheiros do Presidente da República, o Ministério
dos Negócios Estrangeiros atribuiu ao ATTAC e ao LE MONDE DIPLOMATIQUE cerca de oitenta mil
euros. Mário Soares foi um dos conferencistas autorizados.
Em 2003 o Governo Francês contribuiu com quase meio milhão de euros para a realização do II Fórum
Social Europeu realizado no mês de Novembro, em Paris.
186‐“THE FUGS”, grupo criado em 1965 acompanhou e acompanha todo o processo de contestação à
guerra