1. 54 | PÚBLICO, SEG 30 DEZ 2013
Maroscas
e matrioscas
Debate Crise e alternativas
Domingos Lopes
sempre bom ter presente que
ninguém é dono da vontade da(o)
s cidadã(ao)s. Não há padrão que
assegure a posse da alma de quem
quer que seja. Cada um(a) vai por
onde achar que deve ir.
Há um caminho a fazer.
Há muita gente disponível
para tentar dar a volta ao
rotativismo cíclico que governa
o país tornando-o uma coutada desses
governantes, incluindo o PR.
Também já se percebeu que este sistema
político-partidário está a bloquear a tão
necessária viragem para a esquerda, pondo
termo à submissão à troika e aos troikanos.
Há dias o colunista do PÚBLICO José
Miguel Tavares falava das esquerdas
matrioscas a propósito do lançamento do
Manifesto3D.
Porém basta atentar nas bonecas e
verificar que sai sempre a mesma figura
de dentro de outra maior. A diferença é o
tamanho. O sistema absorve-as. Todas estão
dentro do sistema. É o que se tem passado
com os últimos governos. Saem do mesmo
figurino. Mais toque, menos retoque
sai sempre parecido e a seguir a mesma
filosofia.
A direita está historicamente habituada a
ter o poder. Precisa dele como de pão para
a boca. Tem uma consciência mais elevada
dos seus interesses e une-se. Veja-se a título
de mero exemplo a decisão irrevogável de
Portas.
As esquerdas são mais conflituosas;
andam à procura do que não tiveram.
Para justificar as existências precisam de
se guerrear e face a posições eleitorais
relativamente frouxas põem muitas vezes o
seu crescimento à frente de tudo. Querem
eventualmente negociar quando forem
mais fortes, o que se perceberia se nestes
últimos trinta anos esta filosofia tivesse
trazido algo de mudança política. Mas não
trouxe. A população não percebe porque
há-de dar mais força a quem a quer só para
si.
O PS aguarda que o poder lhe caia no
regaço. Já pediu maioria absoluta. Até o
Seguro pede, no PS é a cassete. E para quê?
Quando se apanham com maioria absoluta
ou com o deputado Limianos é vê-los.
Quem não se lembra?
Agora na “oposição” já se dão ares
de “responsáveis” e negoceiam com o
Governo, parece que a pedido do PR; pelo
menos da primeira vez. Tudo leva a crer
que está em gestação uma espécie de bloco
central onde caiba ou não o CDS.
À espera de Godot ou do Governo,
entretanto, e sempre renunciando negociar
à esquerda.
O BE parece atravessar um momento
É
Juventude e rebeliões
sociais: um breve balanço
difícil. Maus resultados eleitorais. Tensões
internas.
O Livre de “Rui Tavares” proclama a
defesa das convergências à esquerda.
Saúda-se.
Neste quadro um grupo restrito de
cidadãos com percursos políticos diferentes
consideraram lançar um Manifesto que
defende a criação de uma candidatura de
cidadãos que se situe nestes espaços: socialdemocratas de esquerda, socialistas não
seguidores da orientação do PS, comunistas
com ou sem partido, católicos defensores
do Estado social em consonância com a
teoria social da Igreja e que possa englobar
ou não o BE e o Livre.
Para dar conta desta análise tanto
pediram encontros ao BE, ao Livre e
à Renovação Comunista, para além
de terem trocado opiniões com várias
personalidades.
Estes encontros tiveram lugar para
conhecer das suas disponibilidades, antes
do lançamento do
Manifesto e por
amor à verdade
deve ser dito que em
nenhum encontro
foi discutido o
Manifesto. Foi sim
dada notícia de
que iria existir um
Manifesto capaz ou
não de aglutinar
gente desses
espaços, o que
felizmente está a
suceder com grande
impacte.
O Manifesto
defende a
renegociação
da dívida, o
Estado social, a
Constituição e
uma nova política
de esquerda para
Portugal.
Para tal é necessário um movimento
que tenha força eleitoral e seja capaz de
negociar uma governação que vá no sentido
acima exposto.
Assim. Sem maroscas. Se for para diante
soluções jurídicas hão-de encontrar-se para
lhe dar corpo.
As dificuldades são mais que muitas. Há
noção dos riscos, mas “faint heart never won
fair lady”.
Para pôr termo à política das matrioscas,
isto é, à política que nos governa há trinta
e tal anos ora com umas ora com outras
figuras, esta é uma hipótese e um caminho
a percorrer e que já tem o apoio de muitos
milhares de portugueses.
A ver vamos se as marés ajudam até à Boa
Esperança.
Já se percebeu
que este
sistema
políticopartidário está
a bloquear a
tão necessária
viragem para a
esquerda
Promotor do Manifesto 3D
Debate Crise e protestos
Elísio Estanque
A
o longo dos últimos cinquenta
anos o mundo assistiu a
múltiplas revoltas dinamizadas
pela juventude, cujo momento
paradigmático terá sido o Maio
de 1968 em França. Cinquenta
anos após a agitação política
e sociocultural da geração
dos sixties, fará sentido olhar
as mais recentes rebeliões
sociais traçando um paralelismo com esse
período? O local e o global, o pragmatismo
e a utopia, o realismo e o sonho, o
individual e o coletivo caminharam juntos
no meio de multidões de jovens, ocupando
universidades, fugindo da repressão policial
e emprestando à ruas e praças um tom
simultaneamente dramático e festivo.
Da defesa do ambiente à libertação da
mulher, da luta pelo desarmamento à critica
da burocracia e dos valores tradicionais,
nas universidades de Paris foi a chamada
crítica estética e pós-materialista (da luta
estudantil e sociocultural) a demarcar-se e
a sobrepor-se à crítica social e economicista
(do velho operariado, como mostrou o
estudo de Boltanski e Chiapello, O Novo
Espírito do Capitalismo, 2001), pelo menos
no que essas experiências trouxeram de
novidade. O 25 de Abril de 1974 em Portugal
foi, talvez, a expressão tardia e condensada
desses dois tipos de movimentos, onde as
dinâmicas de base abraçaram o mesmo
desígnio dos atores políticos tradicionais
— a “sociedade socialista”. Pode dizer-se
que os protestos das décadas de 1960-1970
geraram um efeito de halo, que penetrou os
interstícios da democracia representativa e
dos valores convencionais, mas que se foi
esbatendo ao longo do tempo.
Porém, a nova onda de protestos de
finais do século XX recuperou parte das
bandeiras daquela época na contestação
ao paradigma económico neoliberal e ao
novo poder unipolar, após a implosão
do modelo soviético. Do massacre de
Tiananmen às mobilizações do Leste
europeu com a queda do muro de Berlim,
dos protestos de Seatle ao movimento
zapatista (Chiapas), os encontros do
Fórum Social Mundial, o movimento
MayDay na Europa, etc., representaram
uma viragem no modo como as sociedades
e a juventude rebelde pretendiam intervir
na esfera pública. Se nos anos sessenta
os novos meios de comunicação de
massas foram, pela primeira vez, usados
estrategicamente pelos ativistas estudantis
de então, nos finais dos anos noventa
chegava a hora das novas redes sociais e
da Internet. Esses meios tornaram-se o
principal meio de difusão e de mobilização
do chamado ciberativismo global. Apesar
dos traços em comum com a anterior
geração, as manifestações da viragem
do milénio veicularam ainda valores e
causas simultaneamente “materiais”
(direitos humanos, luta contra as propinas,
desigualdades económicas, fome e a
doença) e “pós-materiais” (minorias
étnicas, religiosas, direitos LGBT,
feminismo e descriminalização do aborto,
defesa do ambiente e dos povos indígenas,
etc.).
Mais recentemente, com o último ciclo de
lutas sociais desde o iníco da crise (Grécia
2008, Primavera Árabe, Europa do Sul/
Indignados, Geração à Rasca, Occupy Wall
Street, Que se Lixe a Troika, Chile, Brasil), a
juventude escolarizada continuou a animar
os “núcleos duros”
das mobilizações e
a encher as praças
da indignação,
mas o grosso dos
protestos voltou a
colocar no centro
a questão social e
sociolaboral. Em
especial na Europa
do Sul, o aumento
exponencial
do volume de
estudantes do
ensino superior
esbarrou no
bloqueio das
oportunidades.
Em vez do
cidadão europeu
e cosmopolita
prometido pelo
projeto da UE, a
ambicionada “carreira” profissional não
foi além de trabalho precário e salário
miserável (e desemprego). Mesmo os
que foram educados na ideologia do
empreendedorismo tecnocrático perderam
a esperança numa solução individual e
deixaram-se guiar pelo clima de indignação,
em alguns casos descontrolado. Nas
jornadas de junho, no Brasil, os jovens
abandonaram por um momento o habitual
individualismo e enfrentaram com coragem
a violência policial. Viveram-se fragmentos
As recentes
rebeliões
parecem
exprimir
uma luta de
classes sem
vanguardas
2. PÚBLICO, SEG 30 DEZ 2013 | 55
Que lógica tem
tudo isto?
de intensa comunhão e filiação coletiva,
que tiveram um impacto inesperado e
resultados visíveis no espaço público.
A última onda de convulsões sociais
mostra que as “causas próximas” são
em geral muito díspares e difusas, mas
os efeitos transcendem as intenções. Na
Europa do Sul ou no Brasil os manifestantes
não tinham propriamente um programa
político, e talvez muitos nem soubessem
ao que iam, mas não deixaram de gritar
contra a austeridade e reclamar o direito ao
futuro. Se na Europa foi a luta pelo emprego
e a precariedade, no Brasil, lutou-se por
mais democracia, transportes urbanos de
qualidade e o fim da corrupção. Em ambos
os casos esteve em causa a defesa de um
Estado social que funcione, que combata
as desigualdades e promova a educação e a
saúde pública.
As recentes rebeliões parecem exprimir
uma luta de classes sem vanguardas.
Na Europa é a revolta da “classe média”
proletarizada e à beira da miséria. No
Brasil os protestos de junho mostraram
uma sociedade que não se satisfaz com um
emprego de serviços mínimos (ainda que
com estatuto “formal”) e um consumismo
fictício, antes se revolta contra a opulência
de investimentos faraónicos (os estádios
da Copa 2014), exigindo uma saúde e
educação “padrão FIFA” e transportes
de qualidade. Em comum permanece a
rejeição da política institucional, o uso
das redes sociais e a desconfiança das
instituições. Esta vertigem de mobilizações
juvenis não corresponde a uma “tomada
de consciência” no sentido clássico,
antes reflete uma busca de protagonismo
que mistura o individual e o coletivo,
onde a esfera pública (virtual) das redes
sociais se confunde com o “aqui estou
eu” (da foto no Facebook), mas mostra ao
mesmo tempo que o “eu somos nós”. E
independentemente das intenções, esse nós
pode ter muita força.
Docente da Faculdade de Economia e
investigador do Centro de Estudos Sociais
da Universidade de Coimbra; professor
visitante da UNICAMP – Brasil
DAVI PINHEIRO/REUTERS
Debate Portugal em 2013
Vítor Ramalho
O
s factos políticos mais
marcantes a que o país assistiu
em 2013 vão ser determinantes
para o nosso futuro colectivo.
Porquê?
Em primeiro lugar porque
foi no início deste ano que
o Presidente da República
tornou clara a forma como
interpreta os pedidos de
fiscalização da constitucionalidade dos
Orçamentos do Estado. Disse o Presidente
que o fazia em função da reacção dos
mercados e não pelo respeito aos princípios
da Constituição que jurou cumprir e fazer
cumprir. Daí ter suscitado a fiscalização
sucessiva e não preventiva de algumas
das normas do Orçamento do Estado para
2013. O Presidente da República teorizou
aliás, sobre as vantagens de requerer a
fiscalização sucessiva do Orçamento do
Estado para 2014, numa conferência de
imprensa, realizada no estrangeiro, local
pouco apropriado para o efeito, ao lado do
primeiro-ministro, na cidade do Panamá,
em Outubro de 2013. Nessa altura nem
sequer o Orçamento do Estado tinha sido
debatido e menos aprovado na Assembleia
da República.
Em segundo lugar, porque é útil termos
presente, recordo, que a demissão do
ministro Vítor Gaspar no início de Julho
de 2013 ocorreu na sequência dum pedido
de fiscalização sucessiva e não preventiva
da constitucionalidade. O facto marcante
é que essa fiscalização sucessiva – repito
– teve impactos de 1326 milhões de euros
nas receitas do Orçamento do Estado, com
consequências sérias porque avaliadas
tardiamente. A essa demissão seguiu-se de
imediato a “irrevogável” do ministro de
Estado e dos Negócios Estrangeiros Paulo
Portas. São conhecidas as consequências
económico-financeiras deste pedido último
e “irrevogável”, bem como a reação que
tiveram os mercados fazendo disparar
os juros dos empréstimos, com a perda
de dezenas de milhões de euros ao País.
Todos nós pagámos e iremos pagar este
comportamento.
O Presidente da República não retirou
então quaisquer consequências das reacções
dos mercados e no final o demissionário
ministro de Estado e dos Negócios
Estrangeiros, Paulo Portas, viu-se mesmo
promovido a vice-primeiro-ministro, ficando
até com a coordenação económica com a
troika. Não se lhe conhecia esta vocação de
economista.
Compreende-se assim, agora, melhor, a
realização do primeiro encontro patriótico
realizado no dia 30 de Maio de 2013, na Aula
Magna da Universidade de Lisboa sob o
tema: Libertar Portugal da Austeridade. Este
evento teve lugar em função da análise que
foi feita da realidade, que é o que é, e não o
que se deseja que seja. Os acontecimentos
que se seguiram arrastando, as demissões
do ministro Vítor Gaspar e a “irrevogável” de
Paulo Portas, confirmam o acerto da análise.
E é tanto mais útil recordá-lo quanto é
certo ter o ministro Vítor Gaspar, na carta
de demissão que tornou pública, colocado
em causa a liderança do primeiro-ministro
e a política seguida. Esta é a verdade, que
muitos querem esconder, mas é isso que se
retira do que lá está escrito.
Em quarto lugar, a proposta do Orçamento
para 2014, foi aprovada praticamente
em simultâneo com a chamada Lei da
Convergência das Pensões, que não é senão
uma lei de corte das mesmas pensões. A
lógica justificaria que o Governo a tivesse
incluído no Orçamento.
Ao não o fazer o Presidente da República
e o Governo sabiam que a fiscalização
preventiva desta Lei da Convergência
das Pensões, julgada pelo Tribunal
Constitucional por unanimidade, como era
previsível, não arrastaria a do Orçamento
e assim ficavam acertados interesses
convergentes destes dois Órgãos de
Soberania. A perda de receitas daquela
Lei é da ordem de 350 milhões de euros,
enquanto as normas inconstitucionais
do corte dos salários da função pública
constantes do Orçamento representam
cerca de 700 milhões. No plano do Governo
para cobrir a verba dos 350 milhões, virão
aí novos impostos, qualquer que seja a
fórmula adoptada. Foi assim que no passado
o Governo sempre
agiu. Por isso, pus
reservas quanto
à participação do
Partido Socialista na
diminuição da taxa
do IRC, a pretexto
da importância
do acordo para as
Pequenas e Médias
Empresas (PME).
Sempre me pareceu
que o que o Governo
propôs com uma
mão ao PS, iria
retirar com a outra.
Estou seguro que
não me enganarei.
O que dificilmente
ocorrerá, mas já
não digo nada por
não ser adivinho, é
o Governo insistir
noutra forma de
convergência de
pensões a pretexto
de que o Acórdão
do Tribunal
Constitucional abriu
uma porta para o
efeito. Como bem
Não se
compreende
que o
Presidente da
República não
tenha requerido
a fiscalização
preventiva
das normas
inconstitucionais do
Orçamento do
Estado de 2014
DANIEL ROCHA
demonstrou Pedro Silva Pereira, no dia 27
de Dezembro de 2013, no Diário Económico,
o Tribunal Constitucional não deixou
nenhuma porta aberta.
Em função do exposto compreende-se
também, hoje bem, o acerto da iniciativa
tomada a tempo no dia 21 de Novembro
de 2013, na Aula Magna da Universidade
de Lisboa, sob o tema “Em Defesa da
Constituição, da Democracia e do Estado
Social”, antes da votação, na Assembleia da
República, do Orçamento do Estado para
2014.
Esta iniciativa é tanto mais de realçar
quanto é hoje possível avaliar os efeitos
negativos que resultarão de uma inevitável
fiscalização sucessiva e não preventiva de
alguns preceitos do Orçamento do Estado
de 2014, face à proximidade das eleições
para o Parlamento Europeu, que terão lugar
no dia 25 de Maio e ao período em que o
Tribunal Constitucional se pronunciará
sobre a fiscalização sucessiva. Estas
eleições ocorrerão também com o termo do
Memorando de Entendimento da troika...
Ninguém no seu perfeito juízo, poderá
admitir que as medidas de austeridade
terminarão com o Memorando de
Entendimento com a troika, face ao
valor dos juros que Portugal suporta e ao
montante da dívida. Acresce que após as
eleições para o Parlamento Europeu, a União
Europeia vai ser confrontada com eleições
internas para os Presidentes do Parlamento,
da Comissão, da própria União Europeia e
do responsável pelas Relações Externas.
É neste quadro e não noutro, que as
negociações do pós-troika e as medidas de
austeridade dela decorrentes, terão lugar e
início.
Daí, que não se compreenda de todo,
que o Presidente da República não tenha
requerido a fiscalização preventiva das
normas inconstitucionais do Orçamento do
Estado de 2014.
Que plano tem o Governo se essa
inconstitucionalidade for declarada,
tardiamente, representando, em termos de
perda de receita, um valor da ordem dos 700
milhões de euros?
Assim se vê a importância da análise
dos eventos acima referidos e ocorridos
em 2013, bem como as posições negativas
tomadas pelo Governo e pelo Presidente da
República.
Tem isto, alguma lógica?
Advogado, ex-deputado do PS