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               TEOLOGIA AGOSTINIANA E
                 REFORMA PROTESTANTE:
            A SOLA GRATIA COMO NEXO
      MATERIAL ENTRE O PROTESTANTISMO
             INICIAL E OS PAIS DA IGREJA

            AUGUSTINIAN THEOLOGY AND
          PROTESTANT REFORM: THE SOLA
     GRATIA AS MATERIAL NEXUS AMONG
      THE BEGINNINGS OF PROTESTANTISM
               AND THE CHURCH FATHER

Ronaldo P. Cavalcante
Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da
Universidade Mackenzie, doutor e mestre em Teologia Dogmática pela
Universidade Pontifícia de Salamanca, graduado em Teologia pela
Faculdade Teológica Batista de Brasília.
Tarde te amei, ó beleza tão antiga e tão nova! Tarde demais eu
            te amei! Eis que habitavas dentro de mim e eu te procurava do
            lado de fora! Eu, disforme, lançava-me sobre as belas formas
            das tuas criaturas. Estavas comigo, mas eu não estava contigo.
            Retinham-me longe de ti as tuas criaturas, que não existiriam
            se em ti não existissem. Tu me chamaste, e teu grito rompeu a
            minha surdez. Fulguraste e brilhaste e tua luz afugentou a mi-
            nha cegueira. Espargiste tua fragrância e, respirando-a, suspirei
            por ti. Eu te saboreei, e agora tenho fome e sede de ti. Tu me
            tocaste, e agora estou ardendo no desejo de tua paz. (Agos-
            tinho, Confissões X, 27,38).


                                                                                           R E SU M O
O autor desenvolve inicialmente uma síntese conceitual, dentro dos limi-
tes do texto, sobre a patrística, localizando os escritos de Agostinho na
literatura cristã e cristã reformada e a doutrina da graça nesse filósofo. O
texto prossegue examinando a evolução histórica do conceito e trata da
mudança ocorrida na cosmovisão cristã, a partir do século II, com a in-
fluência helenística no pensamento cristão. Desse ponto em diante, pro-
cura esclarecer a posição de Agostinho sobre a graça. O autor passa, então,
a discorrer sobre as teses pelagianas, entendendo que a compreensão da
polêmica entre as posições pelagianas e agostinianas sobre graça e livre
arbítrio são necessárias para a continuidade do texto. O texto segue tra-
tando da Reforma e da recuperação da doutrina da graça, a tradição agos-
tiniana, por meio do exame da construção das posições de Lutero. Di-
ferentemente de Lutero, Calvino enfatiza a Igreja visível que anuncia a
Palavra de Deus e a quem são administrados os dois sacramentos instituí-
dos por Cristo. Seguindo Agostinho de perto, distingue a Igreja visível da
invisível. O autor afirma que o ponto de arranque do protestantismo acer-
ca da doutrina da graça é a sola Scriptura e estabelece que, tanto pela in-
fluência de Lutero como pela de Calvino, os reformados retornam ao pa-
trimônio bíblico e agostiniano em relação à graça divina.


                                                                               PA L AV R AS - C H AV E
Patrística; doutrina da Graça; livre arbítrio; igreja visível e igreja invisível.

                      TEOLOGIA AGOSTINIANA E REFORMA PROTESTANTE, p. 153-178         155
                                                    Ronaldo de P. Cavalcante
A BST R AC T
                     The author establishes at first, in the limits of the text, a conceptual syn-
                     thesis on patristic, situating St. Augustine’s writings in Christian and Re-
                     formed Christian literature, and Grace’s doctrine for this philosopher.
                     The text proceeds to examine historical evolution of the concept, dealing
                     with the change in Christian cosmovision by the second century due to
                     the Hellenic influence on Christian thought. From this point on, the
                     texts endeavors to enlighten Augustine’s position on Grace. The author
                     discourses on the Pelagian theses, for according to his point of view un-
                     derstanding the polemic between the Pelagian and Augustinian positions
                     on Grace and free will are necessary for the comprehension of the text as
                     a whole. The text proceeds to speak about Reformation and the recupe-
                     ration of Grace Doctrine, Augustinian’s tradition, examining the cons-
                     truction of Luther’s position. Differing from Luther, Calvin emphasizes
                     the visible church, which announces the Word of God and where the two
                     sacraments instituted by Christ are administered; following close to Au-
                     gustine, Calvin distinguishes the visible and the invisible Churches. The
                     author states that the beginning of Protestantism Doctrine about the
                     Grace’s is the sola Scriptura, and also he establishes that through Luther’s
                     influence, as well as through Calvin, the Reformed church return to Bi-
                     blical and Augustine’s patrimony related to Divine Grace.


K E Y WO R DS
                     Patristic; doctrine of grace; freewill; invisible church and visible church.




1 . I N T RO D U Ç Ã O

                            Após a etapa apostólica, portanto, a partir do século II,
                     o cristianismo solidificará sua identidade e desenvolverá sua
                     missão no calor da controvérsia cultural e nos limites da lega-
                     lidade política. Em tal situação, os diversos segmentos cris-
                     tãos oriundos, em sua matriz, do ambiente doméstico pales-
                     tinense estão agora localizados “fora do arraial” – expostos,
                     como Paulo no “Areópago”, na arena pagã, na Ágora e por isso
                     mesmo necessitados de rearticular o discurso cristão para se
                     fazerem ouvidos. A esse grande período, que em geral se es-
                     tende até o século VII, convencionou-se chamar, dentro do
                     estudo da teologia, de Época Patrística.

               156   CIÊNCIAS DA RELIGIÃO – HISTÓRIA E SOCIEDADE
                     Ano 3 • N. 3 • 2005
Patrística1 é, pois, aquela parte da literatura cristã que
trata dos autores da antigüidade que escreveram fundamen-
talmente sobre temas de teologia e correlatos, com o propó-
sito de apologia da fé ou de construção da própria identida-
de intelectual e teológica da fé cristã. Compreende tanto aos
escritores ortodoxos como aos heterodoxos, mesmo se ocu-
pando preferencialmente dos que representam a doutrina
eclesiástica tradicional, quer dizer, dos chamados Pais e Dou-
tores da Igreja. Pode-se, portanto, definir a Patrística ou Patro-
logia como a ciência dos Pais da Igreja. Segundo alguns espe-
cialistas2, inclui, no Ocidente, todos os autores cristãos até
Gregório Magno (m. em 604) ou Isidoro de Sevilha (m. em
636) e mesmo Beda o Venerável (m. em 735), enquanto no
Oriente chega, em geral, até João Damasceno (m. em 749).
Curiosamente, Lutero considerava S. Bernardo de Clairvaux
(m. em 1153) o último grande Pai da Igreja.
       Eusébio de Cesaréia (c. 263-339) parece ter sido o pri-
meiro a tentar uma visão de conjunto, obedecendo a uma
seqüência histórica. Na introdução de sua História eclesiasti-
ca 3 menciona, sem nomear, por enquanto, personalidades e


1
  Em língua portuguesa, pode-se destacar: para uma visão de conjunto da teologia dos Pais da Igreja,
o excelente livro de Luigi Padovese, Introdução à teologia patrística. São Paulo: Edições Loyola, 1999.
Não bastasse a qualidade das informações, o livro se completa com um bônus maravilhoso: Quadro
sinótico da igreja antiga. Para um estudo temático da patrística, ver especialmente J. N. D. Kelly,
Doutrinas centrais da fé cristã. São Paulo: Edições Vida Nova, 1994. Material que traz abundantes
citações de fontes primárias. Uma descrição mais aprofundada com razoável bibliografia em cada
seção pode ser encontrada em Claudio Moreschini e Enrico Norelli, História da Literatura Cristã
Antiga Grega e Latina. São Paulo: Edições Loyola, 1996/2000. 3v.
2
  Ademais dos autores antigos e medievais que escreveram sobre a Patrística, podemos mencionar a
abrangente coleção editada no século XIX por J. P. Migne, Patrologiae Cursus completus. A série latina
possui 221 volumes e a grega 161. Outra coleção de destaque é a francesa Sources chrétiennes, com mais
de trezentos volumes em texto bilíngüe; francês e latim ou francês e grego. Felizmente essa coleção está
agora sendo posta em português pela Paulus com o nome Patrística. Até o momento, cerca de vinte
volumes foram editados. A Patrologia de J. Quasten, tradução espanhola, em três volumes, pela
Biblioteca de Autores Cristianos (BAC) é igualmente uma obra de referência. Em português, vale a
pena conferir a obra de B. Altaner e A. Stuiber, Patrologia. São Paulo: Paulinas, 1972.
3
  Eusébio de Casaréia, História eclesiástica. Tradução de Wolfgang Fischer. São Paulo: Novo Século,
1999. De certa forma é considerado o pai da Patrologia. Sobre o propósito de sua obra, diz ele: É
meu propósito consignar as sucessões dos santos apóstolos e os tempos transcorridos desde nosso Salvador até
nós; o número e a magnitude dos feitos registrados pela história eclesiástica e o número dos que nela se
sobressaíram no governo e presidência das igrejas mais ilustres, assim como o número daqueles que em cada
geração, de viva voz ou por escrito, foram os embaixadores da palavra de Deus [...] (I, I, 1).

                     TEOLOGIA AGOSTINIANA E REFORMA PROTESTANTE, p. 153-178        157
                                                   Ronaldo de P. Cavalcante
escritos que marcaram os primeiros séculos cristãos. Efeti-
                              vamente, ao longo da obra, enumera os que ele conhece ci-
                              tando amplas passagens da maior parte deles. Por essa razão,
                              Eusébio é uma das fontes mais importantes da patrologia, es-
                              pecialmente também porque se hão perdido grande número
                              dos escritos que ele cita. Por isso, para certos autores eclesiás-
                              ticos, Eusébio constitui a única fonte de informação. Ade-
                              mais, foi São Jerônimo (c. 347-419) que em sua obra De viris
                              illustribus: os homens ilustres, redatada em Belém, no final do
                              século IV, elencou os escritores que dignificaram a literatura
                              cristã. Surpreendentemente, menciona também escritores não
                              cristãos como Sêneca, Fílon e Josefo. Durante mais de mil
                              anos, grande parte dos historiadores da literatura cristã tem
                              considerado o De viris illustribus como a base de seus estudos.
                                      Com os avanços nos estudos da historiografia cristã, sa-
                              be-se hoje que muitos outros escritores antigos importantes
                              preservaram a história dessa época. Os mais destacados fo-
                              ram: Sozômeno, Sócrates e Lactâncio4, que dentro de suas li-
                              mitações legaram preciosas informações.
                                      Para a Reforma Protestante, durante toda a patrística, o
                              escritor e teólogo mais relevante foi, sem dúvida, Santo
                              Agostinho (354-430)5. A leitura protestante do insígne bispo


              4
                Sozômeno (século V), natural da Palestina. Na cidade de Constantinopla, escreveu uma
    História eclesiástica em nove volumes, que, não obstante seu valor narrativo, carece de uma leitura
          crítica o que o leva a fiar-se das lendas populares em torno a personalidades cristãs. Sócrates,
 contemporâneo de Sozômeno e natural de Constantinopla, compôs uma História eclesiástica em sete
     volumes. Sua intenção era dar continuidade à obra de Eusébio. Lactâncio (c. 260-330), africano e
    convertido ao cristianismo na época da grande perseguição de Diocleciano, teve de abandonar sua
 cátedra de retórica latina. Escreveu vários interessantes tratados de duvidosa ortodoxia (imortalidade
da alma, milenarismo [...]), mas de grande valor histórico e estilístico, dentre eles Divinae institutiones
            que foi a primeira exposição sistemática da doutrina cristã em língua latina, e De mortibus
                                 persecutorum sobre a justiça de Deus contra os perseguidores da Igreja.
         5
           Além de sua correspondência e do que se pode deduzir de suas demais obras, há três fontes
sobre sua vida e evolução espiritual. A mais rica é o conjunto dos nove primeiros livros das Confissões,
em que passa em revista toda a sua vida até o ano 387. Mais tarde, nas Retratações nos informa de sua
 atividade literária até o ano 427. Contamos também com a biografia que lhe dedicou, pouco depois
  de sua morte em 430, seu discípulo e amigo Possídio, bispo de Cálama. Já dispomos deste material
                             em português: Possídio, Vida de Santo Agostinho. São Paulo: Paulus, 1997.


                   158        CIÊNCIAS DA RELIGIÃO – HISTÓRIA E SOCIEDADE
                              Ano 3 • N. 3 • 2005
de Hipona foi, em geral, seletiva e, no conjunto de seu pen-
samento, o protestantismo priorizou a Doutrina da graça 6.



                         1 . G R AT I A : E VO LU Ç Ã O H I ST Ó R I CA
                                 D O CO N C E I TO : U M A S Í N T E S E

      Para melhor compreender determinadas categorias teo-
lógicas do cristianismo nascente e em sua gênese como movi-
mento “sectário” do judaísmo, vale aqui considerar a mudan-
ça ocorrida na cosmovisão cristã, a partir do século II. Isso
implica que não se deve ignorar, pois, a “invasão” do helenis-
mo – seu estilo de pensamento e a cultura propriamente dita
– subvertendo a inspiração semítica do grego da LXX e do
Novo Testamento7, consequentemente fazendo surgir, de ma-
neira gradativa, uma nova mentalidade cristã, exposta de mo-
do franco a determinadas idéias e correntes da filosofia grega,
por exemplo, o neoplatonismo e o estoicismo. Com isso, a teo-
logia do cristianismo oriental, quer dizer, a patrística grega,
quanto ao tema da cháris, localizou a chave da salvação do
homem em sua participação no ser de Cristo e, mediante ele,
no mistério da comunhão vital trinitária. Daí que na teologia


6
  A doutrina agostiniana da graça pode ser encontrada em várias de suas obras e também deve ser
buscada nos escritos sobre a predestinação e contra os donatistas e pelagianos. Destaca-se a Ep. 186 e
o tratado De gratia et libero arbitrio V,10-VIII,20; obra recentemente editada, dentre várias outras,
pela Paulus dentro da coleção Patrística, n. 12 e 13, tradução da francesa Sources Chrétiennes.
Repercussões da doutrina agostiniana da graça serão perceptíveis em personalidades como: Arnóbio o
Jovem, Lúcido presbítero, Gottschalk, Gregório de Rímini, Thomas de Bradwardine, Wycliff, Lutero,
Calvino, Seripando, Miguel Bayo, Cornélio Jansen, B. Quesnel, dentre outros.
7
  P. Fransen, “Desarrollo Historico de la Doctrina de la Gracia” em Mysterium Salutis IV/2, 611.
Nesse sentido, o neoplatonismo cristianizado de Alexandria, guardaria mais simpatias com a linha
teológica de tendência mística presente na tradição joanina (Policarpo, Inácio e Ireneu etc.), enquanto
a filosofia aristotélica, também pouco a pouco introduzida no cristianismo, somada à escola de
Antioquia, com seus pensadores influenciados pelo rabinismo e sua interpretação histórica das
Escrituras, estaria mais disposta a estacionar na tradição paulina, e bem mais centrada as questões
pragmáticas e éticas.


                    TEOLOGIA AGOSTINIANA E REFORMA PROTESTANTE, p. 153-178      159
                                                  Ronaldo de P. Cavalcante
oriental da graça a categoria relevante seja a da divinização 8 –
                             ou como disse Santo Atanásio: Deus se fez homem para o
                             homem fosse deificado; tornou-se corporalmente visível, a
                             fim de que o ser humano adquirisse uma noção do Pai invi-
                             sível (SANTO ATANASIO, 2002, VI, 54,3 p. 198). A con-
                             seqüência imediata desse conceito é que a teologia paulina da
                             justificação do pecador mediante o sacrifício da cruz, mesmo
                             não sendo ignorada, ocuparia lugar secundário.
                                     Sem negar a influência da filosofia religiosa de ascen-
                             dência platônica, que apresentava como ideal antropológico a
                             assimilação do homem ao divino, o ponto de partida dessa
                             teologia da divinização é um duplo dado bíblico: o conceito
                             veterotestamentário do homem imagem de Deus (RONDET,
                             1966, p. 63-80) e a mensagem joanina da encarnação do Lo-
                             gos. Gênesis 1 e João 1 estão assim na raiz de toda reflexão
                             oriental sobre o mistério da graça.
                                     Essa determinante inspiração bíblica faz com que a
                             doutrina cristã da divinização se diferencie claramente das
                             interpretações filosóficas homônimas, pelas quais a participa-
                             ção humana no modo de ser divino era não um dom gratui-
                             to, senão uma conquista esforçada do próprio homem (RUIZ
                             DE LA PEÑA, 1991, p. 268). E como já dito supra (nota 8),
                             Clemente de Alexandria, com base em 1Pedro 1, 4, segundo
                             Auer (1984, p. 315), revestirá de cristianismo a doutrina da
                             divinização do homem, especialmente mediante a verdade da
                             habitação do Espírito Santo (Rm 8,11; 2Tm 1,14). Isso le-
                             vou, no Oriente, a uma demasiada ênfase na colaboração
                             (sinergia) entre Deus e o homem na questão da salvação9. Em

        8
           Também chamada de deificação, já está presente nos primeiros apologistas gregos (século II)
    que buscam uma reinterpretação das informações bíblicas; será explorada especialmente a partir de
     Clemente de Alexandria. Theopoiein é o termo clássico que representa a doutrina, bem como suas
   outras formas. Textos bíblicos como At 17:28 e 1Pe 1:4, além de idéias como de imago Dei (Gn 1),
filiação divina (Gl 4:5s; Rm 8:15); imitação de Cristo (Fp 2:5-11), servirão de base escriturística para
 a elaboração teológica desse pensamento no cristianismo grego, bem como no latino, aqui com mais
                                                                             sobriedade hermenêutica.
        9
          Conforme explica G. Lafont: “Vimos que no Oriente era enfatizada a liberdade do homem,
lugar próprio da Imagem de Deus [...] para reconhecer e valorizar o papel salvífico da humanidade de
                        Cristo na questão da salvação. Em História teológica da Igreja católica, p. 59.


                  160        CIÊNCIAS DA RELIGIÃO – HISTÓRIA E SOCIEDADE
                             Ano 3 • N. 3 • 2005
especial nos capadócios, ver-se-á uma incrementação da idéia
de cooperação entre graça e livre-arbítrio.
       Foi Ireneu de Lyon10 o primeiro grande expositor dessa
concepção. A idéia é a de que o Filho de Deus encarnou para
que o homem fosse divinizado; de uma ou de outra forma, tal
pensamento aparecerá repetidamente em sua obra: “[...] o
Verbo de Deus se fez homem, tornando-se a si mesmo seme-
lhante ao homem e o homem semelhante a si, para que o
homem, por esta semelhança com o Filho se tornasse precio-
so aos olhos do Pai” (Adv. Haer. V, 16,2). Igualmente, a máxi-
ma creditada a Atanásio no De incarnatione: “O Filho de Deus
tornou-se filho do homem para que os filhos dos homens,
isto é, de Adão, pudessem se tornar filhos de Deus [...] parti-
cipantes da vida de Deus [...] Assim, Ele é Filho de Deus por
natureza, e nós, pela graça”11. O eco dessas sentenças traspas-
sará toda a patrística grega; seis séculos mais tarde, João
Damasceno escreverá que “[...] o Filho de Deus [...] se fez
partícipe de nossa pobre e enferma natureza... a fim de fazer-
nos partícipes de sua divindade”12. A encarnação é, pois,
comunhão da pessoa divina do Filho com a condição huma-
na e recapitulação de toda a humanidade, na divindade filial
do Logos encarnado. Só assim poderia cumprir-se o desígnio
primordial que havia presidido a criação do homem: fazer
dele um ser a imagem de Deus13. A importância do caráter
encarnatório da graça, tão presente na teologia oriental e su-
blinhado por tantos autores, será, não obstante, silenciado

10
  A. Orbe, Antropologia de San Ireneo. Madrid: 1969, caps. 4 e 55 em Ruiz de la Peña, op. cit. 269.
As citações de Irineu são de sua obra em português: Ireneu de Lião. São Paulo: Paulus, 1995.
11
   Kelly, p. 265-266. Também diz: “O Verbo se abaixou até se tornar corporalmente visível, a fim de
atrair a si os homens enquanto homem e fazer com que a sensibilidade humana se inclinasse para
ele”. “A Encarnação do Verbo” 16:1 em Santo Atanásio. Antropologia teológica especial. São Paulo:
Paulus, 2002, p. 146.
12
  De fide ortod., 4:13 em Ruiz de la Peña, loc. cit. Outros textos de Ireneu sobre o tema são Adv.
Haer. III, 18,19; IV,34,4. O final mesmo da divinização não figura na obra do bispo lyonês; o
primeiro em utilizá-lo parece ter sido Clemente de Alexandria. De fide ortod. 4:13 em Ruiz de la
Peña, loc. cit.
13
   Adv. Haer. V, 36:3. “[...] pela qual a sua criatura, conformada e incorporada ao Filho, é levada à
perfeição; de forma que, enquanto o Primogênito, isto é, o Verbo desce na criatura e a assume, por
sua vez a criatura se apossa do Verbo e sobe até Deus, ultrapassando os anjos e tornando-se à imagem
e semelhança de Deus”.


                    TEOLOGIA AGOSTINIANA E REFORMA PROTESTANTE, p. 153-178      161
                                                  Ronaldo de P. Cavalcante
em Orígenes, por conta, certamente, do forte influxo do dua-
                            lismo platônico no mestre alexandrino e com certeza por um
                            pensamento mais independente. Por essas e outras, a tradição
                            quase sempre estará reticente acerca do autor da Hexápla.
                                   No entanto, a idéia de um conceito antropológico es-
                            sencialmente tributário da encarnação divina ocupará majo-
                            ritariamente a atenção dos pais gregos, desde Inácio de An-
                            tioquia, passando, como foi visto, por Ireneu, mas também
                            em Atanásio, Gregório de Nissa e outros, até tardiamente em
                            João Damasceno e Máximo o Confessor14. Nesse consenso,
                            concebe-se no Oriente cristão uma forte influência do neo-
                            platonismo – Plotino, Proclo – fazendo surgir uma mística
                            cristã que inicia com Orígenes e se difunde, sobretudo, pelos
                            escritos do pseudo-Dionísio areopagita e dos comentários a
                            este realizados por Máximo o Confessor.
                                   Por conseguinte, há que se levar em conta o caráter an-
                            tropológico na formação teológica do cristianismo grego. A
                            antropologia, com base na ação revelacional e encarnatória di-
                            vina, funcionaria, pois, como um critério hermenêutico. E o
                            pressuposto fundamental aqui é o de que o verdadeiro destino
                            do homem é o próprio Deus15. Dessa maneira, na patrística
                            oriental a dimensão antropológica está concebida verticalmen-
                            te. Isso, entretanto, não deve significar uma diluição ou rebai-
                            xamento da alteridade de Deus, uma vez que, precisamente
                            entre os cristãos gregos, desenvolveu-se um agudo sentido da
                            transcendência divina (FRANSEN, 1975, p. 614)16. Diga-se,


        14
         Auer diz que Máximo o Confessor ensinava a possibilidade de uma consumação terrena da
  vida da graça com base em uma sobrenatural e extática contemplação de Deus e do concomitante
 amor a ele no marco da piedade eclesial. Essa teologia da graça continuou sendo normativa até hoje
                                                                             na Igreja oriental grega.
             15
            Ademais dos concílios ecumênicos: Nicéia (325), Constantinopla (381) e Éfeso (431), se
buscará o fundamento para tal idéia nas reflexões, dentre outros, de Atanásio, Gregório de Nazianzo,
         Dídimo o cego, Basílio Magno, Cirilo de Alexandria sobre a habitação de Deus no homem.
      16
        A prova disso é a interessantíssima teologia apofática, que seria a forma menos imperfeita de
conhecimento de Deus, porque renuncia aos sentidos e recursos intelectuais. Segundo Pablo Maroto
   (1990, p. 95): “Essa teologia apofática, de negação aparente, sem conceitos, sem imagens, é uma
   metodologia purificadora das mediações acessórias e imperfeitas [...] Uma negação que purifica o
  afirmativo aplicado alegremente a Deus, e sugere mais que afirma a transcendência divina. Assim,
Deus é concebido e encontrado pelo homem na escuridão da fé, da mística, porém sempre como um
                                                                                 Deus desconhecido”.

                  162       CIÊNCIAS DA RELIGIÃO – HISTÓRIA E SOCIEDADE
                            Ano 3 • N. 3 • 2005
en passant, um sentido bem superior ao estabelecido no Oci-
dente latino que se deteve mais no ethos da abordagem pare-
nético-pastoral do apóstolo Paulo, por isso mesmo mais con-
dicionado às questões de fundo ético e relacionadas com os
temas fronteiriços das difíceis relações do cristianismo judaico
jerosolimitano, mais aferrado às tradições rabínicas com o nas-
cente e promissor cristianismo gentílico da diáspora, esposado
por Paulo, que, por assim dizer, foi o ponto de inflexão que fez
recobrar as forças de um cristianismo esgotado internamente
pelas facções e cismas judaizantes e gnósticos.
       Por seu lado, no Oriente, ademais da teologia joanina,
está preservado e sublinhado fortemente o próprio pensa-
mento paulino, contudo, especialmente o relacionado com
seu conceito de Cháris. Por isso mesmo, seria descabido con-
siderar no conceito “divinização” um sentido que infravalo-
rasse a primazia e transcendência de Deus na obra criadora e
redentora realizada pelo Espírito (FRANSEN, 1975, p. 614).
Na verdade, entendo exatamente o contrário; parece ser que
o conceito cristão oriental da graça de Deus está um tanto
mais resguardado das tendências de “coisificação” e “domes-
ticação” das coisas divinas tão presentes no Ocidente cristão
latino e que levaram aí a uma espécie de “vulgarização do
sagrado” e “banalização do mistério divino” com desdobra-
mentos atuais.



           2 . SA N TO AG OST I N H O : G R A Ç A D I V I N A
                       E D E SA F I O A N T RO PO L Ó G I CO

      Tentar entender o posicionamento de Agostinho sobre
a graça, exige, ademais de persistência acadêmica e humilda-
de intelectual, um conhecimento de seu entorno vital, o que
excede o objetivo deste texto. Inclusive, pelo fato de que tan-
to no tema da espiritualidade quanto no da teologia propria-
mente dito, Agostinho afirma-se um clímax, uma síntese,
uma espécie de “vale” receptáculo de todo o caudal cultural
dos primeiros séculos cristãos. Ou como disse, de forma lapi-
dar, De Boni a propósito do De beata vita: “Se em Sêneca, de

                 TEOLOGIA AGOSTINIANA E REFORMA PROTESTANTE, p. 153-178   163
                                               Ronaldo de P. Cavalcante
certa forma, complila-se o pensamento estóico do mundo
                             greco-romano, em Agostinho resume-se o pensamento cris-
                             tão dos primeiros séculos” (DE BONI, 2003, p. 58).
                                    No tema específico que ora nos interessa, é indispensá-
                             vel pelo menos um conhecimento razoável das teses pelagia-
                             nas17. Em linhas gerais o pelagianismo, até por uma questão
                             de justiça histórica, deve ser visto a partir da polêmica com o
                             maniqueísmo e, por isso mesmo, salientará a bondade de to-
                             da a criação, quer dizer, o bem extrinsecamente presente na
                             natureza. Assim, o homem como parte dessa criação e criado
                             à imagem e semelhança de Deus; criado por um Deus que
                             não pode ser autor do mal, pois isso feriria sua natureza –
                             criará ao homem com liberdade. Com base nessa liberdade é
                             que o homem poderá fazer o bem ou o mal. A graça seria, en-
                             tão, o auxílio para que ele faça o bem.
                                    Pelágio vê a graça precisamente na ação livre do homem
                             – o dom que Deus dá ao homem gratuitamente é a possibili-
                             dade de escolher – o livre-arbítrio. Celéstio radicalizará com
                             outros discípulos nesse ponto, entendendo que o livre-arbítrio
                             só pode existir no homem sem qualquer ajuda exterior – de
                             Deus. Sendo um sacerdote preocupado com a questão moral,
                             não poderia aceitar idéias pessimistas desmoralizantes sobre o
                             que se poderia esperar da natureza humana. A pressuposição
                             de que o homem não era capaz de deixar de pecar parecia-lhe
                             um insulto a seu Criador18. Por isso se escandalizou com a
                             oração de Santo Agostinho: “Concede-me o que me ordenas,
                             e ordena o que quiseres” – da quod iubes et iube quod vis
                             (Confissões X, 29, 40). Seriam os homens simples objetos nas
                             mãos de Deus?
                                    Como se pode perceber, estsa vocação ou possibilidade
                             inata do homem para fazer o bem, na visão de Pelágio, leva-

        17
          O nome está relacionado com Pelágio, sacerdote irlandês, talvez monge, do século IV, que
  após o saque de Roma, em 410, se refugiou na África e posteriormente em Jerusalém. Em 415 foi
   acusado de heresia por dois bispos da Gália que o ligavam ao herege Celéstio. Mesmo tendo sido
     absolvido, seus escritos chegaram até Agostinho, o qual com outros bispos africanos exigiu sua
condenação. A querela teve um fim oficial primeiro no Concílio provincial de Cartago, em 418, que
   condenou várias de suas idéias e, posteriormente, no Concílio Ecumênico de Éfeso, em 431, que
                                              pronunciou anátemas contra as proposições pelagianas.
        18
             Kelly, Historia de la doctrina de la gracia em sacramentum mundi 3. Barcelona: Editorial
                                                                          Herder, 1984, 315. p. 270.


                   164       CIÊNCIAS DA RELIGIÃO – HISTÓRIA E SOCIEDADE
                             Ano 3 • N. 3 • 2005
ria fatalmente ao choque com a posição agostiniana19, uma
vez que estaria reduzindo a graça tão somente a liberdade e,
no final das contas, a salvação é algo obtido pelo homem com
base nos próprios e únicos esforços (MANZANARES, 1995,
p. 177). A pedra de toque de seu pensamento teológico é a
doutrina do livre-arbítrio. Para Pelágio, ao criar o homem,
Deus deu-lhe autonomia para obedecer à vontade divina por
escolha própria, quer dizer, a possibilidade de escolher livre-
mente o bem.
       A partir da polêmica com Pelágio, a teologia da graça,
no Ocidente, estará vinculada ao pensamento de Santo
Agostinho. Com ele, começa a girar em torno desse conceito
um corpus importante de doutrina acerca do homem e de sua
relação com Deus que dará lugar aos vários tratados sobre a
gratia na teologia posterior. Um indicativo disso é que a pala-
vra “graça” já apareça no título de algumas obras do bispo de
Hipona (LADARIA, 1997, p. 157). Pode-se notar que o con-
ceito de graça, por conta da pugna pelagiana, passa a ser sinô-
nimo de auxilium, ou seja, uma ajuda para se fazer o bem ou
mesmo a libertação do pecado. Por isso, a graça passa a estar
relacionada com a atividade religiosa do homem, obrigando
Agostinho a insistir no problema da graça e da liberdade
(LADARIA, 1997, p. 158).
       Mais além dessa controvérsia, pode-se ver, no teólogo
africano, uma amplitude bem maior sobre o tema20, inclusi-

19
   Com efeito, Agostinho em sua obra de Gestis Pelagii, do ano 417, identifica o essencial da doutrina
atribuída a Pelágio e seu discípulo Celéstio. Dentre outras afirmações de Pelágio, Agostinho sublinha:
1) Adão foi criado mortal e teria morrido com pecado ou sem pecado; 2) o pecado de Adão
prejudicou somente a ele, não à estirpe humana; 3) a lei conduz ao reino tão bem quanto o
evangelho; 4) houve homens sem pecado antes da vinda de Cristo; 5) crianças recém-nascidas estão
nas mesmas condições de Adão antes da queda; 6) não é por meio da queda nem da morte de Adão
que morre toda a raça humana, nem é por meio da ressurreição de Cristo que ela ressurgirá [...]
(apud H. Bettenson, 1967, p. 88-89).
20
   Desde os primeiros escritos, mesmo antes do batismo e logo após, Agostinho já reconhecera a
primazia da graça, conforme, por exemplo: [...] Deus, que não és o autor do mal, mas que permites
que ele suceda a fim de prevenir mal maior; [...] Deus, que somente aos corações puros quiseste dar o
conhecimento da Verdade; [...] Pai do nosso despertar e da luz que nos ilumina, Pai das promessas
pelas quais somos advertidos a retornar a ti [...]” (Solilóquios. p. 24-25). Igualmente, nas Confissões
(397-400), em vários pontos da obra, se percebe uma desenvolvida doutrina da graça. Sobretudo em
sua obra, em dois volumes, escrita a Simpliciano, bispo de Milão e sucessor de Ambrósio, De diversis
quaestionibus ad Simplicianum (395-397), em que Agostinho afirma a centralidade da graça de Deus
no processo salvífico de seu povo, a propósito de 1Coríntios 4:7; Romanos 9:10-29 etc.

                    TEOLOGIA AGOSTINIANA E REFORMA PROTESTANTE, p. 153-178      165
                                                  Ronaldo de P. Cavalcante
ve perceber nele fortes influências da patrística grega. São
      diversos e numerosos os ensinos agostinianos acerca da graça
      da encarnação do Verbo; da união de todos os homens em
      Cristo; do Christus Totus que fundamenta tanto sua antropo-
      logia quanto sua eclesiologia. Nesse último aspecto vale a
      pena ressaltar que, a partir de Agostinho: a) o homem não
      pode salvar-se por si só, senão tem absoluta necessidade de ser
      salvo por Deus; b) essa salvação é graça que libera a liberdade
      e suscita no ser humano a atração e opção pelo bem; c) tudo
      isso remonta à iniciativa divina; é a Deus que compete o pri-
      mado irrestrito na obra de salvação; d) a liberdade e a graça
      não podem conceber-se antinomicamente (RUIZ DE LA
      PEÑA, 1991, p. 281).
             Apesar disso se pode aceitar que, após Agostinho, dá-se
      o começo de um processo de distanciamento entre Ocidente
      e Oriente, o qual tendo início na antropologia agostiniana
      caminhou até o aristotelismo e nominalismo escolásticos. De
      qualquer maneira, o pensador cristão ocidental, em sua psi-
      quê, nutrido de filosofia e teologia agostinianas, está coloca-
      do numa tensão fundamental: teme que a ênfase na primazia
      de Deus em outorgar ao homem a graça anule a dignidade
      humana e entende que a liberdade do homem ameace a sobe-
      rania divina ou, como disse P. Schoonenberg: “Deus ou o
      homem”. Na sua In epistolam ad Romanos, equilibra muito
      bem os temas: “A liberdade foi perfeita no primeiro homem.
      Nossa liberdade, ao contrário, não é a de não pecar, mas a de
      não querer pecar. É a graça que nos faz, além de agir bem,
      poder agir bem. Não por nossas forças, mas com o auxílio do
      Libertador” (13,18) (RUBIO, 1995, p. 208).
             Dentro da controvérsia pelagiana, tem lugar privilegia-
      do sobre sua segunda obra a respeito: De spiritu et littera, de
      412, em que ademais de explicar as relações entre lei e graça,
      fala também sobre a liberdade cristã (TRAPE, 2002). Este
      especialista afirma que é uma obra-chave para o entendimen-
      to da doutrina agostiniana da graça (TRAPE, 1993, p. 461),
      por isso mesmo vale aqui uma citação mais longa:

                 Nós pelo contrário, asseveramos que a vontade humana é de
                 tal modo ajudada por Deus para praticar a justiça, que, além
                 de o homem ser criado com o dom da liberdade e apesar da
                 doutrina que o orienta sobre o modo de viver, receba o Es-

166   CIÊNCIAS DA RELIGIÃO – HISTÓRIA E SOCIEDADE
      Ano 3 • N. 3 • 2005
pírito Santo, que infunde em sua alma a complacência e o
             amor do Bem incomunicável, que é Deus [...] com o penhor
             da graça recebido gratuitamente, anseie aderir ao Criador e ane-
             le vivamente aproximar-se da participação daquela luz verda-
             deira... Porém, para que venha a amá-lo, o amor de Deus se di-
             funde em nosso coração não pelo livre-arbítrio que radica em
             nós, mas pelo Espírito Santo que nos foi dado (Rm 5:5)21.

       Em suas Retratações22, Santo Agostinho, mencionando
seu revelador escrito De gratia et libero arbitrio23, dirigido aos
monges de Adrumeto24, busca esclarecer os mal-entendidos
acerca de sua doutrina da graça e da predestinação. Ademais,
além desse breve tratado, Agostinho envia ainda duas Cartas 25
ao mesmo mosteiro (Cartas 194 e 195). Na segunda delas,
dentre outras coisas, ele diz: “[...] não deveis defender a liber-
dade a ponto de atribuir-lhe as boas obras sem a graça de
Deus; e não deveis defender a graça de Deus a ponto de pre-
ferir as más obras, como se tivésseis a garantia da graça” (Carta
195,8)26. Já na anterior havia dito que: “Portanto, se não exis-
te a graça de Deus, como há de salvar o mundo? E se não exis-
te a liberdade, como há de julgar o mundo?” (Carta 194,2).


21
  Em Agostinho (1999a): “A graça é um dom do Espírito Santo” III, 5. 20-21. Também recolhido
em Bettenson (1967, p. 89-90).
22
  Obra fundamental para conhecer os demais escritos de Santo Agostinho, bem como suas
motivações e intenções. Foi iniciada em 412, porém só terminada em 427. Nela, Agostinho realizou
uma significativa avaliação de toda sua obra. Esse escrito muito ajuda a entender as últimas posições
doutrinais do bispo de Hipona e constitui, por assim dizer, suas últimas confissões.
23
     O título em português é A graça e a liberdade (Agostinho, 1999b).
24
  Mosteiro no norte da África que juntamente com o de Lérins (sul da França) pendeu ao
semipelagianismo, considerando o initium fidei e a gratia perseverantiae como obras humanas e não da
graça, reagindo, assim, ao movimento predestinacionista que entendia a graça não como fruto do
amor de Deus, como pensava Agostinho, mas como obra da onipotência divina, anulando a liberdade
do homem diante da predestinação. O segundo Concílio de Orange, em 529, condenou ambas as
posições fortalecendo a doutrina agostiniana expurgada de seus excessos.
25
  Escritas em 426-27 e enviadas juntamente com o De gratia et libero arbitrio e o De correptione et
gratia. Este último e as Cartas estão igualmente incluídas na obra em português (ver nota anterior).
26
  Quase o mesmo ele diz em outro escrito: “Não devemos insistir tanto na graça de Deus que
desvalorizemos a liberdade. Tampouco devemos insistir na liberdade a ponto de desvalorizar a graça
de Deus”. De pecatorum meritis et remissione (Dos méritos e remissão dos pecados apud RUBIO,
1995, p. 207).

                      TEOLOGIA AGOSTINIANA E REFORMA PROTESTANTE, p. 153-178    167
                                                    Ronaldo de P. Cavalcante
Nesse momento, a luta de Santo Agostinho é contra a
                     renovação das idéias pelagianas27, contra os que afirmam que
                     a “[...] graça de Deus lhe é outorgada em vista dos mereci-
                     mentos de suas obras ou de suas orações ou de sua fé... que
                     Deus nos dá sua graça conforme nossos merecimentos” (Car-
                     ta 194,4).
                            A partir dessas considerações iniciais, Santo Agostinho
                     efetivamente discorre sobre a graça divina e o desafio antropo-
                     lógico. Reconhece de início a existência da liberdade humana
                     confirmada pelas Escrituras: “Deus revelou-nos pelas suas san-
                     tas Escrituras que o homem possui o dom da liberdade”28,
                     quer dizer, a livre vontade para cumprir os mandamentos divi-
                     nos, evitando-se, por isso mesmo a possibilidade de se descul-
                     par, conforme João 15:22; Romanos 1:18-20; Tiago 1:13-15;
                     Eclesiástico 15:11-18, textos por ele citados e que o levam a
                     concluir: “Está bem clara a alusão ao livre-arbítrio da vonta-
                     de humana” (II,3). E retoricamente pergunta: “Por que o
                     Senhor, em tantas passagens, determina a observância e o
                     cumprimento de todos os seus mandamentos? Por que have-
                     ria de determinar, se não existisse o livre arbítrio?” (II, 4).
                     Igualmente faz longa citação textual de outras passagens das
                     Escrituras que dão a entender a realidade da vontade própria
                     humana (Rm 12:21; Sl 31:9; Pv 1:.8; 3:5. 11:27,29; 5:2; Sl
                     35:4; Pv 1:29; Mt 6:19; Pv 10:28; Lc 2:14; 1Co 7:36-37;
                     9:17; 15:34; 2Co 8:11; 2Tm 3:12; 1Tm 4:14; Fm 14; Tg 2:1;
                     4:11; 1Jo 2:15, etc.). Comenta ao final que onde está escrito:
                     “Não queiras isto ou não queiras aquilo” e para fazer ou não
                     fazer algo, os divinos conselhos exigem a ação da vontade,
                     percebe-se com clareza a exigência do livre-arbítrio” (II,4).
                            Em seguida, no capítulo III, discorre sobre a responsa-
                     bilidade humana diante dos mandamentos e com base em
                     Lucas 12:48 diz que “[...] o pecado do que sabe é mais grave
                     do que o do que desconhece” (III,5); embora não haja descul-
                     pa para o segundo. Aliás, em sua De diversis quaestionibus ad
                     Simplicianum, libri II (1,2,7), ele ensina que “Deus não faz


   27
     Idéias ligadas às duvidas sobre as doutrinas da gratuidade da graça, da predestinação e da
perseverança dos santos e que por sua vez darão início ao movimento chamado, na história do
                                                     pensamento cristão, de semipelagianismo.
                                                              28
                                                                   De gratia et libero arbitrio II, 2.


           168       CIÊNCIAS DA RELIGIÃO – HISTÓRIA E SOCIEDADE
                     Ano 3 • N. 3 • 2005
injustiças. Quer perdoe a dívida, quer exija seu pagamento,
nem aquele a quem se lhe exigiu pode queixar-se de injustiça,
nem o favorecido com o perdão pode gloriar-se de seus méri-
tos. Um paga o que deve, o outro só tem o que lhe foi dado”.
        Entretanto, Agostinho encaminha-se para o outro lado
da questão por preocupar-se que a profusão de textos escritu-
rísticos “[...] em defesa do livre-arbítrio sejam entendidos de
tal que não se deixe lugar à ajuda e à graça de Deus, como
necessárias para uma vida piedosa e um bom comportamento
dignos de recompensa eterna” (IV, 6). Por isso mesmo, passa
em revista “[...] os testemunhos divinos sobre a graça de Deus,
sem a qual não podemos praticar nenhum bem” (IV, 7).
Assim, a propósito de 1Timóteo 5:22 e 1Coríntios 7:37, con-
clui que “essa palavra, que não é compreendida por todos, seja
compreendida por alguns, e significa tanto o dom de Deus
como a liberdade” (De diversis quaestionibus ad Simplicianum,
libri II). Igualmente, no tema da casticidade conjugal, a partir
das premissas paulinas, Agostinho reconhece os dois lados: a
origem divina e o compromisso humano. “Portanto, a vitória
obtida sobre o pecado é também dom de Deus, o qual, neste
combate, vem em auxílio da liberdade” (IV, 8). Dessa manei-
ra terá muito sentido a admoestação do Senhor: Vigiai e orai
[...], que segundo Agostinho: “Para não sucumbir à tentação,
não basta o livre-arbítrio da vontade humana, se o Senhor não
favorecer a vitória ao que ora” (IV, 9).
        “Portanto, o homem é ajudado pela graça a fim de que,
não sem motivo, à sua vontade se imponham preceitos”
(IV,9). Já em 396-397, em seu escrito pastoral De agone chris-
tiano, afirmara que “A graça de Deus não somente nos faz
conhecer o que devemos fazer, mas também fazer o que co-
nhecemos; não somente crer no que devemos amar, mas tam-
bém amar o que cremos” (12,13).
        Em outro momento, após responder às demandas pela-
gianas sobre interpretação de textos sagrados e acerca da graça
na perseverança, Agostinho desenvolve algumas idéias acerca
da justificação pela graça com base nos escritos paulinos. En-
tende que “é vosso dever pelo livre-arbítrio não fazer o mal,
mas praticar o bem” (X,22). Os textos de Romanos 3:20 e
4:15 lhe suscitam uma pergunta fundamental: “o que quis
significar por novidade de espírito senão a graça?” (X,22). E
responde com Romanos 7:7-13 e Gl 2:16. Em outra obra
(Sermão 169,11,13 citado em RUBIO, 1995, p. 206), coe-

                 TEOLOGIA AGOSTINIANA E REFORMA PROTESTANTE, p. 153-178   169
                                               Ronaldo de P. Cavalcante
rente com seu equilíbrio entre graça divina e liberdade huma-
                             na, Agostinho esclarece que “A justificação é um dom de
                             Deus. Mas não nos é concedida sem nossa colaboração. Nos-
                             sa é a vontade; sua é a graça. A justiça de Deus existe sem nós,
                             mas não nos é aplicada sem nós”.



3. A REFORMA E A RECUPERAÇÃO
DA D O U T R I N A DA G R A Ç A : A T R A D I Ç Ã O
AG OST I N I A N A
                                    O movimento de reforma no século XVI, mais tarde de-
                             nominado protestantismo, deve sua gênese histórica, essen-
                             cialmente, à doutrina da Justificação pela Fé29, que para a teo-
                             logia luterana firmou-se como a questão central, nuclear. O
                             próprio Lutero afirmou: “Mantendo-se de pé este artigo, man-
                             tém-se de pé a igreja”30 – articulus stantis et cadentis ecclesiae.
                                    Tal hipervalorização, evidentemente reducionista, de-
                             corria das experiências espirituais do monge agostiniano ale-
                             mão Martinho Lutero31 que, em meio a lutas de consciência,

            29
               Segundo Tillich: “O protestantismo nasceu da luta em torno da doutrina da justificação
       pela fé”. A justificação pela fé traduz segundo ele, “A situação limite” da existência humana. “A
escolha se resume, pois, entre a aceitação radical da situação limite e a tentativa de ver na igreja e nos
sacramentos proteções seguras contra a ameaça incondicional”. Luiz F. Ladaria, op. cit., p. 158. A era
                       protestante, p. 213-215; também sua Teologia sistemática, p. 380-382 e 553-556.
     30
        WA 40 III, 3523. Importante comentário de Lutero acerca da doutrina da justificação em seu
                                            comentário sobre o Salmo 51 (Enarratio psalmi LI) de 1532.
             31
                TURMERLEBNIS (Experiência da torre). A grande questão, aqui, é: quando se deu a
    conversão do monge Martinho Lutero? Não obstante o próprio Lutero localizar tal experiência na
 torre do convento em Wittenberg (e não em Erfurt como pensam alguns!) registrando o fato na sua
    biografia de 1545 e vinculando-o ao texto De spiritu et littera de Agostinho, é estranho notar que,
  quando realiza suas preleções de Romanos, nada se refere a algo tão importante. Essa interpretação
somada às outras que vinculam sua conversão às preleções dos Salmos (Operationes in Psalmos, 1518
       ou 1519), à de Hebreus (1517) ou mesmo anterior a tudo isso, entre 1508 e 1511, no contato
 intenso com Staupitz, levam a concluir, pela documentação de que dispomos, que hoje é impossível
obter uma cronologia exata de sua evolução interior, especificamente no caso de sua conversão. Uma
          coisa sabemos, a mudança em Lutero não foi conceitual ou teórica, o que aconteceu depois;
  tampouco, nesse primeiro momento, teológica, mas sobretudo de atitudes, e atitudes não dele para
   como Deus, mas de Deus para com ele (sobre este tema ver as reflexões de G. Montes, J. Lortz, A.
                                              Greiner, K. Holl, O. H. Pesch, F. Lau, P. Althaus etc.).


                  170        CIÊNCIAS DA RELIGIÃO – HISTÓRIA E SOCIEDADE
                             Ano 3 • N. 3 • 2005
na busca de um Deus gracioso que lhe garantisse certeza de
salvação e paz interna, considerara insuficiente a formação in-
telectual recebida. Nesse sentido, com Lutero, dá-se um tipo
de reforma acadêmica em que pouco a pouco se substitui o
referencial filosófico na jovem Universidade de Wittenberg.
       Na primavera de 1517, Lutero afirmaria em carta (WA
Br 1,99, n. 41,8-13 citado em EBELING, 1988, p. 14):

           Nossa teologia e Santo Agostinho progridem bem e dominam
           na nossa Universidade graças à ação de Deus. Aristóteles aos
           poucos está afundando e se encaminha para o seu desapareci-
           mento próximo e definitivo. As aulas sobre as Sentenças são
           desprezadas de forma impressionante; só pode esperar ter alu-
           nos quem se dispõe a tratar dessa teologia. Isto é, da Bíblia, San-
           to Agostinho ou de algum outro mestre comprovado da Igreja.

       Na nova orientação, sabe-se, destacava-se o nominalis-
mo (RUIZ DE LA PEÑA, 1991, p. 285)32, que constitui,
nessa época, a via moderna em detrimento da via antiqua,
identificada com o tomismo e com o escotismo dentro da fi-
losofia aristotélica.
       Para precisar a cronologia: em 1501, Lutero matricu-
lou-se na Universidade de Erfurt para o curso das artes libe-
rais, o trivium: gramática, dialética e retórica alcançando o tí-
tulo de bacharel em artes. Após sua crise, no verão de 1505 33,
ele decide ingressar – na própria cidade de Erfurt, onde havia,
na universidade, recebido o título de magister artium (janei-


32
  Lutero, quando de sua ordenação em 1507, leu por conta própria a teologia de Gabriel Biel (1420-
1495), professor de Tubingen e principal representante da corrente nominalista, que se associa à tese
de que o que verdadeiramente existe são os “individuais” e “particulares” em detrimento dos
“universais”, apenas nomes dados.
33
  Experiência vocacional: após o livramento da tempestade perto da aldeia de Stotternheim em que
prometeu a Santa Ana tornar-se monge, Martinho Lutero, em 17 de julho de 1505, “reúne os
amigos, bebem, comem, cantam e se divertem! [...] mas subitamente Martinho se levanta, pede que
façam silêncio e, diante dos amigos perplexos, faz um breve discurso, que os atinge como um raio
fulminante: ‘hoje vocês ainda me vêem, mas depois, não me verão jamais’ [...]. À sua palavra faz
surgir a ação. Distribui entre os amigos os seus pertences e, depois, na madrugada de 18 de julho de
1505, desce para a cidade e bate à porta do grande Convento Agostiniano da Cruz [...] faz este
simples pedido: ‘eu gostaria de ver o superior. Pelo amor de Deus, deixe-me entrar!’” (apud A.
Greiner, Martinho Lutero, um apaixonado pela verdade, p. 13).


                    TEOLOGIA AGOSTINIANA E REFORMA PROTESTANTE, p. 153-178       171
                                                  Ronaldo de P. Cavalcante
ro de 1505) – no mosteiro dos agostinianos eremitas (17 de
                         julho de 1505), onde se familiarizou com a posição dogmáti-
                         ca dos occamistas (HÄGGLUND, 1981, p. 180)34 e teve, por
                         assim dizer, seu primeiro contato com a Bíblia. Ebeling expli-
                         ca que Lutero tornou-se occamista pelo simples fato de que
                         em Erfurt só se ensinava a via moderna, situação diferente de
                         Leipzig, onde prevalecia o tomismo da via antiqua com o estu-
                         do da Summa à cabeça.
                                Somente após a conclusão do doutorado em 1512, sob
                         a orientação e convite de Staupitz, Lutero assume a cátedra –
                         Lectura in Bíblia – na Universidade de Wittenberg, criada em
                         1502 pelo Eleitor Frederico o Sábio (HÄGGLUND, 1981, p.
                         180)35. Isso significará grande mudança em seu pensamento.
                                O distanciamento em relação à doutrina occamista
                         (FRANSEN, 1975, p. 667)36 da graça, a qual falava de uma
                         recompensa pelos esforços humanos (Facere quod in se est), foi
                         tomando forma a partir de 1513, em meio às dúvidas quan-
                         to ao cumprimento suficiente das predisposições e ao amor a
                         Deus sobre todas as coisas, obsessionando-o quanto a sua
                         eleição. Somente os conselhos de Staupitz para que contem-
                         plasse o Cristo crucificado o ajudariam a superar esse difícil
                         período de ansiedade (FRANSEN, 1975, p. 181). Parece,
                         portanto, que simultaneamente a esse afastamento da escolás-
                         tica, Lutero – e posteriormente Calvino – aprofundará o dile-
                         ma ocidental: Deus ou o homem? Optando resolutamente,
                         como se sabe, por Deus: Soli Deo gloria!
                                Segundo Hagglund, Lutero apoiou-se muito em Agos-
                         tinho. Em seus primeiros anos, como regra geral, identificava
                         sua posição com a de Agostinho. Foi o ensinamento agosti-
                         niano de pecado e graça que Lutero desejava manter em opo-


         34
              Seguidores das idéias de Guilherme de Ockham (1295-1350), “pai do nominalismo”.
   35
      Antes disso (1508), Lutero teve uma breve passagem por Wittenberg a convite de Staupitz,
 como professor substituto, lecionando sobre a ética de Aristóteles. Voltou a Erfurt (1509) como
professor no mosteiro. Em novembro de 1510, visitou Roma. Somente ao final de 1511 é que se
                  trasladou definitivamente a Wittenberg para assumir a cátedra no ano seguinte.
    36
       Fransen (1975) ilumina a questão dizendo que: “Não há dúvida de que Lutero se formou,
na Universidade de Erfurt, em um clima nominalista [...] Ali influía decisivamente João Nathin,
 discípulo em outro tempo de Gabriel Biel em Tubingen. Ainda que Lutero tenha renegado seus
                   mestres, sobretudo na doutrina da graça, sempre lhes professou certa estima”.


                172      CIÊNCIAS DA RELIGIÃO – HISTÓRIA E SOCIEDADE
                         Ano 3 • N. 3 • 2005
sição à doutrina da escolástica sobre justificação. Isso também
foi decisivo no que tange à relação entre Lutero e o occamis-
mo. (1981, p. 181). Ebeling novamente ajuda ao dizer que,
já naquele tempo [em Erfurt?], Lutero lançou as bases para
um estupendo conhecimento da Bíblia.
       Ademais, se familiarizou também com uma quantidade
razoável de obras de Agostinho (EBELING, 1988, p. 28). E
agora, em Wittenberg, Lutero, a partir das salas de aula, com
seus primeiros cursos, começa a colocar em prática seu méto-
do teológico, que equivale a uma cuidadosa exegese da
Escritura (Luís Duch citado em VILANOVA, 1989, p. 267).
Lutero utilizava o esquema tradicional da hermenêutica me-
dieval, quer dizer, o sentido quádruplo das Escrituras somado
ao seu próprio, a contraposição de espírito e letra. Posterior-
mente sua metodologia diferenciou-se, com um claro retroces-
so do esquema medieval por conta de uma exegese mais histó-
rico-gramatical no curso sobre os salmos (1513-1515) e nos
estudos das epístolas aos Romanos (1515-1516), aos Gálatas
(1516-1517) e aos Hebreus (1517-1518).
       Portanto, com base em Agostinho e diferentemente da
escolástica de tradição tomista, escotista ou occamista, pode-
se sumariar dizendo que Lutero considerava a graça divina de
maneira mais realista e em geral como o amor de Deus que
beneficia o homem com a salvação conforme relatado nas
Escrituras.
       No entanto, considerando Calvino como o segundo
momento da Reforma, nota-se menos a preocupação soterio-
lógica com a doutrina da justiificação pela fé, tão central em
Lutero e mais a questão eclesiológica. Todo o livro IV das
Institutas está dedicado à Igreja. Esse lugar importante atri-
buído à Igreja constitui fato novo na jovem continuidade re-
formada. Com Calvino, é a Igreja visível que se afirma, a
Igreja visível que a teologia luterana tinha escamoteado por
detrás da única realidade da Igreja invisível, a universitas prae-
destinatorum (CHAUNU, 1993, p. 208). Isso significa que
uma nova eclesiologia aponta no horizonte reformado e con-
tra o modelo católico medieval. Uma Igreja com o anúncio
da Palavra de Deus, em uma mão, e a administração dos dois
sacramentos instituídos por Cristo na outra. Seguindo de
perto a Agostinho, seu velho conhecido desde Montaigu,
Calvino distingue entre Igreja visível e invisível (IRC IV, I, 1-

                  TEOLOGIA AGOSTINIANA E REFORMA PROTESTANTE, p. 153-178   173
                                                Ronaldo de P. Cavalcante
12. 803-814). A Igreja invisível está formada pelos eleitos,
              conhecidos somente por Deus, pelos anjos e pelos santos. Na
              Igreja visível estão mesclados os bons e os hipócritas, os quais
              não têm de Cristo outra coisa que o nome e a aparência. Do
              mesmo modo que todo cristão tem a obrigação de crer naque-
              la Igreja invisível conhecida somente por Deus, também rece-
              be a ordem de honrar a Igreja visível e de manter-se em sua
              comunhão (IRC IV, I,7. 811). À eclesiologia calvinista subjaz
              a concepção da graça de Deus. Novamente seguindo a Agos-
              tinho, Calvino entende que Deus não oferece a graça somen-
              te para que seja recusada ou aceita, segundo o gosto de cada
              um, senão que a graça, e unicamente ela, é a que inclina os
              corações a seguir seu próprio impulso, ele diz textualmente:
              “Tu fazes e te fazem fazer, és impulsionado para que faças [...]
              E Espírito de Deus que te faz fazer, é o que ajuda aos que
              fazem [...] Isto é o que diz Santo Agostinho [...] combina de
              tal maneira a operação de Deus com a nossa, que o querer é
              da natureza, porém o querer bem é da graça” 37.
                     De fato, o ponto de arranque do protestantismo acerca
              da doutrina da graça é a Sola Scriptura e por isso mesmo se efe-
              tua uma redução conceitual, como o faz notar o teólogo refor-
              mado Marc Lienhard, quando esclarece que diante de uma
              terminologia e de uma doutrina da graça sumamente sutis e
              ricas em matizes e em vocabulário na teologia católica, o pro-
              testantismo aparece como filho pobre, porque em geral não
              cessou de simplificar e de unificar os diversos sentidos que
              poderia abranger essa palavra na tradição teológica (LIE-
              NHARD citado em CONGAR, 1972, p. 206). Assim, a gra-
              ça, em seu sentido protestante, guarda uma nota de incondi-
              cionalidade e alcança o homem sem que esse possa preparar-se
              para ela. Ou, como disse Barth: “Quando dizemos graça pen-
              samos na liberdade com que Deus se volta para outro ser para
              outorgar-lhe seu favor” (LIENHARD citado em CONGAR,
              1972, p. 207). Essa redução simplificadora significa que, com
              base nas informações neotestamentárias o conceito de cháris,
              relaciona-se à salvação em Cristo outorgada ao homem por
              Deus por sua misericórdia produzindo a cura da relação.

37
     IRC II,V, 14. Ainda diz que “não negamos que é bem verdade o que ensina Santo
       Agostinho: que a vontade não é destruída pela graça, senão reparada” (II,V,15).


 174          CIÊNCIAS DA RELIGIÃO – HISTÓRIA E SOCIEDADE
              Ano 3 • N. 3 • 2005
Dessa forma, a graça traduz a absoluta liberdade de
Deus bem como seu amor absurdo e incompreensível que se
inclina ao homem pecador produzindo um novo status, a re-
conciliação. A reconciliação seria, pois, o produto “material”
da ação da graça. Tal ação da graça, como já foi dito, está sina-
lizada no Antigo Testamento, por ocasião da eleição de Israel e
efetivada de maneira plena na pessoa de Jesus, conf. por exem-
plo em João 1:16-17 e Tito 2:11. Como explicita Klaus Ber-
ger, em comparação com o contorno judeu e grego, o uso neo-
testamentário desse conceito é muito freqüente e sem dúvida
se vê nele um termo de escola de determinada direção missio-
nária. O termo foi desenvolvido especialmente por Paulo
(BERGER, 1984, p. 309). Também em João, a partir do tex-
to já citado e de forma semelhante à de Paulo, a cháris é con-
traposta à lei, em que se encontra o lema da plenitude da graça
como bem salvífico da verdade, refletindo, sem dúvida algu-
ma, a qualidade da aliança (hesed). Ademais, 1Pedro mostra,
além de usos bem variados do vocábulo (2:19; 4:10), a cháris
simplesmente como o conjunto da salvação cristã (1:10,13).
       Por conseguinte, os reformadores, com Lutero e Cal-
vino à frente, promovem uma volta ao patrimônio bíblico e
agostiniano quanto à graça divina. É bem verdade que o en-
foque tipicamente soteriológico da graça, como perdão de
pecados, pode ser notado mais na tradição luterana que em
Calvino, esse falará também da graça geral. De qualquer ma-
neira, no protestantismo, a graça é primeiramente, por um
lado, uma atitude misericordiosa de Deus erga nos, pro nobis.
Contudo, por outro lado, é descrita também pelos efeitos cau-
sados na vida do homem, ou seja, é um dom de Deus. Isso sig-
nifica que, muito embora no protestantismo a justificação seja
uma declaração “jurídica” de justiça, entrando Deus em con-
tato com o homem, a dinâmica de seu amor faz com que ele
transforme efetivamente o homem. Por isso mesmo, haverá na
dogmática protestante um importante espaço reservado à mís-
tica de Cristo38. Por sua vez, essa assimilação do divino no hu-

38
   Mística de Cristo, na tradição reformada, relaciona-se com a reconciliação do homem com Deus;
depende de sua graça em Cristo, objetivada por sua palavra que se apresenta acessível pela fé. No entanto,
tal realidade torna-se “nossa” no poder do Espírito Santo em sua ação misteriosa. Cristo habita em nós
por meio do Espírito Santo, “[...] que nos foi outorgado” (Rm 5:5c). Segundo Calvino, o “[...] Espírito
Santo é, por assim dizer, o vínculo pelo qual o Filho de Deus nos une ativamente consigo” (IRC III, I,1).
Na força do Espírito Santo reside uma unio mystica entre o crente e Cristo. Calvino não vacila em
qualificar inclusive esta união com Cristo como vera et substantialis communicatio (IRC III,II,1).


                    TEOLOGIA AGOSTINIANA E REFORMA PROTESTANTE, p. 153-178        175
                                                  Ronaldo de P. Cavalcante
mano não deverá parecer que a graça seja algo independente
                   do Deus doador. Nesse sentido é que Lutero, fazendo distin-
                   ção entre graça e dom, ressaltará a graça como favor de Deus
                   e fonte do dom: o dom que é essencialmente a fé, que depen-
                   de da graça. Portanto, a teologia protestante, ainda que enfa-
                   tize o caráter único e indivisível da graça, considerará a diver-
                   sidade e riqueza dos atos de Deus, empregando o termo graça
                   de diversas maneiras na construção de uma ordo salutis, quer
                   dizer, as formas em que a graça de Deus atua.


4 . CO N C LU S Ã O
                           A grande oportunidade e desafio do protestantismo,
                   em termos de sua teologia, é exatamente fazer desdobrar e
                   tornar relevante todo o seu patrimônio herdado por meio de
                   uma ação pastoral e de uma espiritualidade à altura de suas
                   nascentes e dignificadora de sua história. Quer dizer, assumir
                   a vocação pastoral e espiritual inerente nos pressupostos da
                   teologia paulina e agostiniana e fazê-los “aterrissar” em meio
                   à gente. Uma espécie de atualização do mistério da encarna-
                   ção do Verbo. Fazer valer a cláusula pétrea: ecclesia semper re-
                   formanda. Talvez para isso seja preciso começar pelo mais
                   difícil: o reconhecimento de acidentes de percurso; a aceita-
                   ção daqueles erros tão humanos e, uma vez mais, como os
                   pais reformadores, atentar para eco das Escrituras tão rever-
                   berante em Agostinho:

                              Quanto a mim, não me envergonharei de aprender se me acho
                              no erro...
                              Por isso, prossiga comigo quem comigo está certo;
                              Procure comigo quem condivide a minha dúvida;
                              Volte a mim quem reconhece seu erro;
                              Advirta-me quem descobre o meu. (De trinitate)



R E F E R Ê N C I AS B I B L I O G R Á F I CAS
                   ALTANER, B.; STUIBER, A. Patrologia. São Paulo:
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            176    CIÊNCIAS DA RELIGIÃO – HISTÓRIA E SOCIEDADE
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      Barcelona: Editorial Herder, 1989.




178   CIÊNCIAS DA RELIGIÃO – HISTÓRIA E SOCIEDADE
      Ano 3 • N. 3 • 2005

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Agostinismo e Reforma

  • 1. 6 6 TEOLOGIA AGOSTINIANA E REFORMA PROTESTANTE: A SOLA GRATIA COMO NEXO MATERIAL ENTRE O PROTESTANTISMO INICIAL E OS PAIS DA IGREJA AUGUSTINIAN THEOLOGY AND PROTESTANT REFORM: THE SOLA GRATIA AS MATERIAL NEXUS AMONG THE BEGINNINGS OF PROTESTANTISM AND THE CHURCH FATHER Ronaldo P. Cavalcante Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da Universidade Mackenzie, doutor e mestre em Teologia Dogmática pela Universidade Pontifícia de Salamanca, graduado em Teologia pela Faculdade Teológica Batista de Brasília.
  • 2.
  • 3. Tarde te amei, ó beleza tão antiga e tão nova! Tarde demais eu te amei! Eis que habitavas dentro de mim e eu te procurava do lado de fora! Eu, disforme, lançava-me sobre as belas formas das tuas criaturas. Estavas comigo, mas eu não estava contigo. Retinham-me longe de ti as tuas criaturas, que não existiriam se em ti não existissem. Tu me chamaste, e teu grito rompeu a minha surdez. Fulguraste e brilhaste e tua luz afugentou a mi- nha cegueira. Espargiste tua fragrância e, respirando-a, suspirei por ti. Eu te saboreei, e agora tenho fome e sede de ti. Tu me tocaste, e agora estou ardendo no desejo de tua paz. (Agos- tinho, Confissões X, 27,38). R E SU M O O autor desenvolve inicialmente uma síntese conceitual, dentro dos limi- tes do texto, sobre a patrística, localizando os escritos de Agostinho na literatura cristã e cristã reformada e a doutrina da graça nesse filósofo. O texto prossegue examinando a evolução histórica do conceito e trata da mudança ocorrida na cosmovisão cristã, a partir do século II, com a in- fluência helenística no pensamento cristão. Desse ponto em diante, pro- cura esclarecer a posição de Agostinho sobre a graça. O autor passa, então, a discorrer sobre as teses pelagianas, entendendo que a compreensão da polêmica entre as posições pelagianas e agostinianas sobre graça e livre arbítrio são necessárias para a continuidade do texto. O texto segue tra- tando da Reforma e da recuperação da doutrina da graça, a tradição agos- tiniana, por meio do exame da construção das posições de Lutero. Di- ferentemente de Lutero, Calvino enfatiza a Igreja visível que anuncia a Palavra de Deus e a quem são administrados os dois sacramentos instituí- dos por Cristo. Seguindo Agostinho de perto, distingue a Igreja visível da invisível. O autor afirma que o ponto de arranque do protestantismo acer- ca da doutrina da graça é a sola Scriptura e estabelece que, tanto pela in- fluência de Lutero como pela de Calvino, os reformados retornam ao pa- trimônio bíblico e agostiniano em relação à graça divina. PA L AV R AS - C H AV E Patrística; doutrina da Graça; livre arbítrio; igreja visível e igreja invisível. TEOLOGIA AGOSTINIANA E REFORMA PROTESTANTE, p. 153-178 155 Ronaldo de P. Cavalcante
  • 4. A BST R AC T The author establishes at first, in the limits of the text, a conceptual syn- thesis on patristic, situating St. Augustine’s writings in Christian and Re- formed Christian literature, and Grace’s doctrine for this philosopher. The text proceeds to examine historical evolution of the concept, dealing with the change in Christian cosmovision by the second century due to the Hellenic influence on Christian thought. From this point on, the texts endeavors to enlighten Augustine’s position on Grace. The author discourses on the Pelagian theses, for according to his point of view un- derstanding the polemic between the Pelagian and Augustinian positions on Grace and free will are necessary for the comprehension of the text as a whole. The text proceeds to speak about Reformation and the recupe- ration of Grace Doctrine, Augustinian’s tradition, examining the cons- truction of Luther’s position. Differing from Luther, Calvin emphasizes the visible church, which announces the Word of God and where the two sacraments instituted by Christ are administered; following close to Au- gustine, Calvin distinguishes the visible and the invisible Churches. The author states that the beginning of Protestantism Doctrine about the Grace’s is the sola Scriptura, and also he establishes that through Luther’s influence, as well as through Calvin, the Reformed church return to Bi- blical and Augustine’s patrimony related to Divine Grace. K E Y WO R DS Patristic; doctrine of grace; freewill; invisible church and visible church. 1 . I N T RO D U Ç Ã O Após a etapa apostólica, portanto, a partir do século II, o cristianismo solidificará sua identidade e desenvolverá sua missão no calor da controvérsia cultural e nos limites da lega- lidade política. Em tal situação, os diversos segmentos cris- tãos oriundos, em sua matriz, do ambiente doméstico pales- tinense estão agora localizados “fora do arraial” – expostos, como Paulo no “Areópago”, na arena pagã, na Ágora e por isso mesmo necessitados de rearticular o discurso cristão para se fazerem ouvidos. A esse grande período, que em geral se es- tende até o século VII, convencionou-se chamar, dentro do estudo da teologia, de Época Patrística. 156 CIÊNCIAS DA RELIGIÃO – HISTÓRIA E SOCIEDADE Ano 3 • N. 3 • 2005
  • 5. Patrística1 é, pois, aquela parte da literatura cristã que trata dos autores da antigüidade que escreveram fundamen- talmente sobre temas de teologia e correlatos, com o propó- sito de apologia da fé ou de construção da própria identida- de intelectual e teológica da fé cristã. Compreende tanto aos escritores ortodoxos como aos heterodoxos, mesmo se ocu- pando preferencialmente dos que representam a doutrina eclesiástica tradicional, quer dizer, dos chamados Pais e Dou- tores da Igreja. Pode-se, portanto, definir a Patrística ou Patro- logia como a ciência dos Pais da Igreja. Segundo alguns espe- cialistas2, inclui, no Ocidente, todos os autores cristãos até Gregório Magno (m. em 604) ou Isidoro de Sevilha (m. em 636) e mesmo Beda o Venerável (m. em 735), enquanto no Oriente chega, em geral, até João Damasceno (m. em 749). Curiosamente, Lutero considerava S. Bernardo de Clairvaux (m. em 1153) o último grande Pai da Igreja. Eusébio de Cesaréia (c. 263-339) parece ter sido o pri- meiro a tentar uma visão de conjunto, obedecendo a uma seqüência histórica. Na introdução de sua História eclesiasti- ca 3 menciona, sem nomear, por enquanto, personalidades e 1 Em língua portuguesa, pode-se destacar: para uma visão de conjunto da teologia dos Pais da Igreja, o excelente livro de Luigi Padovese, Introdução à teologia patrística. São Paulo: Edições Loyola, 1999. Não bastasse a qualidade das informações, o livro se completa com um bônus maravilhoso: Quadro sinótico da igreja antiga. Para um estudo temático da patrística, ver especialmente J. N. D. Kelly, Doutrinas centrais da fé cristã. São Paulo: Edições Vida Nova, 1994. Material que traz abundantes citações de fontes primárias. Uma descrição mais aprofundada com razoável bibliografia em cada seção pode ser encontrada em Claudio Moreschini e Enrico Norelli, História da Literatura Cristã Antiga Grega e Latina. São Paulo: Edições Loyola, 1996/2000. 3v. 2 Ademais dos autores antigos e medievais que escreveram sobre a Patrística, podemos mencionar a abrangente coleção editada no século XIX por J. P. Migne, Patrologiae Cursus completus. A série latina possui 221 volumes e a grega 161. Outra coleção de destaque é a francesa Sources chrétiennes, com mais de trezentos volumes em texto bilíngüe; francês e latim ou francês e grego. Felizmente essa coleção está agora sendo posta em português pela Paulus com o nome Patrística. Até o momento, cerca de vinte volumes foram editados. A Patrologia de J. Quasten, tradução espanhola, em três volumes, pela Biblioteca de Autores Cristianos (BAC) é igualmente uma obra de referência. Em português, vale a pena conferir a obra de B. Altaner e A. Stuiber, Patrologia. São Paulo: Paulinas, 1972. 3 Eusébio de Casaréia, História eclesiástica. Tradução de Wolfgang Fischer. São Paulo: Novo Século, 1999. De certa forma é considerado o pai da Patrologia. Sobre o propósito de sua obra, diz ele: É meu propósito consignar as sucessões dos santos apóstolos e os tempos transcorridos desde nosso Salvador até nós; o número e a magnitude dos feitos registrados pela história eclesiástica e o número dos que nela se sobressaíram no governo e presidência das igrejas mais ilustres, assim como o número daqueles que em cada geração, de viva voz ou por escrito, foram os embaixadores da palavra de Deus [...] (I, I, 1). TEOLOGIA AGOSTINIANA E REFORMA PROTESTANTE, p. 153-178 157 Ronaldo de P. Cavalcante
  • 6. escritos que marcaram os primeiros séculos cristãos. Efeti- vamente, ao longo da obra, enumera os que ele conhece ci- tando amplas passagens da maior parte deles. Por essa razão, Eusébio é uma das fontes mais importantes da patrologia, es- pecialmente também porque se hão perdido grande número dos escritos que ele cita. Por isso, para certos autores eclesiás- ticos, Eusébio constitui a única fonte de informação. Ade- mais, foi São Jerônimo (c. 347-419) que em sua obra De viris illustribus: os homens ilustres, redatada em Belém, no final do século IV, elencou os escritores que dignificaram a literatura cristã. Surpreendentemente, menciona também escritores não cristãos como Sêneca, Fílon e Josefo. Durante mais de mil anos, grande parte dos historiadores da literatura cristã tem considerado o De viris illustribus como a base de seus estudos. Com os avanços nos estudos da historiografia cristã, sa- be-se hoje que muitos outros escritores antigos importantes preservaram a história dessa época. Os mais destacados fo- ram: Sozômeno, Sócrates e Lactâncio4, que dentro de suas li- mitações legaram preciosas informações. Para a Reforma Protestante, durante toda a patrística, o escritor e teólogo mais relevante foi, sem dúvida, Santo Agostinho (354-430)5. A leitura protestante do insígne bispo 4 Sozômeno (século V), natural da Palestina. Na cidade de Constantinopla, escreveu uma História eclesiástica em nove volumes, que, não obstante seu valor narrativo, carece de uma leitura crítica o que o leva a fiar-se das lendas populares em torno a personalidades cristãs. Sócrates, contemporâneo de Sozômeno e natural de Constantinopla, compôs uma História eclesiástica em sete volumes. Sua intenção era dar continuidade à obra de Eusébio. Lactâncio (c. 260-330), africano e convertido ao cristianismo na época da grande perseguição de Diocleciano, teve de abandonar sua cátedra de retórica latina. Escreveu vários interessantes tratados de duvidosa ortodoxia (imortalidade da alma, milenarismo [...]), mas de grande valor histórico e estilístico, dentre eles Divinae institutiones que foi a primeira exposição sistemática da doutrina cristã em língua latina, e De mortibus persecutorum sobre a justiça de Deus contra os perseguidores da Igreja. 5 Além de sua correspondência e do que se pode deduzir de suas demais obras, há três fontes sobre sua vida e evolução espiritual. A mais rica é o conjunto dos nove primeiros livros das Confissões, em que passa em revista toda a sua vida até o ano 387. Mais tarde, nas Retratações nos informa de sua atividade literária até o ano 427. Contamos também com a biografia que lhe dedicou, pouco depois de sua morte em 430, seu discípulo e amigo Possídio, bispo de Cálama. Já dispomos deste material em português: Possídio, Vida de Santo Agostinho. São Paulo: Paulus, 1997. 158 CIÊNCIAS DA RELIGIÃO – HISTÓRIA E SOCIEDADE Ano 3 • N. 3 • 2005
  • 7. de Hipona foi, em geral, seletiva e, no conjunto de seu pen- samento, o protestantismo priorizou a Doutrina da graça 6. 1 . G R AT I A : E VO LU Ç Ã O H I ST Ó R I CA D O CO N C E I TO : U M A S Í N T E S E Para melhor compreender determinadas categorias teo- lógicas do cristianismo nascente e em sua gênese como movi- mento “sectário” do judaísmo, vale aqui considerar a mudan- ça ocorrida na cosmovisão cristã, a partir do século II. Isso implica que não se deve ignorar, pois, a “invasão” do helenis- mo – seu estilo de pensamento e a cultura propriamente dita – subvertendo a inspiração semítica do grego da LXX e do Novo Testamento7, consequentemente fazendo surgir, de ma- neira gradativa, uma nova mentalidade cristã, exposta de mo- do franco a determinadas idéias e correntes da filosofia grega, por exemplo, o neoplatonismo e o estoicismo. Com isso, a teo- logia do cristianismo oriental, quer dizer, a patrística grega, quanto ao tema da cháris, localizou a chave da salvação do homem em sua participação no ser de Cristo e, mediante ele, no mistério da comunhão vital trinitária. Daí que na teologia 6 A doutrina agostiniana da graça pode ser encontrada em várias de suas obras e também deve ser buscada nos escritos sobre a predestinação e contra os donatistas e pelagianos. Destaca-se a Ep. 186 e o tratado De gratia et libero arbitrio V,10-VIII,20; obra recentemente editada, dentre várias outras, pela Paulus dentro da coleção Patrística, n. 12 e 13, tradução da francesa Sources Chrétiennes. Repercussões da doutrina agostiniana da graça serão perceptíveis em personalidades como: Arnóbio o Jovem, Lúcido presbítero, Gottschalk, Gregório de Rímini, Thomas de Bradwardine, Wycliff, Lutero, Calvino, Seripando, Miguel Bayo, Cornélio Jansen, B. Quesnel, dentre outros. 7 P. Fransen, “Desarrollo Historico de la Doctrina de la Gracia” em Mysterium Salutis IV/2, 611. Nesse sentido, o neoplatonismo cristianizado de Alexandria, guardaria mais simpatias com a linha teológica de tendência mística presente na tradição joanina (Policarpo, Inácio e Ireneu etc.), enquanto a filosofia aristotélica, também pouco a pouco introduzida no cristianismo, somada à escola de Antioquia, com seus pensadores influenciados pelo rabinismo e sua interpretação histórica das Escrituras, estaria mais disposta a estacionar na tradição paulina, e bem mais centrada as questões pragmáticas e éticas. TEOLOGIA AGOSTINIANA E REFORMA PROTESTANTE, p. 153-178 159 Ronaldo de P. Cavalcante
  • 8. oriental da graça a categoria relevante seja a da divinização 8 – ou como disse Santo Atanásio: Deus se fez homem para o homem fosse deificado; tornou-se corporalmente visível, a fim de que o ser humano adquirisse uma noção do Pai invi- sível (SANTO ATANASIO, 2002, VI, 54,3 p. 198). A con- seqüência imediata desse conceito é que a teologia paulina da justificação do pecador mediante o sacrifício da cruz, mesmo não sendo ignorada, ocuparia lugar secundário. Sem negar a influência da filosofia religiosa de ascen- dência platônica, que apresentava como ideal antropológico a assimilação do homem ao divino, o ponto de partida dessa teologia da divinização é um duplo dado bíblico: o conceito veterotestamentário do homem imagem de Deus (RONDET, 1966, p. 63-80) e a mensagem joanina da encarnação do Lo- gos. Gênesis 1 e João 1 estão assim na raiz de toda reflexão oriental sobre o mistério da graça. Essa determinante inspiração bíblica faz com que a doutrina cristã da divinização se diferencie claramente das interpretações filosóficas homônimas, pelas quais a participa- ção humana no modo de ser divino era não um dom gratui- to, senão uma conquista esforçada do próprio homem (RUIZ DE LA PEÑA, 1991, p. 268). E como já dito supra (nota 8), Clemente de Alexandria, com base em 1Pedro 1, 4, segundo Auer (1984, p. 315), revestirá de cristianismo a doutrina da divinização do homem, especialmente mediante a verdade da habitação do Espírito Santo (Rm 8,11; 2Tm 1,14). Isso le- vou, no Oriente, a uma demasiada ênfase na colaboração (sinergia) entre Deus e o homem na questão da salvação9. Em 8 Também chamada de deificação, já está presente nos primeiros apologistas gregos (século II) que buscam uma reinterpretação das informações bíblicas; será explorada especialmente a partir de Clemente de Alexandria. Theopoiein é o termo clássico que representa a doutrina, bem como suas outras formas. Textos bíblicos como At 17:28 e 1Pe 1:4, além de idéias como de imago Dei (Gn 1), filiação divina (Gl 4:5s; Rm 8:15); imitação de Cristo (Fp 2:5-11), servirão de base escriturística para a elaboração teológica desse pensamento no cristianismo grego, bem como no latino, aqui com mais sobriedade hermenêutica. 9 Conforme explica G. Lafont: “Vimos que no Oriente era enfatizada a liberdade do homem, lugar próprio da Imagem de Deus [...] para reconhecer e valorizar o papel salvífico da humanidade de Cristo na questão da salvação. Em História teológica da Igreja católica, p. 59. 160 CIÊNCIAS DA RELIGIÃO – HISTÓRIA E SOCIEDADE Ano 3 • N. 3 • 2005
  • 9. especial nos capadócios, ver-se-á uma incrementação da idéia de cooperação entre graça e livre-arbítrio. Foi Ireneu de Lyon10 o primeiro grande expositor dessa concepção. A idéia é a de que o Filho de Deus encarnou para que o homem fosse divinizado; de uma ou de outra forma, tal pensamento aparecerá repetidamente em sua obra: “[...] o Verbo de Deus se fez homem, tornando-se a si mesmo seme- lhante ao homem e o homem semelhante a si, para que o homem, por esta semelhança com o Filho se tornasse precio- so aos olhos do Pai” (Adv. Haer. V, 16,2). Igualmente, a máxi- ma creditada a Atanásio no De incarnatione: “O Filho de Deus tornou-se filho do homem para que os filhos dos homens, isto é, de Adão, pudessem se tornar filhos de Deus [...] parti- cipantes da vida de Deus [...] Assim, Ele é Filho de Deus por natureza, e nós, pela graça”11. O eco dessas sentenças traspas- sará toda a patrística grega; seis séculos mais tarde, João Damasceno escreverá que “[...] o Filho de Deus [...] se fez partícipe de nossa pobre e enferma natureza... a fim de fazer- nos partícipes de sua divindade”12. A encarnação é, pois, comunhão da pessoa divina do Filho com a condição huma- na e recapitulação de toda a humanidade, na divindade filial do Logos encarnado. Só assim poderia cumprir-se o desígnio primordial que havia presidido a criação do homem: fazer dele um ser a imagem de Deus13. A importância do caráter encarnatório da graça, tão presente na teologia oriental e su- blinhado por tantos autores, será, não obstante, silenciado 10 A. Orbe, Antropologia de San Ireneo. Madrid: 1969, caps. 4 e 55 em Ruiz de la Peña, op. cit. 269. As citações de Irineu são de sua obra em português: Ireneu de Lião. São Paulo: Paulus, 1995. 11 Kelly, p. 265-266. Também diz: “O Verbo se abaixou até se tornar corporalmente visível, a fim de atrair a si os homens enquanto homem e fazer com que a sensibilidade humana se inclinasse para ele”. “A Encarnação do Verbo” 16:1 em Santo Atanásio. Antropologia teológica especial. São Paulo: Paulus, 2002, p. 146. 12 De fide ortod., 4:13 em Ruiz de la Peña, loc. cit. Outros textos de Ireneu sobre o tema são Adv. Haer. III, 18,19; IV,34,4. O final mesmo da divinização não figura na obra do bispo lyonês; o primeiro em utilizá-lo parece ter sido Clemente de Alexandria. De fide ortod. 4:13 em Ruiz de la Peña, loc. cit. 13 Adv. Haer. V, 36:3. “[...] pela qual a sua criatura, conformada e incorporada ao Filho, é levada à perfeição; de forma que, enquanto o Primogênito, isto é, o Verbo desce na criatura e a assume, por sua vez a criatura se apossa do Verbo e sobe até Deus, ultrapassando os anjos e tornando-se à imagem e semelhança de Deus”. TEOLOGIA AGOSTINIANA E REFORMA PROTESTANTE, p. 153-178 161 Ronaldo de P. Cavalcante
  • 10. em Orígenes, por conta, certamente, do forte influxo do dua- lismo platônico no mestre alexandrino e com certeza por um pensamento mais independente. Por essas e outras, a tradição quase sempre estará reticente acerca do autor da Hexápla. No entanto, a idéia de um conceito antropológico es- sencialmente tributário da encarnação divina ocupará majo- ritariamente a atenção dos pais gregos, desde Inácio de An- tioquia, passando, como foi visto, por Ireneu, mas também em Atanásio, Gregório de Nissa e outros, até tardiamente em João Damasceno e Máximo o Confessor14. Nesse consenso, concebe-se no Oriente cristão uma forte influência do neo- platonismo – Plotino, Proclo – fazendo surgir uma mística cristã que inicia com Orígenes e se difunde, sobretudo, pelos escritos do pseudo-Dionísio areopagita e dos comentários a este realizados por Máximo o Confessor. Por conseguinte, há que se levar em conta o caráter an- tropológico na formação teológica do cristianismo grego. A antropologia, com base na ação revelacional e encarnatória di- vina, funcionaria, pois, como um critério hermenêutico. E o pressuposto fundamental aqui é o de que o verdadeiro destino do homem é o próprio Deus15. Dessa maneira, na patrística oriental a dimensão antropológica está concebida verticalmen- te. Isso, entretanto, não deve significar uma diluição ou rebai- xamento da alteridade de Deus, uma vez que, precisamente entre os cristãos gregos, desenvolveu-se um agudo sentido da transcendência divina (FRANSEN, 1975, p. 614)16. Diga-se, 14 Auer diz que Máximo o Confessor ensinava a possibilidade de uma consumação terrena da vida da graça com base em uma sobrenatural e extática contemplação de Deus e do concomitante amor a ele no marco da piedade eclesial. Essa teologia da graça continuou sendo normativa até hoje na Igreja oriental grega. 15 Ademais dos concílios ecumênicos: Nicéia (325), Constantinopla (381) e Éfeso (431), se buscará o fundamento para tal idéia nas reflexões, dentre outros, de Atanásio, Gregório de Nazianzo, Dídimo o cego, Basílio Magno, Cirilo de Alexandria sobre a habitação de Deus no homem. 16 A prova disso é a interessantíssima teologia apofática, que seria a forma menos imperfeita de conhecimento de Deus, porque renuncia aos sentidos e recursos intelectuais. Segundo Pablo Maroto (1990, p. 95): “Essa teologia apofática, de negação aparente, sem conceitos, sem imagens, é uma metodologia purificadora das mediações acessórias e imperfeitas [...] Uma negação que purifica o afirmativo aplicado alegremente a Deus, e sugere mais que afirma a transcendência divina. Assim, Deus é concebido e encontrado pelo homem na escuridão da fé, da mística, porém sempre como um Deus desconhecido”. 162 CIÊNCIAS DA RELIGIÃO – HISTÓRIA E SOCIEDADE Ano 3 • N. 3 • 2005
  • 11. en passant, um sentido bem superior ao estabelecido no Oci- dente latino que se deteve mais no ethos da abordagem pare- nético-pastoral do apóstolo Paulo, por isso mesmo mais con- dicionado às questões de fundo ético e relacionadas com os temas fronteiriços das difíceis relações do cristianismo judaico jerosolimitano, mais aferrado às tradições rabínicas com o nas- cente e promissor cristianismo gentílico da diáspora, esposado por Paulo, que, por assim dizer, foi o ponto de inflexão que fez recobrar as forças de um cristianismo esgotado internamente pelas facções e cismas judaizantes e gnósticos. Por seu lado, no Oriente, ademais da teologia joanina, está preservado e sublinhado fortemente o próprio pensa- mento paulino, contudo, especialmente o relacionado com seu conceito de Cháris. Por isso mesmo, seria descabido con- siderar no conceito “divinização” um sentido que infravalo- rasse a primazia e transcendência de Deus na obra criadora e redentora realizada pelo Espírito (FRANSEN, 1975, p. 614). Na verdade, entendo exatamente o contrário; parece ser que o conceito cristão oriental da graça de Deus está um tanto mais resguardado das tendências de “coisificação” e “domes- ticação” das coisas divinas tão presentes no Ocidente cristão latino e que levaram aí a uma espécie de “vulgarização do sagrado” e “banalização do mistério divino” com desdobra- mentos atuais. 2 . SA N TO AG OST I N H O : G R A Ç A D I V I N A E D E SA F I O A N T RO PO L Ó G I CO Tentar entender o posicionamento de Agostinho sobre a graça, exige, ademais de persistência acadêmica e humilda- de intelectual, um conhecimento de seu entorno vital, o que excede o objetivo deste texto. Inclusive, pelo fato de que tan- to no tema da espiritualidade quanto no da teologia propria- mente dito, Agostinho afirma-se um clímax, uma síntese, uma espécie de “vale” receptáculo de todo o caudal cultural dos primeiros séculos cristãos. Ou como disse, de forma lapi- dar, De Boni a propósito do De beata vita: “Se em Sêneca, de TEOLOGIA AGOSTINIANA E REFORMA PROTESTANTE, p. 153-178 163 Ronaldo de P. Cavalcante
  • 12. certa forma, complila-se o pensamento estóico do mundo greco-romano, em Agostinho resume-se o pensamento cris- tão dos primeiros séculos” (DE BONI, 2003, p. 58). No tema específico que ora nos interessa, é indispensá- vel pelo menos um conhecimento razoável das teses pelagia- nas17. Em linhas gerais o pelagianismo, até por uma questão de justiça histórica, deve ser visto a partir da polêmica com o maniqueísmo e, por isso mesmo, salientará a bondade de to- da a criação, quer dizer, o bem extrinsecamente presente na natureza. Assim, o homem como parte dessa criação e criado à imagem e semelhança de Deus; criado por um Deus que não pode ser autor do mal, pois isso feriria sua natureza – criará ao homem com liberdade. Com base nessa liberdade é que o homem poderá fazer o bem ou o mal. A graça seria, en- tão, o auxílio para que ele faça o bem. Pelágio vê a graça precisamente na ação livre do homem – o dom que Deus dá ao homem gratuitamente é a possibili- dade de escolher – o livre-arbítrio. Celéstio radicalizará com outros discípulos nesse ponto, entendendo que o livre-arbítrio só pode existir no homem sem qualquer ajuda exterior – de Deus. Sendo um sacerdote preocupado com a questão moral, não poderia aceitar idéias pessimistas desmoralizantes sobre o que se poderia esperar da natureza humana. A pressuposição de que o homem não era capaz de deixar de pecar parecia-lhe um insulto a seu Criador18. Por isso se escandalizou com a oração de Santo Agostinho: “Concede-me o que me ordenas, e ordena o que quiseres” – da quod iubes et iube quod vis (Confissões X, 29, 40). Seriam os homens simples objetos nas mãos de Deus? Como se pode perceber, estsa vocação ou possibilidade inata do homem para fazer o bem, na visão de Pelágio, leva- 17 O nome está relacionado com Pelágio, sacerdote irlandês, talvez monge, do século IV, que após o saque de Roma, em 410, se refugiou na África e posteriormente em Jerusalém. Em 415 foi acusado de heresia por dois bispos da Gália que o ligavam ao herege Celéstio. Mesmo tendo sido absolvido, seus escritos chegaram até Agostinho, o qual com outros bispos africanos exigiu sua condenação. A querela teve um fim oficial primeiro no Concílio provincial de Cartago, em 418, que condenou várias de suas idéias e, posteriormente, no Concílio Ecumênico de Éfeso, em 431, que pronunciou anátemas contra as proposições pelagianas. 18 Kelly, Historia de la doctrina de la gracia em sacramentum mundi 3. Barcelona: Editorial Herder, 1984, 315. p. 270. 164 CIÊNCIAS DA RELIGIÃO – HISTÓRIA E SOCIEDADE Ano 3 • N. 3 • 2005
  • 13. ria fatalmente ao choque com a posição agostiniana19, uma vez que estaria reduzindo a graça tão somente a liberdade e, no final das contas, a salvação é algo obtido pelo homem com base nos próprios e únicos esforços (MANZANARES, 1995, p. 177). A pedra de toque de seu pensamento teológico é a doutrina do livre-arbítrio. Para Pelágio, ao criar o homem, Deus deu-lhe autonomia para obedecer à vontade divina por escolha própria, quer dizer, a possibilidade de escolher livre- mente o bem. A partir da polêmica com Pelágio, a teologia da graça, no Ocidente, estará vinculada ao pensamento de Santo Agostinho. Com ele, começa a girar em torno desse conceito um corpus importante de doutrina acerca do homem e de sua relação com Deus que dará lugar aos vários tratados sobre a gratia na teologia posterior. Um indicativo disso é que a pala- vra “graça” já apareça no título de algumas obras do bispo de Hipona (LADARIA, 1997, p. 157). Pode-se notar que o con- ceito de graça, por conta da pugna pelagiana, passa a ser sinô- nimo de auxilium, ou seja, uma ajuda para se fazer o bem ou mesmo a libertação do pecado. Por isso, a graça passa a estar relacionada com a atividade religiosa do homem, obrigando Agostinho a insistir no problema da graça e da liberdade (LADARIA, 1997, p. 158). Mais além dessa controvérsia, pode-se ver, no teólogo africano, uma amplitude bem maior sobre o tema20, inclusi- 19 Com efeito, Agostinho em sua obra de Gestis Pelagii, do ano 417, identifica o essencial da doutrina atribuída a Pelágio e seu discípulo Celéstio. Dentre outras afirmações de Pelágio, Agostinho sublinha: 1) Adão foi criado mortal e teria morrido com pecado ou sem pecado; 2) o pecado de Adão prejudicou somente a ele, não à estirpe humana; 3) a lei conduz ao reino tão bem quanto o evangelho; 4) houve homens sem pecado antes da vinda de Cristo; 5) crianças recém-nascidas estão nas mesmas condições de Adão antes da queda; 6) não é por meio da queda nem da morte de Adão que morre toda a raça humana, nem é por meio da ressurreição de Cristo que ela ressurgirá [...] (apud H. Bettenson, 1967, p. 88-89). 20 Desde os primeiros escritos, mesmo antes do batismo e logo após, Agostinho já reconhecera a primazia da graça, conforme, por exemplo: [...] Deus, que não és o autor do mal, mas que permites que ele suceda a fim de prevenir mal maior; [...] Deus, que somente aos corações puros quiseste dar o conhecimento da Verdade; [...] Pai do nosso despertar e da luz que nos ilumina, Pai das promessas pelas quais somos advertidos a retornar a ti [...]” (Solilóquios. p. 24-25). Igualmente, nas Confissões (397-400), em vários pontos da obra, se percebe uma desenvolvida doutrina da graça. Sobretudo em sua obra, em dois volumes, escrita a Simpliciano, bispo de Milão e sucessor de Ambrósio, De diversis quaestionibus ad Simplicianum (395-397), em que Agostinho afirma a centralidade da graça de Deus no processo salvífico de seu povo, a propósito de 1Coríntios 4:7; Romanos 9:10-29 etc. TEOLOGIA AGOSTINIANA E REFORMA PROTESTANTE, p. 153-178 165 Ronaldo de P. Cavalcante
  • 14. ve perceber nele fortes influências da patrística grega. São diversos e numerosos os ensinos agostinianos acerca da graça da encarnação do Verbo; da união de todos os homens em Cristo; do Christus Totus que fundamenta tanto sua antropo- logia quanto sua eclesiologia. Nesse último aspecto vale a pena ressaltar que, a partir de Agostinho: a) o homem não pode salvar-se por si só, senão tem absoluta necessidade de ser salvo por Deus; b) essa salvação é graça que libera a liberdade e suscita no ser humano a atração e opção pelo bem; c) tudo isso remonta à iniciativa divina; é a Deus que compete o pri- mado irrestrito na obra de salvação; d) a liberdade e a graça não podem conceber-se antinomicamente (RUIZ DE LA PEÑA, 1991, p. 281). Apesar disso se pode aceitar que, após Agostinho, dá-se o começo de um processo de distanciamento entre Ocidente e Oriente, o qual tendo início na antropologia agostiniana caminhou até o aristotelismo e nominalismo escolásticos. De qualquer maneira, o pensador cristão ocidental, em sua psi- quê, nutrido de filosofia e teologia agostinianas, está coloca- do numa tensão fundamental: teme que a ênfase na primazia de Deus em outorgar ao homem a graça anule a dignidade humana e entende que a liberdade do homem ameace a sobe- rania divina ou, como disse P. Schoonenberg: “Deus ou o homem”. Na sua In epistolam ad Romanos, equilibra muito bem os temas: “A liberdade foi perfeita no primeiro homem. Nossa liberdade, ao contrário, não é a de não pecar, mas a de não querer pecar. É a graça que nos faz, além de agir bem, poder agir bem. Não por nossas forças, mas com o auxílio do Libertador” (13,18) (RUBIO, 1995, p. 208). Dentro da controvérsia pelagiana, tem lugar privilegia- do sobre sua segunda obra a respeito: De spiritu et littera, de 412, em que ademais de explicar as relações entre lei e graça, fala também sobre a liberdade cristã (TRAPE, 2002). Este especialista afirma que é uma obra-chave para o entendimen- to da doutrina agostiniana da graça (TRAPE, 1993, p. 461), por isso mesmo vale aqui uma citação mais longa: Nós pelo contrário, asseveramos que a vontade humana é de tal modo ajudada por Deus para praticar a justiça, que, além de o homem ser criado com o dom da liberdade e apesar da doutrina que o orienta sobre o modo de viver, receba o Es- 166 CIÊNCIAS DA RELIGIÃO – HISTÓRIA E SOCIEDADE Ano 3 • N. 3 • 2005
  • 15. pírito Santo, que infunde em sua alma a complacência e o amor do Bem incomunicável, que é Deus [...] com o penhor da graça recebido gratuitamente, anseie aderir ao Criador e ane- le vivamente aproximar-se da participação daquela luz verda- deira... Porém, para que venha a amá-lo, o amor de Deus se di- funde em nosso coração não pelo livre-arbítrio que radica em nós, mas pelo Espírito Santo que nos foi dado (Rm 5:5)21. Em suas Retratações22, Santo Agostinho, mencionando seu revelador escrito De gratia et libero arbitrio23, dirigido aos monges de Adrumeto24, busca esclarecer os mal-entendidos acerca de sua doutrina da graça e da predestinação. Ademais, além desse breve tratado, Agostinho envia ainda duas Cartas 25 ao mesmo mosteiro (Cartas 194 e 195). Na segunda delas, dentre outras coisas, ele diz: “[...] não deveis defender a liber- dade a ponto de atribuir-lhe as boas obras sem a graça de Deus; e não deveis defender a graça de Deus a ponto de pre- ferir as más obras, como se tivésseis a garantia da graça” (Carta 195,8)26. Já na anterior havia dito que: “Portanto, se não exis- te a graça de Deus, como há de salvar o mundo? E se não exis- te a liberdade, como há de julgar o mundo?” (Carta 194,2). 21 Em Agostinho (1999a): “A graça é um dom do Espírito Santo” III, 5. 20-21. Também recolhido em Bettenson (1967, p. 89-90). 22 Obra fundamental para conhecer os demais escritos de Santo Agostinho, bem como suas motivações e intenções. Foi iniciada em 412, porém só terminada em 427. Nela, Agostinho realizou uma significativa avaliação de toda sua obra. Esse escrito muito ajuda a entender as últimas posições doutrinais do bispo de Hipona e constitui, por assim dizer, suas últimas confissões. 23 O título em português é A graça e a liberdade (Agostinho, 1999b). 24 Mosteiro no norte da África que juntamente com o de Lérins (sul da França) pendeu ao semipelagianismo, considerando o initium fidei e a gratia perseverantiae como obras humanas e não da graça, reagindo, assim, ao movimento predestinacionista que entendia a graça não como fruto do amor de Deus, como pensava Agostinho, mas como obra da onipotência divina, anulando a liberdade do homem diante da predestinação. O segundo Concílio de Orange, em 529, condenou ambas as posições fortalecendo a doutrina agostiniana expurgada de seus excessos. 25 Escritas em 426-27 e enviadas juntamente com o De gratia et libero arbitrio e o De correptione et gratia. Este último e as Cartas estão igualmente incluídas na obra em português (ver nota anterior). 26 Quase o mesmo ele diz em outro escrito: “Não devemos insistir tanto na graça de Deus que desvalorizemos a liberdade. Tampouco devemos insistir na liberdade a ponto de desvalorizar a graça de Deus”. De pecatorum meritis et remissione (Dos méritos e remissão dos pecados apud RUBIO, 1995, p. 207). TEOLOGIA AGOSTINIANA E REFORMA PROTESTANTE, p. 153-178 167 Ronaldo de P. Cavalcante
  • 16. Nesse momento, a luta de Santo Agostinho é contra a renovação das idéias pelagianas27, contra os que afirmam que a “[...] graça de Deus lhe é outorgada em vista dos mereci- mentos de suas obras ou de suas orações ou de sua fé... que Deus nos dá sua graça conforme nossos merecimentos” (Car- ta 194,4). A partir dessas considerações iniciais, Santo Agostinho efetivamente discorre sobre a graça divina e o desafio antropo- lógico. Reconhece de início a existência da liberdade humana confirmada pelas Escrituras: “Deus revelou-nos pelas suas san- tas Escrituras que o homem possui o dom da liberdade”28, quer dizer, a livre vontade para cumprir os mandamentos divi- nos, evitando-se, por isso mesmo a possibilidade de se descul- par, conforme João 15:22; Romanos 1:18-20; Tiago 1:13-15; Eclesiástico 15:11-18, textos por ele citados e que o levam a concluir: “Está bem clara a alusão ao livre-arbítrio da vonta- de humana” (II,3). E retoricamente pergunta: “Por que o Senhor, em tantas passagens, determina a observância e o cumprimento de todos os seus mandamentos? Por que have- ria de determinar, se não existisse o livre arbítrio?” (II, 4). Igualmente faz longa citação textual de outras passagens das Escrituras que dão a entender a realidade da vontade própria humana (Rm 12:21; Sl 31:9; Pv 1:.8; 3:5. 11:27,29; 5:2; Sl 35:4; Pv 1:29; Mt 6:19; Pv 10:28; Lc 2:14; 1Co 7:36-37; 9:17; 15:34; 2Co 8:11; 2Tm 3:12; 1Tm 4:14; Fm 14; Tg 2:1; 4:11; 1Jo 2:15, etc.). Comenta ao final que onde está escrito: “Não queiras isto ou não queiras aquilo” e para fazer ou não fazer algo, os divinos conselhos exigem a ação da vontade, percebe-se com clareza a exigência do livre-arbítrio” (II,4). Em seguida, no capítulo III, discorre sobre a responsa- bilidade humana diante dos mandamentos e com base em Lucas 12:48 diz que “[...] o pecado do que sabe é mais grave do que o do que desconhece” (III,5); embora não haja descul- pa para o segundo. Aliás, em sua De diversis quaestionibus ad Simplicianum, libri II (1,2,7), ele ensina que “Deus não faz 27 Idéias ligadas às duvidas sobre as doutrinas da gratuidade da graça, da predestinação e da perseverança dos santos e que por sua vez darão início ao movimento chamado, na história do pensamento cristão, de semipelagianismo. 28 De gratia et libero arbitrio II, 2. 168 CIÊNCIAS DA RELIGIÃO – HISTÓRIA E SOCIEDADE Ano 3 • N. 3 • 2005
  • 17. injustiças. Quer perdoe a dívida, quer exija seu pagamento, nem aquele a quem se lhe exigiu pode queixar-se de injustiça, nem o favorecido com o perdão pode gloriar-se de seus méri- tos. Um paga o que deve, o outro só tem o que lhe foi dado”. Entretanto, Agostinho encaminha-se para o outro lado da questão por preocupar-se que a profusão de textos escritu- rísticos “[...] em defesa do livre-arbítrio sejam entendidos de tal que não se deixe lugar à ajuda e à graça de Deus, como necessárias para uma vida piedosa e um bom comportamento dignos de recompensa eterna” (IV, 6). Por isso mesmo, passa em revista “[...] os testemunhos divinos sobre a graça de Deus, sem a qual não podemos praticar nenhum bem” (IV, 7). Assim, a propósito de 1Timóteo 5:22 e 1Coríntios 7:37, con- clui que “essa palavra, que não é compreendida por todos, seja compreendida por alguns, e significa tanto o dom de Deus como a liberdade” (De diversis quaestionibus ad Simplicianum, libri II). Igualmente, no tema da casticidade conjugal, a partir das premissas paulinas, Agostinho reconhece os dois lados: a origem divina e o compromisso humano. “Portanto, a vitória obtida sobre o pecado é também dom de Deus, o qual, neste combate, vem em auxílio da liberdade” (IV, 8). Dessa manei- ra terá muito sentido a admoestação do Senhor: Vigiai e orai [...], que segundo Agostinho: “Para não sucumbir à tentação, não basta o livre-arbítrio da vontade humana, se o Senhor não favorecer a vitória ao que ora” (IV, 9). “Portanto, o homem é ajudado pela graça a fim de que, não sem motivo, à sua vontade se imponham preceitos” (IV,9). Já em 396-397, em seu escrito pastoral De agone chris- tiano, afirmara que “A graça de Deus não somente nos faz conhecer o que devemos fazer, mas também fazer o que co- nhecemos; não somente crer no que devemos amar, mas tam- bém amar o que cremos” (12,13). Em outro momento, após responder às demandas pela- gianas sobre interpretação de textos sagrados e acerca da graça na perseverança, Agostinho desenvolve algumas idéias acerca da justificação pela graça com base nos escritos paulinos. En- tende que “é vosso dever pelo livre-arbítrio não fazer o mal, mas praticar o bem” (X,22). Os textos de Romanos 3:20 e 4:15 lhe suscitam uma pergunta fundamental: “o que quis significar por novidade de espírito senão a graça?” (X,22). E responde com Romanos 7:7-13 e Gl 2:16. Em outra obra (Sermão 169,11,13 citado em RUBIO, 1995, p. 206), coe- TEOLOGIA AGOSTINIANA E REFORMA PROTESTANTE, p. 153-178 169 Ronaldo de P. Cavalcante
  • 18. rente com seu equilíbrio entre graça divina e liberdade huma- na, Agostinho esclarece que “A justificação é um dom de Deus. Mas não nos é concedida sem nossa colaboração. Nos- sa é a vontade; sua é a graça. A justiça de Deus existe sem nós, mas não nos é aplicada sem nós”. 3. A REFORMA E A RECUPERAÇÃO DA D O U T R I N A DA G R A Ç A : A T R A D I Ç Ã O AG OST I N I A N A O movimento de reforma no século XVI, mais tarde de- nominado protestantismo, deve sua gênese histórica, essen- cialmente, à doutrina da Justificação pela Fé29, que para a teo- logia luterana firmou-se como a questão central, nuclear. O próprio Lutero afirmou: “Mantendo-se de pé este artigo, man- tém-se de pé a igreja”30 – articulus stantis et cadentis ecclesiae. Tal hipervalorização, evidentemente reducionista, de- corria das experiências espirituais do monge agostiniano ale- mão Martinho Lutero31 que, em meio a lutas de consciência, 29 Segundo Tillich: “O protestantismo nasceu da luta em torno da doutrina da justificação pela fé”. A justificação pela fé traduz segundo ele, “A situação limite” da existência humana. “A escolha se resume, pois, entre a aceitação radical da situação limite e a tentativa de ver na igreja e nos sacramentos proteções seguras contra a ameaça incondicional”. Luiz F. Ladaria, op. cit., p. 158. A era protestante, p. 213-215; também sua Teologia sistemática, p. 380-382 e 553-556. 30 WA 40 III, 3523. Importante comentário de Lutero acerca da doutrina da justificação em seu comentário sobre o Salmo 51 (Enarratio psalmi LI) de 1532. 31 TURMERLEBNIS (Experiência da torre). A grande questão, aqui, é: quando se deu a conversão do monge Martinho Lutero? Não obstante o próprio Lutero localizar tal experiência na torre do convento em Wittenberg (e não em Erfurt como pensam alguns!) registrando o fato na sua biografia de 1545 e vinculando-o ao texto De spiritu et littera de Agostinho, é estranho notar que, quando realiza suas preleções de Romanos, nada se refere a algo tão importante. Essa interpretação somada às outras que vinculam sua conversão às preleções dos Salmos (Operationes in Psalmos, 1518 ou 1519), à de Hebreus (1517) ou mesmo anterior a tudo isso, entre 1508 e 1511, no contato intenso com Staupitz, levam a concluir, pela documentação de que dispomos, que hoje é impossível obter uma cronologia exata de sua evolução interior, especificamente no caso de sua conversão. Uma coisa sabemos, a mudança em Lutero não foi conceitual ou teórica, o que aconteceu depois; tampouco, nesse primeiro momento, teológica, mas sobretudo de atitudes, e atitudes não dele para como Deus, mas de Deus para com ele (sobre este tema ver as reflexões de G. Montes, J. Lortz, A. Greiner, K. Holl, O. H. Pesch, F. Lau, P. Althaus etc.). 170 CIÊNCIAS DA RELIGIÃO – HISTÓRIA E SOCIEDADE Ano 3 • N. 3 • 2005
  • 19. na busca de um Deus gracioso que lhe garantisse certeza de salvação e paz interna, considerara insuficiente a formação in- telectual recebida. Nesse sentido, com Lutero, dá-se um tipo de reforma acadêmica em que pouco a pouco se substitui o referencial filosófico na jovem Universidade de Wittenberg. Na primavera de 1517, Lutero afirmaria em carta (WA Br 1,99, n. 41,8-13 citado em EBELING, 1988, p. 14): Nossa teologia e Santo Agostinho progridem bem e dominam na nossa Universidade graças à ação de Deus. Aristóteles aos poucos está afundando e se encaminha para o seu desapareci- mento próximo e definitivo. As aulas sobre as Sentenças são desprezadas de forma impressionante; só pode esperar ter alu- nos quem se dispõe a tratar dessa teologia. Isto é, da Bíblia, San- to Agostinho ou de algum outro mestre comprovado da Igreja. Na nova orientação, sabe-se, destacava-se o nominalis- mo (RUIZ DE LA PEÑA, 1991, p. 285)32, que constitui, nessa época, a via moderna em detrimento da via antiqua, identificada com o tomismo e com o escotismo dentro da fi- losofia aristotélica. Para precisar a cronologia: em 1501, Lutero matricu- lou-se na Universidade de Erfurt para o curso das artes libe- rais, o trivium: gramática, dialética e retórica alcançando o tí- tulo de bacharel em artes. Após sua crise, no verão de 1505 33, ele decide ingressar – na própria cidade de Erfurt, onde havia, na universidade, recebido o título de magister artium (janei- 32 Lutero, quando de sua ordenação em 1507, leu por conta própria a teologia de Gabriel Biel (1420- 1495), professor de Tubingen e principal representante da corrente nominalista, que se associa à tese de que o que verdadeiramente existe são os “individuais” e “particulares” em detrimento dos “universais”, apenas nomes dados. 33 Experiência vocacional: após o livramento da tempestade perto da aldeia de Stotternheim em que prometeu a Santa Ana tornar-se monge, Martinho Lutero, em 17 de julho de 1505, “reúne os amigos, bebem, comem, cantam e se divertem! [...] mas subitamente Martinho se levanta, pede que façam silêncio e, diante dos amigos perplexos, faz um breve discurso, que os atinge como um raio fulminante: ‘hoje vocês ainda me vêem, mas depois, não me verão jamais’ [...]. À sua palavra faz surgir a ação. Distribui entre os amigos os seus pertences e, depois, na madrugada de 18 de julho de 1505, desce para a cidade e bate à porta do grande Convento Agostiniano da Cruz [...] faz este simples pedido: ‘eu gostaria de ver o superior. Pelo amor de Deus, deixe-me entrar!’” (apud A. Greiner, Martinho Lutero, um apaixonado pela verdade, p. 13). TEOLOGIA AGOSTINIANA E REFORMA PROTESTANTE, p. 153-178 171 Ronaldo de P. Cavalcante
  • 20. ro de 1505) – no mosteiro dos agostinianos eremitas (17 de julho de 1505), onde se familiarizou com a posição dogmáti- ca dos occamistas (HÄGGLUND, 1981, p. 180)34 e teve, por assim dizer, seu primeiro contato com a Bíblia. Ebeling expli- ca que Lutero tornou-se occamista pelo simples fato de que em Erfurt só se ensinava a via moderna, situação diferente de Leipzig, onde prevalecia o tomismo da via antiqua com o estu- do da Summa à cabeça. Somente após a conclusão do doutorado em 1512, sob a orientação e convite de Staupitz, Lutero assume a cátedra – Lectura in Bíblia – na Universidade de Wittenberg, criada em 1502 pelo Eleitor Frederico o Sábio (HÄGGLUND, 1981, p. 180)35. Isso significará grande mudança em seu pensamento. O distanciamento em relação à doutrina occamista (FRANSEN, 1975, p. 667)36 da graça, a qual falava de uma recompensa pelos esforços humanos (Facere quod in se est), foi tomando forma a partir de 1513, em meio às dúvidas quan- to ao cumprimento suficiente das predisposições e ao amor a Deus sobre todas as coisas, obsessionando-o quanto a sua eleição. Somente os conselhos de Staupitz para que contem- plasse o Cristo crucificado o ajudariam a superar esse difícil período de ansiedade (FRANSEN, 1975, p. 181). Parece, portanto, que simultaneamente a esse afastamento da escolás- tica, Lutero – e posteriormente Calvino – aprofundará o dile- ma ocidental: Deus ou o homem? Optando resolutamente, como se sabe, por Deus: Soli Deo gloria! Segundo Hagglund, Lutero apoiou-se muito em Agos- tinho. Em seus primeiros anos, como regra geral, identificava sua posição com a de Agostinho. Foi o ensinamento agosti- niano de pecado e graça que Lutero desejava manter em opo- 34 Seguidores das idéias de Guilherme de Ockham (1295-1350), “pai do nominalismo”. 35 Antes disso (1508), Lutero teve uma breve passagem por Wittenberg a convite de Staupitz, como professor substituto, lecionando sobre a ética de Aristóteles. Voltou a Erfurt (1509) como professor no mosteiro. Em novembro de 1510, visitou Roma. Somente ao final de 1511 é que se trasladou definitivamente a Wittenberg para assumir a cátedra no ano seguinte. 36 Fransen (1975) ilumina a questão dizendo que: “Não há dúvida de que Lutero se formou, na Universidade de Erfurt, em um clima nominalista [...] Ali influía decisivamente João Nathin, discípulo em outro tempo de Gabriel Biel em Tubingen. Ainda que Lutero tenha renegado seus mestres, sobretudo na doutrina da graça, sempre lhes professou certa estima”. 172 CIÊNCIAS DA RELIGIÃO – HISTÓRIA E SOCIEDADE Ano 3 • N. 3 • 2005
  • 21. sição à doutrina da escolástica sobre justificação. Isso também foi decisivo no que tange à relação entre Lutero e o occamis- mo. (1981, p. 181). Ebeling novamente ajuda ao dizer que, já naquele tempo [em Erfurt?], Lutero lançou as bases para um estupendo conhecimento da Bíblia. Ademais, se familiarizou também com uma quantidade razoável de obras de Agostinho (EBELING, 1988, p. 28). E agora, em Wittenberg, Lutero, a partir das salas de aula, com seus primeiros cursos, começa a colocar em prática seu méto- do teológico, que equivale a uma cuidadosa exegese da Escritura (Luís Duch citado em VILANOVA, 1989, p. 267). Lutero utilizava o esquema tradicional da hermenêutica me- dieval, quer dizer, o sentido quádruplo das Escrituras somado ao seu próprio, a contraposição de espírito e letra. Posterior- mente sua metodologia diferenciou-se, com um claro retroces- so do esquema medieval por conta de uma exegese mais histó- rico-gramatical no curso sobre os salmos (1513-1515) e nos estudos das epístolas aos Romanos (1515-1516), aos Gálatas (1516-1517) e aos Hebreus (1517-1518). Portanto, com base em Agostinho e diferentemente da escolástica de tradição tomista, escotista ou occamista, pode- se sumariar dizendo que Lutero considerava a graça divina de maneira mais realista e em geral como o amor de Deus que beneficia o homem com a salvação conforme relatado nas Escrituras. No entanto, considerando Calvino como o segundo momento da Reforma, nota-se menos a preocupação soterio- lógica com a doutrina da justiificação pela fé, tão central em Lutero e mais a questão eclesiológica. Todo o livro IV das Institutas está dedicado à Igreja. Esse lugar importante atri- buído à Igreja constitui fato novo na jovem continuidade re- formada. Com Calvino, é a Igreja visível que se afirma, a Igreja visível que a teologia luterana tinha escamoteado por detrás da única realidade da Igreja invisível, a universitas prae- destinatorum (CHAUNU, 1993, p. 208). Isso significa que uma nova eclesiologia aponta no horizonte reformado e con- tra o modelo católico medieval. Uma Igreja com o anúncio da Palavra de Deus, em uma mão, e a administração dos dois sacramentos instituídos por Cristo na outra. Seguindo de perto a Agostinho, seu velho conhecido desde Montaigu, Calvino distingue entre Igreja visível e invisível (IRC IV, I, 1- TEOLOGIA AGOSTINIANA E REFORMA PROTESTANTE, p. 153-178 173 Ronaldo de P. Cavalcante
  • 22. 12. 803-814). A Igreja invisível está formada pelos eleitos, conhecidos somente por Deus, pelos anjos e pelos santos. Na Igreja visível estão mesclados os bons e os hipócritas, os quais não têm de Cristo outra coisa que o nome e a aparência. Do mesmo modo que todo cristão tem a obrigação de crer naque- la Igreja invisível conhecida somente por Deus, também rece- be a ordem de honrar a Igreja visível e de manter-se em sua comunhão (IRC IV, I,7. 811). À eclesiologia calvinista subjaz a concepção da graça de Deus. Novamente seguindo a Agos- tinho, Calvino entende que Deus não oferece a graça somen- te para que seja recusada ou aceita, segundo o gosto de cada um, senão que a graça, e unicamente ela, é a que inclina os corações a seguir seu próprio impulso, ele diz textualmente: “Tu fazes e te fazem fazer, és impulsionado para que faças [...] E Espírito de Deus que te faz fazer, é o que ajuda aos que fazem [...] Isto é o que diz Santo Agostinho [...] combina de tal maneira a operação de Deus com a nossa, que o querer é da natureza, porém o querer bem é da graça” 37. De fato, o ponto de arranque do protestantismo acerca da doutrina da graça é a Sola Scriptura e por isso mesmo se efe- tua uma redução conceitual, como o faz notar o teólogo refor- mado Marc Lienhard, quando esclarece que diante de uma terminologia e de uma doutrina da graça sumamente sutis e ricas em matizes e em vocabulário na teologia católica, o pro- testantismo aparece como filho pobre, porque em geral não cessou de simplificar e de unificar os diversos sentidos que poderia abranger essa palavra na tradição teológica (LIE- NHARD citado em CONGAR, 1972, p. 206). Assim, a gra- ça, em seu sentido protestante, guarda uma nota de incondi- cionalidade e alcança o homem sem que esse possa preparar-se para ela. Ou, como disse Barth: “Quando dizemos graça pen- samos na liberdade com que Deus se volta para outro ser para outorgar-lhe seu favor” (LIENHARD citado em CONGAR, 1972, p. 207). Essa redução simplificadora significa que, com base nas informações neotestamentárias o conceito de cháris, relaciona-se à salvação em Cristo outorgada ao homem por Deus por sua misericórdia produzindo a cura da relação. 37 IRC II,V, 14. Ainda diz que “não negamos que é bem verdade o que ensina Santo Agostinho: que a vontade não é destruída pela graça, senão reparada” (II,V,15). 174 CIÊNCIAS DA RELIGIÃO – HISTÓRIA E SOCIEDADE Ano 3 • N. 3 • 2005
  • 23. Dessa forma, a graça traduz a absoluta liberdade de Deus bem como seu amor absurdo e incompreensível que se inclina ao homem pecador produzindo um novo status, a re- conciliação. A reconciliação seria, pois, o produto “material” da ação da graça. Tal ação da graça, como já foi dito, está sina- lizada no Antigo Testamento, por ocasião da eleição de Israel e efetivada de maneira plena na pessoa de Jesus, conf. por exem- plo em João 1:16-17 e Tito 2:11. Como explicita Klaus Ber- ger, em comparação com o contorno judeu e grego, o uso neo- testamentário desse conceito é muito freqüente e sem dúvida se vê nele um termo de escola de determinada direção missio- nária. O termo foi desenvolvido especialmente por Paulo (BERGER, 1984, p. 309). Também em João, a partir do tex- to já citado e de forma semelhante à de Paulo, a cháris é con- traposta à lei, em que se encontra o lema da plenitude da graça como bem salvífico da verdade, refletindo, sem dúvida algu- ma, a qualidade da aliança (hesed). Ademais, 1Pedro mostra, além de usos bem variados do vocábulo (2:19; 4:10), a cháris simplesmente como o conjunto da salvação cristã (1:10,13). Por conseguinte, os reformadores, com Lutero e Cal- vino à frente, promovem uma volta ao patrimônio bíblico e agostiniano quanto à graça divina. É bem verdade que o en- foque tipicamente soteriológico da graça, como perdão de pecados, pode ser notado mais na tradição luterana que em Calvino, esse falará também da graça geral. De qualquer ma- neira, no protestantismo, a graça é primeiramente, por um lado, uma atitude misericordiosa de Deus erga nos, pro nobis. Contudo, por outro lado, é descrita também pelos efeitos cau- sados na vida do homem, ou seja, é um dom de Deus. Isso sig- nifica que, muito embora no protestantismo a justificação seja uma declaração “jurídica” de justiça, entrando Deus em con- tato com o homem, a dinâmica de seu amor faz com que ele transforme efetivamente o homem. Por isso mesmo, haverá na dogmática protestante um importante espaço reservado à mís- tica de Cristo38. Por sua vez, essa assimilação do divino no hu- 38 Mística de Cristo, na tradição reformada, relaciona-se com a reconciliação do homem com Deus; depende de sua graça em Cristo, objetivada por sua palavra que se apresenta acessível pela fé. No entanto, tal realidade torna-se “nossa” no poder do Espírito Santo em sua ação misteriosa. Cristo habita em nós por meio do Espírito Santo, “[...] que nos foi outorgado” (Rm 5:5c). Segundo Calvino, o “[...] Espírito Santo é, por assim dizer, o vínculo pelo qual o Filho de Deus nos une ativamente consigo” (IRC III, I,1). Na força do Espírito Santo reside uma unio mystica entre o crente e Cristo. Calvino não vacila em qualificar inclusive esta união com Cristo como vera et substantialis communicatio (IRC III,II,1). TEOLOGIA AGOSTINIANA E REFORMA PROTESTANTE, p. 153-178 175 Ronaldo de P. Cavalcante
  • 24. mano não deverá parecer que a graça seja algo independente do Deus doador. Nesse sentido é que Lutero, fazendo distin- ção entre graça e dom, ressaltará a graça como favor de Deus e fonte do dom: o dom que é essencialmente a fé, que depen- de da graça. Portanto, a teologia protestante, ainda que enfa- tize o caráter único e indivisível da graça, considerará a diver- sidade e riqueza dos atos de Deus, empregando o termo graça de diversas maneiras na construção de uma ordo salutis, quer dizer, as formas em que a graça de Deus atua. 4 . CO N C LU S Ã O A grande oportunidade e desafio do protestantismo, em termos de sua teologia, é exatamente fazer desdobrar e tornar relevante todo o seu patrimônio herdado por meio de uma ação pastoral e de uma espiritualidade à altura de suas nascentes e dignificadora de sua história. Quer dizer, assumir a vocação pastoral e espiritual inerente nos pressupostos da teologia paulina e agostiniana e fazê-los “aterrissar” em meio à gente. Uma espécie de atualização do mistério da encarna- ção do Verbo. Fazer valer a cláusula pétrea: ecclesia semper re- formanda. Talvez para isso seja preciso começar pelo mais difícil: o reconhecimento de acidentes de percurso; a aceita- ção daqueles erros tão humanos e, uma vez mais, como os pais reformadores, atentar para eco das Escrituras tão rever- berante em Agostinho: Quanto a mim, não me envergonharei de aprender se me acho no erro... Por isso, prossiga comigo quem comigo está certo; Procure comigo quem condivide a minha dúvida; Volte a mim quem reconhece seu erro; Advirta-me quem descobre o meu. (De trinitate) R E F E R Ê N C I AS B I B L I O G R Á F I CAS ALTANER, B.; STUIBER, A. Patrologia. São Paulo: Edições Paulinas, 1972. 176 CIÊNCIAS DA RELIGIÃO – HISTÓRIA E SOCIEDADE Ano 3 • N. 3 • 2005
  • 25. AUER, J. Historia de la Doctrina de la Gracia. Sacramentum Mundi 3. Barcelona: Editorial Herder, 1984. BERARDINO, A. Di. (Org.) Dicionário patrístico e de antiguidades cristãs. Petrópolis/São Paulo: Vozes/Paulus, 2002. BERGER, K. Gracia: Sacramentum Mundi 3. Barcelona: Editorial Herder, 1984. BETTENSON, H. Documentos da igreja cristã. São Paulo: Aste, 1967. CALVINO, J. Instituición de la religión cristiana I e II. Países Bajos: Felire, 1999. CHAUNU. P. O tempo das reformas II. Lisboa: Edições 70, 1993. DE BONI, L. A. De Abelardo a Lutero – Estudos sobre Filosofia Prática na Idade Média. Porto Alegre: Edipucrs, 2003. EBELING. G. O pensamento de Lutero. São Leopoldo: Sinodal, 1988. EUSÉBIO de Cesaréia. História eclesiástica. São Paulo: Novo Século, 1999. FRANSEN, P. Desarollo historico de la Doctrina de la Gracia. Misterium Salutis IV/2. Madrid: Ediciones Cristiandad, 1975. HÄGGLUND, B. História da teologia. Porto Alegre: Concórdia, 1981. IRENEU de Lião. Livros I, II, III, IV, V. São Paulo: Paulus, 1995. LADARIA, L. F. Teología del pecado original y de la gracia. Madrid: BAC, 1997. LAFONT, G. História teológica da igreja católica. São Paulo: Paulinas, 2000. LIENHARD, M. “Gracia” en teologia protestante. In: CONGAR, Yves. Vocabulario ecuménico. Barcelona: Editorial Herder, 1972. MANZANARES, C. V. Dicionário de patrística. Aparecida: Editora Santuário, 1995. MAROTO, D. P. Historia de la espiritualidad cristiana. Madrid: EDE, 1990. POSSÍDIO. Vida de Santo Agostinho. São Paulo: Paulus, 1997. QUASTEN , J. Patrologia I. Madrid: BAC, 1991. TEOLOGIA AGOSTINIANA E REFORMA PROTESTANTE, p. 153-178 177 Ronaldo de P. Cavalcante
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