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Título original: Los hijos de La Luz
© Copyright 2005: Random House Mondadori, S.A., Barcelona
© Copyright 2006: César Vidal Direitos cedidos para esta edição à
EDIOURO PUBLICAÇÕES S.A. Rua Nova Jerusalém, 345 - Bonsucesso
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A RELUME DUMARA É UMA EMPRESA EDIOURO PUBLICAÇÕES
Revisão Maria Helena Huebra
Editoração Dilmo Milheiros
Capa Simone Villas-Boas
CIP-Brasil. Catalogaçao-na-fonte. Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.
V691f Vidal, César, 1958-O crime dos Illuminati / César Vidal ; tradução Antônio
Fernando Borges. - Rio de Janeiro : Relume Dumará, 2006
Tradução de: Los hijos de Ia luz ISBN 85-7316-491-3
1. Romance espanhol. I. Borges, Antônio Fernando, 1954-. II. Título.
06-3160 CDD 863
CDU 821.134.2-3
Todos os direitos reservados. A reprodução não-autorizada desta publicação, por
qualquer meio, seja ela total ou parcial, constitui violação da Lei n° 5.988.
Para aqueles que combatem, incansáveis,
honrados e valentes, as obras ocultas das trevas
SSSSSSSSuuuuuuuummmmmmmmáááááááárrrrrrrriiiiiiiioooooooo
Primeira parte
OOSS FFIILLHHOOSS DDAA LLUUZZ
Segunda parte
CCOONNSSPPIIRRAAÇÇÃÃOO
Terceira parte
NNÊÊMMEESSIISS
Epílogo
A bela Lola, por Zoé Valdés
PPPPPPPPRRRRRRRRIIIIIIIIMMMMMMMMEEEEEEEEIIIIIIIIRRRRRRRRAAAAAAAA PPPPPPPPAAAAAAAARRRRRRRRTTTTTTTTEEEEEEEE
OOOOOOOOssssssss ffffffffiiiiiiiillllllllhhhhhhhhoooooooossssssss ddddddddaaaaaaaa lllllllluuuuuuuuzzzzzzzz
UUmm
Paris, 21 de janeiro de 1793
REALMENTE É MUITO CURIOSA a maneira como as impressões ficam gravadas
em nosso cérebro, para depois emergirem, de vez em quando, graças ao efeito quase
mágico da memória. De um desfile demorado, recordamos não a aparência marcial do
elegante capitão ou as palavras piedosas pronunciadas de maneira emotiva pelo capelão
ao abençoar as tropas, nem mesmo a variedade de cores dos uniformes. O que fica
retido em nossa mente, pelo contrário, é o semblante acalorado de um soldado
camponês, suarento e avermelhado, a quem o uniforme de gala atormentava como se o
estivesse submetendo a uma tortura. De um te-déum solene esquecemos a pregação
sentida do Evangelho, o grande número de fiéis e até o motivo transcendental da
cerimônia impressionante, mas no coração fica impressa a aparência sonolenta de um
sacristão barbeado com descuido ou da anciã que cochilava durante a homilia. Assim
age a memória, e a de Karl não era uma exceção entre as de outros tantos integrantes do
gênero humano. Daquela manhã, ele se lembraria de muitas coisas, mas, principalmente,
ficaria inscrita em suas lembranças a colocação assimétrica do patíbulo.
Tratando-se de uma praça e levando-se em conta a quantidade nada desprezível
de espectadores — podia-se dizer que metade de Paris estava concentrada naquele lugar
— o mais lógico teria sido instalar aquele ambiente de morte no centro, procurando a
eqüidistância, para que o maior número possível de espectadores contemplasse, talvez
até com deleite, quase sempre com curiosidade, o que iria acontecer dentro de alguns
segundos. No entanto, no fim das contas, os guardiães da revolução, os defensores da
liberdade, os impulsionadores da igualdade tinham optado por colocá-lo quase numa
esquina.
O patíbulo se erguia, assim, entre o caminho que levava aos Champs Eliseés e
um curioso... pedestal? Sim, tudo parecia indicar que aquele volume enorme e quase
amorfo tinha sido um pedestal em algum momento de um passado talvez não distante.
Se bem que, a ser assim, para que estátua exatamente ele tinha servido de plataforma?
Devia ter sido uma escultura odiada, porque a tinham arrancado quase pela raiz. Nem
mesmo o pedestal tinha se salvado da ação daquelas multidões que os dirigentes da
revolução chamavam com vigor de "cidadãos" e de "o povo". Karl achou inclusive que,
em outros tempos, o pedestal devia ter contado com um revestimento de mármore e
bronze, mas desses materiais tão nobres só restavam agora fragmentos em mau estado.
Até a pedra, que agora aparecia, riscada e triste, a descoberto, como uma mulher que
tivessem tirado da cama para lhe arrancar a roupa em seguida, tinha um aspecto
deplorável, como se alguém tivesse tido prazer em espancá-la e, no final, enfadado e
exausto, tivesse desistido da tarefa extenuante.
O cadafalso tinha sido erguido a poucos passos daquele vestígio lastimável de
um passado que, de tão próximo, quase parecia presente e que os "cidadãos" desejavam
arrancar pela raiz. Tinha sido coberto por tábuas compridas, colocadas de maneira
transversal, que serviam para esconder uma complicada estrutura que parecia
proveniente do Garde-Meuble1
. Exatamente no extremo oposto ficava a escada sórdida
que terminava na parte alta do cadafalso, desprovida de corrimão.
Karl sentiu como se uma bola de metal o atingisse violenta e inesperadamente
na boca do estômago, quando contemplou um objeto de forma cilíndrica colocado sobre
o patíbulo. Estava coberto de couro e, sim, não restava dúvida, era a cesta onde a cabeça
do condenado deveria cair. Claro que não se tinha certeza de que fosse acontecer assim.
De saída, a lâmina da guilhotina não parecia muito pesada. Na verdade, era pequena e
tinha uma forma curva, quase como um daqueles gorros frígios que muitos dos
presentes usavam. Como não se via nenhum dispositivo que pudesse segurar a cabeça
do réu uma vez que tivesse sido separada do corpo, podia-se imaginar que ela saltaria
do cadafalso e talvez chegasse até a multidão. Os servidores da liberdade teriam
preparado tudo dessa maneira ou, pelo contrário, tratava-se de mais uma demonstração
de incompetência, que por ser grosseira não era menos soberba, e da qual davam
mostras com tanta freqüência? Karl não sabia e, para falar a verdade, também não tinha
nesses momentos um espírito suficientemente forte para se dispor a investigar isso.
De maneira inesperada, uma rajada de vento percorreu a praça, arrancando-o
1
Edifício-museu onde ficavam expostos objetos e jóias da família real.
daquelas reflexões. Não serviu, no entanto, para aliviar o mal-estar que tinha tomado
conta dele. Pelo contrário: arrastou até seu nariz, mais forte e vigorosa, uma mistura
repugnante e variada de cheiros. Roupa suja, suor acumulado em axilas e pés, baforadas
de álcool mal digerido... tudo aquilo o envolveu com seu fedor espesso e, por um
momento, ele pensou que não conseguiria conter a ânsia de vômito. Mas conseguiu.
Custara-lhe muito chegar até ali e não estava disposto a perder o espetáculo por culpa
do asco.
Um murmúrio, inegável mas reprimido, avisou-o de que tudo iria começar em
alguns instantes. Não se enganou. Em meio a um silêncio sepulcral, uma carroça
desgastada, puxada por cavalos, entrou na praça e se dirigiu para o cadafalso. Se não
fosse pelas pessoas que ficaram na ponta dos pés para poder observar melhor a cena, e
que se espezinharam, e que amaldiçoaram, e que blasfemaram, quase teria parecido que
não havia ninguém naquele lugar.
O carro chegou, lenta mas inexoravelmente, até o patíbulo, e Karl pôde ver que
os carrascos eram quatro. Se não fosse pelas divisas, tricolores e desproporcionalmente
grandes, que usavam nos nada modestos chapéus de três pontas, qualquer um teria dito
que pertenciam ao antigo regime. As mesmas calças, as mesmas casacas, os mesmos
penteados... bem, no fim das contas, também executavam o mesmo ofício realizado
tantas vezes ao longo dos séculos.
O réu estava acompanhado por três sacerdotes, era evidente, mas o
comportamento deles não poderia ser mais dessemelhante. Dois deles estavam vivendo,
sem qualquer sombra de dúvida, um momento extraordinariamente divertido. Karl
pestanejou para ter certeza de que o que estava vendo era real, e, claro, não teve dúvida
alguma: aqueles dois clérigos brincavam como se estivessem desfrutando de uma alegre
romaria. Engoliu a saliva. A praça transbordava de inimigos do condenado, mas
ninguém tinha se atrevido a se mostrar alegre naquelas circunstâncias. Aqueles dois
eram a exceção. Inclusive, um deles tinha começado a apontar a barriga e os quadris do
réu e a zombar de suas formas.
O terceiro, pelo contrário, demonstrava um comportamento diametralmente
oposto. Da distância em que se encontrava, Karl não podia distinguir suas feições com
clareza, mas tudo parecia indicar que era vítima de um forte retesamento que talvez
pudesse ser atribuído à tristeza. Não, aquele sacerdote não apenas não se divertia com a
cena como, de fato, ela devia estar lhe causando uma dor insuportável.
O carro parou, finalmente, no meio de um espaço amplo e vazio que rodeava o
cadafalso. Sim, amplo e vazio, mas não desprotegido. Estava rodeado por canhões e
pessoas portando as mais diferentes armas. Piques2
, lanças, mosquetes...
O condenado desceu do carro. Totalmente enfeitado de branco, levava nas
mãos um livrinho que Karl tentou em vão identificar e que acabou achando que fosse
um missal, um livro de salmos ou talvez um Novo Testamento. Assim que o réu pisou
no chão, três dos carrascos, daqueles carrascos que se vestiam tentando esconder sua
origem burguesa, rodearam-no e fizeram o gesto de lhe tirar a casaca. Com uma
dignidade que quase se poderia tocar como se fosse alguma coisa sólida, o homem fez
um gesto para afastá-los e se livrou ele mesmo da peça de roupa.
Por um momento, os carrascos pareceram totalmente desconcertados. Parecia
óbvio que não estavam acostumados à semelhante demonstração de dignidade —
principalmente de aprumo — por parte de alguém a quem iriam separar a cabeça do
corpo dentro de alguns minutos. No entanto, a atitude deles durou apenas um instante.
De maneira imediata, como se impelidos por uma mola, aproximaram-se do réu e
tentaram segurá-lo pelos pulsos. Karl não pôde escutar o que o condenado respondeu,
mas captou sem dúvida a firmeza, não empertigada mas natural, com que jogou o corpo
para trás para impedir que os carrascos fizessem aquilo com ele.
— O grande filho-da-puta não se deixa amarrar... — Karl escutou uma velha
colérica a seu lado resmungar. — Se fosse por mim, não iriam colocar a corda
propriamente nas mãos.
Mas além daquela mulher — que talvez não tivesse tantos anos quanto as
infinitas rugas que sulcavam seu rosto aparentavam — ninguém disse nada. Ninguém a
não ser os carrascos, que tinham começado a se agitar como se impelidos pelo ventinho
que soprava na praça. De repente, um deles levou a mão à boca como se fosse uma
trombeta e gritou algo que Karl não chegou a entender. Dois soldados que usavam o
gorro frígio vermelho se apressaram em atender a seu chamado.
Foi então que os olhos de Karl se detiveram, de forma casual, no terceiro
sacerdote, aquele que parecia profundamente triste. Pela primeira vez reparou que,
quase com toda a certeza, não era francês. Não, ele não era. Seus traços e suas feições
indicavam alguém de origem nórdica. Poderia se tratar de um alemão, de um holandês,
inclusive de um inglês. Em todo caso, não era uma circunstância tão relevante. O
significativo era que ele tinha se inclinado respeitosamente sobre o condenado e se
dirigia a ele num tom que, pelos gestos, poderia ser qualificado de submisso, até de
suplicante. Devem ter trocado apenas duas ou três frases, mas foram suficientes para
que o réu elevasse os olhos para o céu, sussurrasse alguma coisa e estendesse as mãos.
2
Lança antiga
Fez isso justo no momento em que os soldados chegavam perto dele. Ele não
poderia garantir, mas Karl teve a impressão de que um dos carrascos amarrava o réu
com uma expressão de triunfo insolente, como se fosse a consumação de um longo
processo iniciado talvez muitos anos antes. Como se pretendessem sublinhar aquele
gesto pleno de significado, os doze tamborileiros localizados ao lado do cadafalso
começaram a tocar seus instrumentos com mais energia e vontade do que arte.
Quando o réu começou a subir a escadinha que levava até a guilhotina, Karl
percebeu que os degraus eram inclinados demais. Conteve nessa hora a respiração
desejando que o condenado não escorregasse, caísse ou tropeçasse naquela subida
sinistra para a morte. Se não aconteceu nada disso, talvez se deva ao fato de que o
terceiro sacerdote, o que não parecia francês, agarrou-o pelo braço com a intenção de
ajudá-lo. No entanto, aquela colaboração piedosa durou apenas o tempo de subida.
Quando os dois atingiram a plataforma sobre a qual a guilhotina repousava, o réu se
soltou com um gesto seguro. Depois, com passos inusitadamente firmes, cruzou o
espaço que havia entre o fim da escada e a guilhotina. Fez isso com tanta calma, com
tanta segurança, com tanta serenidade que qualquer pessoa teria dito que ele passeava
por um jardim desfrutando do bom tempo.
Achava-se a ponto de alcançar a lâmina, quando parou e olhou para os
tamborileiros. À distância em que Karl se encontrava não lhe permitiu captar a carga
exata que o condenado colocou naquela expressão, mas o certo é que as mãos deles
ficaram suspensas no ar sem permitir que as baquetas sequer roçassem a pele dos
instrumentos.
— Morro inocente de todos os crimes de que me acusam — disse o réu com
uma voz sossegada, clara e suficientemente forte para que o escutassem com clareza
mais além da praça. — Perdôo os autores de minha morte, e rogo a Deus para que o
sangue que vocês estão prestes a derramar não caia nunca sobre a França.
Nem uma palavra, nem um grito, nem um silvo, nem um assovio repercutiram
depois que o condenado pronunciou aquelas últimas frases. Por um instante pareceu que
o mundo, aquele mundo extraordinariamente convulso, tinha parado, que a terra tinha
deixado de girar, que o sol se fixara no firmamento. Então, uma mão, que parecia saída
do nada, cravou-se no antebraço daquele homem vestido de branco e o puxou para a
guilhotina. Não houve nenhuma resistência. O réu parecia reconciliado com seu destino
como poucos teriam estado. Documente, quase com mansidão, permitiu que dois dos
carrascos, que continuavam com os chapéus na cabeça, estendessem-no sob a lâmina. A
execução durou alguns instantes mas, ao contrário do que Karl tinha temido, a cabeça
não saltou até o chão, mas caiu na cesta. Talvez, pensou, a pequenez da lâmina tenha
evitado aquela profanação extra.
Um dos carrascos, alto, corpulento, com aparência brutal, aproximou-se da
cesta e, agarrando a cabeça pelos cabelos, levantou-a para que a multidão a visse.
Durante alguns momentos, deixou que o sangue jorrasse abundante do pedaço de corpo
já sem vida. No entanto, aquela exibição de força triunfal não pareceu comover os
presentes, talvez impressionados demais com o que tinha acontecido durante os minutos
anteriores. Foi então que o carrasco jogou a cabeça no cesto com um gesto depreciativo
e de uma só puxada apanhou a casaca branca que estava caída no chão do cadafalso.
Agitou-a por um instante no ar como se fosse uma bandeirola e depois a atirou com
violência sobre a multidão. Por um breve instante, a peça de roupa descreveu um vôo
curto que foi abortado por um oceano de mãos que se lançaram para dela se apoderar.
Entre rugidos e gritos, uivos e clamores, aquela brancura desapareceu
completamente no meio da massa. Como a vida daquele homem que tinha acabado de
ser guilhotinado, Luís XVI, o cidadão Capeto, um monarca de trinta e oito anos com
que se encerravam oito séculos de dinastia bourbônica na França. Nada restava daquela
dinastia que um dia tinha dominado metade da Europa. Num sentido nada metafórico,
tinha sido cortada de um golpe só.
Enquanto assim pensava, Karl observou como o terceiro sacerdote, o que não
parecia francês, o que tinha tentado consolar o rei, descia agora do cadafalso,
ultrapassava a primeira linha de soldados e se perdia no meio da multidão. Parecia
atordoado, exausto, submetido a um impacto que não podia suportar. Ninguém,
absolutamente ninguém, prestou atenção nele.
Karl enfiou a mão no bolso e tirou do colete desbotado um relógio dourado.
Eram pouco mais de dez e quinze. E então, exatamente quando afastou o olhar da esfera
branca, ele o viu. Era ele, sim, era ele. Sem nenhuma sombra de dúvida. Talvez
estivesse um pouco mais magro, embora não muito, e seus cabelos estivessem mais
ralos e grisalhos, mas era ele. E o olhava. Olhava-o com aqueles olhos inquisitivos que
pretendiam, e quase sempre conseguiam, esconder o que corria pelo fundo de seu
coração.
O coração de Karl começou a bater com mais força do que a que os
tamborileiros tinham empregado para bater nos instrumentos. Sabia que o encontraria
ali. Sempre soubera disso. Não poderia ser de outra maneira. E agora, enfim,
encontrava-o. Ali, no mesmo lugar onde acabava de desaparecer a monarquia mais
importante da Europa. Apertou os punhos, respirou e tentou abrir caminho até o lugar
onde ele se encontrava. Deu dois, três, quatro empurrões para alcançá-lo. Mas, de
repente, desapareceu. Angustiado, movimentou a cabeça para um lado e para o outro,
até que seu pescoço doeu, enquanto procurava encontrá-lo.
Empenhava-se nisso quando uma das abas da casaca ficou agarrada entre duas
matronas que conversavam animadamente, ainda que sem muito critério, sobre a
execução do Capeto. Conseguiu recuperá-la, suja e amarrotada, de um puxão, e,
seguindo um impulso instintivo, tentou lhe devolver uma elegância que talvez tivesse
perdido para sempre. Foi então, quando levantou a vista, com a desolação embargando
seu rosto, que ele o viu novamente. De maneira incrível, tinha conseguido se livrar
daquele imenso mar de corpos malcheirosos, e se colocar na outra extremidade da praça
abarrotada. Mas como ele tinha conseguido isso? Karl cravava os cotovelos, os punhos,
os antebraços em qualquer ser vivo que se interpusesse em seu caminho. Não, agora não
podia tornar a escapar. Tinha que agarrá-lo.
O fugitivo — porque ele era isso, de fato — livrou-se daquele pesado
espartilho humano entretecido com milhares de corpos quando Karl estava a quase
duzentos passos dele. Arfando, suando por todos os poros, reprimindo as maldições que
lutavam para brotar de seus lábios, contemplou desesperado como sua presa inatingível
apertava o passo e, quando chegou a uma esquina, começava a correr.
Demorou ainda alguns minutos para se livrar daquela maré, em que não eram
poucos os que já se vangloriavam de contar com um retalho da casaca branca do
Capeto. Quando conseguiu, começou a correr, embora estivesse consciente de que não
tinha rumo certo nem sabia em que direção seguir. Não poderia dizer o tempo que durou
aquela corrida, mas, por fim, o esgotamento o obrigou a encerrá-la e Karl teve que se
apoiar contra o muro gelado de uma rua desconhecida tossindo violentamente e
tentando recuperar o ritmo da respiração.
Inalou gulosamente o vento frio da manhã, como se disso dependesse sua vida,
como se num instante só pudesse conduzir aquele oxigênio indispensável até o último
lugar de seus pulmões, como se lhe fosse dado recuperar a juventude, o vigor e a alegria
gastos naquele incidente longo, o mais longo de sua existência. Um incidente que tinha
começado anos atrás, em outro lugar e em outra época.
DDDDDDDDooooooooiiiiiiiissssssss
Baviera, 1775
COMO É BONITA, DISSE A SI MESMO enquanto calculava na mão esquerda o peso
do animal. Sim, e como é gorda. E olhe que era raro neste tipo de animal. Mas a lebre...
bem, a lebre era uma delícia. Pele suave, cor deliciosa e aparência opulenta. Não deveria
ter sofrido muito. Tinha se emaranhado no laço na altura do pescoço e pelejando para se
libertar só tinha conseguido se estrangular mais rapidamente. Acontecia de vez em
quando com estes animaizinhos. Dava um pouco de pena, mas precisava comer.
Balançou a cabeça como se quisesse arrancar dela qualquer vislumbre de compaixão e,
com um gesto rápido, soltou o animal da armadilha que tinha lhe arrancado a vida, e o
jogou no embornal. Foi nesse momento que o viu.
Foi apenas um instante e — com toda a certeza — não teria percebido nada se
não tivesse sacudido o cangote justo nesse mesmo momento em que seu olhar se
entrecruzou com o que saía de uns olhinhos miúdos, redondos e pretos, incrustados no
rosto assustado e trêmulo de um filhote de coelho.
Com gesto rápido, o caçador ficou de pé de um salto e se precipitou sobre a
presa inesperada. Sem dúvida, era uma cria da lebre enorme que tinha acabado de
apanhar. Tinha que ficar com ela.
Conseguiu dar dois passos antes que o animalzinho se precavesse do perigo
que avançava em sua direção. Sem dúvida, tinha contemplado como sua mãe ficara
presa e como tinha perdido a vida no curso de um ritual que nunca tivera antes a
oportunidade de contemplar. Agora, o medo e o espanto o impediram de reagir a tempo.
No entanto, de qualquer forma conseguiu se mexer. Deu um salto instintivo à direita
para evitar aquelas manoplas que se lançaram sobre ele e depois, ainda presa do estupor,
começou a correr.
Foi uma corrida inexperiente, desajeitada e lenta. Típica de alguém que até
aquele momento não sabia o que era ter que se salvar de um agressor. Impelido mais
pelo susto do que por um medo suficiente para ativar seu instinto de autopreservação, o
filhote de lebre tratou de se esconder entre uns arbustos.
O caçador se lançou sobre os arbustos convencido de que pegaria aquele
animalzinho. Estava enganado. A sombra daquela massa se precipitando sobre ele
acabou tirando do estupor aquele infeliz filhote de lebre. Deu um novo pulinho e, agora
sim, começou a correr para se afastar daquele ser que ele não tinha visto antes mas que
parecia representar um verdadeiro perigo.
Com as orelhas transformadas em antenas que o avisavam da proximidade de
seu inimigo, o filhote de lebre descreveu uma corrida em ziguezague que não o afastou
da cilada persistente, mas pelo menos impediu que ela se transformasse numa realidade
letal. Ofegante, o caçador procurava se aproximar do animalzinho e prendê-lo entre o
vazio ameaçador que suas mãos formavam, mas, repetidas vezes, aquele ser miúdo
evitou a tenaz. Com o instinto que só a experiência proporciona, compreendeu que sua
única oportunidade de encurtar distâncias e alcançar o animalzinho era enganá-lo. Deu
uma passada com a perna direita que assustou o filhote de lebre e fez com que saltasse
para a esquerda e, justo nesse momento, precipitou-se sobre ele.
Ele lhe escapou por duas míseras polegadas, mas era óbvio que o caçador tinha
encontrado o método que lhe permitiria sair com sucesso daquela missão. Bem, era só
uma questão de repetir a jogada no momento exato em que o animalzinho estivesse
suficientemente próximo.
Não fez isso. Enquanto o filhote de lebre corria para se pôr a salvo à maior
distância possível, o caçador vislumbrou algo que distraiu sua atenção. No início, só
chegou até seu corpo uma soma de sensações fortes e absorventes. Um cheiro
penetrante de carne em decomposição, o zumbido irrequieto do que pareciam ser
centenas de moscas, os raios de sol descendo entrecortados sobre um tronco de árvore
para se atirar depois pela casca e, revolta, rutilante e avermelhada, uma cabeleira que só
podia pertencer a um ser humano.
Ele parou, inalou uma golfada de ar, passou a mão pela testa suarenta e, por
alguns instantes, procurou compreender o que significava tudo aquilo que se oferecia,
agressivo e pujante, a seus sentidos. Não conseguiu àquela distância e, tendo já relaxado
a perseguição ao filhote de lebre, deu alguns passos na direção da inesperada
descoberta.
O fedor de podridão arranhou suas fossas nasais, mas não o deteve. Espantou
com furiosos golpes de mão o bando de moscas e conseguiu distinguir uma imagem
diferente de qualquer outra que já tinha se oferecido antes a suas pupilas.
Tratava-se de um homem jovem, sem dúvida. Era até possível que não tivesse
ultrapassado a casa dos vinte anos. No entanto, agora não passava de um despojo fétido
e coberto de insetos verde-azulados. O rosto parecia destruído, esmigalhado, esvaído,
como se tivessem tentado desmanchá-lo até torná-lo irreconhecível. No entanto, o
caçador disse a si mesmo que o mais certo era que aquela terrível abrasão se devesse à
ação combinada das feras e das moscas. Quanto ao resto do corpo... As meias estavam
destruídas, mas enquanto o pé direito conservava um sapato, no esquerdo os dedos,
avermelhados e roídos, do morto sobressaíam no meio do tecido. As calças, sujas e
cobertas de lama, estavam espantosamente rasgadas na altura das virilhas, embora os
rasgões se encontrassem quase totalmente cobertos por espessas nuvens de moscas que
se movimentavam febrilmente em busca de uma presa que o caçador não sabia ao certo
qual era. Finalmente, as folhas pareciam ter ajudado a cobrir pudicamente as mãos, os
braços e o peito do defunto.
Por um instante, contemplou aquele ser humano, agora à mercê de alguns
predadores que, por serem menores, não eram mais compassivos ou menos eficazes do
que ele. Então, de forma inesperada, sem qualquer aviso prévio, sentiu um enjôo cálido
e incontrolável que subia desde o ventre. Teve, primeiro, um espasmo seco que lhe
arrancou algumas lágrimas e impregnou sua testa de suor. Titubeante, aproximou-se de
uma árvore em que se apoiou subitamente mareado. Antes que tivesse apoiado os dedos
da mão sobre o tronco, começou a vomitar, tomado por irresistíveis espasmos. Podia-se
dizer que, ao expulsar todo o conteúdo de seus espasmos, se abrisse diante dele a
possibilidade de reter a vida.
TTTTTTTTrrrrrrrrêêêêêêêêssssssss
Baviera, 1787
WILHELM KOCH PASSOU A MÃO pelo queixo. Sentiu então um pequeno tufo de
pêlos mal barbeados, localizado duas ou três polegadas abaixo da têmpora. Aqueles
hóspedes inesperados e, sobretudo, indesejados arrancaram dele um ricto de mal-estar
que saltitou de seus lábios. Por alguma razão que não era fácil de descobrir — as regras
familiares, a educação com os jesuítas, um motivo cósmico etc. — não podia tolerar a
desordem nem a falta de harmonia. Era uma atitude extensiva tanto ao traçado de uma
rua quanto à limpeza de suas camisas, a uma operação aritmética bem resolvida ou à
luta implacável contra o crime. Não suportava nada que parecesse dissonante, torto, feio
ou ruim. Talvez por isso poderia ter sido arquiteto, músico ou matemático. Certamente
por isso era um policial. Ele era, e dos melhores. Dificilmente se poderia encontrar, em
toda a Baviera, um outro igual.
Ao longo de vinte anos de serviço, tudo tinha corrido bem, ou seja, de maneira
ordenada. Roubos, fraudes, violações, assassinatos... raras foram as transgressões da lei
que não soubera enfrentar com sucesso. E tudo, absolutamente tudo, era devido a seu
método. Na opinião de Koch, a questão se limitava a encontrar o ponto exato em que a
harmonia que governava o cosmos era quebrada. Da mesma forma como uma tubulação
quebrada só pode ser consertada quando se descobre o lugar onde ocorre o vazamento, o
crime exigia que se detectasse a partir de quando a ordem social foi rompida. Um pai
que não se comportava de acordo com a moral, uma mãe que esquecia suas obrigações,
filhos que passavam por cima de seus deveres filiais... e com o que nos deparávamos?
Um desfalque, um adultério, ou até um assassinato. Sim, na verdade, o trabalho de Koch
consistia em algo muito parecido com os encanamentos. Justamente por isso,
incomodava-lhe que suas camisas não estivessem devidamente passadas, as botas
impecavelmente lustradas ou o rosto perfeitamente barbeado.
O que tinha agora diante dos olhos dava a sensação de ser outro vazamento
intolerável no âmago do edifício social. Tinha se deparado com ela pedindo os
processos atrasados para rever o que estava pendente. Tudo já se achava canalizado num
aqueduto de ordem que garantia, mais cedo ou mais tarde, que acabaria sendo resolvido
de maneira segura. Tudo, a não ser o processo que agora estava aberto diante de seus
olhos. Este, em resumo, de forma intolerável, não trazia número de referência, nem
menção ao agente que o tinha começado, nem data de entrada. Era uma pasta nua,
perdida no arquivo, era cujo interior jazia o que não deixava de ser uma carta como
tantas outras, escrita com tinta preta, com traços regulares, sobre um papel grosso
embora não necessariamente caro. Mas o conteúdo era uma outra questão.
Nada nos seria mais útil do que uma história da Humanidade que fosse
adequada. O despotismo roubou a liberdade. Como os fracos podem se
defender? Só através da união, mas esta no fim das contas é rara...
Até ali, a carta apenas repetia os lugares-comuns de tantos inimigos da
monarquia e da religião. Todas aquelas besteiras sobre a liberdade, o despotismo e os
fracos. Inclusive o chamamento em busca da união. No entanto, quando se chegava a
esse ponto, aquela carta dava uma guinada importante, totalmente reveladora:
Nada pode ajudar a conseguir tudo isto além das sociedades secretas...
— As sociedades secretas... — repetiu Koch num sussurro enquanto estendia a
mão direita até uma xicrinha de café que repousava sobre sua limpa e organizada
escrivaninha.
Por um instante, limitou-se a saborear aquela beberagem preta, forte e amarga.
Não suportava o café com mel ou com açúcar. Achava que adoçá-lo era uma forma de
privar o líquido de sua força, de um vigor que acabava sendo indispensável para aclarar
sua mente. Procurou com a língua qualquer resto de café que pudesse ter ficado no
interior da boca e continuou a leitura.
As escolas secretas de sabedoria são os meios que um dia libertarão os homens
de seus grilhões. Em todas as épocas, foram os arquivos da natureza e dos
direitos do homem; e graças a elas a natureza humana se erguerá desse seu
estado ruinoso.
Koch bebeu outro gole de café e, enquanto sua boca se franzia num esgar de
desprezo, disse:
— O que é que você sabe, seu pateta, sobre o estado ruinoso da natureza
humana?
Os príncipes e as nações desaparecerão da face da terra. A raça humana se
transformará então numa família, e o mundo será a morada dos Homens
racionais.
— Da face da terra... — disse Koch, que tinha se detido naqueles parágrafos e
os repetia várias vezes como se quisesse ruminá-los.
Certamente, podem ocorrer alguns distúrbios; mas, pouco a pouco, os
desiguais chegarão a ser iguais; e depois da tempestade, virá a calmaria.
Acaso as conseqüências mais lamentáveis irão permanecer justamente
quanto os motivos de discórdia tiverem desaparecido? Homens, erguei-vos!
Koch passou a mão pela parte de seu rosto em que o barbeiro não tinha
demonstrado exatamente um excesso de eficiência. Franziu os lábios com fastio, porque
determinou que não ia se deixar distrair. Não podia se permitir isso, sem dúvida. Talvez
aquele personagem fosse simplesmente um louco - nunca se podia descartar essa
hipótese —, mas a experiência lhe dizia que a falta de juízo não só não garantia a
segurança como, não poucas vezes, era seu pior inimigo.
A Moralidade é que conseguirá tudo isto; e a Moralidade é fruto da
Iluminação. Os direitos e os deveres são recíprocos. Se Otávio não tem
direito, Catão não tem nenhuma obrigação em relação a ele.
Koch pousou a xicrinha no pires, procurando fazer com que a posição ficasse
simétrica. Em seguida, pegou uma pena de ganso que repousava, branca e inflexível, na
escrivaninha polida, e a molhou com suave energia num tinteiro gordo de prata. Depois,
escreveu numa folha de papel os nomes de Otávio e Catão. Pelo que lhe constava, eram
referências ao imperador dos romanos e ao famoso censor, não se tratava de nomes
verdadeiros, mas, ao mesmo tempo, sabia que podiam ser pseudônimos de personagens
tão tangíveis quanto a poltrona em que se encontrava sentado.
A Iluminação nos mostra quais são nossos direitos, e a Moralidade a segue;
essa Moralidade nos ensina a crescer, a nos libertarmos, a amadurecer e
caminhar sem as amarras de sacerdotes e príncipes.
Koch segurou agora a carta com as duas mãos e cravou o olhar na última frase,
"...caminhar sem as amarras de sacerdotes e príncipes... caminhar sem as amarras de
sacerdotes e príncipes... caminhar sem as amarras de sacerdotes e príncipes." Quando se
quer dominar uma sociedade, é preciso aniquilar primeiro aqueles que a governam...
Respirou fundo, verificou com enfado que não restava café na xícara e
lançando mão de uma sineta que se erguia marcialmente a algumas polegadas de sua
mão esquerda tocou-a com força. Passaram-se apenas alguns instantes e na porta maciça
do aposento se ouviram algumas pancadas curtas, como se temessem incomodar.
— Entre — disse Koch com uma voz que soou fria e carregada de autoridade.
Um rapagão de barba loura e eriçada enfiou seu rosto avermelhado pela fenda aberta
entre o umbral e a porta.
— Alguma ordem, siô? — perguntou com uma voz que pretendia aparentar
uma atitude serviçal mas que pouco conseguia.
— Mais café — respondeu Koch apontando com o indicador a xícara vazia.
— Uma xícara, siô? — indagou o jovem.
— Uma jarra — respondeu Koch — e não se demore, Steiner. Tinha que
reconhecer que a advertência carecia de sentido. Na verdade, Steiner, apesar da
juventude, constituía um verdadeiro exemplo de ordem e delicadeza. Uma ordem que
lhe dava era obedecida de maneira imediata e eficiente. Com certeza, não tinha se
enganado quando permitiu sua entrada na corporação, e ao colocá-lo perto dele.
Quando Steiner fechou a porta, Koch se felicitou pela contribuição à ordem
que o agente representava. Bem que gostaria de dedicar alguns instantes à
autocomplacência, mas teria que ser mais tarde. No momento... no momento, existiam
prioridades.
Jesus de Nazaré, o Grão-Mestre de nossa ordem, apareceu numa época em que
o mundo se encontrava na mais absoluta Desordem, e entre pessoas que
durante séculos tinham gemido sob o jugo da Escravidão. Ensinou-lhes as
lições da razão. Para agir de uma forma mais eficaz, serviu-se da Religião —
das opiniões que eram correntes naquela época — e, de uma forma muito
astuta, combinou suas doutrinas secretas com a religião popular, e com os
costumes que tinha a seu alcance. Foi justamente neles que envolveu suas
lições: ensinou através de parábolas.
Parábolas... nunca lhe teria ocorrido pensar que as parábolas contivessem um
ensinamento secreto vinculado a causas políticas. Sem dúvida, tinha que reconhecer que
a carta era, além de disparatada, substanciosa.
Jesus escondeu o significado valioso e as conseqüências de suas doutrinas, mas
as revelou com cuidado a alguns poucos eleitos. Fala do reino dos justos e dos
fiéis, do Reino de seu Pai, de quem somos filhos. Limitemo-nos a tomar a
liberdade e a igualdade como os grandes objetivos de sua doutrina, e a
Moralidade como o caminho para os alcançar, e todo o Novo Testamento será
compreensível; e Jesus aparecerá como o redentor dos escravos.
Koch não era um homem especialmente religioso. Certamente, acreditava em
tudo o que a Santa Madre Igreja ensinava e guardava minuciosamente os dias santos,
mas não poderia determinar que o que o impelia a isso era a devoção ou o desejo de que
a ordem não se rompesse. Contudo, apesar de seu pouco entusiasmo, tinha suficiente
conhecimento da religião para chegar à conclusão de que aquilo que tinha acabado de
ler não passava de puro disparate. Então, pensou com ironia, católicos e protestantes
passaram dois séculos se enfrentando em terras alemãs, em metade da Europa, do outro
lado do oceano, simplesmente porque não tinham compreendido que o cristianismo se
limitava a impelir a liberdade dos escravos... Que ridículo! Que idiota poderia acreditar
em semelhante tolice? Bem, precisava concluir aquela leitura o quanto antes.
— Sim, entre — disse quando ouviu que batiam na porta. Steiner depositou um
bule de café fumegante sobre a mesa.
— Quer que eu o sirva, siô? — perguntou solícito o rapaz de rosto
avermelhado.
Koch fez um gesto com a mão indicando-lhe que deveria sair do aposento. Um
tanto surpreso, o jovem inclinou a cabeça e cochichou algumas palavras de cortesia
antes de sair.
Pousou a carta sobre a escrivaninha, impulsionou com um movimento a
poltrona para poder se afastar do móvel em que se apoiava e ficou de pé. Notou então
que estava com as articulações inchadas, cansadas, como que dormentes. Levou as duas
mãos aos rins e esticou o tórax para trás. Em outra ocasião, teria produzido um estalo na
altura das vértebras lombares, mas agora sentiu apenas um alívio agradável e rápido.
Sorriu satisfeito quando constatou que as costas respondiam devidamente. Deu alguns
passos para contornar a mesa, colocou-se diante da jarra e serviu-se de uma nova xícara
do líquido amargo. Segurou-a com as duas mãos como se sustentasse um cálice e, por
um momento, permitiu que seu olhar divagasse pela espuma do café. Finalmente,
aproximou o recipiente dos lábios e bebeu um gole longo, quente e eletrizante que o
levou a fechar os olhos para aproveitá-lo melhor.
— Bem — disse em voz baixa. — Terminemos com isto o quanto antes.
Alguns poucos eleitos receberam as doutrinas em segredo, e elas nos foram
transmitidas — embora freqüentemente quase soterradas sob o lixo da
invenção humana — pelos maçons. As três condições da sociedade humana
estão expressas pela pedra bruta, pela pedra lascada e pela pedra polida. A
pedra bruta e a pedra lascada expressam nossa condição sob o governo. É bruta
por causa da terrível desigualdade de condição, e lascada porque já não somos
uma família e além disso nos encontramos divididos por diferenças de governo,
de classe, de propriedade e de religião; mas quando nos vemos reunidos numa
família nos vemos representados pela pedra polida. G é a Graça, a Estrela
flamífera é a Tocha da Razão. Aqueles que possuem este conhecimento são
certamente Illuminati...
Illuminati ? Koch esfregou o queixo com uma expressão pensativa. Era uma
palavra latina ou italiana? Illuminati... sim, claro, respondeu com um sorriso. Os
iluminados! Só podia ser isso. Aqueles que têm a luz que não atinge a outros e que
mostra os conhecimentos secretos são iluminados! Que coisa óbvia! Tinha custado a
encontrar o significado, mas a culpa era desse pessoal. Empenhavam-se em ser tão
retumbantes, tão pedantes, tão rebuscados que acabavam obscurecendo o trivial.
Aqueles que possuem este conhecimento são certamente Illuminati — tornou a
ler. — Hiram é nosso Grão-Mestre fictício, morto pela REDENÇÃO DOS
ESCRAVOS; os Nove Mestres são os Fundadores da Ordem. A Maçonaria é a
Arte Real, na medida em que nos ensina a caminhar sem travas, e a governar a
nós mesmos.
O olhar de Koch desceu até o pé da página e deu com uma assinatura na qual,
com toda a nitidez, podia se ler Espartaco.
— Espartaco... Veja só. Nada menos do que Espartaco. Serviu outro café e o
tomou em pequenos goles enquanto cruzava o aposento com passos tranqüilos e
pausados. Estava mergulhado nas reflexões mais profundas e, quando ocorria tal
eventualidade, a rapidez com que sua mente funcionava contrastava com a lentidão que
impunha a seus gestos. Finalmente, parou, respirou fundo e murmurou:
Lebendig, Lebendig...
QQQQQQQQuuuuuuuuaaaaaaaattttttttrrrrrrrroooooooo
França, maio de 1793
— ENFORQUEM ELES! Enforquem eles!
Quem lançava os gritos era um homem cujo rosto parecia cinzelado pelo sol do
norte da França. Avermelhado, seco, enrugado, toda a força de seu corpo endurecido
parecia se concentrar em volta de seus lábios, uns lábios fendidos que pediam morte.
— Sim, enforquem eles! — repetiu como um eco uma anciã.
— Enforcá-los? — respondeu outra voz. — A pauladas! Deviam ser mortos a
pauladas!
— Pena não termos uma... uma daquelas máquinas que eles têm em Paris —
lamentou-se um rapaz de no máximo quinze anos.
Karl deu uma olhada nos prisioneiros. Era óbvio que estavam tomados por uma
insuportável sensação de pânico. Quantos eram. Um, dois... seis. Nada menos do que
seis. E era com seis homens que o governo republicano de Paris pretendia impor seu
programa político? Com certeza, ou eles se valorizavam em excesso ou tinham uma
idéia muito pobre dos camponeses franceses. É verdade que eles impressionavam com
aquelas casacas azuis, com aquelas divisas enormes presas aos chapéus e,
principalmente, com os sabres e as pistolas, mas como lhes tinha ocorrido pisotear de
forma tão ousada os sentimentos daquelas pessoas?
— Acabem com eles! Acabem... com máquinas. A pedradas.
— Vocês têm alguma coisa a dizer — perguntou o que assumia o comando. —
Alguma decraração a fazer?
Não, não dava a impressão de que os detidos estivessem para muitas
declarações. Os cinco soldados estavam realmente apavorados — e não era para menos
— e quanto ao suboficial... era óbvio que tentava manter o ânimo, mas seu bigode
tremia de maneira incômoda. Estava, no mínimo, tão apavorado quanto seus
subordinados. Pobre infeliz!
— Dá pa saber, por exemplo — continuou o chefe improvisado — pru 'quê
vocês tinham que vir neste povoado pra queimar a igreja?
Karl teve que intuir as últimas palavras. A pergunta mal tinha chegado ao
verbo queimar quando um clamor irado, feroz, com ressonâncias de morte, preencheu o
ar espesso e quente que os envolvia.
— Sim, pru'guê?. Pru'quê? — gritavam num francês áspero, mastigado e
sombrio os habitantes do povoado.
Karl disse a si mesmo que, provavelmente, a única resposta era: por uma
mistura de defeitos humanos... soberba, orgulho, sectarismo, nevoeiro mental,
ressentimento... Tudo aquilo tinha se misturado nos corações dos soldados e, como
resultado direto, tinham decidido proclamar a liberdade universal ateando fogo na
modesta igreja do povoado. Era preciso reconhecer que não deixava de ser uma idéia
peculiar do que significava ajudar a liberdade. Para assegurá-la, acabavam com a
liberdade de culto. Era — não havia como duvidar — um dos muitos paradoxos daquela
revolução que parecia não terminar nunca. Certamente, os homens de Paris — e seus
executores de províncias — podiam emitir uma argumentação para justificar aquele ato
de destruição. Como a Igreja Católica era um instrumento de opressão, sua pulverização
— sua incineração, melhor dizendo — acabaria tendo como resultado imediato a
liberdade do gênero humano. Talvez, mas aquela liberdade conseguida a golpes de
tocha e tiros de pistola não conseguia convencer Karl. Pior: na verdade, dava-lhe uma
sensação de inquietude muito parecida com a angústia.
— Dá no mesmo. Dá no mesmo! — começou a dizer um homenzinho de uns
quarenta anos, calvo e usando um calção ridiculamente amarelo. — Se os matarmos... se
os matarmos...
— Nada de "se", Pierre — interrompeu o que tinha defendido que os
enforcassem. — Vamos matá-los. Vamos fazer com que esse pessoal de Paris receba
um castigo. Mas... o que é que eles estão pensando? Eles acham que podem vir até aqui
e nos tirar o trigo e levar nosso vinho e ainda cagar na Virgem? É isso o que eles
acham? Ah, isso não, isso não. Vamos, uma corda.
Em outras circunstâncias, Karl teria tentado argumentar com aquelas pessoas
que tinham se transformado numa massa enfurecida que gritava seus desejos de morte.
Sim, sem dúvida, teria feito isso, mas naquele povoadozinho do norte da França...
Durante meses, um pequeno grupo de advogados e jornalistas, de nobres progressistas,
de maçons, tinha empurrado a velha monarquia dos Capeto para o aniquilamento. Mas o
que tinha acontecido depois era muito diferente daquilo que a Inglaterra tinha vivido um
século antes. Não havia chegado ao poder um revolucionário piedoso como Cromwell
ou uma rainha religiosa e prudente como Ana. Não. Os novos governantes da França
estavam convencidos de que podiam mudar o país com a mesma facilidade com que um
oleiro dá a um pedaço de barro a forma que quer. Bem, talvez pudessem fazer isso em
Paris — e Karl tinha suas dúvidas — mas no campo...
— Aqui está a corda — gritou uma mulher bonita, viçosa, alta.
— Precisamos de mais — disse o homem seco com um tom de voz que
oscilava entre a reprovação pela escassez e a pressa em corrigir isso.
Demoraram apenas alguns minutos para reunir as cordas, fazer um nó
corrediço e colocá-las no pescoço dos presos. Antes que Karl conseguisse ver o que
estava acontecendo, os homens eram arrastados como se fossem cães levados pela
coleira. Levantando uma poeirada seca e amarela, saíram do povoado, enquanto
cuspiam ameaças e insultos sobre os revolucionários.
— Parem! Parem!
Karl tentou ver quem tinha dado a ordem detendo aquela massa no meio da
qual ele se movia procurando não se ver envolvido. Não conseguiu.
— Saia aí do meio, monsieur Blondel — escutou o homem seco dizer. — O
povoado vai zecutar justiça.
O povoado vai zecutar justiça... Sim, a gramática era deplorável, mas as idéias
não poderiam ser mais claras. Eles — a mulher bonita, a velha, o homem seco, os que
tinham fornecido as cordas, o rapaz que tinha desejado ter uma guilhotina... — todos
eles representavam o povoado e não iam permitir que os homens de Paris lhes
impusessem sua revolução, essa revolução que começava levando os produtos do campo
e em seguida queimava igrejas e plantava uma guilhotina na praça do lugar. À
resistência a esse plano revolucionário — libertador e cidadão, teriam dito em Paris —
eles chamavam zecutar justiça. Com certeza, nem Marat, nem Danton nem Robespierre
estariam de acordo com aquele julgamento e, certamente, teriam sérias restrições em
considerar povo aqueles que estavam dispostos a enfrentá-los.
Reiniciaram a caminhada. Karl então reparou num homem vestido de maneira
modesta, embora melhor do que o resto dos camponeses, afastado à beira da estrada.
Tinha os olhos avermelhados e o horror estampado no rosto. Devia ser o tal Blondel.
Bem que ele gostaria de sair do tumulto e lhe dizer que não se preocupasse, que tinha
feito o possível, que até tinha chegado às raias do heroísmo com seu comportamento.
Não fez isso, porque a vontade de saber onde aquilo ia dar era mais poderosa naquele
momento do que qualquer outra consideração.
— Ali... Ali!
A multidão acelerou o passo como se tivesse acabado de ouvir um ensalmo.
Karl também apertou o passo para evitar se ver envolvido. Foi assim que chegou,
suarento e sufocado, até uma esplanada. Com certeza, aquele terreno devia ser bonito
em circunstâncias normais. Era uma pradaria branda e suave que ficava muito perto de
uma pequena floresta, Sim, seguramente os aldeões deviam se reunir ali em dias de festa
para beber e se divertir. Era o lugar ideal.
— Venham! Ali mesmo!
Karl viu agora com toda a nitidez o lugar que o outro apontava. Tratava-se de
um pequeno grupo de árvores robustas, circunspectas, transpirando dignidade. Pareciam
estar esperando ali desde a aurora dos tempos para cumprirem sua missão solene e
especial, de servirem de patíbulos aos que tinham se atrevido a arrasar o que aqueles
que arrancavam seu sustento da mãe Terra consideravam mais sagrado.Quase como se
fossem um só homem, meia dúzia de lavradores atiraram as cordas até a copa das
árvores. As sogas não chegaram a tocar o chão. Antes que terminassem de cair, seis
grupos de pessoas, orquestrados como se tivessem ensaiado a execução dezenas de
vezes, apoderaram-se da ponta e começaram a puxar com todas as suas forças.
Karl observou horrorizado a maneira como os corpos dos soldados se elevavam
no ar enquanto seus rostos se congestionavam pela pressão que a soga exercia em suas
gargantas. Era duvidoso que os enforcassem. Seguramente, em vez dessa morte quase
rápida que vem determinada pela fratura da nuca, sofriam os estertores do
estrangulamento. De fato, eles se retorciam como peixes tirados da água, enquanto seus
pés se separavam do chão.
Teve a sensação de que a agonia se prolongava eternamente, mas, na verdade,
ela foi rápida. Apenas em um deles, o que parecia mais jovem, a vida pareceu resistir à
idéia de abandonar um corpo que tinha vivido pouco. A batalha estava perdida de
antemão e, além do mais, a conclusão se acelerou quando uma anciã se agarrou aos pés
do réu e puxou. Não conseguia entender a dureza daquelas mulheres que tinham
ultrapassado com folga a casa dos sessenta anos. A que poderia obedecer aquela
insensibilidade, aquela ânsia, aquela falta de piedade? Talvez não fosse possível
generalizar e cada caso acabasse sendo diferente. Para as mulheres, que tinha visto em
Paris entusiasmadas com os estragos causados pela guilhotina, talvez aquelas execuções
fossem apenas uma confirmação de que a injustiça, real ou imaginária, estava sendo
punida: aplaudiam uma espécie de eqüidade cósmica implantada sobre rios de sangue.
Para as daquele povoado, o motivo certamente era diferente: deviam estar convencidas
de que quem se atrevesse a destruir a religião, o fruto do duro trabalho cotidiano, a
família e a paz só poderia ser digno de uma morte rápida.
Contemplou por um instante os seis corpos. Sim, estavam mortos. Quanto a
isso, não havia a menor dúvida. Mesmo porque pelas pernas de suas calças, como um
testemunho sujo e humilhante, escorriam filetes de urina e excrementos.
CCCCCCCCiiiiiiiinnnnnnnnccccccccoooooooo
Baviera, 1775
STEINER SE INCLINOU SOBRE OS restos mortais do jovem. Custou-lhe muito
reprimir uma mistura de asco e mal-estar que tinha se agarrado a seu pescoço como se
fosse um cachecol de lã. Apesar dos anos de serviço que já tinha na polícia de
Ingolstadt, não conseguia controlar uma certa aversão por cadáveres. Descobrir ladrões,
vigiar suspeitos, estabelecer cada passo seguido para urdir uma fraude engenhosa e
mesmo redigir relatórios e instruir processos lhe pareciam tarefas toleráveis, aceitáveis,
até divertidas. No entanto, não conseguia se acostumar ao exame de um cadáver. Já
tinha se perguntado mil vezes qual era o motivo de sua aversão e nunca conseguia
elucidá-lo completamente. Por certo, havia o aspecto físico da decomposição da carne.
Por mais que o catecismo se referisse a ela ou a lembrasse pontualmente na celebração
da quarta-feira de cinzas, Steiner não conseguia se familiarizar com o fato de que um
corpo que ontem respirava, que até se mostrava viçoso e saudável, acabasse reduzido à
condição de carniça pestilenta. Sentia isso, sentia-o na alma, mas não conseguia se
acostumar.
No entanto, seu desconforto asfixiante e indesejável não se limitava ao aspecto
da decomposição de órgãos e músculos. Não, de forma alguma, quem dera fosse assim.
Na verdade, o que lhe causava mais desgosto era a inegável evidência de que a morte
significa um final realmente terrível e que não existia a certeza de que tudo não
terminasse no meio de vermes e de putrefação. Certamente, havia os ensinamentos
religiosos, e a afirmação do Credo sobre a ressurreição da carne, e até os diferentes
meios oferecidos pela Santa Madre Igreja para facilitar a sorte dos condenados ao
purgatório. Tudo aquilo ele conhecia e, é claro, acreditava.
O problema era que, quando se encontrava cara a cara com um cadáver, seus
sentidos se viam tão invadidos pelo cheiro de morte, pela visão da morte e pelo toque da
morte, que a fé numa vida duradoura era, talvez, não aniquilada, mas ofuscada como o
sol encoberto por um mar de nuvens cinzas e algodoadas. E, justamente quando chegava
a esse ponto, uma mistura de repugnância e mal-estar, de repúdio e desagrado,
apoderava-se dele, provocando-lhe suor nas mãos e angústia no peito.
De boa vontade ele teria se desligado da investigação dos homicídios, mas
semelhante graça não lhe foi concedida. Koch se sentia tão satisfeito com sua maneira
de trabalhar — uma faca de dois gumes, sem dúvida — que não apenas tinha se
transformado num ajudante privilegiado para seu trabalho de resolução, mas também,
em algumas ocasiões, insistia em que fosse encarregado de dar os primeiros passos.
Exatamente por causa disso, tinha agora que examinar aquele despojo sujo e carcomido
que um caçador infeliz tinha encontrado.
O homem tinha chegado tremendo ao posto de polícia e, num primeiro
momento, os agentes que o viram pensaram que ele tinha acabado de sofrer alguma
desgraça. E, até certo ponto, era verdade. Enquanto passava por terras que não eram
suas, tinha encontrado um cadáver. Em outras circunstâncias, o peso da lei teria caído
sobre ele, acusando-o de caçar furtivamente ou, pelo menos, de invasão de propriedade
privada. Agora, no entanto, aqueles detalhes estavam amenizados pela gravidade de um
homicídio. Bem, sucedera assim porque Koch tinha enviado Steiner para examinar o
corpo e ele tinha decidido que era uma perda de tempo atacar um pobre homem que
caçava lebres de forma ilegal, quando graças a ele se podia botar as mãos num
delinqüente de muito maior envergadura. Koch nunca teria aprovado essa maneira de
agir. "Por acaso devemos perdoar o transgressor menor porque existe outro maior?",
teria perguntado de forma retórica, para depois acrescentar indignado: "De forma
alguma, Steiner, de forma alguma." Mas ele encarava isso de outra maneira, e agia de
acordo com isso. Agradeceu ao homem, disse-lhe num aparte discreto que não deveria
dizer a ninguém o que estava fazendo naquele território de caça e, ato contínuo,
mandou-o ir descansar em casa.
Levantaram o cadáver na presença de um dos juízes mais experientes de
Ingolstadt, que pensava em se aposentar em menos de um ano, mas, no momento,
insistia em se manter na ativa.
— Coisa ruim — disse quando passou os olhos sobre o morto. —
Alimentaram-se do rapaz.
Não era nenhum exagero. A pancada que tinham lhe aplicado na cabeça e que,
quase com certeza, tinha ocasionado a sua morte não era nada do outro mundo. Tratava-
se do típico traumatismo que deixa claro e manifesto como é fácil obrigar um pobre
infeliz a cruzar o umbral que separa a vida da morte. Até aí, tudo estava dentro dos
limites da normalidade. O problema era quando se examinava o restante do corpo. O
pescoço, o peito e o rosto apresentavam arranhões nada desprezíveis, mas o pior era a
região que se estendia pela frente do umbigo até o início das coxas e por trás em torno
do ânus. Os animais tinham-se fartado, não havia dúvida, mas tudo parecia indicar que
alguém tinha se antecipado a eles.
— Qual a sua opinião, herr doktor3
? — perguntou o juiz quando o galeno
terminou o exame do cadáver sob os olhares atentos dos presentes.
— Pobre rapaz... — murmurou de forma quase inaudível o médico. Ninguém
podia negar a justeza daquelas palavras, mas, para falar a verdade, não esclareciam
muito a situação. Pobre rapaz, sim, mas por quê?
— Poderia ser um pouco mais... explícito? — atreveu-se a dizer Steiner.
O médico respirou fundo e, sem afastar os olhos do cadáver, começou a cevar
um cachimbo de tubo longo. Era um bonito exemplar de artesanato bávaro, com um
bocal de madeira entalhada primorosamente e um fornilho alongado de porcelana.
Devia ter lhe custado bem caro, pensou Steiner.
— Bitte4
, algum de vocês tem fogo? — perguntou o médico depois de ter
certeza de que o tabaco estava bem assentado no interior do cachimbo.
Foi o juiz quem atendeu à sua solicitação e, imediatamente, o ambiente se
encheu de uma fumaça azulada que desprendia um cheiro agradável de uma substância
que Steiner não conseguiu identificar, mas que ele agradeceu porque encobria, pelo
menos em parte, o fedor da morte.
— Eles o mataram de um só golpe. Isso é indubitável, mas... — interrompeu a
explicação para dar uma nova sugada no cachimbo — mas o mais terrível é que o crime
veio acompanhado de um comportamento... bem, recuso-me até a qualificá-lo. Um
pouco antes ou um pouco depois da morte, a vítima foi sodomizada.
— Desculpe?... — exclamou Steiner, que não tinha certeza de ter escutado
direito.
— Ele foi sodomizado — disse o médico, com a mesma serenidade com que
teria comentado que as nuvens anunciavam chuva.
— Está querendo dizer... — começou a dizer Steiner, que não conseguia dar
crédito às palavras do galeno.
— Estou querendo dizer que o assassino cometeu com este infeliz o pecado
pelo qual Deus destruiu as cidades ímpias de Sodoma e Gomorra. Mas não foi uma ação
3
Em alemão, no original.
4
Em alemão, no original.
voluntária. Violentaram o rapaz. O alargamento do ânus não deixa margem a dúvidas.
Desde já, espero que o tenham matado antes.
— E as feridas no púbis? — perguntou Steiner.
— Algumas podem ter sido ocasionadas por animais, mas tenho a impressão de
que já encontraram o trabalho bem adiantado. O assassino se fartou com as partes do
rapaz.
— O senhor acha que pode ter sido uma vingança por ele ter se recusado a se
entregar? — perguntou Steiner.
O doutor encolheu os ombros, deu uma nova sugada no cachimbo e lançou no
ar uma baforada de fumaça azulada. Desta vez não foi uma seqüência de gestos
prazerosos, mas um encadeamento de movimentos cansados, quase dolorosos.
— Talvez... talvez... — disse. — Em todo caso, depois de o matar, parece que
se deleitou em profanar o cadáver.
Um silêncio incômodo desceu sobre o aposento. Dava a impressão de que
nenhum dos presentes queria estar ali, de que teriam dado alguma coisa valiosa para
poderem se livrar da obrigação de examinar o cadáver. Sentiam-se surpresos diante de
uma manifestação da maldade humana que ultrapassava aquilo que estavam
acostumados a presenciar em seu papel de médico, juiz ou policial.
— O assassino deixou alguma pista? — quebrou finalmente o silêncio Steiner.
— Quer dizer, cabelos, um botão, um pedaço de roupa...
— Absolutamente nada — respondeu o médico. — Quase... quase dá a
impressão de que se preocupou em apagar qualquer pista depois de matar e sodomizar o
rapaz. Ou então era um fantasma...
— Ora, vamos! — protestou o juiz quando ouviu as últimas palavras. — Tudo
isso já é bastante complicado em si para que o senhor se dedique a brincar com as
palavras.
Um fantasma, repetiu mentalmente Steiner. Definitivamente, nada daquilo iria
agradar a herr Koch.
SSSSSSSSeeeeeeeeiiiiiiiissssssss
Baviera, 1787
MAIS DE UMA VEZ, mais de duas, mais de uma centena, Koch tinha se
perguntado por que Lebendig e, principalmente, a casa de Lebendig não lhe
provocavam nenhuma sensação de mal-estar. E isso apesar de que, sem nenhuma
espécie de dúvida, nunca tinha conhecido ninguém tão desorganizado quanto ele. Não,
nem antes nem depois que cruzara seu caminho ele tinha tido oportunidade de ver
alguém semelhante. Era curioso mas, para dizer a verdade, suas vidas nunca teriam se
cruzado se não fosse por aquele padre bêbado. Sim, bendito padre bêbado.
Tinha chegado numa manhã, fazia nove anos, sufocado e furioso, afirmando
que desejava recuperar alguns papéis pessoais que andavam em poder de um tal
Lebendig. Durante alguns minutos, o policial que o atendia o ouvira com enorme
interesse, quase com devoção — se fosse possível usar essa expressão de uma forma
que não soasse imprópria —, mas não tinha demorado a perceber que aquele homem
dizia apenas incoerências e que nada indicava que tivesse sido objeto de algum ato
punido pela lei. Foi nesse momento que, alegando que o caso que lhe expunha requeria
uma pessoa mais importante, tinham-no encaminhado para ele.
Koch tinha precisado apenas de dois minutos para compreender que o clérigo
em questão se sentia enormemente ofendido e que transpirava desejos de vingança por
cada poro da pele. O máximo que podia se perceber, no entanto, era que um sujeito
chamado Lebendig tinha dado dinheiro ao padre em troca de que escrevesse em alguns
papéis. Pensou imediatamente que devia se tratar de um analfabeto necessitado de um
copista. Havia-os — tanto uns quanto outros — aos montes em Ingolstadt.
— Tratava-se de alguma carta para a noiva ou a mãe? — perguntou Koch ao
ébrio sacerdote.
— Não — respondeu acalorado. — Não, não, não. Ora essa! Ele me fazia
escrever... só isso.
— Ah, sim — disse Koch respirando fundo —, mas isso, padre, se me permite
dizer, não é um crime.
O sacerdote passou os dedos pelo rosto como se quisesse arrancar alguma coisa
muito grave que tivesse ficado agarrada à sua pele.
— Calma, calma, é que... Bem, primeiro, ele me fez escrever. Nada em
especial. O que eu quisesse. E eu escrevi. Eu escrevi! Modéstia à parte, posso dizer que
desde meus tempos de seminário poucas pessoas tiveram uma letra melhor do que a
minha. E assim era. Não ficaria bem eu negar isso...
Koch concordou com a cabeça, enquanto se perguntava mentalmente quanto
tempo seria capaz de suportar aquela história.
— Então ele me manteve escrevendo um tempinho. Não muito. Um tempinho.
— Um tempinho — repetiu Koch, procurando lhe dar segurança.
— Mas depois começou a me dar bebida — continuou o padre com uma
mistura de arrependimento e raiva na voz.
— À força? — perguntou Koch, embora tivesse consciência de que a pergunta
era totalmente desnecessária.
— À força? Bem, não... não acho que se possa dizer que ele tenha me forçado.
Não, na verdade ele não fez isso mas...
— Mas... — repetiu Koch, tentando ajudar o clérigo a continuar seu relato.
— Mas olhou minha letra, sim, olhou minha letra e disse: "Estupendo,
estupendo, o que eu pensava."
— "Estupendo, estupendo, o que eu pensava" — repetiu Koch sem tirar os
olhos do clérigo.
— Isso, ele disse isso. "Estupendo, estupendo, o que eu pensava." Então me
avaliou outro tempinho e, de repente, saiu do aposento, voltou ao final de outro
tempinho e me disse: "Sinto muito, padre, mas acabam de me dizer que o telhado de sua
igreja acaba de desabar."
— Uma desgraça — pensou em voz alta Koch.
— E como, e como! O senhor poderia jurar — disse com os olhos abertos
como pratos o sacerdote. — Naquele momento, é claro, eu tentei me levantar, partir, ir
embora. O senhor me diga. Com a paróquia em ruínas, que outra coisa eu podia fazer?
Koch concordou mas não abriu a boca. Ou o padre estava louco de se internar
ou estava prestes a chegar ao cerne da questão.
— Mas quando tentei me levantar, esse... esse Lebendig pôs a mão em meu
ombro e me disse: "Padre, eu lhe suplico, escreva alguma coisa. O que for, mas escreva
alguma coisa."
— E o senhor escreveu?
— Claro... claro que sim. Não vou esconder. Escrevi. E então... aí vem o pior...
O sacerdote se apoiou na mesa, aproximou o rosto do de Koch e, ao mesmo
tempo era que lhe lançava uma baforada de álcool que o policial achou insuportável,
disse:
— Ele leu o que eu tinha escrito e disse: "O que eu imaginava." O senhor
ouviu? Ele disse: "O que eu imaginava!" Naturalmente, eu aproveitei que ele estava
lendo o papel para começar a correr até minha paróquia...
— Naturalmente — concordou Koch.
— Bem, pois cheguei à minha paróquia e o senhor sabe o que estava
acontecendo?
— Não faço a menor idéia — respondeu o policial.
— Pois nada — disse o clérigo —, nada. Nada! A igreja estava como sempre
esteve. Sem uma rachadura.
Koch se recostou no espaldar de sua cadeira quando escutou aquelas palavras.
Naturalmente, toda a história podia ser falsa, mas, se não fosse, o que ele tinha pela
frente exatamente? Uma zombaria com a religião? Não, ninguém tinha perpetrado
qualquer escárnio contra Deus, a Virgem nem contra nenhum santo. Uma fraude? Pelo
contrário. O padre em questão era quem tinha recebido o dinheiro. Era verdade que a
história do teto da paróquia era falsa, mas isso não podia ser considerado um crime. Em
outras circunstâncias, Koch teria prometido ao sacerdote ocupar-se do caso e, ato
contínuo, teria tratado de arquivá-lo, mas alguma coisa lhe dizia que o tal Lebendig era
um personagem peculiar, tão peculiar que podia interferir na ordem, impoluta e perfeita,
que caracterizava a tranqüila cidade de Ingolstadt.
— Não se preocupe, padre — disse por fim. — Dê-me o endereço desse
personagem e eu, pessoalmente, vou me ocupar de perguntar o que houve.
Um sorriso de felicidade paralisou o rosto do clérigo quando ouviu aquelas
palavras. Sem dúvida, já estava quase convencido de que ninguém o atenderia. E agora,
agora aquele policial tão atencioso, tão ponderado, tão diligente ia lhe dar atenção. Foi
embora feliz, risonho, quase entusiasmado. Tanto que resolveu comemorar isso
entrando na primeira taberna que cruzou seu caminho.
Koch não agiu imediatamente. Deixou passar uns dois dias e, finalmente, foi
até a casa do tal Lebendig. Ele morava num prédio não muito antigo de uma área quase
próspera da cidade. Com apenas algumas varas a mais, sua casa estaria numa área
invejável. De onde se encontrava, tinha apenas que andar alguns minutos para se
defrontar com algumas das pessoas mais necessitadas de Ingolstadt.
O policial alisou o queixo enquanto corria os olhos pela entrada do prédio,
depois respirou fundo e atravessou o umbral. Um cheiro de comida, não exatamente
agradável, invadiu suas narinas enquanto subia os degraus. Não se poderia dizer que a
escada estivesse suja, mas Koch teve a sensação de que aquele lugar não contava com
toda a limpeza necessária. Era como se os vizinhos não tivessem um interesse especial
em manter a dignidade, embora também não se pudesse acusá-los de sujos. Sem deixar
de olhar as paredes e os degraus, chegou até o andar onde o padre tinha dito que aquele
estranho indivíduo morava.
— Herr Lebendig? — perguntou quando abriam a porta.
— Sim, herr — respondeu a mulher cuja silhueta aparecia no umbral, ao
mesmo tempo em que acompanhava sua breve resposta com um movimento ligeiro de
cabeça.
— Gostaria de vê-lo — disse Koch num tom correto, mas que deixava claro
que não aceitaria uma negativa.
— Espere, bitte — disse a mulher enquanto fechava a porta.
Koch ouviu alguns passos no interior, suficientemente quietos para afastar a
hipótese de que alguém quisesse fugir à ação da justiça. Ao fim de alguns instantes, a
porta voltou a se abrir, confirmando seu ponto de vista.
— Entre, bitte.
A mulher foi na frente, ao longo de um corredor peculiar. Não era estreito
demais e também não estava mal iluminado, mas num de seus lados estava apoiada uma
estante comprida repleta de livros. Livros! Para que o morador daquela casa podia
querer tantos livros? E, sobretudo, como é que o padre não lhe tinha dito nada a
respeito?
A pergunta lhe pareceu ainda mais obrigatória quando ele desembocou,
seguindo a mulher, numa saleta. Em outra casa, aquele cômodo estaria ocupado por
diversos móveis. Um aparador onde expor melhor a baixela, cadeiras, talvez umas duas
mesas, e até um piano ou um cravo... No entanto, aquela saleta também estava tomada
pelos livros. Abarrotavam as estantes das paredes, mas também se remoinhavam - sim,
remoinhar-se era a palavra apropriada - pelo chão do aposento. Ao mesmo tempo em
que reprimia um calafrio, Koch pensou que aquelas montanhas formadas pelos volumes
lembravam os tufos de ervas daninhas que abarrotam um jardim malcuidado.
— Sente-se, herr — disse a mulher, mas Koch demorou alguns instantes para
localizar algum lugar em que pudesse colocar suas nádegas.
Encontrou-no numa cadeira minúscula colocada entre duas pilhas de livros
quase tão altas quanto o assento. Ocupou-a e, ao se sentar, percebeu que aquela
desordem tinha lhe provocado uma desagradável transpiração na palma das mãos. Tirou
de sua manga direita um lencinho e as secou, enquanto se perguntava que crimes uma
pessoa tão desorganizada chegaria a cometer.
— Em que posso servi-lo?
SSSSSSSSeeeeeeeetttttttteeeeeeee
Paris, 24 de julho de 1794
KARL LEVANTOU O OLHAR PARA O CÉU. Ele continuava cinzento, plúmbeo,
asfixiante. Não parecia que fosse descarregar uma só gota que pudesse aliviar aquela
escuridão. Pena. Nesta Paris da Revolução, onde a sujeira, a fome e a violência se
alternavam com a lei de suspeitos e as execuções diárias, teria agradecido pela chuva.
Passou a mão pela testa para retirar o espesso suor que a cobria. Foi então que seus
olhos, fatigados e aborrecidos, detiveram-se na lareira. Tinha se transformado numa
cavidade enegrecida, suja e, talvez, obstruída. Só Deus sabia ao certo o tempo que devia
fazer desde que a tinham acendido pela última vez. Graças a Ele, era verão. Sem dúvida,
ninguém podia negar que os revolucionários estavam conseguindo a igualdade. Por
baixo, claro, mas igualdade afinal de contas, e para a imensa maioria da população. Em
toda a França.
Quarenta e oito horas depois de terem cortado a cabeça do desafortunado
Capeto, tinha-se proclamado a Convenção. Já não havia monarquia, nem mesmo
limitada por aquilo que os filósofos chamavam de Constituição. Àquela altura Karl
tinha certeza de que a ação da guilhotina não ia parar em Luís XVI. Depois seria a vez
dos familiares próximos ao rei decapitado. Seria fácil justificar mais umas tantas dúzias
de execuções alegando-se que assim se arrancava pela raiz a planta perniciosa da
monarquia, que a liberdade do povo exigia isso, que à luz da razão, e que blá-blá-blá.
Sim, ele conhecia de sobra todo aquele palavrório revolucionário. Conhecia-o inclusive
antes que saísse à luz, difundido pelos jornais e outros meios. Tinha certeza de que se
tratava apenas do primeiro passo. Porque depois viriam os aristocratas (por acaso não
eram parentes dos reis?), os antigos funcionários (por acaso não tinham servido aos
reis?), os clérigos (por acaso não tinham abençoado os reis?), os militares (por acaso
não tinham defendido os reis?), os professores (por acaso não tinham ensinado a
obediência aos reis?), os juízes (por acaso não tinham aplicado as leis dos reis?) e os...
só Deus sabia onde os revolucionários iriam parar em seu plano de criar uma nova
sociedade. Lamentavelmente, ele não tinha se enganado.
Não pôde suportar por mais de um mês a voragem revolucionária. O assalto às
igrejas, o confisco de edifícios, o saque ao comércio, os insultos aos clérigos ou
simplesmente aos que não andavam maltrapilhos pela rua... não, não podia tolerar por
mais de alguns dias nem isso nem o insuportável, pedante e vazio palavrório
revolucionário. Com frio, chuvas e vento, abandonou Paris pensando no fato de que ele
deveria estar em algum lugar, mas que com toda aquela confusão e desordem não
conseguiria localizá-lo facilmente. Sua saída da capital não teve, portanto, caráter
definitivo. Era uma retirada estratégica, fadada a um retorno assim que a situação se
desanuviasse.
A situação não se desanuviou. Pelo contrário: à medida que adentrava no
território francês, Karl foi vendo que seus piores vaticínios se cumpriam. Se em alguns
povoados os camponeses, animados pelos agentes de Paris, queimavam os registros de
propriedade, apossavam-se das terras, arrasavam as igrejas e assassinavam os patrões,
em outros esses mesmos camponeses defendiam de peitos nus as capelas, enfrentavam
com foices e forcados os fuzis dos sans-culottes, e transformavam numa guerra santa a
preservação de suas terras, suas igrejas e seus lares. Para uns, tratava-se de criar um
mundo novo; para outros, de preservar o seu universo — o que tinham erguido ao longo
de gerações com o suor de seus rostos e seus braços — e nessa luta não se concederiam
quartel. Era difícil prever quem venceria a peleja mas, com toda certeza, quando ela
terminasse os rios de sangue teriam se transformado em oceanos.
Algumas pancadas na porta arrancaram Karl de suas reflexões sombrias.
— Cidadão, cidadão... está aí?
— Sim, cidadã, o que você quer? — respondeu procurando dar a suas palavras
um tom de naturalidade.
— Abre, que eu lhe conto.
Karl se levantou do catre onde estava deitado e foi até a porta. Abriu-a com
dificuldade por causa da mistura de sujeira e ferrugem que a emperrava.
— Diga-me, cidadã — disse Karl.
A mulher não disse uma só palavra, mas deu um empurrão em Karl e, depois
de abrir caminho de uma forma tão específica quanto mal-educada, andou até a metade
do cômodo.
— É melhor eu fechar — explicou em voz baixa enquanto empurrava a porta.
O brilho que saía dos olhos miúdos da mulher disparou no íntimo de Karl um
sinal de alerta. Parecia óbvio que ela queria alguma coisa e, ou ele estava muito
enganado, ou não iria sair de graça.
— Veja, cidadão — começou a dizer enquanto um sorriso viscoso se juntava
ao brilho inquietante de suas pupilas —, eu... eu conheço alguém...
Fez uma pausa e piscou para ele o olho esquerdo. Era, sem dúvida, um sinal de
cumplicidade, mas Karl não conseguiu saber a que ele podia se referir. Por isso achou
mais sensato manter silêncio e esperar que a "cidadã" lhe dissesse de uma vez o que
queria.
—...conheço alguém que... que tem leite... leite e ovos... bem, poderia até
conseguir um frango...
Karl procurou controlar todos os músculos de seu rosto, embora, certamente, a
idéia de poder comer um ovo, e nem digamos um pedaço de frango, tinha-lhe provocado
um verdadeiro terremoto dentro do peito.
— Você é muito sortuda, cidadã — comentou com frieza.
— Ora, vamos! — disse com voz de fastio, ao mesmo tempo em que lhe dava
uma cutucada. — Com certeza você tem fome, cidadão.
Pela segunda vez desde que a mulher tinha batido na porta, Karl pressentiu o
perigo. Era uma coisa difícil de explicar, mas tão inegável quanto a exalação de um
cheiro fétido ou uma corrente de ar.
— Necessito comer como todos os cidadãos — respondeu, preservando-se
muito de dizer que tinha fome — ...cidadã.
Sim, pensou, essa era a melhor resposta que podia dar. Constava que estavam
prendendo pessoas simplesmente por se queixarem de que não havia pão. Não tinha a
menor vontade de que aquela mulherzinha, inimiga de morte da água e do sabonete,
denunciasse-o por dizer que tinha fome, em outras palavras, por propaganda contra-
revolucionária.
Uma sombra de inquietação pousou sobre o rosto da mulher. Mau negócio, se
ela não esperava essa resposta. Claro que também não lhe convinha que ela chegasse à
conclusão de que ele abrigava alguma suspeita.
— Cidadã — disse Karl —, se o que você me oferece é legal, se nossa
Convenção autoriza, continue falando, porque eu sou um republicano leal e não estou
disposto a permitir nenhuma deslealdade. Nenhuma, cidadã.
A inquietação deu lugar ao pânico no rosto na mulher. Sim, não havia dúvida
de que ela tinha ficado assustada. Agora era ela que tinha medo de ser denunciada. Karl
disse para si que era um belo universo de liberdade e sabedoria aquele que os jacobinos
estavam construindo. Ninguém se atrevia a confiar em ninguém e todos desconfiavam
de todos. As palavras cidadão e cidadã, isso sim, não lhes saía da boca.
— E então, cidadã? — insistiu com firmeza Karl, que desejava livrar-se o
quanto antes daquela criatura malcheirosa.
— É... é legal, claro, cidadão — respondeu num tom trêmulo. — Posso lhe
oferecer...
Concluiu a frase aproximando seus lábios do ouvido de Karl.
— ...e por apenas...
Karl refletiu por um momento. Em situações normais, aquela oferta teria sido
considerada um verdadeiro roubo, capaz de mobilizar as massas para assassinar o
vendedor. Mas isso tinha sido na época da odiosa monarquia. Agora, era preciso
reconhecer que parecia barato demais para ser verdade.
Agarrou o pulso esquerdo da mulher e o apertou com força. Não pôde evitar
uma ânsia de compaixão. Ela não passava de um punhado de ossos fracos e finos
envoltos apenas por uma pele prematuramente envelhecida.
— Se o que você pretende é contra-revolucionário — disse, arrastando as
palavras —, se vai contra a república, não descansarei até que sua cabeça role como a
do Capeto. Entendeu bem... cidadã?
Com as feições desfiguradas, a mulher concordou.
— Quando?
— Agora... agora mesmo, se quiser... — balbuciou assustada.
— Então vamos — disse Karl.
Ajeitou a desgastada casaca enquanto desciam os degraus da suja escada de
madeira. Podia compreender que não houvesse comida, que o sabão escasseasse, que a
roupa, qualquer roupa, tivesse se transformado em artigo de luxo, mas que motivo
poderia justificar o fato de não limparem uma escada? Talvez, disse para si, a pessoa
encarregada dessa tarefa tivesse decidido que era uma demonstração de servidão que
deveria ser combatida. Bem, que magnífico, porcos mas livres. Seguramente algum
desses filósofos — intelectuais, como gostavam de chamá-los — que tanto abundavam
na França acabaria escrevendo um ensaio intitulado "A imundície como expressão da
liberdade". Não: da liberdade, não. Da liberdade cidadã.
Um cheiro desagradável de couve arrancou-o de seus pensamentos, avisando-o
de que se achavam perto da cozinha e, portanto, a alguns passos da rua. A mistura de
cheiro de sujeira, de verdura cozinhando e de suor era tão pesada que Karl sentiu um
alívio momentâneo quando se viu do lado de fora da hospedaria. Bem que gostaria,
inclusive, de parar um pouco para respirar fundo o ar da manhã, mas a mulher tinha
começado a descer a rua numa velocidade que ninguém poderia imaginar.
Floreal5
... Karl se virou e observou uma mãe preocupada em evitar que seu
filho de... seis?... sete anos?... atravessasse a rua sem olhar. Floreal... um dos nomes
trazidos pela revolução. Como se chamaria aquele menino, na verdade? Jean? Pierre?
Paul? Com certeza, teria o nome de algum apóstolo, de algum personagem das
Escrituras, de algum santo medieval, ao menos. Mas esses nomes já não eram
permitidos. Indicavam falta de lealdade à república dos cidadãos. Agora tinham que se
chamar Heliotropo ou Frutidor6
... ou Floreal. Não havia problema para os recém-
nascidos, mas aquela pobre criança... com certeza, no começo não entendia por que
tinha passado de uma coisa a outra sem aviso prévio. Por um momento, Karl não
conseguiu reprimir um sorriso. No entanto, não podia se distrair. Não enquanto
estivesse com a mulher. A pobre velha estava tão empenhada em não ser descoberta que
qualquer policial acostumado teria percebido que tinha a intenção de realizar um ato
ilegal. Pensou nesse momento em abandoná-la e pegar um caminho diametralmente
oposto, mas, por fim, disse a si mesmo que era pouco provável que houvesse muitos
agentes da ordem naquela Paris dos cidadãos. Certamente, alguém teria tentado se juntar
aos novos donos da rua, seria o natural, mas daí a conseguirem ia uma distância nada
pequena. Apertou, portanto, o passo para alcançar a mulher e disse a si mesmo que,
hoje, talvez pudesse proporcionar a seu corpo algo realmente substancioso. Se
conseguisse isso, poderia classificar o acontecimento de uma autêntica revolução.
5
Floreal: oitavo mês do calendário republicano francês, cujos dias primeiro e último
coincidiam, respectivamente, com o 20 de abril e o 19 de maio.
6
Frutidor: décimo segundo mês do calendário republicano francês, de 18 de agosto a
16 de setembro.
OOOOOOOOiiiiiiiittttttttoooooooo
Baviera, 1775-1776
STEINER SE INCLINOU, melancólico e meditabundo, sobre a caneca de cerveja.
Em outra ocasião, teria se preparado para dar conta rapidamente daquele líquido
dourado e espumante, mas agora seu estado de espírito dificilmente poderia ser pior.
Fazia várias semanas que vinha alternando suas tarefas cotidianas — que, para falar a
verdade, não eram poucas — com algo tão volátil e difícil de encontrar como um
suposto sodomita assassino. Aí é que estava! Como se fosse pouco complicado
descobrir alguém que tinha acabado com a vida do próximo, ainda por cima neste caso
tinha que ser um invertido. Podiam também andar atrás do rastro — se é que existia —
de um ladrão zarolho, de um estuprador de vista curta ou de um vigarista de cabelo
branco... Bem que gostaria de não estar naquela enrascada, mas era óbvio que fugir ao
cumprimento do dever — e o dever eram as ordens firmes e categóricas de herr Koch
— estava muito além de sua capacidade.
A morte e sodomização — ou a sodomização e morte — daquele jovem, que
um desavisado caçador furtivo encontrou certa manhã enquanto perseguia um filhote de
lebre, tinha se transformado numa pesada armadilha para a mente metódica e
impregnada de sentimento de justiça de seu superior. Era óbvio que, como em tantos
outros casos anteriores, o desejo que o dominava era o de recompor a ordem rompida
pelo crime. Até aí tudo era normal, mas agora a missão estava se revelando mais difícil
do que o habitual. E isso porque, tal qual o médico tinha informado, nem no cadáver
nem no local onde ele tinha sido encontrado se tinha detectado o menor vestígio
suscetível de conduzir até o assassino ou que permitisse, ao menos, estabelecer a
identidade da vítima.
Durante as semanas seguintes, Steiner tinha se dedicado a percorrer os
arredores da floresta, perguntando a todos aqueles que estiveram a seu alcance e,
certamente, a todas as pessoas que fizeram o possível para não serem interrogadas.
Velhos e crianças, religiosos e leigos, homens e mulheres, camponeses e artesãos. Tinha
interrogado a todos, mas não tinha obtido informação de ninguém. A julgar pela
investigação, não havia testemunhas oculares do crime, e o máximo que Steiner
conseguiu foi que uma velha com o rosto transformado num verdadeiro canteiro de
rugas se benzesse horrorizada ao ouvir suas perguntas.
— A senhora sabe de alguma coisa, vovó? — tinha perguntado com alguma
esperança de que, afinal, pudesse fincar o pé em algum terreno menos movediço.
— Meu filho — respondeu a mulher —, já se sabe aonde as más companhias
podem levar, e para quem fica em casa em segurança nunca acontece nada de mau...
Não houve jeito de lhe arrancar nem mais uma frase, e Steiner ficou se
perguntando durante meses se a lacônica anciã estava emitindo um juízo categórico
sobre o morto ou se o advertia para se manter à margem daquela história, ou as duas
coisas ao mesmo tempo, ou simplesmente nenhuma delas. No fim das contas, por mais
que Steiner se esforçasse, ninguém conseguiu informar quem era aquele a quem um dia
tinham arrancado a vida e submetido a uma cerimônia perversa. Ninguém tinha
presenciado nada. Ninguém tinha visto ninguém. Ninguém tinha a menor idéia de nada.
Era como se um autêntico furacão de silêncio e esquecimento tivesse soprado sobre
aquele cadáver martirizado, arrastando qualquer fiapo mínimo que pudesse ajudar no
esclarecimento do caso.
— Tudo parece indicar que não vamos conseguir nenhuma testemunha ocular
— disse Koch numa manhã de segunda-feira, logo depois de tomar um generoso gole de
café.
— E agora? — atreveu-se a perguntar Steiner. — Quer dizer, qual deve ser o
rumo da investigação...
— Não se deter e seguir em frente — respondeu seu superior com um sorriso
paternal. — Se você está voltando do campo de carroça, despenca uma tempestade e
você fica atolado no caminho, você procura chegar até a cidade do jeito que for ou fica
esperando que um arcanjo venha tirar as rodas da lama?
Steiner disse a si mesmo que, se a carroça tivesse alguma cobertura, certamente
ele ficaria quietinho ali dentro esperando que a chuva parasse, mas já conhecia seu
chefe o suficiente para imaginar a resposta que ele esperava.
— Seguiria em frente — respondeu, procurando aparentar uma segurança que
absolutamente não tinha.
— Pois é isso mesmo que vamos fazer — afirmou Koch.
Sim, Steiner concordou, mas continuar exatamente por onde? Porque, no que
lhe dizia respeito, dificilmente poderia estar se sentindo mais desorientado.
— Descartadas as testemunhas oculares — disse Koch, como se corresse em
auxílio do naufrágio interior de Steiner —, devemos nos direcionar para a localização
dos possíveis criminosos. Obviamente, tanto se se tratar de um quanto de vários, o lugar
adequado para os encontrar é em algum desses antros onde se reúnem os perpetradores
daquele pecado que levou Deus a afundar Sodoma e Gomorra numa chuva de fogo e
enxofre.
— Desculpe, herr — disse um Steiner ainda mais inquieto, depois de escutar
aquelas palavras. — Onde se pode imaginar que vou encontrar essas pessoas? Quer
dizer... desculpe minha ignorância, mas... existem bordéis para sodomitas ou... ou
podem ser encontrados de alguma outra maneira?
— Steiner, pensei que soubesse mais sobre a vida — tinha respondido Koch
um tanto incomodado, enquanto tornava a encher de café a fina xícara de porcelana.
— Sobre a vida, sim — respondeu Steiner com uma voz encharcada de
ingenuidade —, mas de homens que gostam de homens... bem, confesso que não sei
nada sobre isso. Sei que eles existem, claro. Ouvi falar disso algumas vezes... Até
conheço algumas piadas sobre esse assunto, mas a verdade é que nunca os encontrei.
Koch pousou o olhar sobre seu ajudante. Não era um olhar impregnado de
amabilidade, mas Steiner não saberia dizer se nele prevalecia a desaprovação, o
desgosto ou a simples contrariedade. Durante alguns segundos, o ajudante esperou que
seu superior explicasse o que estava pensando. Foi, infelizmente para ele, uma espera
infrutífera.
— Steiner — disse Koch por fim —, talvez você não esteja tão desorientado.
Siga por esse caminho.
Por qual caminho?, perguntou-se Steiner enquanto saía do gabinete de seu
superior e se preparava para sair às ruas de Ingolstadt à procura de uma pista que
pudesse ajudar a esclarecer um crime horrendo.
Durante os dias que se seguiram, Steiner experimentou uma verdadeira agonia.
Primeiro, socorreu-se com um pároco a quem deixou claro que não pretendia que ele
quebrasse o segredo da confissão, mas lhe agradeceria se ele o orientasse naquele tema.
O sacerdote — que, obviamente, não chegou a entendê-lo de maneira adequada —
expulsou-o de seu escritório com muita raiva, ao mesmo tempo em que lhe perguntava o
que ele estava pensando sobre seus paroquianos. Steiner não tinha imaginado nada.
Queria apenas um pouco de orientação. O passo seguinte o levou até o médico que tinha
examinado o cadáver do pobre rapaz.
— O que o senhor deseja saber exatamente, herr Steiner? — perguntou o
Galeno, olhando-o de maneira inquisitiva por cima de suas lentes redondas e reluzentes.
— Pois eu...
Não chegou a dizer mais nada.
— Sabemos muito pouco sobre a inversão sexual — disse o médico. — Sem
dúvida, é um comportamento antinatural, porque se todos o seguissem a espécie se
acabaria, mas ainda desconhecemos o que é que impele alguém a se comportar de forma
tão contrária àquilo que somos.
— Isso não me interessa muito... — atreveu-se a dizer Steiner, temeroso de que
o médico o transformasse em ouvinte solitário de uma explanação sobre a sodomia... —
na verdade, eu...
— Pessoalmente — começou a dizer o doutor sem dar a menor importância às
palavras do policial —, acho que obedece a diferentes causas. Certamente, há o
conhecimento dos prazeres da carne dessa maneira e a dificuldade para os orientar
depois de maneira natural, e podemos acrescentar a isso a falta de mulheres quando se
está na prisão ou em alto mar, o fastio de algumas pessoas já muito entregues à
depravação...
— Herr doktor — levantou a voz Steiner, disposto a se salvar da lição
professoral —, sem dúvida tudo isso é interessante... para o senhor e para outros sábios,
mas eu... bem, eu me contentaria em saber onde poderia encontrar essas pessoas dadas
a... essas práticas.
A verdade é que fazia muito frio quando a porta do embaraçado médico se
fechou às suas costas e Steiner se encontrou na rua sem saber uma vírgula a mais do que
o que conhecia ao entrar na casa.
E aquilo foi apenas o início de suas aflições. Os policiais mais veteranos
olhavam para ele com estranheza quando ouviam a pergunta, as prostitutas riam em sua
cara, uma delas inclusive disparou se ele sabia bem o que estava fazendo (e o que ela
pensava que ele estava fazendo?), e até sua própria esposa começou a se inquietar por
causa daquela dedicação a um assunto tão espinhoso.
— Gretchen — disse quase irritado —, trata-se de uma investigação como
qualquer outra.
Gretchen, que, como uma esposa perfeita, nunca o contestava, também não o
fez dessa vez, mas por sua expressão Steiner deduziu que não tinha conseguido
convencê-la. Também não quis insistir sobre o que poderia estar passando por sua
cabeça. Fazia muitos anos que estavam juntos e tinham três filhos encantadores para
agora se atreverem a azedar seu casamento simplesmente porque herr Koch tinha lhe
encomendado a missão de encontrar uma agulha — bastante esquisita, sem dúvida —
num palheiro.
Durante aqueles meses, Steiner alimentou algumas vezes a esperança de que
tudo se dissipasse como uma tempestade de verão. Talvez tudo acabasse sendo
descoberto casualmente — como acontece muitas vezes no curso de uma investigação
policial —, talvez o assassino, crivado pelo remorso, acorresse para confessar seu crime
às dependências da polícia de Ingolstadt, talvez herr Koch se esquecesse de tudo,
absorvido na resolução de violações da lei igualmente graves. Semelhante desejo foi
desmentido várias vezes. Se estavam atrás de um ladrão de gado, atrás de um
falsificador de moedas, ou atrás de um falsificador, herr Koch sempre encontrava o
momento apropriado para lhe perguntar pelo andamento de suas investigações a respeito
do misterioso assassinato da floresta. Nessas horas, Steiner sentia uma aflição imensa e
uma vergonha igualmente considerável se apoderava dele. Numa dessas ocasiões, esteve
até a ponto de começar a chorar. Conteve-se, porque pertencia à corporação da polícia...
mas não por falta de vontade.
Agora, sentado na taberna, não podia evitar de se sentir oprimido pela
infelicidade. Se não tivesse uma família para sustentar — quem sabe? — já teria
abandonado aquela ocupação sagrada a que tinha entregado tantos anos de sua vida.
Aproximou a caneca de cerveja dos lábios, tomou um gole que lhe pareceu amargo
como o fel e deu um suspiro.
— Pretende me cobrar tudo isso por uma camisa, herr Heide? - ouviu o que
dizia a mulher do taberneiro.
— Foi o que combinamos... — respondeu uma voz esganiçada que levou
Steiner a voltar o olhar até o lugar de onde ela vinha.
— Olhe, não me lembro disso, Herr Heide — respondeu a bojuda taberneira —
, mas o trabalho... ele deixa muito a desejar... olhe, olhe só o acabamento...
— O que é que tem meu acabamento? — perguntou indignado o homem de
vozinha aguda. — Frau Muller...
Mas Steiner não estava absolutamente interessado na disputa sobre a camisa ou
na forma, menos ou mais adequada, como o tal Heide poderia tê-la rematado. O que lhe
interessava era sua aparência. Tratava-se de um velhote enfeitado, de baixa estatura,
pele avermelhada — de fato, ia assumindo uma cor mais intensa à medida que a
discussão avançava — e cabelos imaculadamente brancos. Até aí tudo parecia normal,
mas a forma como mexia as mãos, o timbre vocal...
O policial esperou pacientemente que a senhora Muller encerrasse a discussão
com herr Heide. A disputa acabou quando o homem parecia a ponto de morrer de uma
congestão. Talvez o medo de que ele caísse fulminado em seu estabelecimento tenha
sido o que acabou convencendo a estalajadeira a pagar e dar o assunto por encerrado.
Depois, empinando o queixo num gesto de indignação mais ou menos sincero, o tal
Heide tinha se encaminhado para a porta e deixado o local.
Steiner, movido por aquilo que alguns chamam de instinto, mas que, com toda
a certeza, é apenas a experiência acumulada, adiantou-se até o balcão, pagou e
atravessou a soleira. Chegar até a rua e olhar para um lado e para o outro da calçada lhe
custou apenas alguns segundos. O homenzinho de voz esganiçada se movimentava
apressado a uns cinqüenta passos dele. Pois muito bem. Como se ele se incomodasse em
correr. Steiner apertou o passo e conseguiu chegar perto em uns dois minutos. Então,
fazendo um último esforço, adiantou-se a ele pela esquerda, interrompeu-lhe a
passagem e lhe disse:
— Sou agente da polícia de Ingolstadt. Herr Heide, tenha a bondade de me
acompanhar.
O homenzinho de cabelos brancos e de voz esganiçada encarou-o com a
surpresa estampada no rosto redondo e avermelhado. Abriu a boca umas duas vezes sem
conseguir articular uma única frase e, finalmente, com um fiapo de voz, perguntou num
tom situado a meio caminho entre a indignação e a surpresa:
— Eu? Por quê?
Steiner percebeu naquele mesmo momento que não tinha o menor motivo para
deter o velho. Bem, dava no mesmo. Uma vez que tinha a sensação de ter encontrado
uma pista, não estava disposto a largá-la por um detalhe desses.
— Faça o favor de me acompanhar — disse, fingindo uma autoridade e uma
convicção que praticamente não tinha naquele momento.
— Mas... mas... posso saber ao menos por quê?
Steiner engoliu em seco ao mesmo tempo em que desejava de todo coração que
o gesto não fosse percebido por aquele reticente sujeito.
— Você sabe por quê — respondeu com uma firmeza invejável o agente
Steiner.
— Eu? — quase gritou o costureiro enquanto levava as mãos ao peito num
gesto rápido e suave. — O que é que eu sei? Uma pessoa tem que ouvir cada coisa!
Saiba o senhor...
O policial não tinha a menor intenção de saber nada naquele momento. Cravou
o olhar no homem de cabelos alvos e o espetou:
— Por cometer o pecado de Sodoma e Gomorra.
Steiner teve que segurar herr Heide em seus braços para evitar que, desmaiado,
ele se estatelasse no chão.
NNNNNNNNoooooooovvvvvvvveeeeeeee
Baviera, 1787
A voz ARRANCOU KOCH de suas reflexões. Era extremamente clara e sossegada
e, talvez por conta disso, chocou-o a figura da qual provinha. Tratava-se de um homem
de estatura mediana, um tanto carregado no peso, vestido de forma desalinhada, embora
limpo e barbeado. Poderia ter sido um comerciante, um advogado, provavelmente um
professor, mas... um sujeito dedicado a zombar de clérigos aos quais, previamente, teria
embriagado?
— O senhor é herr Lebendig? — perguntou Koch.
— Sim, sou eu.
— O senhor conhece um sacerdote... chamado List?
O rosto de Lebendig se iluminou, ao mesmo tempo em que suas sobrancelhas
se arquearam levemente. Koch teria jurado que, longe de se inquietar, ele estava
fazendo força para não deixar transparecer que a simples menção do nome era no fim
das contas divertida para ele.
— Sim, claro que conheço o padre List — respondeu Lebendig. — Esteve aqui
há alguns dias. Dei-lhe uma pequena remuneração para que colaborasse em minhas
experiências.
Uma sensação incômoda de desorientação tomou conta de Koch ao ouvir
aquelas palavras. Não se tratava apenas do fato de que Lebendig não demonstrasse o
menor sinal de inquietação, de que estava absolutamente tranqüilo, e até parecia
serenamente divertido: havia, além disso, aquela referência inquietante a algumas
experiências. A que espécie de experiências ele estaria se referindo?
— É uma pessoa agradável — prosseguiu Lebendig, enquanto retirava alguns
livros que pareciam quase suspensos no vazio e debaixo deles aparecia uma cadeira em
que conseguiu se sentar. — Com uma vida tranqüila, bem, como costuma acontecer
com a maioria dos párocos. Esta foi uma das razões por que achei que poderia ser ideal.
A propósito, a que se deve seu interesse pelo padre List? O senhor é parente dele? Um
amigo, talvez?
Koch hesitou um instante antes de responder. Sem dúvida, se dissesse que era
policial, seria mais do que provável que aquele homem tratasse de esconder a verdade...
— Sou sobrinho dele — mentiu com absoluta naturalidade.
— Sobrinho... — repetiu Lebendig. — Pois o senhor faz muito bem, cuidando
de seu tio. É uma pessoa um tanto ingênua. Se tivesse cruzado com outro que não fosse
eu, sabe-se lá o que poderia ter-lhe ocorrido.
— O senhor se referiu a algumas experiências... — disse Koch justo no
momento em que a mulher que lhe tinha aberto a porta entrava no aposento carregando
uma bandeja.
O policial ficou em silêncio enquanto observava, surpreso, como a recém-
chegada conseguia colocar umas xícaras e uma chaleira sobre uma mesinha coberta de
livros. Assustava-o pensar o que poderia aparecer debaixo de tantos volumes.
— Sim — respondeu Lebendig com a maior naturalidade, ao mesmo tempo em
que se inclinava sobre os recipientes. — Gostaria de um pouco de café?
— Sim, danke7
.
— E como vai querer?
— Puro. Sem açúcar e sem leite.
Lebendig despejou o líquido preto numa xicrinha e a estendeu ao policial, que
a apanhou e a aproximou dos lábios. Mal tinha acabado de afastá-la da boca — estava
bem-feito aquele café, era preciso reconhecer — quando seu anfitrião começou a falar.
— Repare nessa parede — disse.
Koch dirigiu o olhar para o muro, mas não viu nada além de uma série amorfa
de montes de livros, nada diferente daquilo que já tinha visto em outros lugares daquela
casa quase insuportavelmente desorganizada.
— Está vendo essa sombra? Koch pestanejou.
— Sim — disse por fim.
— O senhor diria que ela corresponde a quê?
— É a sombra de minha mão... e da xícara...
— Exato, exato — disse Lebendig esboçando um sorriso. — Agora eu lhe
pergunto: por que o senhor consegue ver essa sombra na parede?
— Bem... — começou a dizer Koch —, imagino que a luz que entra pela janela
chega até a parede e... e quando encontra minha mão no caminho lança uma sombra.
— Sim, mais ou menos — concordou com um sorriso Lebendig. — O fato é
7
Em alemão, no original.
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O crime dos illuminati cesar vidal

  • 2. CCééssaarr VViiddaall OO CCRRIIMMEE DDOOSS IILLLLUUMMIINNAATTII TTrraadduuççããoo AANNTTÔÔNNIIOO FFEERRNNAANNDDOO BBOORRGGEESS
  • 3. Título original: Los hijos de La Luz © Copyright 2005: Random House Mondadori, S.A., Barcelona © Copyright 2006: César Vidal Direitos cedidos para esta edição à EDIOURO PUBLICAÇÕES S.A. Rua Nova Jerusalém, 345 - Bonsucesso CEP 21042-235 - Rio de Janeiro, RJ Tel. (21)3882-8338 - Fax (21)2560-1183 www.relumedumara.com.br A RELUME DUMARA É UMA EMPRESA EDIOURO PUBLICAÇÕES Revisão Maria Helena Huebra Editoração Dilmo Milheiros Capa Simone Villas-Boas CIP-Brasil. Catalogaçao-na-fonte. Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ. V691f Vidal, César, 1958-O crime dos Illuminati / César Vidal ; tradução Antônio Fernando Borges. - Rio de Janeiro : Relume Dumará, 2006 Tradução de: Los hijos de Ia luz ISBN 85-7316-491-3 1. Romance espanhol. I. Borges, Antônio Fernando, 1954-. II. Título. 06-3160 CDD 863 CDU 821.134.2-3 Todos os direitos reservados. A reprodução não-autorizada desta publicação, por qualquer meio, seja ela total ou parcial, constitui violação da Lei n° 5.988. Para aqueles que combatem, incansáveis, honrados e valentes, as obras ocultas das trevas
  • 4. SSSSSSSSuuuuuuuummmmmmmmáááááááárrrrrrrriiiiiiiioooooooo Primeira parte OOSS FFIILLHHOOSS DDAA LLUUZZ Segunda parte CCOONNSSPPIIRRAAÇÇÃÃOO Terceira parte NNÊÊMMEESSIISS Epílogo A bela Lola, por Zoé Valdés
  • 5. PPPPPPPPRRRRRRRRIIIIIIIIMMMMMMMMEEEEEEEEIIIIIIIIRRRRRRRRAAAAAAAA PPPPPPPPAAAAAAAARRRRRRRRTTTTTTTTEEEEEEEE OOOOOOOOssssssss ffffffffiiiiiiiillllllllhhhhhhhhoooooooossssssss ddddddddaaaaaaaa lllllllluuuuuuuuzzzzzzzz UUmm Paris, 21 de janeiro de 1793 REALMENTE É MUITO CURIOSA a maneira como as impressões ficam gravadas em nosso cérebro, para depois emergirem, de vez em quando, graças ao efeito quase mágico da memória. De um desfile demorado, recordamos não a aparência marcial do elegante capitão ou as palavras piedosas pronunciadas de maneira emotiva pelo capelão ao abençoar as tropas, nem mesmo a variedade de cores dos uniformes. O que fica retido em nossa mente, pelo contrário, é o semblante acalorado de um soldado camponês, suarento e avermelhado, a quem o uniforme de gala atormentava como se o estivesse submetendo a uma tortura. De um te-déum solene esquecemos a pregação sentida do Evangelho, o grande número de fiéis e até o motivo transcendental da cerimônia impressionante, mas no coração fica impressa a aparência sonolenta de um sacristão barbeado com descuido ou da anciã que cochilava durante a homilia. Assim age a memória, e a de Karl não era uma exceção entre as de outros tantos integrantes do gênero humano. Daquela manhã, ele se lembraria de muitas coisas, mas, principalmente, ficaria inscrita em suas lembranças a colocação assimétrica do patíbulo. Tratando-se de uma praça e levando-se em conta a quantidade nada desprezível de espectadores — podia-se dizer que metade de Paris estava concentrada naquele lugar — o mais lógico teria sido instalar aquele ambiente de morte no centro, procurando a eqüidistância, para que o maior número possível de espectadores contemplasse, talvez até com deleite, quase sempre com curiosidade, o que iria acontecer dentro de alguns segundos. No entanto, no fim das contas, os guardiães da revolução, os defensores da liberdade, os impulsionadores da igualdade tinham optado por colocá-lo quase numa esquina.
  • 6. O patíbulo se erguia, assim, entre o caminho que levava aos Champs Eliseés e um curioso... pedestal? Sim, tudo parecia indicar que aquele volume enorme e quase amorfo tinha sido um pedestal em algum momento de um passado talvez não distante. Se bem que, a ser assim, para que estátua exatamente ele tinha servido de plataforma? Devia ter sido uma escultura odiada, porque a tinham arrancado quase pela raiz. Nem mesmo o pedestal tinha se salvado da ação daquelas multidões que os dirigentes da revolução chamavam com vigor de "cidadãos" e de "o povo". Karl achou inclusive que, em outros tempos, o pedestal devia ter contado com um revestimento de mármore e bronze, mas desses materiais tão nobres só restavam agora fragmentos em mau estado. Até a pedra, que agora aparecia, riscada e triste, a descoberto, como uma mulher que tivessem tirado da cama para lhe arrancar a roupa em seguida, tinha um aspecto deplorável, como se alguém tivesse tido prazer em espancá-la e, no final, enfadado e exausto, tivesse desistido da tarefa extenuante. O cadafalso tinha sido erguido a poucos passos daquele vestígio lastimável de um passado que, de tão próximo, quase parecia presente e que os "cidadãos" desejavam arrancar pela raiz. Tinha sido coberto por tábuas compridas, colocadas de maneira transversal, que serviam para esconder uma complicada estrutura que parecia proveniente do Garde-Meuble1 . Exatamente no extremo oposto ficava a escada sórdida que terminava na parte alta do cadafalso, desprovida de corrimão. Karl sentiu como se uma bola de metal o atingisse violenta e inesperadamente na boca do estômago, quando contemplou um objeto de forma cilíndrica colocado sobre o patíbulo. Estava coberto de couro e, sim, não restava dúvida, era a cesta onde a cabeça do condenado deveria cair. Claro que não se tinha certeza de que fosse acontecer assim. De saída, a lâmina da guilhotina não parecia muito pesada. Na verdade, era pequena e tinha uma forma curva, quase como um daqueles gorros frígios que muitos dos presentes usavam. Como não se via nenhum dispositivo que pudesse segurar a cabeça do réu uma vez que tivesse sido separada do corpo, podia-se imaginar que ela saltaria do cadafalso e talvez chegasse até a multidão. Os servidores da liberdade teriam preparado tudo dessa maneira ou, pelo contrário, tratava-se de mais uma demonstração de incompetência, que por ser grosseira não era menos soberba, e da qual davam mostras com tanta freqüência? Karl não sabia e, para falar a verdade, também não tinha nesses momentos um espírito suficientemente forte para se dispor a investigar isso. De maneira inesperada, uma rajada de vento percorreu a praça, arrancando-o 1 Edifício-museu onde ficavam expostos objetos e jóias da família real.
  • 7. daquelas reflexões. Não serviu, no entanto, para aliviar o mal-estar que tinha tomado conta dele. Pelo contrário: arrastou até seu nariz, mais forte e vigorosa, uma mistura repugnante e variada de cheiros. Roupa suja, suor acumulado em axilas e pés, baforadas de álcool mal digerido... tudo aquilo o envolveu com seu fedor espesso e, por um momento, ele pensou que não conseguiria conter a ânsia de vômito. Mas conseguiu. Custara-lhe muito chegar até ali e não estava disposto a perder o espetáculo por culpa do asco. Um murmúrio, inegável mas reprimido, avisou-o de que tudo iria começar em alguns instantes. Não se enganou. Em meio a um silêncio sepulcral, uma carroça desgastada, puxada por cavalos, entrou na praça e se dirigiu para o cadafalso. Se não fosse pelas pessoas que ficaram na ponta dos pés para poder observar melhor a cena, e que se espezinharam, e que amaldiçoaram, e que blasfemaram, quase teria parecido que não havia ninguém naquele lugar. O carro chegou, lenta mas inexoravelmente, até o patíbulo, e Karl pôde ver que os carrascos eram quatro. Se não fosse pelas divisas, tricolores e desproporcionalmente grandes, que usavam nos nada modestos chapéus de três pontas, qualquer um teria dito que pertenciam ao antigo regime. As mesmas calças, as mesmas casacas, os mesmos penteados... bem, no fim das contas, também executavam o mesmo ofício realizado tantas vezes ao longo dos séculos. O réu estava acompanhado por três sacerdotes, era evidente, mas o comportamento deles não poderia ser mais dessemelhante. Dois deles estavam vivendo, sem qualquer sombra de dúvida, um momento extraordinariamente divertido. Karl pestanejou para ter certeza de que o que estava vendo era real, e, claro, não teve dúvida alguma: aqueles dois clérigos brincavam como se estivessem desfrutando de uma alegre romaria. Engoliu a saliva. A praça transbordava de inimigos do condenado, mas ninguém tinha se atrevido a se mostrar alegre naquelas circunstâncias. Aqueles dois eram a exceção. Inclusive, um deles tinha começado a apontar a barriga e os quadris do réu e a zombar de suas formas. O terceiro, pelo contrário, demonstrava um comportamento diametralmente oposto. Da distância em que se encontrava, Karl não podia distinguir suas feições com clareza, mas tudo parecia indicar que era vítima de um forte retesamento que talvez pudesse ser atribuído à tristeza. Não, aquele sacerdote não apenas não se divertia com a cena como, de fato, ela devia estar lhe causando uma dor insuportável. O carro parou, finalmente, no meio de um espaço amplo e vazio que rodeava o cadafalso. Sim, amplo e vazio, mas não desprotegido. Estava rodeado por canhões e
  • 8. pessoas portando as mais diferentes armas. Piques2 , lanças, mosquetes... O condenado desceu do carro. Totalmente enfeitado de branco, levava nas mãos um livrinho que Karl tentou em vão identificar e que acabou achando que fosse um missal, um livro de salmos ou talvez um Novo Testamento. Assim que o réu pisou no chão, três dos carrascos, daqueles carrascos que se vestiam tentando esconder sua origem burguesa, rodearam-no e fizeram o gesto de lhe tirar a casaca. Com uma dignidade que quase se poderia tocar como se fosse alguma coisa sólida, o homem fez um gesto para afastá-los e se livrou ele mesmo da peça de roupa. Por um momento, os carrascos pareceram totalmente desconcertados. Parecia óbvio que não estavam acostumados à semelhante demonstração de dignidade — principalmente de aprumo — por parte de alguém a quem iriam separar a cabeça do corpo dentro de alguns minutos. No entanto, a atitude deles durou apenas um instante. De maneira imediata, como se impelidos por uma mola, aproximaram-se do réu e tentaram segurá-lo pelos pulsos. Karl não pôde escutar o que o condenado respondeu, mas captou sem dúvida a firmeza, não empertigada mas natural, com que jogou o corpo para trás para impedir que os carrascos fizessem aquilo com ele. — O grande filho-da-puta não se deixa amarrar... — Karl escutou uma velha colérica a seu lado resmungar. — Se fosse por mim, não iriam colocar a corda propriamente nas mãos. Mas além daquela mulher — que talvez não tivesse tantos anos quanto as infinitas rugas que sulcavam seu rosto aparentavam — ninguém disse nada. Ninguém a não ser os carrascos, que tinham começado a se agitar como se impelidos pelo ventinho que soprava na praça. De repente, um deles levou a mão à boca como se fosse uma trombeta e gritou algo que Karl não chegou a entender. Dois soldados que usavam o gorro frígio vermelho se apressaram em atender a seu chamado. Foi então que os olhos de Karl se detiveram, de forma casual, no terceiro sacerdote, aquele que parecia profundamente triste. Pela primeira vez reparou que, quase com toda a certeza, não era francês. Não, ele não era. Seus traços e suas feições indicavam alguém de origem nórdica. Poderia se tratar de um alemão, de um holandês, inclusive de um inglês. Em todo caso, não era uma circunstância tão relevante. O significativo era que ele tinha se inclinado respeitosamente sobre o condenado e se dirigia a ele num tom que, pelos gestos, poderia ser qualificado de submisso, até de suplicante. Devem ter trocado apenas duas ou três frases, mas foram suficientes para que o réu elevasse os olhos para o céu, sussurrasse alguma coisa e estendesse as mãos. 2 Lança antiga
  • 9. Fez isso justo no momento em que os soldados chegavam perto dele. Ele não poderia garantir, mas Karl teve a impressão de que um dos carrascos amarrava o réu com uma expressão de triunfo insolente, como se fosse a consumação de um longo processo iniciado talvez muitos anos antes. Como se pretendessem sublinhar aquele gesto pleno de significado, os doze tamborileiros localizados ao lado do cadafalso começaram a tocar seus instrumentos com mais energia e vontade do que arte. Quando o réu começou a subir a escadinha que levava até a guilhotina, Karl percebeu que os degraus eram inclinados demais. Conteve nessa hora a respiração desejando que o condenado não escorregasse, caísse ou tropeçasse naquela subida sinistra para a morte. Se não aconteceu nada disso, talvez se deva ao fato de que o terceiro sacerdote, o que não parecia francês, agarrou-o pelo braço com a intenção de ajudá-lo. No entanto, aquela colaboração piedosa durou apenas o tempo de subida. Quando os dois atingiram a plataforma sobre a qual a guilhotina repousava, o réu se soltou com um gesto seguro. Depois, com passos inusitadamente firmes, cruzou o espaço que havia entre o fim da escada e a guilhotina. Fez isso com tanta calma, com tanta segurança, com tanta serenidade que qualquer pessoa teria dito que ele passeava por um jardim desfrutando do bom tempo. Achava-se a ponto de alcançar a lâmina, quando parou e olhou para os tamborileiros. À distância em que Karl se encontrava não lhe permitiu captar a carga exata que o condenado colocou naquela expressão, mas o certo é que as mãos deles ficaram suspensas no ar sem permitir que as baquetas sequer roçassem a pele dos instrumentos. — Morro inocente de todos os crimes de que me acusam — disse o réu com uma voz sossegada, clara e suficientemente forte para que o escutassem com clareza mais além da praça. — Perdôo os autores de minha morte, e rogo a Deus para que o sangue que vocês estão prestes a derramar não caia nunca sobre a França. Nem uma palavra, nem um grito, nem um silvo, nem um assovio repercutiram depois que o condenado pronunciou aquelas últimas frases. Por um instante pareceu que o mundo, aquele mundo extraordinariamente convulso, tinha parado, que a terra tinha deixado de girar, que o sol se fixara no firmamento. Então, uma mão, que parecia saída do nada, cravou-se no antebraço daquele homem vestido de branco e o puxou para a guilhotina. Não houve nenhuma resistência. O réu parecia reconciliado com seu destino como poucos teriam estado. Documente, quase com mansidão, permitiu que dois dos carrascos, que continuavam com os chapéus na cabeça, estendessem-no sob a lâmina. A execução durou alguns instantes mas, ao contrário do que Karl tinha temido, a cabeça
  • 10. não saltou até o chão, mas caiu na cesta. Talvez, pensou, a pequenez da lâmina tenha evitado aquela profanação extra. Um dos carrascos, alto, corpulento, com aparência brutal, aproximou-se da cesta e, agarrando a cabeça pelos cabelos, levantou-a para que a multidão a visse. Durante alguns momentos, deixou que o sangue jorrasse abundante do pedaço de corpo já sem vida. No entanto, aquela exibição de força triunfal não pareceu comover os presentes, talvez impressionados demais com o que tinha acontecido durante os minutos anteriores. Foi então que o carrasco jogou a cabeça no cesto com um gesto depreciativo e de uma só puxada apanhou a casaca branca que estava caída no chão do cadafalso. Agitou-a por um instante no ar como se fosse uma bandeirola e depois a atirou com violência sobre a multidão. Por um breve instante, a peça de roupa descreveu um vôo curto que foi abortado por um oceano de mãos que se lançaram para dela se apoderar. Entre rugidos e gritos, uivos e clamores, aquela brancura desapareceu completamente no meio da massa. Como a vida daquele homem que tinha acabado de ser guilhotinado, Luís XVI, o cidadão Capeto, um monarca de trinta e oito anos com que se encerravam oito séculos de dinastia bourbônica na França. Nada restava daquela dinastia que um dia tinha dominado metade da Europa. Num sentido nada metafórico, tinha sido cortada de um golpe só. Enquanto assim pensava, Karl observou como o terceiro sacerdote, o que não parecia francês, o que tinha tentado consolar o rei, descia agora do cadafalso, ultrapassava a primeira linha de soldados e se perdia no meio da multidão. Parecia atordoado, exausto, submetido a um impacto que não podia suportar. Ninguém, absolutamente ninguém, prestou atenção nele. Karl enfiou a mão no bolso e tirou do colete desbotado um relógio dourado. Eram pouco mais de dez e quinze. E então, exatamente quando afastou o olhar da esfera branca, ele o viu. Era ele, sim, era ele. Sem nenhuma sombra de dúvida. Talvez estivesse um pouco mais magro, embora não muito, e seus cabelos estivessem mais ralos e grisalhos, mas era ele. E o olhava. Olhava-o com aqueles olhos inquisitivos que pretendiam, e quase sempre conseguiam, esconder o que corria pelo fundo de seu coração. O coração de Karl começou a bater com mais força do que a que os tamborileiros tinham empregado para bater nos instrumentos. Sabia que o encontraria ali. Sempre soubera disso. Não poderia ser de outra maneira. E agora, enfim, encontrava-o. Ali, no mesmo lugar onde acabava de desaparecer a monarquia mais importante da Europa. Apertou os punhos, respirou e tentou abrir caminho até o lugar
  • 11. onde ele se encontrava. Deu dois, três, quatro empurrões para alcançá-lo. Mas, de repente, desapareceu. Angustiado, movimentou a cabeça para um lado e para o outro, até que seu pescoço doeu, enquanto procurava encontrá-lo. Empenhava-se nisso quando uma das abas da casaca ficou agarrada entre duas matronas que conversavam animadamente, ainda que sem muito critério, sobre a execução do Capeto. Conseguiu recuperá-la, suja e amarrotada, de um puxão, e, seguindo um impulso instintivo, tentou lhe devolver uma elegância que talvez tivesse perdido para sempre. Foi então, quando levantou a vista, com a desolação embargando seu rosto, que ele o viu novamente. De maneira incrível, tinha conseguido se livrar daquele imenso mar de corpos malcheirosos, e se colocar na outra extremidade da praça abarrotada. Mas como ele tinha conseguido isso? Karl cravava os cotovelos, os punhos, os antebraços em qualquer ser vivo que se interpusesse em seu caminho. Não, agora não podia tornar a escapar. Tinha que agarrá-lo. O fugitivo — porque ele era isso, de fato — livrou-se daquele pesado espartilho humano entretecido com milhares de corpos quando Karl estava a quase duzentos passos dele. Arfando, suando por todos os poros, reprimindo as maldições que lutavam para brotar de seus lábios, contemplou desesperado como sua presa inatingível apertava o passo e, quando chegou a uma esquina, começava a correr. Demorou ainda alguns minutos para se livrar daquela maré, em que não eram poucos os que já se vangloriavam de contar com um retalho da casaca branca do Capeto. Quando conseguiu, começou a correr, embora estivesse consciente de que não tinha rumo certo nem sabia em que direção seguir. Não poderia dizer o tempo que durou aquela corrida, mas, por fim, o esgotamento o obrigou a encerrá-la e Karl teve que se apoiar contra o muro gelado de uma rua desconhecida tossindo violentamente e tentando recuperar o ritmo da respiração. Inalou gulosamente o vento frio da manhã, como se disso dependesse sua vida, como se num instante só pudesse conduzir aquele oxigênio indispensável até o último lugar de seus pulmões, como se lhe fosse dado recuperar a juventude, o vigor e a alegria gastos naquele incidente longo, o mais longo de sua existência. Um incidente que tinha começado anos atrás, em outro lugar e em outra época.
  • 12. DDDDDDDDooooooooiiiiiiiissssssss Baviera, 1775 COMO É BONITA, DISSE A SI MESMO enquanto calculava na mão esquerda o peso do animal. Sim, e como é gorda. E olhe que era raro neste tipo de animal. Mas a lebre... bem, a lebre era uma delícia. Pele suave, cor deliciosa e aparência opulenta. Não deveria ter sofrido muito. Tinha se emaranhado no laço na altura do pescoço e pelejando para se libertar só tinha conseguido se estrangular mais rapidamente. Acontecia de vez em quando com estes animaizinhos. Dava um pouco de pena, mas precisava comer. Balançou a cabeça como se quisesse arrancar dela qualquer vislumbre de compaixão e, com um gesto rápido, soltou o animal da armadilha que tinha lhe arrancado a vida, e o jogou no embornal. Foi nesse momento que o viu. Foi apenas um instante e — com toda a certeza — não teria percebido nada se não tivesse sacudido o cangote justo nesse mesmo momento em que seu olhar se entrecruzou com o que saía de uns olhinhos miúdos, redondos e pretos, incrustados no rosto assustado e trêmulo de um filhote de coelho. Com gesto rápido, o caçador ficou de pé de um salto e se precipitou sobre a presa inesperada. Sem dúvida, era uma cria da lebre enorme que tinha acabado de apanhar. Tinha que ficar com ela. Conseguiu dar dois passos antes que o animalzinho se precavesse do perigo que avançava em sua direção. Sem dúvida, tinha contemplado como sua mãe ficara presa e como tinha perdido a vida no curso de um ritual que nunca tivera antes a oportunidade de contemplar. Agora, o medo e o espanto o impediram de reagir a tempo. No entanto, de qualquer forma conseguiu se mexer. Deu um salto instintivo à direita para evitar aquelas manoplas que se lançaram sobre ele e depois, ainda presa do estupor, começou a correr. Foi uma corrida inexperiente, desajeitada e lenta. Típica de alguém que até aquele momento não sabia o que era ter que se salvar de um agressor. Impelido mais pelo susto do que por um medo suficiente para ativar seu instinto de autopreservação, o filhote de lebre tratou de se esconder entre uns arbustos.
  • 13. O caçador se lançou sobre os arbustos convencido de que pegaria aquele animalzinho. Estava enganado. A sombra daquela massa se precipitando sobre ele acabou tirando do estupor aquele infeliz filhote de lebre. Deu um novo pulinho e, agora sim, começou a correr para se afastar daquele ser que ele não tinha visto antes mas que parecia representar um verdadeiro perigo. Com as orelhas transformadas em antenas que o avisavam da proximidade de seu inimigo, o filhote de lebre descreveu uma corrida em ziguezague que não o afastou da cilada persistente, mas pelo menos impediu que ela se transformasse numa realidade letal. Ofegante, o caçador procurava se aproximar do animalzinho e prendê-lo entre o vazio ameaçador que suas mãos formavam, mas, repetidas vezes, aquele ser miúdo evitou a tenaz. Com o instinto que só a experiência proporciona, compreendeu que sua única oportunidade de encurtar distâncias e alcançar o animalzinho era enganá-lo. Deu uma passada com a perna direita que assustou o filhote de lebre e fez com que saltasse para a esquerda e, justo nesse momento, precipitou-se sobre ele. Ele lhe escapou por duas míseras polegadas, mas era óbvio que o caçador tinha encontrado o método que lhe permitiria sair com sucesso daquela missão. Bem, era só uma questão de repetir a jogada no momento exato em que o animalzinho estivesse suficientemente próximo. Não fez isso. Enquanto o filhote de lebre corria para se pôr a salvo à maior distância possível, o caçador vislumbrou algo que distraiu sua atenção. No início, só chegou até seu corpo uma soma de sensações fortes e absorventes. Um cheiro penetrante de carne em decomposição, o zumbido irrequieto do que pareciam ser centenas de moscas, os raios de sol descendo entrecortados sobre um tronco de árvore para se atirar depois pela casca e, revolta, rutilante e avermelhada, uma cabeleira que só podia pertencer a um ser humano. Ele parou, inalou uma golfada de ar, passou a mão pela testa suarenta e, por alguns instantes, procurou compreender o que significava tudo aquilo que se oferecia, agressivo e pujante, a seus sentidos. Não conseguiu àquela distância e, tendo já relaxado a perseguição ao filhote de lebre, deu alguns passos na direção da inesperada descoberta. O fedor de podridão arranhou suas fossas nasais, mas não o deteve. Espantou com furiosos golpes de mão o bando de moscas e conseguiu distinguir uma imagem diferente de qualquer outra que já tinha se oferecido antes a suas pupilas. Tratava-se de um homem jovem, sem dúvida. Era até possível que não tivesse ultrapassado a casa dos vinte anos. No entanto, agora não passava de um despojo fétido
  • 14. e coberto de insetos verde-azulados. O rosto parecia destruído, esmigalhado, esvaído, como se tivessem tentado desmanchá-lo até torná-lo irreconhecível. No entanto, o caçador disse a si mesmo que o mais certo era que aquela terrível abrasão se devesse à ação combinada das feras e das moscas. Quanto ao resto do corpo... As meias estavam destruídas, mas enquanto o pé direito conservava um sapato, no esquerdo os dedos, avermelhados e roídos, do morto sobressaíam no meio do tecido. As calças, sujas e cobertas de lama, estavam espantosamente rasgadas na altura das virilhas, embora os rasgões se encontrassem quase totalmente cobertos por espessas nuvens de moscas que se movimentavam febrilmente em busca de uma presa que o caçador não sabia ao certo qual era. Finalmente, as folhas pareciam ter ajudado a cobrir pudicamente as mãos, os braços e o peito do defunto. Por um instante, contemplou aquele ser humano, agora à mercê de alguns predadores que, por serem menores, não eram mais compassivos ou menos eficazes do que ele. Então, de forma inesperada, sem qualquer aviso prévio, sentiu um enjôo cálido e incontrolável que subia desde o ventre. Teve, primeiro, um espasmo seco que lhe arrancou algumas lágrimas e impregnou sua testa de suor. Titubeante, aproximou-se de uma árvore em que se apoiou subitamente mareado. Antes que tivesse apoiado os dedos da mão sobre o tronco, começou a vomitar, tomado por irresistíveis espasmos. Podia-se dizer que, ao expulsar todo o conteúdo de seus espasmos, se abrisse diante dele a possibilidade de reter a vida.
  • 15. TTTTTTTTrrrrrrrrêêêêêêêêssssssss Baviera, 1787 WILHELM KOCH PASSOU A MÃO pelo queixo. Sentiu então um pequeno tufo de pêlos mal barbeados, localizado duas ou três polegadas abaixo da têmpora. Aqueles hóspedes inesperados e, sobretudo, indesejados arrancaram dele um ricto de mal-estar que saltitou de seus lábios. Por alguma razão que não era fácil de descobrir — as regras familiares, a educação com os jesuítas, um motivo cósmico etc. — não podia tolerar a desordem nem a falta de harmonia. Era uma atitude extensiva tanto ao traçado de uma rua quanto à limpeza de suas camisas, a uma operação aritmética bem resolvida ou à luta implacável contra o crime. Não suportava nada que parecesse dissonante, torto, feio ou ruim. Talvez por isso poderia ter sido arquiteto, músico ou matemático. Certamente por isso era um policial. Ele era, e dos melhores. Dificilmente se poderia encontrar, em toda a Baviera, um outro igual. Ao longo de vinte anos de serviço, tudo tinha corrido bem, ou seja, de maneira ordenada. Roubos, fraudes, violações, assassinatos... raras foram as transgressões da lei que não soubera enfrentar com sucesso. E tudo, absolutamente tudo, era devido a seu método. Na opinião de Koch, a questão se limitava a encontrar o ponto exato em que a harmonia que governava o cosmos era quebrada. Da mesma forma como uma tubulação quebrada só pode ser consertada quando se descobre o lugar onde ocorre o vazamento, o crime exigia que se detectasse a partir de quando a ordem social foi rompida. Um pai que não se comportava de acordo com a moral, uma mãe que esquecia suas obrigações, filhos que passavam por cima de seus deveres filiais... e com o que nos deparávamos? Um desfalque, um adultério, ou até um assassinato. Sim, na verdade, o trabalho de Koch consistia em algo muito parecido com os encanamentos. Justamente por isso, incomodava-lhe que suas camisas não estivessem devidamente passadas, as botas impecavelmente lustradas ou o rosto perfeitamente barbeado. O que tinha agora diante dos olhos dava a sensação de ser outro vazamento intolerável no âmago do edifício social. Tinha se deparado com ela pedindo os processos atrasados para rever o que estava pendente. Tudo já se achava canalizado num
  • 16. aqueduto de ordem que garantia, mais cedo ou mais tarde, que acabaria sendo resolvido de maneira segura. Tudo, a não ser o processo que agora estava aberto diante de seus olhos. Este, em resumo, de forma intolerável, não trazia número de referência, nem menção ao agente que o tinha começado, nem data de entrada. Era uma pasta nua, perdida no arquivo, era cujo interior jazia o que não deixava de ser uma carta como tantas outras, escrita com tinta preta, com traços regulares, sobre um papel grosso embora não necessariamente caro. Mas o conteúdo era uma outra questão. Nada nos seria mais útil do que uma história da Humanidade que fosse adequada. O despotismo roubou a liberdade. Como os fracos podem se defender? Só através da união, mas esta no fim das contas é rara... Até ali, a carta apenas repetia os lugares-comuns de tantos inimigos da monarquia e da religião. Todas aquelas besteiras sobre a liberdade, o despotismo e os fracos. Inclusive o chamamento em busca da união. No entanto, quando se chegava a esse ponto, aquela carta dava uma guinada importante, totalmente reveladora: Nada pode ajudar a conseguir tudo isto além das sociedades secretas... — As sociedades secretas... — repetiu Koch num sussurro enquanto estendia a mão direita até uma xicrinha de café que repousava sobre sua limpa e organizada escrivaninha. Por um instante, limitou-se a saborear aquela beberagem preta, forte e amarga. Não suportava o café com mel ou com açúcar. Achava que adoçá-lo era uma forma de privar o líquido de sua força, de um vigor que acabava sendo indispensável para aclarar sua mente. Procurou com a língua qualquer resto de café que pudesse ter ficado no interior da boca e continuou a leitura. As escolas secretas de sabedoria são os meios que um dia libertarão os homens de seus grilhões. Em todas as épocas, foram os arquivos da natureza e dos direitos do homem; e graças a elas a natureza humana se erguerá desse seu estado ruinoso. Koch bebeu outro gole de café e, enquanto sua boca se franzia num esgar de desprezo, disse:
  • 17. — O que é que você sabe, seu pateta, sobre o estado ruinoso da natureza humana? Os príncipes e as nações desaparecerão da face da terra. A raça humana se transformará então numa família, e o mundo será a morada dos Homens racionais. — Da face da terra... — disse Koch, que tinha se detido naqueles parágrafos e os repetia várias vezes como se quisesse ruminá-los. Certamente, podem ocorrer alguns distúrbios; mas, pouco a pouco, os desiguais chegarão a ser iguais; e depois da tempestade, virá a calmaria. Acaso as conseqüências mais lamentáveis irão permanecer justamente quanto os motivos de discórdia tiverem desaparecido? Homens, erguei-vos! Koch passou a mão pela parte de seu rosto em que o barbeiro não tinha demonstrado exatamente um excesso de eficiência. Franziu os lábios com fastio, porque determinou que não ia se deixar distrair. Não podia se permitir isso, sem dúvida. Talvez aquele personagem fosse simplesmente um louco - nunca se podia descartar essa hipótese —, mas a experiência lhe dizia que a falta de juízo não só não garantia a segurança como, não poucas vezes, era seu pior inimigo. A Moralidade é que conseguirá tudo isto; e a Moralidade é fruto da Iluminação. Os direitos e os deveres são recíprocos. Se Otávio não tem direito, Catão não tem nenhuma obrigação em relação a ele. Koch pousou a xicrinha no pires, procurando fazer com que a posição ficasse simétrica. Em seguida, pegou uma pena de ganso que repousava, branca e inflexível, na escrivaninha polida, e a molhou com suave energia num tinteiro gordo de prata. Depois, escreveu numa folha de papel os nomes de Otávio e Catão. Pelo que lhe constava, eram referências ao imperador dos romanos e ao famoso censor, não se tratava de nomes verdadeiros, mas, ao mesmo tempo, sabia que podiam ser pseudônimos de personagens tão tangíveis quanto a poltrona em que se encontrava sentado. A Iluminação nos mostra quais são nossos direitos, e a Moralidade a segue;
  • 18. essa Moralidade nos ensina a crescer, a nos libertarmos, a amadurecer e caminhar sem as amarras de sacerdotes e príncipes. Koch segurou agora a carta com as duas mãos e cravou o olhar na última frase, "...caminhar sem as amarras de sacerdotes e príncipes... caminhar sem as amarras de sacerdotes e príncipes... caminhar sem as amarras de sacerdotes e príncipes." Quando se quer dominar uma sociedade, é preciso aniquilar primeiro aqueles que a governam... Respirou fundo, verificou com enfado que não restava café na xícara e lançando mão de uma sineta que se erguia marcialmente a algumas polegadas de sua mão esquerda tocou-a com força. Passaram-se apenas alguns instantes e na porta maciça do aposento se ouviram algumas pancadas curtas, como se temessem incomodar. — Entre — disse Koch com uma voz que soou fria e carregada de autoridade. Um rapagão de barba loura e eriçada enfiou seu rosto avermelhado pela fenda aberta entre o umbral e a porta. — Alguma ordem, siô? — perguntou com uma voz que pretendia aparentar uma atitude serviçal mas que pouco conseguia. — Mais café — respondeu Koch apontando com o indicador a xícara vazia. — Uma xícara, siô? — indagou o jovem. — Uma jarra — respondeu Koch — e não se demore, Steiner. Tinha que reconhecer que a advertência carecia de sentido. Na verdade, Steiner, apesar da juventude, constituía um verdadeiro exemplo de ordem e delicadeza. Uma ordem que lhe dava era obedecida de maneira imediata e eficiente. Com certeza, não tinha se enganado quando permitiu sua entrada na corporação, e ao colocá-lo perto dele. Quando Steiner fechou a porta, Koch se felicitou pela contribuição à ordem que o agente representava. Bem que gostaria de dedicar alguns instantes à autocomplacência, mas teria que ser mais tarde. No momento... no momento, existiam prioridades. Jesus de Nazaré, o Grão-Mestre de nossa ordem, apareceu numa época em que o mundo se encontrava na mais absoluta Desordem, e entre pessoas que durante séculos tinham gemido sob o jugo da Escravidão. Ensinou-lhes as lições da razão. Para agir de uma forma mais eficaz, serviu-se da Religião — das opiniões que eram correntes naquela época — e, de uma forma muito astuta, combinou suas doutrinas secretas com a religião popular, e com os costumes que tinha a seu alcance. Foi justamente neles que envolveu suas
  • 19. lições: ensinou através de parábolas. Parábolas... nunca lhe teria ocorrido pensar que as parábolas contivessem um ensinamento secreto vinculado a causas políticas. Sem dúvida, tinha que reconhecer que a carta era, além de disparatada, substanciosa. Jesus escondeu o significado valioso e as conseqüências de suas doutrinas, mas as revelou com cuidado a alguns poucos eleitos. Fala do reino dos justos e dos fiéis, do Reino de seu Pai, de quem somos filhos. Limitemo-nos a tomar a liberdade e a igualdade como os grandes objetivos de sua doutrina, e a Moralidade como o caminho para os alcançar, e todo o Novo Testamento será compreensível; e Jesus aparecerá como o redentor dos escravos. Koch não era um homem especialmente religioso. Certamente, acreditava em tudo o que a Santa Madre Igreja ensinava e guardava minuciosamente os dias santos, mas não poderia determinar que o que o impelia a isso era a devoção ou o desejo de que a ordem não se rompesse. Contudo, apesar de seu pouco entusiasmo, tinha suficiente conhecimento da religião para chegar à conclusão de que aquilo que tinha acabado de ler não passava de puro disparate. Então, pensou com ironia, católicos e protestantes passaram dois séculos se enfrentando em terras alemãs, em metade da Europa, do outro lado do oceano, simplesmente porque não tinham compreendido que o cristianismo se limitava a impelir a liberdade dos escravos... Que ridículo! Que idiota poderia acreditar em semelhante tolice? Bem, precisava concluir aquela leitura o quanto antes. — Sim, entre — disse quando ouviu que batiam na porta. Steiner depositou um bule de café fumegante sobre a mesa. — Quer que eu o sirva, siô? — perguntou solícito o rapaz de rosto avermelhado. Koch fez um gesto com a mão indicando-lhe que deveria sair do aposento. Um tanto surpreso, o jovem inclinou a cabeça e cochichou algumas palavras de cortesia antes de sair. Pousou a carta sobre a escrivaninha, impulsionou com um movimento a poltrona para poder se afastar do móvel em que se apoiava e ficou de pé. Notou então que estava com as articulações inchadas, cansadas, como que dormentes. Levou as duas mãos aos rins e esticou o tórax para trás. Em outra ocasião, teria produzido um estalo na altura das vértebras lombares, mas agora sentiu apenas um alívio agradável e rápido.
  • 20. Sorriu satisfeito quando constatou que as costas respondiam devidamente. Deu alguns passos para contornar a mesa, colocou-se diante da jarra e serviu-se de uma nova xícara do líquido amargo. Segurou-a com as duas mãos como se sustentasse um cálice e, por um momento, permitiu que seu olhar divagasse pela espuma do café. Finalmente, aproximou o recipiente dos lábios e bebeu um gole longo, quente e eletrizante que o levou a fechar os olhos para aproveitá-lo melhor. — Bem — disse em voz baixa. — Terminemos com isto o quanto antes. Alguns poucos eleitos receberam as doutrinas em segredo, e elas nos foram transmitidas — embora freqüentemente quase soterradas sob o lixo da invenção humana — pelos maçons. As três condições da sociedade humana estão expressas pela pedra bruta, pela pedra lascada e pela pedra polida. A pedra bruta e a pedra lascada expressam nossa condição sob o governo. É bruta por causa da terrível desigualdade de condição, e lascada porque já não somos uma família e além disso nos encontramos divididos por diferenças de governo, de classe, de propriedade e de religião; mas quando nos vemos reunidos numa família nos vemos representados pela pedra polida. G é a Graça, a Estrela flamífera é a Tocha da Razão. Aqueles que possuem este conhecimento são certamente Illuminati... Illuminati ? Koch esfregou o queixo com uma expressão pensativa. Era uma palavra latina ou italiana? Illuminati... sim, claro, respondeu com um sorriso. Os iluminados! Só podia ser isso. Aqueles que têm a luz que não atinge a outros e que mostra os conhecimentos secretos são iluminados! Que coisa óbvia! Tinha custado a encontrar o significado, mas a culpa era desse pessoal. Empenhavam-se em ser tão retumbantes, tão pedantes, tão rebuscados que acabavam obscurecendo o trivial. Aqueles que possuem este conhecimento são certamente Illuminati — tornou a ler. — Hiram é nosso Grão-Mestre fictício, morto pela REDENÇÃO DOS ESCRAVOS; os Nove Mestres são os Fundadores da Ordem. A Maçonaria é a Arte Real, na medida em que nos ensina a caminhar sem travas, e a governar a nós mesmos. O olhar de Koch desceu até o pé da página e deu com uma assinatura na qual, com toda a nitidez, podia se ler Espartaco.
  • 21. — Espartaco... Veja só. Nada menos do que Espartaco. Serviu outro café e o tomou em pequenos goles enquanto cruzava o aposento com passos tranqüilos e pausados. Estava mergulhado nas reflexões mais profundas e, quando ocorria tal eventualidade, a rapidez com que sua mente funcionava contrastava com a lentidão que impunha a seus gestos. Finalmente, parou, respirou fundo e murmurou: Lebendig, Lebendig...
  • 22. QQQQQQQQuuuuuuuuaaaaaaaattttttttrrrrrrrroooooooo França, maio de 1793 — ENFORQUEM ELES! Enforquem eles! Quem lançava os gritos era um homem cujo rosto parecia cinzelado pelo sol do norte da França. Avermelhado, seco, enrugado, toda a força de seu corpo endurecido parecia se concentrar em volta de seus lábios, uns lábios fendidos que pediam morte. — Sim, enforquem eles! — repetiu como um eco uma anciã. — Enforcá-los? — respondeu outra voz. — A pauladas! Deviam ser mortos a pauladas! — Pena não termos uma... uma daquelas máquinas que eles têm em Paris — lamentou-se um rapaz de no máximo quinze anos. Karl deu uma olhada nos prisioneiros. Era óbvio que estavam tomados por uma insuportável sensação de pânico. Quantos eram. Um, dois... seis. Nada menos do que seis. E era com seis homens que o governo republicano de Paris pretendia impor seu programa político? Com certeza, ou eles se valorizavam em excesso ou tinham uma idéia muito pobre dos camponeses franceses. É verdade que eles impressionavam com aquelas casacas azuis, com aquelas divisas enormes presas aos chapéus e, principalmente, com os sabres e as pistolas, mas como lhes tinha ocorrido pisotear de forma tão ousada os sentimentos daquelas pessoas? — Acabem com eles! Acabem... com máquinas. A pedradas. — Vocês têm alguma coisa a dizer — perguntou o que assumia o comando. — Alguma decraração a fazer? Não, não dava a impressão de que os detidos estivessem para muitas declarações. Os cinco soldados estavam realmente apavorados — e não era para menos — e quanto ao suboficial... era óbvio que tentava manter o ânimo, mas seu bigode tremia de maneira incômoda. Estava, no mínimo, tão apavorado quanto seus subordinados. Pobre infeliz!
  • 23. — Dá pa saber, por exemplo — continuou o chefe improvisado — pru 'quê vocês tinham que vir neste povoado pra queimar a igreja? Karl teve que intuir as últimas palavras. A pergunta mal tinha chegado ao verbo queimar quando um clamor irado, feroz, com ressonâncias de morte, preencheu o ar espesso e quente que os envolvia. — Sim, pru'guê?. Pru'quê? — gritavam num francês áspero, mastigado e sombrio os habitantes do povoado. Karl disse a si mesmo que, provavelmente, a única resposta era: por uma mistura de defeitos humanos... soberba, orgulho, sectarismo, nevoeiro mental, ressentimento... Tudo aquilo tinha se misturado nos corações dos soldados e, como resultado direto, tinham decidido proclamar a liberdade universal ateando fogo na modesta igreja do povoado. Era preciso reconhecer que não deixava de ser uma idéia peculiar do que significava ajudar a liberdade. Para assegurá-la, acabavam com a liberdade de culto. Era — não havia como duvidar — um dos muitos paradoxos daquela revolução que parecia não terminar nunca. Certamente, os homens de Paris — e seus executores de províncias — podiam emitir uma argumentação para justificar aquele ato de destruição. Como a Igreja Católica era um instrumento de opressão, sua pulverização — sua incineração, melhor dizendo — acabaria tendo como resultado imediato a liberdade do gênero humano. Talvez, mas aquela liberdade conseguida a golpes de tocha e tiros de pistola não conseguia convencer Karl. Pior: na verdade, dava-lhe uma sensação de inquietude muito parecida com a angústia. — Dá no mesmo. Dá no mesmo! — começou a dizer um homenzinho de uns quarenta anos, calvo e usando um calção ridiculamente amarelo. — Se os matarmos... se os matarmos... — Nada de "se", Pierre — interrompeu o que tinha defendido que os enforcassem. — Vamos matá-los. Vamos fazer com que esse pessoal de Paris receba um castigo. Mas... o que é que eles estão pensando? Eles acham que podem vir até aqui e nos tirar o trigo e levar nosso vinho e ainda cagar na Virgem? É isso o que eles acham? Ah, isso não, isso não. Vamos, uma corda. Em outras circunstâncias, Karl teria tentado argumentar com aquelas pessoas que tinham se transformado numa massa enfurecida que gritava seus desejos de morte. Sim, sem dúvida, teria feito isso, mas naquele povoadozinho do norte da França... Durante meses, um pequeno grupo de advogados e jornalistas, de nobres progressistas, de maçons, tinha empurrado a velha monarquia dos Capeto para o aniquilamento. Mas o que tinha acontecido depois era muito diferente daquilo que a Inglaterra tinha vivido um
  • 24. século antes. Não havia chegado ao poder um revolucionário piedoso como Cromwell ou uma rainha religiosa e prudente como Ana. Não. Os novos governantes da França estavam convencidos de que podiam mudar o país com a mesma facilidade com que um oleiro dá a um pedaço de barro a forma que quer. Bem, talvez pudessem fazer isso em Paris — e Karl tinha suas dúvidas — mas no campo... — Aqui está a corda — gritou uma mulher bonita, viçosa, alta. — Precisamos de mais — disse o homem seco com um tom de voz que oscilava entre a reprovação pela escassez e a pressa em corrigir isso. Demoraram apenas alguns minutos para reunir as cordas, fazer um nó corrediço e colocá-las no pescoço dos presos. Antes que Karl conseguisse ver o que estava acontecendo, os homens eram arrastados como se fossem cães levados pela coleira. Levantando uma poeirada seca e amarela, saíram do povoado, enquanto cuspiam ameaças e insultos sobre os revolucionários. — Parem! Parem! Karl tentou ver quem tinha dado a ordem detendo aquela massa no meio da qual ele se movia procurando não se ver envolvido. Não conseguiu. — Saia aí do meio, monsieur Blondel — escutou o homem seco dizer. — O povoado vai zecutar justiça. O povoado vai zecutar justiça... Sim, a gramática era deplorável, mas as idéias não poderiam ser mais claras. Eles — a mulher bonita, a velha, o homem seco, os que tinham fornecido as cordas, o rapaz que tinha desejado ter uma guilhotina... — todos eles representavam o povoado e não iam permitir que os homens de Paris lhes impusessem sua revolução, essa revolução que começava levando os produtos do campo e em seguida queimava igrejas e plantava uma guilhotina na praça do lugar. À resistência a esse plano revolucionário — libertador e cidadão, teriam dito em Paris — eles chamavam zecutar justiça. Com certeza, nem Marat, nem Danton nem Robespierre estariam de acordo com aquele julgamento e, certamente, teriam sérias restrições em considerar povo aqueles que estavam dispostos a enfrentá-los. Reiniciaram a caminhada. Karl então reparou num homem vestido de maneira modesta, embora melhor do que o resto dos camponeses, afastado à beira da estrada. Tinha os olhos avermelhados e o horror estampado no rosto. Devia ser o tal Blondel. Bem que ele gostaria de sair do tumulto e lhe dizer que não se preocupasse, que tinha feito o possível, que até tinha chegado às raias do heroísmo com seu comportamento. Não fez isso, porque a vontade de saber onde aquilo ia dar era mais poderosa naquele momento do que qualquer outra consideração.
  • 25. — Ali... Ali! A multidão acelerou o passo como se tivesse acabado de ouvir um ensalmo. Karl também apertou o passo para evitar se ver envolvido. Foi assim que chegou, suarento e sufocado, até uma esplanada. Com certeza, aquele terreno devia ser bonito em circunstâncias normais. Era uma pradaria branda e suave que ficava muito perto de uma pequena floresta, Sim, seguramente os aldeões deviam se reunir ali em dias de festa para beber e se divertir. Era o lugar ideal. — Venham! Ali mesmo! Karl viu agora com toda a nitidez o lugar que o outro apontava. Tratava-se de um pequeno grupo de árvores robustas, circunspectas, transpirando dignidade. Pareciam estar esperando ali desde a aurora dos tempos para cumprirem sua missão solene e especial, de servirem de patíbulos aos que tinham se atrevido a arrasar o que aqueles que arrancavam seu sustento da mãe Terra consideravam mais sagrado.Quase como se fossem um só homem, meia dúzia de lavradores atiraram as cordas até a copa das árvores. As sogas não chegaram a tocar o chão. Antes que terminassem de cair, seis grupos de pessoas, orquestrados como se tivessem ensaiado a execução dezenas de vezes, apoderaram-se da ponta e começaram a puxar com todas as suas forças. Karl observou horrorizado a maneira como os corpos dos soldados se elevavam no ar enquanto seus rostos se congestionavam pela pressão que a soga exercia em suas gargantas. Era duvidoso que os enforcassem. Seguramente, em vez dessa morte quase rápida que vem determinada pela fratura da nuca, sofriam os estertores do estrangulamento. De fato, eles se retorciam como peixes tirados da água, enquanto seus pés se separavam do chão. Teve a sensação de que a agonia se prolongava eternamente, mas, na verdade, ela foi rápida. Apenas em um deles, o que parecia mais jovem, a vida pareceu resistir à idéia de abandonar um corpo que tinha vivido pouco. A batalha estava perdida de antemão e, além do mais, a conclusão se acelerou quando uma anciã se agarrou aos pés do réu e puxou. Não conseguia entender a dureza daquelas mulheres que tinham ultrapassado com folga a casa dos sessenta anos. A que poderia obedecer aquela insensibilidade, aquela ânsia, aquela falta de piedade? Talvez não fosse possível generalizar e cada caso acabasse sendo diferente. Para as mulheres, que tinha visto em Paris entusiasmadas com os estragos causados pela guilhotina, talvez aquelas execuções fossem apenas uma confirmação de que a injustiça, real ou imaginária, estava sendo punida: aplaudiam uma espécie de eqüidade cósmica implantada sobre rios de sangue. Para as daquele povoado, o motivo certamente era diferente: deviam estar convencidas
  • 26. de que quem se atrevesse a destruir a religião, o fruto do duro trabalho cotidiano, a família e a paz só poderia ser digno de uma morte rápida. Contemplou por um instante os seis corpos. Sim, estavam mortos. Quanto a isso, não havia a menor dúvida. Mesmo porque pelas pernas de suas calças, como um testemunho sujo e humilhante, escorriam filetes de urina e excrementos. CCCCCCCCiiiiiiiinnnnnnnnccccccccoooooooo Baviera, 1775 STEINER SE INCLINOU SOBRE OS restos mortais do jovem. Custou-lhe muito reprimir uma mistura de asco e mal-estar que tinha se agarrado a seu pescoço como se fosse um cachecol de lã. Apesar dos anos de serviço que já tinha na polícia de Ingolstadt, não conseguia controlar uma certa aversão por cadáveres. Descobrir ladrões, vigiar suspeitos, estabelecer cada passo seguido para urdir uma fraude engenhosa e mesmo redigir relatórios e instruir processos lhe pareciam tarefas toleráveis, aceitáveis, até divertidas. No entanto, não conseguia se acostumar ao exame de um cadáver. Já tinha se perguntado mil vezes qual era o motivo de sua aversão e nunca conseguia elucidá-lo completamente. Por certo, havia o aspecto físico da decomposição da carne. Por mais que o catecismo se referisse a ela ou a lembrasse pontualmente na celebração da quarta-feira de cinzas, Steiner não conseguia se familiarizar com o fato de que um corpo que ontem respirava, que até se mostrava viçoso e saudável, acabasse reduzido à condição de carniça pestilenta. Sentia isso, sentia-o na alma, mas não conseguia se acostumar. No entanto, seu desconforto asfixiante e indesejável não se limitava ao aspecto da decomposição de órgãos e músculos. Não, de forma alguma, quem dera fosse assim. Na verdade, o que lhe causava mais desgosto era a inegável evidência de que a morte significa um final realmente terrível e que não existia a certeza de que tudo não terminasse no meio de vermes e de putrefação. Certamente, havia os ensinamentos religiosos, e a afirmação do Credo sobre a ressurreição da carne, e até os diferentes meios oferecidos pela Santa Madre Igreja para facilitar a sorte dos condenados ao purgatório. Tudo aquilo ele conhecia e, é claro, acreditava. O problema era que, quando se encontrava cara a cara com um cadáver, seus sentidos se viam tão invadidos pelo cheiro de morte, pela visão da morte e pelo toque da morte, que a fé numa vida duradoura era, talvez, não aniquilada, mas ofuscada como o
  • 27. sol encoberto por um mar de nuvens cinzas e algodoadas. E, justamente quando chegava a esse ponto, uma mistura de repugnância e mal-estar, de repúdio e desagrado, apoderava-se dele, provocando-lhe suor nas mãos e angústia no peito. De boa vontade ele teria se desligado da investigação dos homicídios, mas semelhante graça não lhe foi concedida. Koch se sentia tão satisfeito com sua maneira de trabalhar — uma faca de dois gumes, sem dúvida — que não apenas tinha se transformado num ajudante privilegiado para seu trabalho de resolução, mas também, em algumas ocasiões, insistia em que fosse encarregado de dar os primeiros passos. Exatamente por causa disso, tinha agora que examinar aquele despojo sujo e carcomido que um caçador infeliz tinha encontrado. O homem tinha chegado tremendo ao posto de polícia e, num primeiro momento, os agentes que o viram pensaram que ele tinha acabado de sofrer alguma desgraça. E, até certo ponto, era verdade. Enquanto passava por terras que não eram suas, tinha encontrado um cadáver. Em outras circunstâncias, o peso da lei teria caído sobre ele, acusando-o de caçar furtivamente ou, pelo menos, de invasão de propriedade privada. Agora, no entanto, aqueles detalhes estavam amenizados pela gravidade de um homicídio. Bem, sucedera assim porque Koch tinha enviado Steiner para examinar o corpo e ele tinha decidido que era uma perda de tempo atacar um pobre homem que caçava lebres de forma ilegal, quando graças a ele se podia botar as mãos num delinqüente de muito maior envergadura. Koch nunca teria aprovado essa maneira de agir. "Por acaso devemos perdoar o transgressor menor porque existe outro maior?", teria perguntado de forma retórica, para depois acrescentar indignado: "De forma alguma, Steiner, de forma alguma." Mas ele encarava isso de outra maneira, e agia de acordo com isso. Agradeceu ao homem, disse-lhe num aparte discreto que não deveria dizer a ninguém o que estava fazendo naquele território de caça e, ato contínuo, mandou-o ir descansar em casa. Levantaram o cadáver na presença de um dos juízes mais experientes de Ingolstadt, que pensava em se aposentar em menos de um ano, mas, no momento, insistia em se manter na ativa. — Coisa ruim — disse quando passou os olhos sobre o morto. — Alimentaram-se do rapaz. Não era nenhum exagero. A pancada que tinham lhe aplicado na cabeça e que, quase com certeza, tinha ocasionado a sua morte não era nada do outro mundo. Tratava- se do típico traumatismo que deixa claro e manifesto como é fácil obrigar um pobre infeliz a cruzar o umbral que separa a vida da morte. Até aí, tudo estava dentro dos
  • 28. limites da normalidade. O problema era quando se examinava o restante do corpo. O pescoço, o peito e o rosto apresentavam arranhões nada desprezíveis, mas o pior era a região que se estendia pela frente do umbigo até o início das coxas e por trás em torno do ânus. Os animais tinham-se fartado, não havia dúvida, mas tudo parecia indicar que alguém tinha se antecipado a eles. — Qual a sua opinião, herr doktor3 ? — perguntou o juiz quando o galeno terminou o exame do cadáver sob os olhares atentos dos presentes. — Pobre rapaz... — murmurou de forma quase inaudível o médico. Ninguém podia negar a justeza daquelas palavras, mas, para falar a verdade, não esclareciam muito a situação. Pobre rapaz, sim, mas por quê? — Poderia ser um pouco mais... explícito? — atreveu-se a dizer Steiner. O médico respirou fundo e, sem afastar os olhos do cadáver, começou a cevar um cachimbo de tubo longo. Era um bonito exemplar de artesanato bávaro, com um bocal de madeira entalhada primorosamente e um fornilho alongado de porcelana. Devia ter lhe custado bem caro, pensou Steiner. — Bitte4 , algum de vocês tem fogo? — perguntou o médico depois de ter certeza de que o tabaco estava bem assentado no interior do cachimbo. Foi o juiz quem atendeu à sua solicitação e, imediatamente, o ambiente se encheu de uma fumaça azulada que desprendia um cheiro agradável de uma substância que Steiner não conseguiu identificar, mas que ele agradeceu porque encobria, pelo menos em parte, o fedor da morte. — Eles o mataram de um só golpe. Isso é indubitável, mas... — interrompeu a explicação para dar uma nova sugada no cachimbo — mas o mais terrível é que o crime veio acompanhado de um comportamento... bem, recuso-me até a qualificá-lo. Um pouco antes ou um pouco depois da morte, a vítima foi sodomizada. — Desculpe?... — exclamou Steiner, que não tinha certeza de ter escutado direito. — Ele foi sodomizado — disse o médico, com a mesma serenidade com que teria comentado que as nuvens anunciavam chuva. — Está querendo dizer... — começou a dizer Steiner, que não conseguia dar crédito às palavras do galeno. — Estou querendo dizer que o assassino cometeu com este infeliz o pecado pelo qual Deus destruiu as cidades ímpias de Sodoma e Gomorra. Mas não foi uma ação 3 Em alemão, no original. 4 Em alemão, no original.
  • 29. voluntária. Violentaram o rapaz. O alargamento do ânus não deixa margem a dúvidas. Desde já, espero que o tenham matado antes. — E as feridas no púbis? — perguntou Steiner. — Algumas podem ter sido ocasionadas por animais, mas tenho a impressão de que já encontraram o trabalho bem adiantado. O assassino se fartou com as partes do rapaz. — O senhor acha que pode ter sido uma vingança por ele ter se recusado a se entregar? — perguntou Steiner. O doutor encolheu os ombros, deu uma nova sugada no cachimbo e lançou no ar uma baforada de fumaça azulada. Desta vez não foi uma seqüência de gestos prazerosos, mas um encadeamento de movimentos cansados, quase dolorosos. — Talvez... talvez... — disse. — Em todo caso, depois de o matar, parece que se deleitou em profanar o cadáver. Um silêncio incômodo desceu sobre o aposento. Dava a impressão de que nenhum dos presentes queria estar ali, de que teriam dado alguma coisa valiosa para poderem se livrar da obrigação de examinar o cadáver. Sentiam-se surpresos diante de uma manifestação da maldade humana que ultrapassava aquilo que estavam acostumados a presenciar em seu papel de médico, juiz ou policial. — O assassino deixou alguma pista? — quebrou finalmente o silêncio Steiner. — Quer dizer, cabelos, um botão, um pedaço de roupa... — Absolutamente nada — respondeu o médico. — Quase... quase dá a impressão de que se preocupou em apagar qualquer pista depois de matar e sodomizar o rapaz. Ou então era um fantasma... — Ora, vamos! — protestou o juiz quando ouviu as últimas palavras. — Tudo isso já é bastante complicado em si para que o senhor se dedique a brincar com as palavras. Um fantasma, repetiu mentalmente Steiner. Definitivamente, nada daquilo iria agradar a herr Koch.
  • 30. SSSSSSSSeeeeeeeeiiiiiiiissssssss Baviera, 1787 MAIS DE UMA VEZ, mais de duas, mais de uma centena, Koch tinha se perguntado por que Lebendig e, principalmente, a casa de Lebendig não lhe provocavam nenhuma sensação de mal-estar. E isso apesar de que, sem nenhuma espécie de dúvida, nunca tinha conhecido ninguém tão desorganizado quanto ele. Não, nem antes nem depois que cruzara seu caminho ele tinha tido oportunidade de ver alguém semelhante. Era curioso mas, para dizer a verdade, suas vidas nunca teriam se cruzado se não fosse por aquele padre bêbado. Sim, bendito padre bêbado. Tinha chegado numa manhã, fazia nove anos, sufocado e furioso, afirmando que desejava recuperar alguns papéis pessoais que andavam em poder de um tal Lebendig. Durante alguns minutos, o policial que o atendia o ouvira com enorme interesse, quase com devoção — se fosse possível usar essa expressão de uma forma que não soasse imprópria —, mas não tinha demorado a perceber que aquele homem dizia apenas incoerências e que nada indicava que tivesse sido objeto de algum ato punido pela lei. Foi nesse momento que, alegando que o caso que lhe expunha requeria uma pessoa mais importante, tinham-no encaminhado para ele. Koch tinha precisado apenas de dois minutos para compreender que o clérigo em questão se sentia enormemente ofendido e que transpirava desejos de vingança por cada poro da pele. O máximo que podia se perceber, no entanto, era que um sujeito chamado Lebendig tinha dado dinheiro ao padre em troca de que escrevesse em alguns papéis. Pensou imediatamente que devia se tratar de um analfabeto necessitado de um copista. Havia-os — tanto uns quanto outros — aos montes em Ingolstadt. — Tratava-se de alguma carta para a noiva ou a mãe? — perguntou Koch ao ébrio sacerdote. — Não — respondeu acalorado. — Não, não, não. Ora essa! Ele me fazia escrever... só isso.
  • 31. — Ah, sim — disse Koch respirando fundo —, mas isso, padre, se me permite dizer, não é um crime. O sacerdote passou os dedos pelo rosto como se quisesse arrancar alguma coisa muito grave que tivesse ficado agarrada à sua pele. — Calma, calma, é que... Bem, primeiro, ele me fez escrever. Nada em especial. O que eu quisesse. E eu escrevi. Eu escrevi! Modéstia à parte, posso dizer que desde meus tempos de seminário poucas pessoas tiveram uma letra melhor do que a minha. E assim era. Não ficaria bem eu negar isso... Koch concordou com a cabeça, enquanto se perguntava mentalmente quanto tempo seria capaz de suportar aquela história. — Então ele me manteve escrevendo um tempinho. Não muito. Um tempinho. — Um tempinho — repetiu Koch, procurando lhe dar segurança. — Mas depois começou a me dar bebida — continuou o padre com uma mistura de arrependimento e raiva na voz. — À força? — perguntou Koch, embora tivesse consciência de que a pergunta era totalmente desnecessária. — À força? Bem, não... não acho que se possa dizer que ele tenha me forçado. Não, na verdade ele não fez isso mas... — Mas... — repetiu Koch, tentando ajudar o clérigo a continuar seu relato. — Mas olhou minha letra, sim, olhou minha letra e disse: "Estupendo, estupendo, o que eu pensava." — "Estupendo, estupendo, o que eu pensava" — repetiu Koch sem tirar os olhos do clérigo. — Isso, ele disse isso. "Estupendo, estupendo, o que eu pensava." Então me avaliou outro tempinho e, de repente, saiu do aposento, voltou ao final de outro tempinho e me disse: "Sinto muito, padre, mas acabam de me dizer que o telhado de sua igreja acaba de desabar." — Uma desgraça — pensou em voz alta Koch. — E como, e como! O senhor poderia jurar — disse com os olhos abertos como pratos o sacerdote. — Naquele momento, é claro, eu tentei me levantar, partir, ir embora. O senhor me diga. Com a paróquia em ruínas, que outra coisa eu podia fazer? Koch concordou mas não abriu a boca. Ou o padre estava louco de se internar ou estava prestes a chegar ao cerne da questão. — Mas quando tentei me levantar, esse... esse Lebendig pôs a mão em meu ombro e me disse: "Padre, eu lhe suplico, escreva alguma coisa. O que for, mas escreva
  • 32. alguma coisa." — E o senhor escreveu? — Claro... claro que sim. Não vou esconder. Escrevi. E então... aí vem o pior... O sacerdote se apoiou na mesa, aproximou o rosto do de Koch e, ao mesmo tempo era que lhe lançava uma baforada de álcool que o policial achou insuportável, disse: — Ele leu o que eu tinha escrito e disse: "O que eu imaginava." O senhor ouviu? Ele disse: "O que eu imaginava!" Naturalmente, eu aproveitei que ele estava lendo o papel para começar a correr até minha paróquia... — Naturalmente — concordou Koch. — Bem, pois cheguei à minha paróquia e o senhor sabe o que estava acontecendo? — Não faço a menor idéia — respondeu o policial. — Pois nada — disse o clérigo —, nada. Nada! A igreja estava como sempre esteve. Sem uma rachadura. Koch se recostou no espaldar de sua cadeira quando escutou aquelas palavras. Naturalmente, toda a história podia ser falsa, mas, se não fosse, o que ele tinha pela frente exatamente? Uma zombaria com a religião? Não, ninguém tinha perpetrado qualquer escárnio contra Deus, a Virgem nem contra nenhum santo. Uma fraude? Pelo contrário. O padre em questão era quem tinha recebido o dinheiro. Era verdade que a história do teto da paróquia era falsa, mas isso não podia ser considerado um crime. Em outras circunstâncias, Koch teria prometido ao sacerdote ocupar-se do caso e, ato contínuo, teria tratado de arquivá-lo, mas alguma coisa lhe dizia que o tal Lebendig era um personagem peculiar, tão peculiar que podia interferir na ordem, impoluta e perfeita, que caracterizava a tranqüila cidade de Ingolstadt. — Não se preocupe, padre — disse por fim. — Dê-me o endereço desse personagem e eu, pessoalmente, vou me ocupar de perguntar o que houve. Um sorriso de felicidade paralisou o rosto do clérigo quando ouviu aquelas palavras. Sem dúvida, já estava quase convencido de que ninguém o atenderia. E agora, agora aquele policial tão atencioso, tão ponderado, tão diligente ia lhe dar atenção. Foi embora feliz, risonho, quase entusiasmado. Tanto que resolveu comemorar isso entrando na primeira taberna que cruzou seu caminho. Koch não agiu imediatamente. Deixou passar uns dois dias e, finalmente, foi até a casa do tal Lebendig. Ele morava num prédio não muito antigo de uma área quase próspera da cidade. Com apenas algumas varas a mais, sua casa estaria numa área
  • 33. invejável. De onde se encontrava, tinha apenas que andar alguns minutos para se defrontar com algumas das pessoas mais necessitadas de Ingolstadt. O policial alisou o queixo enquanto corria os olhos pela entrada do prédio, depois respirou fundo e atravessou o umbral. Um cheiro de comida, não exatamente agradável, invadiu suas narinas enquanto subia os degraus. Não se poderia dizer que a escada estivesse suja, mas Koch teve a sensação de que aquele lugar não contava com toda a limpeza necessária. Era como se os vizinhos não tivessem um interesse especial em manter a dignidade, embora também não se pudesse acusá-los de sujos. Sem deixar de olhar as paredes e os degraus, chegou até o andar onde o padre tinha dito que aquele estranho indivíduo morava. — Herr Lebendig? — perguntou quando abriam a porta. — Sim, herr — respondeu a mulher cuja silhueta aparecia no umbral, ao mesmo tempo em que acompanhava sua breve resposta com um movimento ligeiro de cabeça. — Gostaria de vê-lo — disse Koch num tom correto, mas que deixava claro que não aceitaria uma negativa. — Espere, bitte — disse a mulher enquanto fechava a porta. Koch ouviu alguns passos no interior, suficientemente quietos para afastar a hipótese de que alguém quisesse fugir à ação da justiça. Ao fim de alguns instantes, a porta voltou a se abrir, confirmando seu ponto de vista. — Entre, bitte. A mulher foi na frente, ao longo de um corredor peculiar. Não era estreito demais e também não estava mal iluminado, mas num de seus lados estava apoiada uma estante comprida repleta de livros. Livros! Para que o morador daquela casa podia querer tantos livros? E, sobretudo, como é que o padre não lhe tinha dito nada a respeito? A pergunta lhe pareceu ainda mais obrigatória quando ele desembocou, seguindo a mulher, numa saleta. Em outra casa, aquele cômodo estaria ocupado por diversos móveis. Um aparador onde expor melhor a baixela, cadeiras, talvez umas duas mesas, e até um piano ou um cravo... No entanto, aquela saleta também estava tomada pelos livros. Abarrotavam as estantes das paredes, mas também se remoinhavam - sim, remoinhar-se era a palavra apropriada - pelo chão do aposento. Ao mesmo tempo em que reprimia um calafrio, Koch pensou que aquelas montanhas formadas pelos volumes lembravam os tufos de ervas daninhas que abarrotam um jardim malcuidado. — Sente-se, herr — disse a mulher, mas Koch demorou alguns instantes para
  • 34. localizar algum lugar em que pudesse colocar suas nádegas. Encontrou-no numa cadeira minúscula colocada entre duas pilhas de livros quase tão altas quanto o assento. Ocupou-a e, ao se sentar, percebeu que aquela desordem tinha lhe provocado uma desagradável transpiração na palma das mãos. Tirou de sua manga direita um lencinho e as secou, enquanto se perguntava que crimes uma pessoa tão desorganizada chegaria a cometer. — Em que posso servi-lo?
  • 35. SSSSSSSSeeeeeeeetttttttteeeeeeee Paris, 24 de julho de 1794 KARL LEVANTOU O OLHAR PARA O CÉU. Ele continuava cinzento, plúmbeo, asfixiante. Não parecia que fosse descarregar uma só gota que pudesse aliviar aquela escuridão. Pena. Nesta Paris da Revolução, onde a sujeira, a fome e a violência se alternavam com a lei de suspeitos e as execuções diárias, teria agradecido pela chuva. Passou a mão pela testa para retirar o espesso suor que a cobria. Foi então que seus olhos, fatigados e aborrecidos, detiveram-se na lareira. Tinha se transformado numa cavidade enegrecida, suja e, talvez, obstruída. Só Deus sabia ao certo o tempo que devia fazer desde que a tinham acendido pela última vez. Graças a Ele, era verão. Sem dúvida, ninguém podia negar que os revolucionários estavam conseguindo a igualdade. Por baixo, claro, mas igualdade afinal de contas, e para a imensa maioria da população. Em toda a França. Quarenta e oito horas depois de terem cortado a cabeça do desafortunado Capeto, tinha-se proclamado a Convenção. Já não havia monarquia, nem mesmo limitada por aquilo que os filósofos chamavam de Constituição. Àquela altura Karl tinha certeza de que a ação da guilhotina não ia parar em Luís XVI. Depois seria a vez dos familiares próximos ao rei decapitado. Seria fácil justificar mais umas tantas dúzias de execuções alegando-se que assim se arrancava pela raiz a planta perniciosa da monarquia, que a liberdade do povo exigia isso, que à luz da razão, e que blá-blá-blá. Sim, ele conhecia de sobra todo aquele palavrório revolucionário. Conhecia-o inclusive antes que saísse à luz, difundido pelos jornais e outros meios. Tinha certeza de que se tratava apenas do primeiro passo. Porque depois viriam os aristocratas (por acaso não eram parentes dos reis?), os antigos funcionários (por acaso não tinham servido aos reis?), os clérigos (por acaso não tinham abençoado os reis?), os militares (por acaso não tinham defendido os reis?), os professores (por acaso não tinham ensinado a obediência aos reis?), os juízes (por acaso não tinham aplicado as leis dos reis?) e os...
  • 36. só Deus sabia onde os revolucionários iriam parar em seu plano de criar uma nova sociedade. Lamentavelmente, ele não tinha se enganado. Não pôde suportar por mais de um mês a voragem revolucionária. O assalto às igrejas, o confisco de edifícios, o saque ao comércio, os insultos aos clérigos ou simplesmente aos que não andavam maltrapilhos pela rua... não, não podia tolerar por mais de alguns dias nem isso nem o insuportável, pedante e vazio palavrório revolucionário. Com frio, chuvas e vento, abandonou Paris pensando no fato de que ele deveria estar em algum lugar, mas que com toda aquela confusão e desordem não conseguiria localizá-lo facilmente. Sua saída da capital não teve, portanto, caráter definitivo. Era uma retirada estratégica, fadada a um retorno assim que a situação se desanuviasse. A situação não se desanuviou. Pelo contrário: à medida que adentrava no território francês, Karl foi vendo que seus piores vaticínios se cumpriam. Se em alguns povoados os camponeses, animados pelos agentes de Paris, queimavam os registros de propriedade, apossavam-se das terras, arrasavam as igrejas e assassinavam os patrões, em outros esses mesmos camponeses defendiam de peitos nus as capelas, enfrentavam com foices e forcados os fuzis dos sans-culottes, e transformavam numa guerra santa a preservação de suas terras, suas igrejas e seus lares. Para uns, tratava-se de criar um mundo novo; para outros, de preservar o seu universo — o que tinham erguido ao longo de gerações com o suor de seus rostos e seus braços — e nessa luta não se concederiam quartel. Era difícil prever quem venceria a peleja mas, com toda certeza, quando ela terminasse os rios de sangue teriam se transformado em oceanos. Algumas pancadas na porta arrancaram Karl de suas reflexões sombrias. — Cidadão, cidadão... está aí? — Sim, cidadã, o que você quer? — respondeu procurando dar a suas palavras um tom de naturalidade. — Abre, que eu lhe conto. Karl se levantou do catre onde estava deitado e foi até a porta. Abriu-a com dificuldade por causa da mistura de sujeira e ferrugem que a emperrava. — Diga-me, cidadã — disse Karl. A mulher não disse uma só palavra, mas deu um empurrão em Karl e, depois de abrir caminho de uma forma tão específica quanto mal-educada, andou até a metade do cômodo. — É melhor eu fechar — explicou em voz baixa enquanto empurrava a porta. O brilho que saía dos olhos miúdos da mulher disparou no íntimo de Karl um
  • 37. sinal de alerta. Parecia óbvio que ela queria alguma coisa e, ou ele estava muito enganado, ou não iria sair de graça. — Veja, cidadão — começou a dizer enquanto um sorriso viscoso se juntava ao brilho inquietante de suas pupilas —, eu... eu conheço alguém... Fez uma pausa e piscou para ele o olho esquerdo. Era, sem dúvida, um sinal de cumplicidade, mas Karl não conseguiu saber a que ele podia se referir. Por isso achou mais sensato manter silêncio e esperar que a "cidadã" lhe dissesse de uma vez o que queria. —...conheço alguém que... que tem leite... leite e ovos... bem, poderia até conseguir um frango... Karl procurou controlar todos os músculos de seu rosto, embora, certamente, a idéia de poder comer um ovo, e nem digamos um pedaço de frango, tinha-lhe provocado um verdadeiro terremoto dentro do peito. — Você é muito sortuda, cidadã — comentou com frieza. — Ora, vamos! — disse com voz de fastio, ao mesmo tempo em que lhe dava uma cutucada. — Com certeza você tem fome, cidadão. Pela segunda vez desde que a mulher tinha batido na porta, Karl pressentiu o perigo. Era uma coisa difícil de explicar, mas tão inegável quanto a exalação de um cheiro fétido ou uma corrente de ar. — Necessito comer como todos os cidadãos — respondeu, preservando-se muito de dizer que tinha fome — ...cidadã. Sim, pensou, essa era a melhor resposta que podia dar. Constava que estavam prendendo pessoas simplesmente por se queixarem de que não havia pão. Não tinha a menor vontade de que aquela mulherzinha, inimiga de morte da água e do sabonete, denunciasse-o por dizer que tinha fome, em outras palavras, por propaganda contra- revolucionária. Uma sombra de inquietação pousou sobre o rosto da mulher. Mau negócio, se ela não esperava essa resposta. Claro que também não lhe convinha que ela chegasse à conclusão de que ele abrigava alguma suspeita. — Cidadã — disse Karl —, se o que você me oferece é legal, se nossa Convenção autoriza, continue falando, porque eu sou um republicano leal e não estou disposto a permitir nenhuma deslealdade. Nenhuma, cidadã. A inquietação deu lugar ao pânico no rosto na mulher. Sim, não havia dúvida de que ela tinha ficado assustada. Agora era ela que tinha medo de ser denunciada. Karl disse para si que era um belo universo de liberdade e sabedoria aquele que os jacobinos
  • 38. estavam construindo. Ninguém se atrevia a confiar em ninguém e todos desconfiavam de todos. As palavras cidadão e cidadã, isso sim, não lhes saía da boca. — E então, cidadã? — insistiu com firmeza Karl, que desejava livrar-se o quanto antes daquela criatura malcheirosa. — É... é legal, claro, cidadão — respondeu num tom trêmulo. — Posso lhe oferecer... Concluiu a frase aproximando seus lábios do ouvido de Karl. — ...e por apenas... Karl refletiu por um momento. Em situações normais, aquela oferta teria sido considerada um verdadeiro roubo, capaz de mobilizar as massas para assassinar o vendedor. Mas isso tinha sido na época da odiosa monarquia. Agora, era preciso reconhecer que parecia barato demais para ser verdade. Agarrou o pulso esquerdo da mulher e o apertou com força. Não pôde evitar uma ânsia de compaixão. Ela não passava de um punhado de ossos fracos e finos envoltos apenas por uma pele prematuramente envelhecida. — Se o que você pretende é contra-revolucionário — disse, arrastando as palavras —, se vai contra a república, não descansarei até que sua cabeça role como a do Capeto. Entendeu bem... cidadã? Com as feições desfiguradas, a mulher concordou. — Quando? — Agora... agora mesmo, se quiser... — balbuciou assustada. — Então vamos — disse Karl. Ajeitou a desgastada casaca enquanto desciam os degraus da suja escada de madeira. Podia compreender que não houvesse comida, que o sabão escasseasse, que a roupa, qualquer roupa, tivesse se transformado em artigo de luxo, mas que motivo poderia justificar o fato de não limparem uma escada? Talvez, disse para si, a pessoa encarregada dessa tarefa tivesse decidido que era uma demonstração de servidão que deveria ser combatida. Bem, que magnífico, porcos mas livres. Seguramente algum desses filósofos — intelectuais, como gostavam de chamá-los — que tanto abundavam na França acabaria escrevendo um ensaio intitulado "A imundície como expressão da liberdade". Não: da liberdade, não. Da liberdade cidadã. Um cheiro desagradável de couve arrancou-o de seus pensamentos, avisando-o de que se achavam perto da cozinha e, portanto, a alguns passos da rua. A mistura de cheiro de sujeira, de verdura cozinhando e de suor era tão pesada que Karl sentiu um alívio momentâneo quando se viu do lado de fora da hospedaria. Bem que gostaria,
  • 39. inclusive, de parar um pouco para respirar fundo o ar da manhã, mas a mulher tinha começado a descer a rua numa velocidade que ninguém poderia imaginar. Floreal5 ... Karl se virou e observou uma mãe preocupada em evitar que seu filho de... seis?... sete anos?... atravessasse a rua sem olhar. Floreal... um dos nomes trazidos pela revolução. Como se chamaria aquele menino, na verdade? Jean? Pierre? Paul? Com certeza, teria o nome de algum apóstolo, de algum personagem das Escrituras, de algum santo medieval, ao menos. Mas esses nomes já não eram permitidos. Indicavam falta de lealdade à república dos cidadãos. Agora tinham que se chamar Heliotropo ou Frutidor6 ... ou Floreal. Não havia problema para os recém- nascidos, mas aquela pobre criança... com certeza, no começo não entendia por que tinha passado de uma coisa a outra sem aviso prévio. Por um momento, Karl não conseguiu reprimir um sorriso. No entanto, não podia se distrair. Não enquanto estivesse com a mulher. A pobre velha estava tão empenhada em não ser descoberta que qualquer policial acostumado teria percebido que tinha a intenção de realizar um ato ilegal. Pensou nesse momento em abandoná-la e pegar um caminho diametralmente oposto, mas, por fim, disse a si mesmo que era pouco provável que houvesse muitos agentes da ordem naquela Paris dos cidadãos. Certamente, alguém teria tentado se juntar aos novos donos da rua, seria o natural, mas daí a conseguirem ia uma distância nada pequena. Apertou, portanto, o passo para alcançar a mulher e disse a si mesmo que, hoje, talvez pudesse proporcionar a seu corpo algo realmente substancioso. Se conseguisse isso, poderia classificar o acontecimento de uma autêntica revolução. 5 Floreal: oitavo mês do calendário republicano francês, cujos dias primeiro e último coincidiam, respectivamente, com o 20 de abril e o 19 de maio. 6 Frutidor: décimo segundo mês do calendário republicano francês, de 18 de agosto a 16 de setembro.
  • 40. OOOOOOOOiiiiiiiittttttttoooooooo Baviera, 1775-1776 STEINER SE INCLINOU, melancólico e meditabundo, sobre a caneca de cerveja. Em outra ocasião, teria se preparado para dar conta rapidamente daquele líquido dourado e espumante, mas agora seu estado de espírito dificilmente poderia ser pior. Fazia várias semanas que vinha alternando suas tarefas cotidianas — que, para falar a verdade, não eram poucas — com algo tão volátil e difícil de encontrar como um suposto sodomita assassino. Aí é que estava! Como se fosse pouco complicado descobrir alguém que tinha acabado com a vida do próximo, ainda por cima neste caso tinha que ser um invertido. Podiam também andar atrás do rastro — se é que existia — de um ladrão zarolho, de um estuprador de vista curta ou de um vigarista de cabelo branco... Bem que gostaria de não estar naquela enrascada, mas era óbvio que fugir ao cumprimento do dever — e o dever eram as ordens firmes e categóricas de herr Koch — estava muito além de sua capacidade. A morte e sodomização — ou a sodomização e morte — daquele jovem, que um desavisado caçador furtivo encontrou certa manhã enquanto perseguia um filhote de lebre, tinha se transformado numa pesada armadilha para a mente metódica e impregnada de sentimento de justiça de seu superior. Era óbvio que, como em tantos outros casos anteriores, o desejo que o dominava era o de recompor a ordem rompida pelo crime. Até aí tudo era normal, mas agora a missão estava se revelando mais difícil do que o habitual. E isso porque, tal qual o médico tinha informado, nem no cadáver nem no local onde ele tinha sido encontrado se tinha detectado o menor vestígio suscetível de conduzir até o assassino ou que permitisse, ao menos, estabelecer a identidade da vítima. Durante as semanas seguintes, Steiner tinha se dedicado a percorrer os arredores da floresta, perguntando a todos aqueles que estiveram a seu alcance e, certamente, a todas as pessoas que fizeram o possível para não serem interrogadas.
  • 41. Velhos e crianças, religiosos e leigos, homens e mulheres, camponeses e artesãos. Tinha interrogado a todos, mas não tinha obtido informação de ninguém. A julgar pela investigação, não havia testemunhas oculares do crime, e o máximo que Steiner conseguiu foi que uma velha com o rosto transformado num verdadeiro canteiro de rugas se benzesse horrorizada ao ouvir suas perguntas. — A senhora sabe de alguma coisa, vovó? — tinha perguntado com alguma esperança de que, afinal, pudesse fincar o pé em algum terreno menos movediço. — Meu filho — respondeu a mulher —, já se sabe aonde as más companhias podem levar, e para quem fica em casa em segurança nunca acontece nada de mau... Não houve jeito de lhe arrancar nem mais uma frase, e Steiner ficou se perguntando durante meses se a lacônica anciã estava emitindo um juízo categórico sobre o morto ou se o advertia para se manter à margem daquela história, ou as duas coisas ao mesmo tempo, ou simplesmente nenhuma delas. No fim das contas, por mais que Steiner se esforçasse, ninguém conseguiu informar quem era aquele a quem um dia tinham arrancado a vida e submetido a uma cerimônia perversa. Ninguém tinha presenciado nada. Ninguém tinha visto ninguém. Ninguém tinha a menor idéia de nada. Era como se um autêntico furacão de silêncio e esquecimento tivesse soprado sobre aquele cadáver martirizado, arrastando qualquer fiapo mínimo que pudesse ajudar no esclarecimento do caso. — Tudo parece indicar que não vamos conseguir nenhuma testemunha ocular — disse Koch numa manhã de segunda-feira, logo depois de tomar um generoso gole de café. — E agora? — atreveu-se a perguntar Steiner. — Quer dizer, qual deve ser o rumo da investigação... — Não se deter e seguir em frente — respondeu seu superior com um sorriso paternal. — Se você está voltando do campo de carroça, despenca uma tempestade e você fica atolado no caminho, você procura chegar até a cidade do jeito que for ou fica esperando que um arcanjo venha tirar as rodas da lama? Steiner disse a si mesmo que, se a carroça tivesse alguma cobertura, certamente ele ficaria quietinho ali dentro esperando que a chuva parasse, mas já conhecia seu chefe o suficiente para imaginar a resposta que ele esperava. — Seguiria em frente — respondeu, procurando aparentar uma segurança que absolutamente não tinha. — Pois é isso mesmo que vamos fazer — afirmou Koch. Sim, Steiner concordou, mas continuar exatamente por onde? Porque, no que
  • 42. lhe dizia respeito, dificilmente poderia estar se sentindo mais desorientado. — Descartadas as testemunhas oculares — disse Koch, como se corresse em auxílio do naufrágio interior de Steiner —, devemos nos direcionar para a localização dos possíveis criminosos. Obviamente, tanto se se tratar de um quanto de vários, o lugar adequado para os encontrar é em algum desses antros onde se reúnem os perpetradores daquele pecado que levou Deus a afundar Sodoma e Gomorra numa chuva de fogo e enxofre. — Desculpe, herr — disse um Steiner ainda mais inquieto, depois de escutar aquelas palavras. — Onde se pode imaginar que vou encontrar essas pessoas? Quer dizer... desculpe minha ignorância, mas... existem bordéis para sodomitas ou... ou podem ser encontrados de alguma outra maneira? — Steiner, pensei que soubesse mais sobre a vida — tinha respondido Koch um tanto incomodado, enquanto tornava a encher de café a fina xícara de porcelana. — Sobre a vida, sim — respondeu Steiner com uma voz encharcada de ingenuidade —, mas de homens que gostam de homens... bem, confesso que não sei nada sobre isso. Sei que eles existem, claro. Ouvi falar disso algumas vezes... Até conheço algumas piadas sobre esse assunto, mas a verdade é que nunca os encontrei. Koch pousou o olhar sobre seu ajudante. Não era um olhar impregnado de amabilidade, mas Steiner não saberia dizer se nele prevalecia a desaprovação, o desgosto ou a simples contrariedade. Durante alguns segundos, o ajudante esperou que seu superior explicasse o que estava pensando. Foi, infelizmente para ele, uma espera infrutífera. — Steiner — disse Koch por fim —, talvez você não esteja tão desorientado. Siga por esse caminho. Por qual caminho?, perguntou-se Steiner enquanto saía do gabinete de seu superior e se preparava para sair às ruas de Ingolstadt à procura de uma pista que pudesse ajudar a esclarecer um crime horrendo. Durante os dias que se seguiram, Steiner experimentou uma verdadeira agonia. Primeiro, socorreu-se com um pároco a quem deixou claro que não pretendia que ele quebrasse o segredo da confissão, mas lhe agradeceria se ele o orientasse naquele tema. O sacerdote — que, obviamente, não chegou a entendê-lo de maneira adequada — expulsou-o de seu escritório com muita raiva, ao mesmo tempo em que lhe perguntava o que ele estava pensando sobre seus paroquianos. Steiner não tinha imaginado nada. Queria apenas um pouco de orientação. O passo seguinte o levou até o médico que tinha examinado o cadáver do pobre rapaz.
  • 43. — O que o senhor deseja saber exatamente, herr Steiner? — perguntou o Galeno, olhando-o de maneira inquisitiva por cima de suas lentes redondas e reluzentes. — Pois eu... Não chegou a dizer mais nada. — Sabemos muito pouco sobre a inversão sexual — disse o médico. — Sem dúvida, é um comportamento antinatural, porque se todos o seguissem a espécie se acabaria, mas ainda desconhecemos o que é que impele alguém a se comportar de forma tão contrária àquilo que somos. — Isso não me interessa muito... — atreveu-se a dizer Steiner, temeroso de que o médico o transformasse em ouvinte solitário de uma explanação sobre a sodomia... — na verdade, eu... — Pessoalmente — começou a dizer o doutor sem dar a menor importância às palavras do policial —, acho que obedece a diferentes causas. Certamente, há o conhecimento dos prazeres da carne dessa maneira e a dificuldade para os orientar depois de maneira natural, e podemos acrescentar a isso a falta de mulheres quando se está na prisão ou em alto mar, o fastio de algumas pessoas já muito entregues à depravação... — Herr doktor — levantou a voz Steiner, disposto a se salvar da lição professoral —, sem dúvida tudo isso é interessante... para o senhor e para outros sábios, mas eu... bem, eu me contentaria em saber onde poderia encontrar essas pessoas dadas a... essas práticas. A verdade é que fazia muito frio quando a porta do embaraçado médico se fechou às suas costas e Steiner se encontrou na rua sem saber uma vírgula a mais do que o que conhecia ao entrar na casa. E aquilo foi apenas o início de suas aflições. Os policiais mais veteranos olhavam para ele com estranheza quando ouviam a pergunta, as prostitutas riam em sua cara, uma delas inclusive disparou se ele sabia bem o que estava fazendo (e o que ela pensava que ele estava fazendo?), e até sua própria esposa começou a se inquietar por causa daquela dedicação a um assunto tão espinhoso. — Gretchen — disse quase irritado —, trata-se de uma investigação como qualquer outra. Gretchen, que, como uma esposa perfeita, nunca o contestava, também não o fez dessa vez, mas por sua expressão Steiner deduziu que não tinha conseguido convencê-la. Também não quis insistir sobre o que poderia estar passando por sua cabeça. Fazia muitos anos que estavam juntos e tinham três filhos encantadores para
  • 44. agora se atreverem a azedar seu casamento simplesmente porque herr Koch tinha lhe encomendado a missão de encontrar uma agulha — bastante esquisita, sem dúvida — num palheiro. Durante aqueles meses, Steiner alimentou algumas vezes a esperança de que tudo se dissipasse como uma tempestade de verão. Talvez tudo acabasse sendo descoberto casualmente — como acontece muitas vezes no curso de uma investigação policial —, talvez o assassino, crivado pelo remorso, acorresse para confessar seu crime às dependências da polícia de Ingolstadt, talvez herr Koch se esquecesse de tudo, absorvido na resolução de violações da lei igualmente graves. Semelhante desejo foi desmentido várias vezes. Se estavam atrás de um ladrão de gado, atrás de um falsificador de moedas, ou atrás de um falsificador, herr Koch sempre encontrava o momento apropriado para lhe perguntar pelo andamento de suas investigações a respeito do misterioso assassinato da floresta. Nessas horas, Steiner sentia uma aflição imensa e uma vergonha igualmente considerável se apoderava dele. Numa dessas ocasiões, esteve até a ponto de começar a chorar. Conteve-se, porque pertencia à corporação da polícia... mas não por falta de vontade. Agora, sentado na taberna, não podia evitar de se sentir oprimido pela infelicidade. Se não tivesse uma família para sustentar — quem sabe? — já teria abandonado aquela ocupação sagrada a que tinha entregado tantos anos de sua vida. Aproximou a caneca de cerveja dos lábios, tomou um gole que lhe pareceu amargo como o fel e deu um suspiro. — Pretende me cobrar tudo isso por uma camisa, herr Heide? - ouviu o que dizia a mulher do taberneiro. — Foi o que combinamos... — respondeu uma voz esganiçada que levou Steiner a voltar o olhar até o lugar de onde ela vinha. — Olhe, não me lembro disso, Herr Heide — respondeu a bojuda taberneira — , mas o trabalho... ele deixa muito a desejar... olhe, olhe só o acabamento... — O que é que tem meu acabamento? — perguntou indignado o homem de vozinha aguda. — Frau Muller... Mas Steiner não estava absolutamente interessado na disputa sobre a camisa ou na forma, menos ou mais adequada, como o tal Heide poderia tê-la rematado. O que lhe interessava era sua aparência. Tratava-se de um velhote enfeitado, de baixa estatura, pele avermelhada — de fato, ia assumindo uma cor mais intensa à medida que a discussão avançava — e cabelos imaculadamente brancos. Até aí tudo parecia normal, mas a forma como mexia as mãos, o timbre vocal...
  • 45. O policial esperou pacientemente que a senhora Muller encerrasse a discussão com herr Heide. A disputa acabou quando o homem parecia a ponto de morrer de uma congestão. Talvez o medo de que ele caísse fulminado em seu estabelecimento tenha sido o que acabou convencendo a estalajadeira a pagar e dar o assunto por encerrado. Depois, empinando o queixo num gesto de indignação mais ou menos sincero, o tal Heide tinha se encaminhado para a porta e deixado o local. Steiner, movido por aquilo que alguns chamam de instinto, mas que, com toda a certeza, é apenas a experiência acumulada, adiantou-se até o balcão, pagou e atravessou a soleira. Chegar até a rua e olhar para um lado e para o outro da calçada lhe custou apenas alguns segundos. O homenzinho de voz esganiçada se movimentava apressado a uns cinqüenta passos dele. Pois muito bem. Como se ele se incomodasse em correr. Steiner apertou o passo e conseguiu chegar perto em uns dois minutos. Então, fazendo um último esforço, adiantou-se a ele pela esquerda, interrompeu-lhe a passagem e lhe disse: — Sou agente da polícia de Ingolstadt. Herr Heide, tenha a bondade de me acompanhar. O homenzinho de cabelos brancos e de voz esganiçada encarou-o com a surpresa estampada no rosto redondo e avermelhado. Abriu a boca umas duas vezes sem conseguir articular uma única frase e, finalmente, com um fiapo de voz, perguntou num tom situado a meio caminho entre a indignação e a surpresa: — Eu? Por quê? Steiner percebeu naquele mesmo momento que não tinha o menor motivo para deter o velho. Bem, dava no mesmo. Uma vez que tinha a sensação de ter encontrado uma pista, não estava disposto a largá-la por um detalhe desses. — Faça o favor de me acompanhar — disse, fingindo uma autoridade e uma convicção que praticamente não tinha naquele momento. — Mas... mas... posso saber ao menos por quê? Steiner engoliu em seco ao mesmo tempo em que desejava de todo coração que o gesto não fosse percebido por aquele reticente sujeito. — Você sabe por quê — respondeu com uma firmeza invejável o agente Steiner. — Eu? — quase gritou o costureiro enquanto levava as mãos ao peito num gesto rápido e suave. — O que é que eu sei? Uma pessoa tem que ouvir cada coisa! Saiba o senhor... O policial não tinha a menor intenção de saber nada naquele momento. Cravou
  • 46. o olhar no homem de cabelos alvos e o espetou: — Por cometer o pecado de Sodoma e Gomorra. Steiner teve que segurar herr Heide em seus braços para evitar que, desmaiado, ele se estatelasse no chão. NNNNNNNNoooooooovvvvvvvveeeeeeee Baviera, 1787 A voz ARRANCOU KOCH de suas reflexões. Era extremamente clara e sossegada e, talvez por conta disso, chocou-o a figura da qual provinha. Tratava-se de um homem de estatura mediana, um tanto carregado no peso, vestido de forma desalinhada, embora limpo e barbeado. Poderia ter sido um comerciante, um advogado, provavelmente um professor, mas... um sujeito dedicado a zombar de clérigos aos quais, previamente, teria embriagado? — O senhor é herr Lebendig? — perguntou Koch. — Sim, sou eu. — O senhor conhece um sacerdote... chamado List? O rosto de Lebendig se iluminou, ao mesmo tempo em que suas sobrancelhas se arquearam levemente. Koch teria jurado que, longe de se inquietar, ele estava fazendo força para não deixar transparecer que a simples menção do nome era no fim das contas divertida para ele. — Sim, claro que conheço o padre List — respondeu Lebendig. — Esteve aqui há alguns dias. Dei-lhe uma pequena remuneração para que colaborasse em minhas experiências. Uma sensação incômoda de desorientação tomou conta de Koch ao ouvir aquelas palavras. Não se tratava apenas do fato de que Lebendig não demonstrasse o menor sinal de inquietação, de que estava absolutamente tranqüilo, e até parecia serenamente divertido: havia, além disso, aquela referência inquietante a algumas experiências. A que espécie de experiências ele estaria se referindo? — É uma pessoa agradável — prosseguiu Lebendig, enquanto retirava alguns livros que pareciam quase suspensos no vazio e debaixo deles aparecia uma cadeira em que conseguiu se sentar. — Com uma vida tranqüila, bem, como costuma acontecer com a maioria dos párocos. Esta foi uma das razões por que achei que poderia ser ideal. A propósito, a que se deve seu interesse pelo padre List? O senhor é parente dele? Um
  • 47. amigo, talvez? Koch hesitou um instante antes de responder. Sem dúvida, se dissesse que era policial, seria mais do que provável que aquele homem tratasse de esconder a verdade... — Sou sobrinho dele — mentiu com absoluta naturalidade. — Sobrinho... — repetiu Lebendig. — Pois o senhor faz muito bem, cuidando de seu tio. É uma pessoa um tanto ingênua. Se tivesse cruzado com outro que não fosse eu, sabe-se lá o que poderia ter-lhe ocorrido. — O senhor se referiu a algumas experiências... — disse Koch justo no momento em que a mulher que lhe tinha aberto a porta entrava no aposento carregando uma bandeja. O policial ficou em silêncio enquanto observava, surpreso, como a recém- chegada conseguia colocar umas xícaras e uma chaleira sobre uma mesinha coberta de livros. Assustava-o pensar o que poderia aparecer debaixo de tantos volumes. — Sim — respondeu Lebendig com a maior naturalidade, ao mesmo tempo em que se inclinava sobre os recipientes. — Gostaria de um pouco de café? — Sim, danke7 . — E como vai querer? — Puro. Sem açúcar e sem leite. Lebendig despejou o líquido preto numa xicrinha e a estendeu ao policial, que a apanhou e a aproximou dos lábios. Mal tinha acabado de afastá-la da boca — estava bem-feito aquele café, era preciso reconhecer — quando seu anfitrião começou a falar. — Repare nessa parede — disse. Koch dirigiu o olhar para o muro, mas não viu nada além de uma série amorfa de montes de livros, nada diferente daquilo que já tinha visto em outros lugares daquela casa quase insuportavelmente desorganizada. — Está vendo essa sombra? Koch pestanejou. — Sim — disse por fim. — O senhor diria que ela corresponde a quê? — É a sombra de minha mão... e da xícara... — Exato, exato — disse Lebendig esboçando um sorriso. — Agora eu lhe pergunto: por que o senhor consegue ver essa sombra na parede? — Bem... — começou a dizer Koch —, imagino que a luz que entra pela janela chega até a parede e... e quando encontra minha mão no caminho lança uma sombra. — Sim, mais ou menos — concordou com um sorriso Lebendig. — O fato é 7 Em alemão, no original.