7. Fidalgo: - Esta barca onde vai ora
que assi está apercebida?
(...)
Diabo: - Pera o Inferno, senhor.
(...)
Fidalgo: - E passageiros achais
pera tal habitação?
Diabo: Vejo-vos eu com feição
pera ir ao nosso cais...
8. Diabo: - Em que esperas ter guarida?
Fidalgo: - Que leixo na outra vida
Quem reze sempre por mi.
Diabo: - Quem reze sempre por ti?...
Hi, hi, hi, hi, hi, hi, hi!...
E tu viveste a teu prazer,
cuidando cá guarecer
por que rezam lá por ti?
9. Anjo: - Vós ireis mais espaçoso
com fumosa senhoria,
cuidando na tirania
do pobre povo queixoso;
e porque, de generoso,
desprezastes os pequenos,
achar-vos-eis tanto menos
quanto mais fostes fumoso.
11. Diabo : - Como tardastes vós tanto?
Onzeneiro: - Mais quisera eu lá tardar...
Na safra do apanhar
me deu Saturno quebranto
Diabo: - Ora mui muito m’espanto
não vos livrar o dinheiro!...
Onzeneiro: - Solamente pera o barqueiro
nom me leixaram nem tanto...
12. Anjo: - Essa barca que lá está
vai pera quem te enganou.
Onzeneiro: - Por quê?
Anjo: - Porque esse bolsão
tomará todo o navio.
Onzeneiro: - Juro a Deos que vai vazio!
Anjo: - Não já no teu coração.
(...)
Ó onzena, como és fea
e filha de maldição!
13. Diabo: - Entra, entra! Remarás!
Nom percamos mais maré!
Onzeneiro: - Todavia...
Diabo: - Per forç’é!
Que te pés, cá entrarás!
Irás servir Satanás
porque sempre te ajudou.
15. Diabo: - De que morreste?
Parvo: - De quê?
Samicas de caganeira.
Diabo: - De quê?
Parvo: - De cagamerdeira.
má ravugem que te dê!
Diabo: - Entra! Põe aqui o pé!
16. Parvo : - Hou da barca!
Anjo: - Que me queres?
(...)
Quem és tu?
Parvo: - Samica alguém.
Anjo: - Tu passarás, se quiseres;
porque em todos teus fazeres
por malícia não erraste.
Tua simpreza te baste
pera gozar dos prazeres.
18. Sapateiro: - Hou da barca!
Diabo: - Quem vem í?
- Santo sapateiro honrado!
Como vens tão carregado?
Sapateiro: - Mandaram-me vir assi...
E pera onde é a viagem?
Diabo: - Pera o lago dos danados.
19. Sapateiro: - Os que morrem confessados
onde têm sua passagem?
Diabo:- Nom cures de mais linguagem!
Esta é tua barca, esta!
(...)
Sapateiro: - Como poderá isso ser,
Confessado e comungado?
20. Diabo: - E tu morreste excomungado:
nom o quiseste dizer.
Esperavas de viver;
calaste dous mil enganos.
Tu roubaste bem trint’anos
O povo com teu mester.
22. Frade : - Tai-rai-rai-ra-rã; ta-ri-ri-rã;
(...)
Diabo: - Que é isso, padre? Que vai lá?
Frade: - Deo Gratias! Sou cortesão.
Diabo: - Sabês também o tordião?
Frade: - Por que não? Como ora sei!
Diabo: - Pois entrai! Eu tangerei
e faremos um serão.
Essa dama, é ela vossa?
23. Diabo : - Fezestes bem, que é lindura!
E não vos punham lá grosa
no vosso convento santo?
Frade: - E eles fazem outro tanto!
Diabo: - Que cousa tão preciosa!
(...)
24. Diabo: - Pois dada está já a sentença!
(...)
Frade: - Como? Por ser namorado
e folgar com ua mulher
se há um frade de perder,
com tanto salmo rezado?
Diabo: - Ora está bem aviado!
26. Brisida: - Hou lá da barca, hou lá!
Diabo: - Quem chama?
Brisida: - Brísida Vaz.
(...)
Diabo: - Que é o qu’havês d’embarcar?
Brísida: - Seiscentos virgos postiços
e três arcas de feitiços
que não podem mais levar.
27. Três almários de mentir,
e cinco cofres de enlheos,
e alguns furtos alheos,
assi em jóias de vestir
guarda- roupa de encobrir,
(...)
A mor cárrega que é:
Essas moças que vendia.
28. Brisida: - Eu sô aquela preciosa
(...)
A que criava meninas
pera os cônegos da Sé...
(...)
Diabo: - Ora entrai, minha senhora,
e sereis bem recebida;
se vivestes santa vida,
vós o sentirês agora.
30. Judeu: - Que vai cá? Hou marinheiro!
Diabo: - Oh! Que má-hora vieste!
Judeu: - Cuj’é esta barca que preste?
Diabo: - Esta barca é do barqueiro.
Judeu: - Passai-me por meu dinheiro.
Diabo: - E esse bode há cá de vir?
Judeu: - Pois também bode há-de ir.
Diabo: - Que escusado passageiro!
32. Corregedor: - Hou da barca!
Diabo: - Que quereis?
Corregedor: - Está aqui o senhor juiz?
(...)
Nom é de regulae juris, não!
(...)
Diabo: - Quando éreis ouvidor
nonne accepistis rapina?
33. Diabo: - Quando éreis ouvidor
nonne accipistis rapina?
(...)
A largo modo adquiristis
Sanguinis laboratorum
Ignorantes peccatorum.
(...)
Ora, entrai nos negros fados!
35. Procurador : - Beijo-vo-las mãos, Juiz!
Que diz esse arrais? Que diz?
Diabo: - Que sereis bom remador. (...)
Procurador: - Bacharel som... Dou-me ò Demo!
(...)
Parvo: - Hou, homens dos breviairos,
rapinastis coelhorum
et pernis perdiguitorum
e mijais nos campanairos (...)
36. Anjo: - A justiça divinal
vos manda vir carregados
porque vades embarcados
nesse batel infernal.
38. Diabo: - Venhais embora, Enforcado!
Que diz lá Garcia Moniz?
Enforcado: - (...) que fui bem-aventurado
em morrer dependurado
(...)
e diz que os feitos que fiz
me fazem canonizado.
41. Diabo: - Cavaleiros, vós passais
e nom perguntais onde is?
Cavaleiro: - Vós, Satanás, presumis?
Atentai com quem falais!
(...)
Diabo: - Entrai cá! Que cousa é essa?
(...)
Cavaleiro: - Quem morre por Jesu Cristo
Não vai em tal barca como essa!
44. -AUTO de moralidade (alegoria,
religiosidade)
- farsa (painel social da época)
- versos redondilhos maiores
-disposição das rimas: ABBAACCA
-estrutura: único ato; cenas com
diálogos
-linguagem: típica de cada grupo
social
7/3/2014
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45. 1.ª alegoria: Diabo, o Arrais do
Inferno (alegre e irônico) e
companheiro
- Fidalgo D. Anrique (1.ª alma)
- Onzeneiro (2.ª)
- Sapateiro Jam Antão (4.ª)
- Frade, Frei Babriel (5.ª)
7/3/2014
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46. - Alcoviteira Brísida Vaz (6.ª)
- Judeu Semifará (7.ª) – é
atrelado à Barca do Inferno
- Corregedor (8.ª)
- Procurador (9.ª)
- Enforcado Pero de Lisboa (10.ª)
7/3/2014
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47. 2.ª alegoria: Anjo, o Arrais do
Céu (lacônico e severo)
- Parvo Joane (3.ª)
- 4 Cavaleiros (11.ª)
E assi embarcam.
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