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Encriptar, revelar
– uma gruta e uma clareira –
Sara Antónia Matos
Sabe-se que uma das razões para escrever sobre arte reside na tentativa de ver melhor uma
obra, vê-la com os olhos mas também com os outros sentidos, explorá-la por dentro e por fora,
não só com o corpo mas também com o intelecto, aceder à sua aparência formal mas também
aos seus significados mais endógenos. O exercício da escrita parece permitir desvendar um
problema colocado pela obra, o que no caso de Francisco Tropa e de Alberto Carneiro
aparenta radicar nas relações entre realidade e representação, arte e vida, que a seguir se
exploram.
A obra destes dois autores sempre me apareceu sob a forma de um enigma extremamente
difícil de desvendar, mas por razões inversas. A de Francisco Tropa porque confere à realidade
concreta e aos artefactos singelos (insectos, pequenos elementos vegetais, instrumentos,
objectos, dispositivos ópticos), uma aparência extremamente cifrada. A de Alberto Carneiro
porque concede aos aspectos mais complexos da existência, nomeadamente ao processo de
ressignificação do mundo factual, à operação poética e intelectual envolvida na representação,
uma forma palpável e uma aparência acessível.
Nesta exposição da bienal Anozero (2015) em Coimbra, as obras dos dois artistas juntam-se à
curadoria de Carlos Antunes, director do CAPC (Círculo de Artes Plásticas de Coimbra) e da
bienal, que escolheu uma obra de Francisco Tropa proveniente de uma das mais importantes
colecções de arte da cidade e convidou Alberto Carneiro a pensar numa obra que se
articulasse com aquela.
O encontro das obras surge inesperado porque enquanto Tropa procede a uma espécie de
cifra constante da realidade, como que operando na recuperação de uma dimensão mágica
perdida, Carneiro parece insistir no seu desvelamento. Para Tropa, parece urgente restituir a
magia à sociedade contemporânea, despida dos modelos mágico-religiosos, podendo a arte
voltar a trazê-la de novo à vida. E em Carneiro, parece haver uma espécie de deciframento
dessa operação sensível e intelectual, poética e artística, que distingue os humanos dos outros
seres vivos e lhes confere capacidade de representação. Nessa perspetiva, também o seu
trabalho pode dizer-se mágico, mas no sentido de revelação. Alberto Carneiro como que dá a
ver a própria operação de representação artística, como se expusesse aos nossos olhos a
transformação dos materiais brutos em novas formas significantes – obras de arte. Nessa
operação, que temos a sensação de se ir desvelando à nossa frente (parecendo então singela,
sem o ser) o seu aparelho corporal é o instrumento privilegiado de tradução.
Os artistas, de um modo geral, não prescindem de experimentar fisicamente cada lugar de
intervenção, o que aconteceu também para esta exposição de Anozero, no Museu Municipal de
Coimbra – Edifício Chiado onde as obras foram instaladas. A exposição resulta numa
articulação de obras pré-existentes, com autonomia própria, que se tornam vizinhas no local da
exposição, sendo então recontextualizadas.
Apesar de diferentes na sua concepção, formas e materiais, pode dizer-se que ambas têm em
comum o facto de se apresentarem como dispositivos para reflectir sobre a arte e sobre o
mundo, ampliando os sentidos da realidade através da representação artística, procurando
questionar a natureza do acto criativo e o papel do artista. Mas cada um fá-lo de modo
diferente.
Para Carneiro, a actividade artística passa por mostrar (destapar, revelar) a arte no seio da
vida, e para Tropa a obra é “a experiência do transe” como metáfora do processo criativo,
naquilo que ele tem de secreto e insondável.1 Tanto assim é que, segundo Miguel
Wandschneider, autor de uma das abordagens mais completas sobre a obra de Francisco
Tropa, boa parte dos fenómenos de representação ficam inacessíveis, aparecendo somente
índices deles. Segundo o curador, o trabalho deste artista releva de uma “imaginação que é
posta em marcha por uma miscelânea de referências das origens mais díspares, de horizontes
históricos muito afastados e de contextos culturais muito diferentes, e que entra em combustão
através das relações improváveis e extraordinariamente fecundas que estabelece (…). Tudo
(…) é codificado em função de uma trama narrativa obscura, de uma construção mental
extremamente abstracta, de um pensamento alegórico que transcende as evidências do
visível.” (Wandschneider, 2009: 10-13). Assim, a sua obra surge críptica, labiríntica, enigmática
e a concepção das peças revela-se tão rebuscada que, muitas vezes, torna-se difícil
acompanhá-lo.
Foquemo-nos então nas peças apresentadas em Anozero, no Edifício Chiado, provenientes de
obras anteriores feitas pelos artistas: “Alegoria do Espaço” (2006) de Francisco Tropa,
pertencente à colecção de António Albertino e “Momento 3 – Os bambus com vinte e uma
imagens do teu ser imaginante” (2009-13) de Alberto Carneiro, apresentada na exposição “arte
vida/ vida arte” em Serralves, no ano de 2013.
Enquanto peças autónomas, ambas integram em si dispositivos de projecção da imagem – o
que poderá indicar que ambas chamam a si um problema basilar à arte: o problema sobre o
olhar, sobre os modos de ver da realidade, e sobre a própria representação.
Na peça de Tropa, a imagem é produzida através de um feixe de luz (recortado por um slide de
metal) que atravessa um elemento de vidro, suspenso no ar, projectando na parede uma
sombra e formando em seu redor um ambiente escuro próprio de uma gruta. Com esta
estrutura, a peça gera dois níveis de imagens, criando uma parábola dentro de outra parábola:
a imagem projectada dentro do ambiente grutesco (de gruta) onde, por sua vez, se observa
aquela projecção. Na verdade, surgindo encriptada, a peça junta duas referências: a “Divina
Comédia” de Dante, que narra uma odisseia pelo Inferno, o Purgatório e o Paraíso, aludindo a
cada etapa da viagem e “Alegoria da Caverna” de Platão, uma alegoria à própria construção
das imagens, as quais condicionam o entendimento e concepção do mundo aos olhos dos
1
Miguel Wandschneider, em A Assembleia de Euclides, “Figuras da Alteridade”, Culturgest, Lisboa, 2009,
p.11.
seres humanos. Assim, a primeira parábola está condensada na imagem projectada, cuja
sombra produzida pela ampulheta, mostra um universo composto por uma forma cónica
descendente (um buraco correspondente ao inferno na obra de Dante) e uma forma cónica
ascendente (um monte para ascender ao paraíso, correspondente ao purgatório na obra desse
mesmo autor). A segunda parábola é formada por todos os dispositivos e elementos da obra,
inclusive o espaço e o espectador, o qual, dentro da gruta, tal como na caverna imaginada por
Platão, pode observar a sombra projectada e o próprio objecto que a produz. Deste modo, a
caverna corresponde ao próprio ambiente onde o artista coloca o espectador, o qual fica
imerso no centro do dispositivo, é nele envolvido e dele não se pode destacar. Assim, pode
dizer-se que a obra de Francisco Tropa é tautológica na medida em que encerra uma reflexão
sobre a forma de construção das imagens e do seu aparecer, uma metalinguagem sobre a
emergência das imagens.
De modo diferente, a peça de Carneiro é constituída por centenas de bambus vergados e
modelados pelos gestos do autor, com recurso a fios de ráfia enlaçados segundo preceitos
agrícolas (e estéticos) ancestrais, e pequenas secções de espelho amarradas naqueles,
reproduzindo a imagem do observador que com elas se cruza. Pode considerar-se que nesta
obra o mecanismo de representação é desvelado para o espectador, que é inserido na peça e
nela se vê reflectido – como se os elementos vegetais constituíssem o seu outro, um outro que
permite ao ser humano ver-se espelhado nas suas acções e formas de produzir representação.
Ora, estes modos de criação de distância, ou de extrema proximidade, são determinantes para
perceber os paradigmas artísticos e a produção de artefactos. O problema da criação artística
radica precisamente no entendimento da arte como forma de tornar presente um determinado
ente, coisa ou ideia [presentificação] ou, pelo contrário, de os apresentar por via de
[representação].
Para melhor se compreender a obra destes autores, pode ser útil recorrer ao filósofo norte-
americano Arthur C. Danto cujo livro A Transfiguração do Lugar-comum, uma filosofia da arte2,
aborda a diferença ontológica entre as obras de arte e os objectos comuns que eventualmente
são indistinguíveis daquelas. Digamos que há qualquer coisa que permite distinguir as
representações artísticas, dos objectos comuns do quotidiano, mesmo quando as obras são
produzidas com recurso a materiais e objectos provenientes daquele.
Para dar a entender este processo, o filósofo desmonta as noções de representação ao longo
da história. Baseando-se em O Nascimento da Tragédia Grega de Friedrich Nietzsche, ele
distingue duas formas de representação. No primeiro sentido “a coisa em si aparece”, uma
determinada realidade ou coisa (como um deus ou uma força) tem o poder de estar de novo
presente através de um meio diferente, como a pedra ou a madeira. Nesta acepção, a arte
adquire uma dimensão mágica ou xamânica, ligada ao ritual: a arte tem o poder de fazer uma
coisa estar literalmente presente (assim sendo, a estátua não substitui deus ou uma força
porque ele ou as forças invocadas estão na estátua). Na segunda acepção, a coisa faz-se
2
Arthur C. Danto, (2005) A Transfiguração do Lugar-comum, uma filosofia da arte [1981], Tradução Vera
Pereira, com prefácio de Arthur C. Danto para a edição brasileira, Cosacnayfy, São Paulo.
representar por via de outra e a arte é uma forma de designar essa representação “por via de”.
(Danto, 2005: 55-63).
Esta distinção é fundamental porque dela depende a relação que se estabelece com os
artefactos (ou objectos xamânicos) e as obras de arte. Ou a relação com elas se estabelece
por via ilusória, ritualística, induzindo que são ou invocam a realidade em si; ou, pelo contrário,
se encaram como produção cultural, forma de conhecimento, parte da realidade mas com
consciência de que são formas de representação – princípio que está de facto na base da obra
dos dois artistas.
Aquela distinção sinalizada pelo filósofo faz toda a diferença: o prazer e a aprendizagem só
podem advir quando se distingue a fantasia da realidade, o que “imita” do que “é” (Danto, 2005:
49-51). Só essa diferenciação conduz ao conhecimento e capacita o sujeito para produzir os
seus posicionamentos ideológicos face ao mundo, e para os quais a arte contribui.
Assim, pode reter-se a ideia de que a arte participa na aprendizagem e na vida quando se
distingue (aquilo que é da ordem da) representação e (aquilo que é da ordem da) realidade
comum, muito embora os dois autores, Tropa e Carneiro, versem as duas em simultâneo: um
procurando restituir uma dimensão mágica à realidade contemporânea, outro mostrando que a
mesma está presente nos actos e nas coisas mais singelas da vida, sendo apenas necessário
revelá-la. Através das suas obras, ambos dão a ver realidade a partir de outros ângulos,
tomando posições sobre a mesma, interferindo nela, procurando devolver-lhe alguma
espiritualidade. Significa que a arte participa na vida, na sua ressignificação e atribuição de
sentidos, mesmo quando, devido ao seu carácter abstracto, parece cada vez mais afastada
dela.
Ainda de acordo com o filósofo, o conceito de arte sofreu uma transformação na Grécia antiga,
ou melhor, começou a formar-se aí. O que precedia o conceito arte era uma noção de magia: a
arte era a forma mágica de tornar os deuses literalmente presentes. “Quando essa relação
mágica, de identidade complexa (entre a forma de fazer aparecer e a coisa em si) desapareceu
e as estátuas passaram a ser interpretadas como meras representações dos reis e dos deuses,
não houve necessidade de modificação da forma para mudar a função semântica.” (Danto,
2005: 128). Somente quando as imagens adquiriram a função semântica e metafórica (que não
tinham) é que puderam considerar-se representações propriamente ditas. Dito de outro modo,
passaram a estar no lugar daquilo que designavam, deixando de ser a realidade ou a coisa em
si. Assim, os elementos de representação foram percebidos como distanciados da realidade,
como se estivessem fora dela. A própria realidade passou por uma transformação
correspondente, perdendo o seu aspecto mágico aos olhos dos seres humanos e as
representações/imagens eram mais uma linguagem ao seu dispor. “Como se começou enfim a
discernir a existência de uma distância entre a representação e a realidade, foi possível propor,
pela primeira vez, certas questões concernentes à arte (…)” (Danto, 2005: 128).
Significa que para além dos sentidos mais específicos que as obras isoladas destes dois
autores possam conter, as mesmas envolvem, em primeira instância, uma dimensão
tautológica sobre a própria condição de representação. Elas remetem para si mesmas, para a
sua condição e natureza artística, para os próprios processos de representação. Relembrem-
se, por exemplo, as sagas de “A Assembleia de Euclides”, “O Transe do Ciclista” e “A Marca do
Seio” em que, de forma alegórica, Tropa como que materializa o próprio sistema de
representação fotográfico. Ou “Momento 13 – Três linhas do horizonte com céu aberto e uma
descrição contínua de paisagens com vinte e uma imagens do teu ser imaginante”, de Alberto
Carneiro, uma intervenção em desenho e espelho, com cerca de 10 metros de comprimento,
sobre as paredes do museu, também ela uma obra alegórica, que alude ao ciclo da vida ao
mesmo tempo que mostra que o ser humano não é outra coisa senão um processo de
representação. O homem e o mundo são “uma representação”, e só adquirem sentido na
medida em que se consigam representar, caso contrario: não existem.
A explicação do filósofo, atrás citado, leva a pensar que quanto menos crenças mágicas se tem
e de mais ferramentas críticas se dispõe, mais a sociedade se transforma e mais lugar concede
à arte enquanto forma de representação. Esta já não é encarada como tendo uma função
mágica mas como um domínio de produção de conhecimento, que envolve problemas auto-
referenciais. Passa então a debruçar-se sobre as suas questões internas e abstractas,
autonomizando o domínio do conhecimento, como aconteceu no modernismo. Neste período,
pareceu que a arte, com elevado grau de abstracção, se desligou dos problemas concretos da
vida, afastando-se da realidade. Isto não significa que a arte tenha estado desligada da vida. O
que aconteceu foi uma des-identificação entre o que era realidade e representação,
acentuando a distinção entre o terreno da vida comum e um campo do saber especializado
com questões intrínsecas. Neste último contexto, a reflexão sobre a arte (sobre o que é a arte e
o que cabe no seu conceito) passa a ser tão relevante como o próprio objecto artístico, quando
o mesmo existe – facetas reflexivas e tautológicas que levam o filósofo a considerar que a arte
se equipara à sua forma filosófica (Danto, 2005) – o que de facto é patente na elaboração
conceptual inerente à obra de Tropa e de Carneiro. Em cada um deles, a arte pode ser
entendida como uma prática que formula questões acerca da sua própria natureza, a condição
representativa.
Embora a dimensão auto-referencial lhes seja intrínseca, pode dizer-se também que na obra
destes dois artistas a arte nunca se desligou totalmente da vida, o que é evidente em Carneiro
que desde sempre se ocupou da relação arte-vida, como aliás ficou patente na sua exposição
em Serralves que se intitulou: arte vida/vida arte3.
Face a tal indissociabilidade, pode então colocar-se a pergunta: «onde» está a arte, para estes
dois autores? Ela pode estar em todo o lado, nomeadamente no âmbito da vida, porque ela
consiste exactamente na capacidade de trazer à consciência que a ressignificação do mundo,
a ampliação dos sentidos da vida, está contida no acto artístico.
Um fá-lo cifrando. Outro desvelando-o. Tropa age para colmatar a falta de uma energia mística
e fundadora na vida; Carneiro, para mostrar que a magia da criação poética está em cada
respiração.
3
Vide catálogo: “arte vida/ vida arte” Concepção: Alberto Carneiro, Textos: Alberto Carneiro, Catarina
Rosendo, João Fernandes e Suzanne Cotter, edição Serralves, 2013.
Nesse sentido, talvez se possa concluir este texto dizendo que o importante não é o que
acontece no museu, mas o que acontece depois de se ir ao museu. O importante não é o que
se vê em exposição, mas o que se vê depois de observar os objectos expostos, ou seja, o
modo como posteriormente o olhar se confronta com a realidade. Digamos que o museu, a
exposição, o encontro com a obra de arte é apenas o momento, a vivência, a experiência, que
poderá levar alguém a experimentar a realidade de forma diferente.
Julgo ser isto mesmo que se propõe nesta exposição para Anozero, em Coimbra. Entremos na
gruta de Francisco Tropa e na floresta/clareira de Alberto Carneiro e deixemo-nos perder, para
depois voltar a olhar a realidade e vê-la transformar-se.
*A autora não escreve segundo o Acordo Ortográfico

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Encriptar e revelar - Francisco Tropa e Alberto Carneiro

  • 1. Encriptar, revelar – uma gruta e uma clareira – Sara Antónia Matos Sabe-se que uma das razões para escrever sobre arte reside na tentativa de ver melhor uma obra, vê-la com os olhos mas também com os outros sentidos, explorá-la por dentro e por fora, não só com o corpo mas também com o intelecto, aceder à sua aparência formal mas também aos seus significados mais endógenos. O exercício da escrita parece permitir desvendar um problema colocado pela obra, o que no caso de Francisco Tropa e de Alberto Carneiro aparenta radicar nas relações entre realidade e representação, arte e vida, que a seguir se exploram. A obra destes dois autores sempre me apareceu sob a forma de um enigma extremamente difícil de desvendar, mas por razões inversas. A de Francisco Tropa porque confere à realidade concreta e aos artefactos singelos (insectos, pequenos elementos vegetais, instrumentos, objectos, dispositivos ópticos), uma aparência extremamente cifrada. A de Alberto Carneiro porque concede aos aspectos mais complexos da existência, nomeadamente ao processo de ressignificação do mundo factual, à operação poética e intelectual envolvida na representação, uma forma palpável e uma aparência acessível. Nesta exposição da bienal Anozero (2015) em Coimbra, as obras dos dois artistas juntam-se à curadoria de Carlos Antunes, director do CAPC (Círculo de Artes Plásticas de Coimbra) e da bienal, que escolheu uma obra de Francisco Tropa proveniente de uma das mais importantes colecções de arte da cidade e convidou Alberto Carneiro a pensar numa obra que se articulasse com aquela. O encontro das obras surge inesperado porque enquanto Tropa procede a uma espécie de cifra constante da realidade, como que operando na recuperação de uma dimensão mágica perdida, Carneiro parece insistir no seu desvelamento. Para Tropa, parece urgente restituir a magia à sociedade contemporânea, despida dos modelos mágico-religiosos, podendo a arte voltar a trazê-la de novo à vida. E em Carneiro, parece haver uma espécie de deciframento dessa operação sensível e intelectual, poética e artística, que distingue os humanos dos outros seres vivos e lhes confere capacidade de representação. Nessa perspetiva, também o seu trabalho pode dizer-se mágico, mas no sentido de revelação. Alberto Carneiro como que dá a ver a própria operação de representação artística, como se expusesse aos nossos olhos a transformação dos materiais brutos em novas formas significantes – obras de arte. Nessa operação, que temos a sensação de se ir desvelando à nossa frente (parecendo então singela, sem o ser) o seu aparelho corporal é o instrumento privilegiado de tradução. Os artistas, de um modo geral, não prescindem de experimentar fisicamente cada lugar de intervenção, o que aconteceu também para esta exposição de Anozero, no Museu Municipal de Coimbra – Edifício Chiado onde as obras foram instaladas. A exposição resulta numa
  • 2. articulação de obras pré-existentes, com autonomia própria, que se tornam vizinhas no local da exposição, sendo então recontextualizadas. Apesar de diferentes na sua concepção, formas e materiais, pode dizer-se que ambas têm em comum o facto de se apresentarem como dispositivos para reflectir sobre a arte e sobre o mundo, ampliando os sentidos da realidade através da representação artística, procurando questionar a natureza do acto criativo e o papel do artista. Mas cada um fá-lo de modo diferente. Para Carneiro, a actividade artística passa por mostrar (destapar, revelar) a arte no seio da vida, e para Tropa a obra é “a experiência do transe” como metáfora do processo criativo, naquilo que ele tem de secreto e insondável.1 Tanto assim é que, segundo Miguel Wandschneider, autor de uma das abordagens mais completas sobre a obra de Francisco Tropa, boa parte dos fenómenos de representação ficam inacessíveis, aparecendo somente índices deles. Segundo o curador, o trabalho deste artista releva de uma “imaginação que é posta em marcha por uma miscelânea de referências das origens mais díspares, de horizontes históricos muito afastados e de contextos culturais muito diferentes, e que entra em combustão através das relações improváveis e extraordinariamente fecundas que estabelece (…). Tudo (…) é codificado em função de uma trama narrativa obscura, de uma construção mental extremamente abstracta, de um pensamento alegórico que transcende as evidências do visível.” (Wandschneider, 2009: 10-13). Assim, a sua obra surge críptica, labiríntica, enigmática e a concepção das peças revela-se tão rebuscada que, muitas vezes, torna-se difícil acompanhá-lo. Foquemo-nos então nas peças apresentadas em Anozero, no Edifício Chiado, provenientes de obras anteriores feitas pelos artistas: “Alegoria do Espaço” (2006) de Francisco Tropa, pertencente à colecção de António Albertino e “Momento 3 – Os bambus com vinte e uma imagens do teu ser imaginante” (2009-13) de Alberto Carneiro, apresentada na exposição “arte vida/ vida arte” em Serralves, no ano de 2013. Enquanto peças autónomas, ambas integram em si dispositivos de projecção da imagem – o que poderá indicar que ambas chamam a si um problema basilar à arte: o problema sobre o olhar, sobre os modos de ver da realidade, e sobre a própria representação. Na peça de Tropa, a imagem é produzida através de um feixe de luz (recortado por um slide de metal) que atravessa um elemento de vidro, suspenso no ar, projectando na parede uma sombra e formando em seu redor um ambiente escuro próprio de uma gruta. Com esta estrutura, a peça gera dois níveis de imagens, criando uma parábola dentro de outra parábola: a imagem projectada dentro do ambiente grutesco (de gruta) onde, por sua vez, se observa aquela projecção. Na verdade, surgindo encriptada, a peça junta duas referências: a “Divina Comédia” de Dante, que narra uma odisseia pelo Inferno, o Purgatório e o Paraíso, aludindo a cada etapa da viagem e “Alegoria da Caverna” de Platão, uma alegoria à própria construção das imagens, as quais condicionam o entendimento e concepção do mundo aos olhos dos 1 Miguel Wandschneider, em A Assembleia de Euclides, “Figuras da Alteridade”, Culturgest, Lisboa, 2009, p.11.
  • 3. seres humanos. Assim, a primeira parábola está condensada na imagem projectada, cuja sombra produzida pela ampulheta, mostra um universo composto por uma forma cónica descendente (um buraco correspondente ao inferno na obra de Dante) e uma forma cónica ascendente (um monte para ascender ao paraíso, correspondente ao purgatório na obra desse mesmo autor). A segunda parábola é formada por todos os dispositivos e elementos da obra, inclusive o espaço e o espectador, o qual, dentro da gruta, tal como na caverna imaginada por Platão, pode observar a sombra projectada e o próprio objecto que a produz. Deste modo, a caverna corresponde ao próprio ambiente onde o artista coloca o espectador, o qual fica imerso no centro do dispositivo, é nele envolvido e dele não se pode destacar. Assim, pode dizer-se que a obra de Francisco Tropa é tautológica na medida em que encerra uma reflexão sobre a forma de construção das imagens e do seu aparecer, uma metalinguagem sobre a emergência das imagens. De modo diferente, a peça de Carneiro é constituída por centenas de bambus vergados e modelados pelos gestos do autor, com recurso a fios de ráfia enlaçados segundo preceitos agrícolas (e estéticos) ancestrais, e pequenas secções de espelho amarradas naqueles, reproduzindo a imagem do observador que com elas se cruza. Pode considerar-se que nesta obra o mecanismo de representação é desvelado para o espectador, que é inserido na peça e nela se vê reflectido – como se os elementos vegetais constituíssem o seu outro, um outro que permite ao ser humano ver-se espelhado nas suas acções e formas de produzir representação. Ora, estes modos de criação de distância, ou de extrema proximidade, são determinantes para perceber os paradigmas artísticos e a produção de artefactos. O problema da criação artística radica precisamente no entendimento da arte como forma de tornar presente um determinado ente, coisa ou ideia [presentificação] ou, pelo contrário, de os apresentar por via de [representação]. Para melhor se compreender a obra destes autores, pode ser útil recorrer ao filósofo norte- americano Arthur C. Danto cujo livro A Transfiguração do Lugar-comum, uma filosofia da arte2, aborda a diferença ontológica entre as obras de arte e os objectos comuns que eventualmente são indistinguíveis daquelas. Digamos que há qualquer coisa que permite distinguir as representações artísticas, dos objectos comuns do quotidiano, mesmo quando as obras são produzidas com recurso a materiais e objectos provenientes daquele. Para dar a entender este processo, o filósofo desmonta as noções de representação ao longo da história. Baseando-se em O Nascimento da Tragédia Grega de Friedrich Nietzsche, ele distingue duas formas de representação. No primeiro sentido “a coisa em si aparece”, uma determinada realidade ou coisa (como um deus ou uma força) tem o poder de estar de novo presente através de um meio diferente, como a pedra ou a madeira. Nesta acepção, a arte adquire uma dimensão mágica ou xamânica, ligada ao ritual: a arte tem o poder de fazer uma coisa estar literalmente presente (assim sendo, a estátua não substitui deus ou uma força porque ele ou as forças invocadas estão na estátua). Na segunda acepção, a coisa faz-se 2 Arthur C. Danto, (2005) A Transfiguração do Lugar-comum, uma filosofia da arte [1981], Tradução Vera Pereira, com prefácio de Arthur C. Danto para a edição brasileira, Cosacnayfy, São Paulo.
  • 4. representar por via de outra e a arte é uma forma de designar essa representação “por via de”. (Danto, 2005: 55-63). Esta distinção é fundamental porque dela depende a relação que se estabelece com os artefactos (ou objectos xamânicos) e as obras de arte. Ou a relação com elas se estabelece por via ilusória, ritualística, induzindo que são ou invocam a realidade em si; ou, pelo contrário, se encaram como produção cultural, forma de conhecimento, parte da realidade mas com consciência de que são formas de representação – princípio que está de facto na base da obra dos dois artistas. Aquela distinção sinalizada pelo filósofo faz toda a diferença: o prazer e a aprendizagem só podem advir quando se distingue a fantasia da realidade, o que “imita” do que “é” (Danto, 2005: 49-51). Só essa diferenciação conduz ao conhecimento e capacita o sujeito para produzir os seus posicionamentos ideológicos face ao mundo, e para os quais a arte contribui. Assim, pode reter-se a ideia de que a arte participa na aprendizagem e na vida quando se distingue (aquilo que é da ordem da) representação e (aquilo que é da ordem da) realidade comum, muito embora os dois autores, Tropa e Carneiro, versem as duas em simultâneo: um procurando restituir uma dimensão mágica à realidade contemporânea, outro mostrando que a mesma está presente nos actos e nas coisas mais singelas da vida, sendo apenas necessário revelá-la. Através das suas obras, ambos dão a ver realidade a partir de outros ângulos, tomando posições sobre a mesma, interferindo nela, procurando devolver-lhe alguma espiritualidade. Significa que a arte participa na vida, na sua ressignificação e atribuição de sentidos, mesmo quando, devido ao seu carácter abstracto, parece cada vez mais afastada dela. Ainda de acordo com o filósofo, o conceito de arte sofreu uma transformação na Grécia antiga, ou melhor, começou a formar-se aí. O que precedia o conceito arte era uma noção de magia: a arte era a forma mágica de tornar os deuses literalmente presentes. “Quando essa relação mágica, de identidade complexa (entre a forma de fazer aparecer e a coisa em si) desapareceu e as estátuas passaram a ser interpretadas como meras representações dos reis e dos deuses, não houve necessidade de modificação da forma para mudar a função semântica.” (Danto, 2005: 128). Somente quando as imagens adquiriram a função semântica e metafórica (que não tinham) é que puderam considerar-se representações propriamente ditas. Dito de outro modo, passaram a estar no lugar daquilo que designavam, deixando de ser a realidade ou a coisa em si. Assim, os elementos de representação foram percebidos como distanciados da realidade, como se estivessem fora dela. A própria realidade passou por uma transformação correspondente, perdendo o seu aspecto mágico aos olhos dos seres humanos e as representações/imagens eram mais uma linguagem ao seu dispor. “Como se começou enfim a discernir a existência de uma distância entre a representação e a realidade, foi possível propor, pela primeira vez, certas questões concernentes à arte (…)” (Danto, 2005: 128). Significa que para além dos sentidos mais específicos que as obras isoladas destes dois autores possam conter, as mesmas envolvem, em primeira instância, uma dimensão tautológica sobre a própria condição de representação. Elas remetem para si mesmas, para a
  • 5. sua condição e natureza artística, para os próprios processos de representação. Relembrem- se, por exemplo, as sagas de “A Assembleia de Euclides”, “O Transe do Ciclista” e “A Marca do Seio” em que, de forma alegórica, Tropa como que materializa o próprio sistema de representação fotográfico. Ou “Momento 13 – Três linhas do horizonte com céu aberto e uma descrição contínua de paisagens com vinte e uma imagens do teu ser imaginante”, de Alberto Carneiro, uma intervenção em desenho e espelho, com cerca de 10 metros de comprimento, sobre as paredes do museu, também ela uma obra alegórica, que alude ao ciclo da vida ao mesmo tempo que mostra que o ser humano não é outra coisa senão um processo de representação. O homem e o mundo são “uma representação”, e só adquirem sentido na medida em que se consigam representar, caso contrario: não existem. A explicação do filósofo, atrás citado, leva a pensar que quanto menos crenças mágicas se tem e de mais ferramentas críticas se dispõe, mais a sociedade se transforma e mais lugar concede à arte enquanto forma de representação. Esta já não é encarada como tendo uma função mágica mas como um domínio de produção de conhecimento, que envolve problemas auto- referenciais. Passa então a debruçar-se sobre as suas questões internas e abstractas, autonomizando o domínio do conhecimento, como aconteceu no modernismo. Neste período, pareceu que a arte, com elevado grau de abstracção, se desligou dos problemas concretos da vida, afastando-se da realidade. Isto não significa que a arte tenha estado desligada da vida. O que aconteceu foi uma des-identificação entre o que era realidade e representação, acentuando a distinção entre o terreno da vida comum e um campo do saber especializado com questões intrínsecas. Neste último contexto, a reflexão sobre a arte (sobre o que é a arte e o que cabe no seu conceito) passa a ser tão relevante como o próprio objecto artístico, quando o mesmo existe – facetas reflexivas e tautológicas que levam o filósofo a considerar que a arte se equipara à sua forma filosófica (Danto, 2005) – o que de facto é patente na elaboração conceptual inerente à obra de Tropa e de Carneiro. Em cada um deles, a arte pode ser entendida como uma prática que formula questões acerca da sua própria natureza, a condição representativa. Embora a dimensão auto-referencial lhes seja intrínseca, pode dizer-se também que na obra destes dois artistas a arte nunca se desligou totalmente da vida, o que é evidente em Carneiro que desde sempre se ocupou da relação arte-vida, como aliás ficou patente na sua exposição em Serralves que se intitulou: arte vida/vida arte3. Face a tal indissociabilidade, pode então colocar-se a pergunta: «onde» está a arte, para estes dois autores? Ela pode estar em todo o lado, nomeadamente no âmbito da vida, porque ela consiste exactamente na capacidade de trazer à consciência que a ressignificação do mundo, a ampliação dos sentidos da vida, está contida no acto artístico. Um fá-lo cifrando. Outro desvelando-o. Tropa age para colmatar a falta de uma energia mística e fundadora na vida; Carneiro, para mostrar que a magia da criação poética está em cada respiração. 3 Vide catálogo: “arte vida/ vida arte” Concepção: Alberto Carneiro, Textos: Alberto Carneiro, Catarina Rosendo, João Fernandes e Suzanne Cotter, edição Serralves, 2013.
  • 6. Nesse sentido, talvez se possa concluir este texto dizendo que o importante não é o que acontece no museu, mas o que acontece depois de se ir ao museu. O importante não é o que se vê em exposição, mas o que se vê depois de observar os objectos expostos, ou seja, o modo como posteriormente o olhar se confronta com a realidade. Digamos que o museu, a exposição, o encontro com a obra de arte é apenas o momento, a vivência, a experiência, que poderá levar alguém a experimentar a realidade de forma diferente. Julgo ser isto mesmo que se propõe nesta exposição para Anozero, em Coimbra. Entremos na gruta de Francisco Tropa e na floresta/clareira de Alberto Carneiro e deixemo-nos perder, para depois voltar a olhar a realidade e vê-la transformar-se. *A autora não escreve segundo o Acordo Ortográfico