O documento conta a história de Diogo, um escritor brasileiro que se muda para Portugal após ter seu coração partido. Ele acaba se tornando marinheiro e sofre um acidente em alto mar, acordando em Macau onde é salvo por um homem misterioso que se revela ser Luís de Camões.
3. Traz a manhã serena claridade,
Esperança de porto e salvamento...
Versos, em forte sotaque português o despertaram, completamente confuso, sem ao
menos, momentaneamente, saber quem era.
-Por Neptuno, até que enfim acordas, homem! Já se passaram duas noites entre
reviradas de tripas e delírios!
-Onde estou? O que aconteceu?
-Estás em terra firme, marujo! Em terras do Rei de Portugal no Oriente! Ou melhor, em
terras do Oriente somente, as coisas por aqui mudam rápido, bastam uns poucos séculos
e tudo já está diferente! Ah, este mundo louco!
Diogo não entendia nada, enjoado, com uma dor de cabeça lancinante, devia ser ressaca,
aquela caipirinha com vodca no Leblon… Leblon? O navio! Lembrou-se subitamente de
tudo, até a queda. Depois mais nada.
-Morri?
-Num paraíso aportaste, mas sem que a Morte o nó de sua vida desatasse, apenas
bebeste metade do Mar da China; até a maré baixou…
-Quem é você?
-Também gostaria de saber… Sou já do que fui tão diferente que, quando por meu nome
alguém me chama, pasmo, quando conheço que ainda comigo mesmo me pareço -
respondeu lentamente, olhando para além, para o nada, sonhador...
-Puxa vida, estou quebrado, me dá uma mãozinha aqui, cara, vou tentar me levantar.
-Falas minha língua, mas com um sotaque desconhecido e palavras estranhas;
certamente nativo não és da ocidental praia lusitana. De que terras vens?
-RJ
-Erre Jota?!
-Rio de Janeiro, Brasil!
-Brasil… boa madeira, dá um bom corante, cor de brasa… belas índias… Não conheço
este rio de que falas, mas certamente não é maior que o Zhu Jiang, de cujas águas
também certamente bebeste!
-Estou em Hong Kong?
-Não, estamos na mais bela pérola que esse rio deu ao homem, aqui é nossa velha e
querida A-Ma-Gao!
-Seria Macau?
3
4. -Exato! Estás na Cidade do Santo Nome de Deus de Macau… Corrijo, já mudou também,
agora é só Macau… Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, muda-se o ser,
muda-se a confiança; todo o mundo é composto de mudança, tomando sempre novas
qualidades…
Diogo, desperto pela curiosidade, pelo momento irreal que era reforçado pelas palavras
poéticas que ouvia e que o assustavam, mas desconfiado de que apenas estava a
sonhar, procurou sentar-se e começou a melhorar, sentir o corpo, clarear a mente. Notou
suas vestes secas, sinal de que já se passara um bom tempo desde que fora resgatado.
Olhou para o estranho que provavelmente o retirara do mar, salvara sua vida. Seria talvez
um marinheiro ou pescador, descalço, barbado, trajando apenas uns calções largos e
uma camisa de algodão grosso. Notou que faltava àquele homem de aparência vigorosa e
guerreira, um olho, o direito. Mas a face tinha um quê de majestade, a barba espessa, os
bigodes retorcidos para cima à moda antiga…
-Você me salvou? Como vim parar aqui?
-Apenas o recolhi na areia e procurei esvaziá-lo, estavas como uma pipa de água
salgada!
-Eu lhe agradeço, amigo; meu Deus, pensei que era meu fim quando caí… que
desespero!
-Nos perigos grandes, o temor é maior muitas vezes que o perigo.
-Você tem frases de poeta! Mora aqui?
-Moro na vila, mas gosto de perambular, sentar-me entre as pedras da gruta, ficar isolado,
meditar...
-Me parece deserto, não é perigoso?
-Anda sempre tão unido o meu tormento comigo que eu mesmo sou meu perigo. Faz-me
bem o isolamento. Meu trabalho não é dos mais alegres…
-O que você faz?
-Sou Provedor-mor dos Defuntos e Ausentes!
-Profissão estranha, nunca ouvi falar…
-É o que me conseguiram, e graças a uns bons amigos; a situação em Lisboa não era das
melhores.
-A minha também não era boa no Brasil, onde perdi meu grande amor… Mas depois
dessa minha quase morte, começo a ver a vida com outros olhos, quero vivê-la apesar de
4
5. tudo, recomeçar!
-O amor… aqui o encontrei, mas para mares revoltos o perdi. Agora ela repousa lá no
Céu eternamente, e viva eu cá na terra sempre triste...
-Ânimo senhor, é preciso ânimo!
-Meu jovem náufrago do mar, arriscas-te a naufragar também em terra com tão cândido
entusiasmo! Pouco sabe da tristeza quem, sem remédio para ela, diz ao triste que se
alegre; pois não vê que alheios contentamentos a um coração descontente, não lhe
remediando o que sente, lhe dobram o que padece… A realidade é cruel e disso provei
em minha já longa vida: os bons vi sempre passar no mundo graves tormentos; e para
mais me espantar os maus vi sempre nadar em mar de contentamentos… A verdadeira
afeição na longa ausência se prova e se já liberto te sentes das mágoas e das saudades,
o que possuías não era o verdadeiro amor. Feliz daquele que no livro da alma não tem
páginas escritas...
Agora devo partir. Vejo que estás recuperado, a trilha o levará até a vila. Queres pensar
as feridas do coração? Aqui é o lugar certo. Estamos em terras do futuro, mas semeadas
com oásis do passado construídos com engenho e arte por mãos portuguesas e que a
todos acolhe. Aqui se vive em paz, não correrás riscos de perder um olho em batalha,
meu amigo!
-É, notei sua perda, sinto muito, foi na Guiné? Angola?
A notável figura humana aprumou-se, sorriu, e já desaparecendo por entre o arvoredo
gritou com orgulho:
-Ceuta! Contra os mouros!
FIM
Luís Vaz de Camões (Lisboa[?] 1524 — Lisboa, 10 de junho de 1579 ou 1580) é considerado uma das maiores figuras
da literatura lusófona e um dos grandes poetas do Ocidente.
Pouco se sabe com certeza sobre a sua vida. Aparentemente nasceu em Lisboa, de uma família da pequena nobreza.
Sobre a sua infância tudo é conjetura mas, ainda jovem, terá recebido uma sólida educação nos moldes clássicos,
dominando o latim e conhecendo a literatura e a história antigas e modernas. Pode ter estudado na Universidade de
Coimbra, mas a sua passagem pela escola não é documentada. Frequentou a corte de D. João III, iniciou a sua carreira
como poeta lírico e envolveu-se, como narra a tradição, em amores com damas da nobreza e possivelmente plebeias,
5
6. além de levar uma vida boémia e turbulenta. Diz-se que, por conta de um amor frustrado, autoexilou-se em África,
alistado como militar, onde perdeu um olho em batalha (Ceuta). Voltando a Portugal, feriu um servo do Paço e foi
preso. Perdoado, partiu para o Oriente. Passando lá vários anos, enfrentou uma série de adversidades, foi preso várias
vezes, combateu ao lado das forças portuguesas e escreveu a sua obra mais conhecida, a epopeia nacionalista Os
Lusíadas. Teria sido nomeado para a função de Provedor-mor dos Defuntos e Ausentes para Macau em 1562,
desempenhando-a de facto de 1563 até 1564 ou 1565. Nesta época, Macau era um entreposto comercial ainda em
formação, sendo um lugar quase deserto. Diz a tradição que ali teria escrito parte d’Os Lusíadas numa gruta, que mais
tarde recebeu o seu nome. (fonte:Wikipédia)
6