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elmano d’argus t i n t u r a s
autor título fotografia copyright composição e design versão videográfica 2ª edição bibliográfica 1ª edição bibliográfica elmano d’argus tinturas maria do rosário gamito maria do rosário gamito maria do rosário gamito / mcn mcn em microssoft office powerpoint 2.000 exemplares, Abrantes 2004, em curso inserto em A Legião dos Invisíveis, Abrantes, 2004, LITEXA EDITORA edição patrocinada por FEPPHA, Rossio ao Sul do Tejo, Abrantes. 2.000 exemplares ficha técnica
 
elmano d’argus t i n t u r a s
Há uns tempos, numa altura em que me preparava para lançar nas bocas do mundo a história da sua vida, uma espécie de autobiografia recolhida pela minha pena com alguns acrescentos literários, o Damião das Bróteas, já muito velho e alquebrado, com uma surdez galopante a acrescer-lhe à cegueira de nascença, ou de feitio, apontou-me dois fardos de papel amarelecido, atados com cordéis, e deu-mos, para que velasse por eles. Era apenas uma pequena porção do vasto espólio de memórias com que fora mobilando a sua casa, atadas em resmas e fardos, e serviam para tudo, como assentos, enxergas, mesa para o concílio gastronómico, muitas vezes para atear as achas no fogão. O resto não sei a quem deu, talvez ao títere Perdigão, seu dilecto amigo. A minha parte constava de uma grande colecção de sarrabais, alguns entremezes, panfletos sortidos, tudo impresso em oitavo e encadernado em peças de um prego ou dois, ou em fólio avulso de vários padrões. E ainda um cento de manuscritos breves, a maior parte epístolas, duas ou três de amor. Deduzi que o gesto do Damião significava um pedido. Para que reorganizasse, para os vindouros, a sua memória dispersa pelos caminhos. Se pudesse folhear este livrito, o Damião alegaria que não importunasse os vindouros com a memória de um pobre cego que os enfadaria. Se assim for, prego-lhe uma partida. De acordo com o tempo e os recursos, cada vez mais minguados, presentearei então o leitor com a edição desta papelada. Entre o espólio manuscrito, andava, um pouco desmembrado, um prego aqui e outro acolá, o espectro de um velho caderno de papel pardo, muito besuntado e com a caligrafia descuidada a esvair-se, atulhado de notas, umas breves e circunstanciais, um relato diário de uma viagem, o apontamento de uma visita, a lembrança de uma leitura ou a translacção de uma sentença,
outras mais consequentes, o esboço de um romance, uma comédia, metade de um tratado, até, sobre a arte da conjura, todas estas coisas intercaladas, suspensa uma retomava outra que vinha de trás. Uma trapalhada. E entre tudo isto vinha de cambulhada uma peça bizarra, que o próprio Astrólogo denominara Tinturas, que se distinguia do resto porque se apresentava sempre escrita com uma tinta de cor singular, verde. Um verde muito escuro com uma textura espessa, como a cor da pele dos lombos de um sardão. Era, talvez na intenção, um tratado sobre as cores, sob a forma de breves crónicas de episódios na sua relação com o Aníbal. O Aníbal era o mais permanente companheiro e comensal do Damião. Era estatutariamente doudo, mas dotado de uma argúcia, de um sarcasmo ingénuo e espontâneo e de uma profundidade tão singular na observação, que o Astrólogo o acolhera na presunção de que a acutilância do espírito do doudo Aníbal era o eleito complemento da acutilância do olhar do cego Damião, conclusivo intérprete de tudo o que os outros viam, mas não conseguiam enxergar. Os episódios recenseados tinham entre si em comum uma relação circunstancial, ou calculada, com o registo de uma cor, no contexto de um estado de alma ou de um afecto. Pareceu-me evidente que grande parte destas crónicas respeitavam a um período da vida do Damião em que, já velho, se interessou, com uma avidez que eu nunca soube interpretar, por iluminuras e gravuras capitulares. Eu próprio o guiei na visita a muitas bibliotecas e sobretudo tardes a fio no vasculhar de alfarrábios na penumbra pachorrenta da Biblioteca de Évora. Eu escolhia os livros, referenciava-lhe os conteúdos literários e, seguidamente, o Aníbal descrevia, gesticulando profusamente, os conteúdos iconográficos. Quando saíamos, pela tardinha, ficava a sala cheia de moscas e o ar empestado do cheiro a alho e a cebolas.
I
- Que belo, Damião, parece a cena de um teatro. Um teatro grego, encafuado entre serranias e penhascos, num vale profundo da antiga Jónia. Só falta que alguém, o nosso amigo Perdigão porventura, o títere, lhe bote as personagens e as anime. - Diz-me como é, Aníbal. Eu imagino depois, para ti, as personagens. O Damião e o Aníbal assomavam extenuados, depois de algumas léguas calcorreadas entre Brotas e Pavia, pela manhã de um dia de Outono, a uma recatada clareira que o atalho ladeava. Sentaram-se em duas pedras para recobrar fôlego e alento. O Aníbal esbracejava, no afã de comunicar o esplendor bucólico do lugar. Quando concluiu, já a arfar, o Damião, com a cabeça entre as mãos, encheu de magia a cena, como se soltara, inadvertidamente, a mola que accionaria o movimento de uma caixa de música. Inseguro, o pequeno veado de fulva pelagem despontou nos limites da clareira, olhou em redor nervosamente e, já descontraído, invadiu a mancha verde do prado recatado, mordiscando a erva. Da quietude penumbrenta do montado, o lobo saltou. O célere movimento nem se fixou na retina. Apenas o ambiente se perturbou num ápice, como se as árvores, em uníssono com os pássaros irrequietos, lançassem no ar um grito lancinante. No momento imediato, a paisagem reestruturou-se e repousou de novo. Um fio de sangue rubro, ainda fumegante, espraiava-se lentamente sobre a verdura. E um raio de Sol rompeu entre as folhagens e depositou miríades de breves cintilações de oiro sobre o fluido fugidio. Não havia mais vestígios. Num cosmogónico instante, absorto e distraído, Deus criou a bandeira. Era a hora sexta. Estava o Mar ausente ainda.
II
A água era a presença constante, nesses vazios dias de fim de Maio. Rebolava-se em golfadas pelas calçadas, escorria em lençóis pelas vidraças, penetrava subtil e lentamente nos poros, alagando uma nostalgia dolente e corrosiva. Não se tratava de uma água fria, paralisante, mas de uma enxurrada morna e pesada, de consistência viscosa e sufocante. As palavras saíam húmidas da boca e os gestos como que se volatilizavam, em laços de vapor denso e enrolado. Criara-se-nos na alma uma interioridade labiríntica, um hibernar vigilante e hipersensível. E foi por isso, talvez, que, com unanimidade consentida, abrimos e começámos a folhear o volume de uma bela colecção italiana com a obra completa de Hieronimus Bosch, que alguém deixara esquecido sobre a mesa corrida da sala de leitura da biblioteca. Estávamos os dois sós, eu, o cego, e o doudo que descrevia as imagens, no torpor da hora da sesta, sem sabermos bem o que fazer. Entre a cor e a forma os nossos sentidos foram vadiando, minuto a minuto mais intensos e exaltados, contidos todavia pelo invólucro húmido que envolvia as almas. O pintor usa de uma solução muito perspicaz para comunicar os volumes e as profundidades. Numa exposição sistematicamente plana, laborando superfícies densamente mais povoadas na medida em que os objectos se afastam, a distância dos campos observados organiza-se, quase geometricamente, em graduações dispostas em sucessão ascendente na verticalidade da tábua. Aí, onde a frontalidade é linear, a imaginação explora, penetra, espreita, tentando tornear as figuras, forçando os ângulos. Subitamente, penetráramos já a textura espessa e densa dos óleos, pigmentos e verniz petrificados e ali ficámos emboscados no canto superior da tábua do manípulo esquerdo do Jardim das Delícias. E não me lembro se o peso e a densidade da estrutura rija e seca da madeira, se a crescente viscosidade do ar húmido nos imobilizou. Apenas, nos rostos múltiplos dos seres que nos rodeavam, um breve carregar de expressão. Surpresa pela inesperada presença, uma nota, talvez, de perturbação pela subversão que causáramos na harmonia do diletante universo pictórico.
E atónitos verificámos que, como nós penetráramos o ambiente duro, a prisão estática, a atmosfera sólida da esguia tábua de carvalho, todos aqueles seres podiam, repentinamente, libertar-se e habitar a fluidez húmida do espaço exíguo da austera sala. E ali ficaríamos nós, os dois plantados num universo vazio e tocado por cintilações etéreas de uma luz irreal, mitigando uma solidão secular, corroídos por uma nostalgia dilacerante, em contemplação definitiva do nada.
III
 
Naquele tempo fascinava-me a noite. A noite com as suas sombras, as cores diluídas na mole cinzenta da penumbra, a massa informe dos rostos, o sortilégio das amplas superfícies difusamente iluminadas. Ao passo em que o Aníbal me transmitia as suas impressões da noite, na escuridão da minha mente edificava-se um universo, que era um compromisso entre o que ele sentia e eu podia ver. Uma superfície iluminada na noite impregna-se de um aspecto de tal forma estático e mudo, que enche o espírito de quietude vazia. Nós próprios nos tornáramos como  gatos, silenciosos e esquivos, dobrando furtivos as esquinas cozidos com as paredes. E como estava a ler e a traduzir, para gozo próprio, o arrevesado tratado de Telésio De colloribus, foi na noite que projectei o vigoroso universo das suas colorações. Não sei, hoje, se Telésio escreveu De colloribus para que o lessem de noite, ou de dia. O facto é que me entusiasmou a ideia de estar, eventualmente, a subverter o espírito e a doutrina. Se as cores são reminiscentes, a noite é o espaço e o tempo adequados para lhes fazer apelo. Potencia-se em nós o Sol, o nosso Sol, de cada um, e inflama-se a massa cinzenta da penumbra. Porque na noite não se projectam sombras, que suspendam o livre curso do seu fluir uniforme, as cores surgem então puras, distendidas como um véu sobre os corpos, os volumes e as superfícies, sem nuances e contínuas. Bem, foi por isso que surgiu na minha vida um espectro de cor verde. Cor de esmeralda, que é o puro verde, cristalino e luminoso. Residia num discreto nicho, numa viela escura, na fachada setentrional do Convento de São Francisco de Évora. Tinha a forma de um anjo, de rosto impávido e sorridente, anunciando a concepção de Maria, talhado no mais alvo e fino mármore. Mas em qualquer inesperada circunstância, uma noite, desfrechou sobre a minha alma o fulgor de um verde inebriante, porventura o instantâneo reflexo do corisco fugaz de uma estrela corredora. Habitou a minha escuridão, povoou os meus sonhos e o meu próprio rosto tinha agora um tom esverdeado, ainda que macilento
Todas as noites o procurava, emboscado no vão de uma porta, na viela. Umas vezes não estava, parecia ter-se evadido, mas quando estava o verde irradiava e cobria como um manto toda a penumbra da praça contígua. Havia rostos em que eu inflamara o amarelo, o azul, o vermelho púrpura. Mas o verde, a cor da esmeralda, o místico único e a cor arquétipa do chaos antigo, era só para o seu rosto. E como era a cor irradiante, reflectia-se em todas as outras, depositando sobre elas um manto diáfano que as graduava. Um dia, um dia de Sol encandescente, atravessava a praça, de olhos semicerrados, protegendo o espírito tranquilo do êxtase da luz. E passou por mim, mesmo de frente, olhando-me nos olhos com surpresa. O seu rosto incendiou-se de uma cor branca, pálida e neutra. Tão pálida que a luz esfuziante não lograva colocar-lhe uma sombra, senão no cavado insinuado dos olhos. Foi assim que perdi o sortilégio de rememoriar a pureza elementar das cores e a minha paixão pela noite. De Telésio, a saudade.
IV
Numa tarde abrasada de Verão, na penumbra adormecida de uma fresca sala de biblioteca, embrenháramo-nos na leitura displicente e indisciplinada de uma bela edição quinhentista de Basileia de De Triplici Vita de Marsilio Ficino. Entre outras obras do filósofo, o volume trazia apensa, por economia, a celebrada tradução latina de um diálogo entre Hermes e Pimander, arcano da tradição hermética. Belas gravuras, abertas a buril, ornamentam as capitulares. Uma empolada carta a Lourenço, no incomparável estilo ficiniano, deliciara-me já no início da leitura. Subitamente, a quietude tumular do ambiente deprimiu-me e senti necessidade absoluta de imediata acção. Pedi ao doudo que me copiasse uma sequência de gravuras que se desenvolvia ao longo de todo o volume e que já encontráramos, idênticas em espírito, traço e assuntos, numa bela edição in follio dos Comentarios In Platonem, e corremos para casa. Dispus as cópias sobre o estirador, aprestei os lápis, as tintas e o papel e preparámo-nos para alguns devaneios em torno da temática, iconograficamente, de resto, coerente e bem arrumada. Algumas horas passadas, atoláramo-nos já na mais impertinente das angústias. O instinto, capaz de transmutar todo aquele universo de formas num intenso elenco de cores e graduações, era incapaz de discorrer, reinvocar e recrear as formas. As cores dispunham-se, sobrepunham-se e misturavam-se, sem que lográssemos impor-lhes os limites das formas que voavam céleres, subtis, não se deixando captar, aprisionar. O Aníbal desesperava já. Era como se o universo se constituísse de cores eternas, fixas e inteligíveis e de formas breves, fugazes e quiçá ilusórias. Ocorreu-me o ditado antigo: de noite todos os gatos são pardos. Que exprime singelamente a massa neutra e caótica das formas, quando a cor e a luz as não individualizam. E ultrapassada e digerida esta angustiante impressão sensorial, apeteceu-me reescrever o terceiro dos livros do sábio florentino, De Vita Coelitus Producenda.
V
O Aníbal chegou hoje absorto e ensimesmado a casa, sentou-se ao rés do lume junto do fogão, com a cabeça entre os joelhos, nem disse nada. - Então Aníbal, vamos à sopa. Estás com ar de te doer alguma coisa. A alma ou algum dente - atirei com cautela, não fosse andar amuado por razão qualquer que eu não alcançara. - Hoje vi uma mulher, que nem posso descrever senão pelo seu vestido. O resto posso-o imaginar, tirar o semelhante pelo semelhante, porque um invólucro assim requer um espírito e uma alma de eleição. O vestido era amarelo, de um tom de amarelo a que tu chamas enxofre. - Ora, Aníbal, não te lembras sequer do rosto, dos cabelos ou da cor dos olhos? - Não, de mais nada. O vestido era amarelo. Bem, o amarelo do enxofre é um tom tão puro que, pela sua espessa textura, pela natureza cálida do seu brilho e pela sua fágica capacidade de incorporar a luz, só podemos associar ao branco de chumbo. O azul do cobalto e o vermelho da púrpura, na sua intensa luminosidade arquétipa, ficam muito aquém. São as quatro cores com que Vermeer comunica a quietude reflexiva dos seus ambientes de densa intimidade doméstica, as cores da alma estática e contemplativa. As cores são a estrutura de toda a matéria, disse Zenão o Cítico no seu pórtico, citado por Teofrasto, Historia Plantarum. Havia na tradição filosófica antiga uma corrente de reflexão ontológica sobre a cor. Matiza ainda as indecisões platónicas balbuciadas no Timeu, sobre a sua exterioridade à alma. Este prólogo filosófico parece encerrar-se com Aristóteles, a partir do qual se consolida
a ideia de que as cores não têm qualquer suporte real, que não os sentidos. É o que enuncia vigorosamente em De Sensu Et Sensiti como doutrina genérica, se não escreveu De Colloribus. Já Pitágoras concebera a cor como uma ilusão extrínseca ao ser. A tradição médico alquímica, mau grado a sua alucinação pela tintura e a implantação quase poética da cor nos seus sistemas, de Discórides e Teofrasto a Arnaldo de Villanova, Paracelso e Bernardino Telésio, o Telésio da assombrante intuição cromática, De Colloribus Generatione, atolou-se na indefinição ontológica. O que é conclusivo é que as cores, mau grado o valor operativo das tinturas, são sintomatta ou indicia. Não conheço nenhuma cosmogonia em que se enuncie expressamente o acto da criação das cores, que parecem não ser mais do que estados ou vestígios dos seres. Há dois mundos, todavia, em que as cores assumem, não apenas natureza ontológica expressa, mas agência cosmogónica tácita. O mundo dos tintureiros, que não percebe as cores apenas pelos olhos, mas apalpa os pigmentos, sente-lhes a humidade e a secura, a dureza, o calor e o gelo, que opera e envolve todos os sentidos nas suas manipulações, mesmo quando não produz doutrina produz atitude. Obras como o Liber magistri de Sancto Audemauro de colloribus faciendis, o ubíquo Ad Tingendam Rosam de Ateherius, ou os atabalhoados Mappae Clavicula, são receituários vigorosos que não toleram ambiguidade. Mas mais perspicaz ainda é o pensamento que emana dos lapidários. Ocorre-me a tradução latina do antiquíssimo Liber Evax pelo Bispo Marbodus, cujo espectacular anexo Liber sigillorum (...) in eis sculptorum é retomado quase literalmente por Ficino em De Triplici Vita, em colagem aliás contraditória com a sua própria doutrina sobre a geração das cores, e o De Lapidibus de Alberto Magno. Aí a cor é a potência generativa e o próprio ser. Pois que diferenças existiriam entre dois informes pedaços de cristal, puro e transparente, se a cor os não matizasse, diferenciando-os? A cor é o princípio de corrupção e individuação da matéria prima, que gera o ser.
ser. Ultima principium gemis india fert adamantis, começa o lapidário de Marbodus. E segue-se o espectro de individuação da pedra neutra indiferenciada, percorrendo as cores fundamentais e os mistos. Num sopro raro de primado da cor sobre a forma, aquela gerará o elenco iconográfico que guiará as operações do lapidador, do ourives e até do médico. A cor impôs-se na nossa estrutura discursiva como um adjectivo. Que é feito do nome daquela mulher que passou pelo doudo esta tarde e incendiou a su’alma? Só se recorda de que o seu vestido, cujo corte apenas consegue, brevemente, imaginar, era amarelo. E não sei se as cores são a estrutura de toda a matéria, mas são, indubitavelmente, a estrutura de toda a memória.
VI
O Aníbal tem um afecto especial pelo retrato. Andam lá por casa perdidos, entre os meus papéis, centenas de retratos desenhados pelo Aníbal. Tem um génio singular para capturar as expressões, com dois ou três traços infantis, de gestos largos e incisivos. Ao contrário do que sempre lhe ensinaram, começa sempre a desenhar um rosto pelos olhos. Por isso, geralmente, os olhos cobrem mais de metade da superfície de todo o desenho. Em torno dos olhos, em espiral, vai então criando o universo e os acidentes restantes do rosto. É como se os olhos fossem o centro de uma cosmogonia. Aprecia, também, retratar as expressões em que os olhos fixam o alto. Todo o rosto roda, então, sobre si próprio, até que a superfície do seu plano frontal coincida com a horizontalidade, e os olhos, o sentido do seu olhar, são um totem, um poste demiúrgico. Não há nisto nada de rebuscado, senão um jeito, um hábito ou um afecto. Bem, mas serve isto para dizer que a minha alucinação pela cor anda geralmente de candeias às avessas com a minha paixão pelos olhos. A última coisa que retenho de uns olhos é a cor. Faço frequentemente má figura quando alguém me pergunta sobre outrem. - De que cor são os seus olhos? O meu espírito que, entretanto, já captou o elenco das expressões, a natureza do olhar, a sua profundidade, o tamanho e a forma, fica bloqueado. Mas aquilo que mais aprecio nuns olhos é a sua limpidez, o seu brilho, a densidade aquosa da sua superfície vítrea. Porque aí a nossa relação com os olhos é plena, pois olhando-os, vemo-nos, reflectidos na superfície de um lago. Modiglianni foi o mais sábio dos retratistas. Na maior parte dos seus retratos, os olhos são uma superfície densa, uniforme e espessa, mas vazia. Branca, para que a cor os não corrompa.
A individualidade do olhar é laborada na delimitação subtil das superfícies, na espessura das tintas, na intensidade do seu brilho. Ao branco são adicionados ligeiros matizes, breves sombras, que exprimem o que vêem quando olham. Não me é necessário muito esforço para ver reflectida nos olhos de um dos seus modelos a simetria fria e despida da minha sala, ou o meu rosto esquálido de tez pálida. O mais inebriante encanto dos olhos consiste na forma individual como se transmutam nas cores daquilo que olham.
 
VII
Quando passo junto à frontaria da Catedral de Évora e repouso o espírito imaginando o sereno e equilibrado apostolado que suporta há seis séculos as ogivas do seu pórtico, ritual em que perco, invariavelmente, algum incomensurável tempo, defendo-me sempre de tentar reconstituir as cores que outrora devem ter animado a sublime assembleia. Não é o caso do meu impaciente companheiro, congeminador de sonhos, sempre ávido por completar o universo com tudo o que lhe falta. - Parecem-me todos iguais. Faltam-hes as cores, o único e subtil pormenor que os distinguiria. Vá, Damião, aplica a cada um a cor que o distinga. - Esse papel costuma ser o teu, Aníbal. - Quando as há e eu as vejo. Agora, como se trata de imaginar, é a tua vez. Para além do mais, é de noite. Na escuridão, vês tu melhor do que eu. E o Aníbal ficou plantado na escadaria, impassível, à espera que respondesse ao seu apelo. O silêncio de uma noite luarenta de Outono, apenas perturbado, de tempos a tempos, pelo rebuliço breve da aragem nas folhagens dos plátanos, era propício à invocação dos espectros. A operação de reconstituir o elenco de colorações que o tempo e as intempéries furtaram à pedra, sem contudo a deixar inanimada, tem, ao fim e ao cabo, um guia seguro. Numa outra tintura, em que me ocorreram os lapidários antigos, omiti, intencionalmente, referência ao mais escorreito, sintético e criativo dos catálogos das cores. Os apóstolos do cordeiro são uma das referências e chaves mais permanentes no Apocalipse de São João, que os nomeia sempre neste singelo plural, indiscriminadamente.
A única individualização acontece quando descreve a Jerusalém celestial. Delimitando-a com uma alta muralha, estabelece-lhe por guardas e fundamentos, precisamente, os doze apóstolos do cordeiro, atribuindo-lhes a essência de doze pedras preciosas. (...) o primeiro era de jaspe, o segundo (...). Os doze fundamentos, que na lógica intrincada do poema parecem entrelaçados com outras tantas portas de assédio ao sagrado espaço, são uma referência linear ao tempo e ao processo cosmogónico e colocam as cores no seu preâmbulo, como seres agentes. É fácil, pois, restituir as tinturas originais àquele singular grupo de figurações humanas, tão pouco individualizadas no resto, aliás. Excluindo os elementos iconográficos subtilmente distribuídos pelos parterres e as nuances discretas na expressão e direcção do olhar, todas elas representam o mesmo indivíduo, retratado com sábio realismo, em fases sucessivas da sua idade. Era o prólogo, facilmente resolvido, de uma aventura que penetrou pela madrugada, em vigília atenta e irrequieta. Da experiência individual de percorrer as doze cores fundamentais, da exploração radical da memória sensorial, da extenuação da imaginação em correria, posso dizer que teria que escrever um tratado íntimo sobre a cor. Sobre a forma como vive enquistada no nervo e na memória, alheia mesmo à intervenção dos sentidos. E não há como o doido, para guiar um pobre cego na jornada da exploração do labiríntico universo das cores e o conduzir ao ponto onde todas elas se comunicam. Explorar e deixarmo-nos possuir pelas cores dos apóstolos é uma experiência tão perigosa quanto a de penetrar no sortilégio da cor dos olhos. Coisas de que me defendo e que devemos evitar. Só não o consigo na companhia do meu frenético e desaparafusado amigo, sempre ávido de sorver o mundo todo, o que se lhe oferece e o que lhe falta, através da janela aberta dos olhos, que um dia, contudo, se cerrarão para sempre. Quando tal acontecer, as cores permanecerão no obscuro significado destas pétreas figuras, despertando, quiçá, outros devaneios.
 
VIII
Havia um universo para devorar naquele canteiro. Uma sábia mão de mestre congeminara aquele cosmos, simultaneamente organizado e anárquico, um misto de caos lógico de simetria aberrante, mas loquaz. As cores, profusas, combinadas de forma agressiva mas ritmada, incendiavam a vista. Há formas e cores que não convivem, senão dispostas com tal mestria que o indivíduo se dilua na mensagem do conjunto. Constituem universos sintéticos que não toleram a análise, pois são a cabal negação de que o todo seja a mera soma das partes. Não conseguimos aí seleccionar o indivíduo, porque a primeira tentativa de individuação faz-nos atentar na desordem, na incoerência e na perversidade das associações lineares. Só a precária textura do pensamento ingénuo da criança é capaz de dobrar este obstáculo. Porque então o todo e a harmonia das composições são uma experiência actual, viva, formativa e a memória não tem ainda aquela impertinente tendência analítica que faz de nós observadores cristalizados e inibidos. O garoto de olhar vivo, mas reflectido e sonhador, encaminhou-se decididamente para o canteiro. - Vou escolher uma flor para a minha mãe! Fiquei atónito e em pânico, temendo a quebra do sortilégio da estranha harmonia, mas a curiosidade de poder observar um critério de escolha a que não me aventuraria paralisou-me. - De que cor? - perguntei. - A minha mãe gosta do amarelo.
Assombro! Não havia amarelo no canteiro. Ficámos a olhar, durante alguns instantes, surpreendidos. - Não faz mal, a seguir ao amarelo, a minha mãe gosta do verde. O petiz fez um breve ramo com verduras várias, o que não perturbou o equilíbrio do conjunto, pois era a massa cromática predominante. E, surpreso com as suas próprias descobertas, rematou: - Se pudesse, levava o canteiro todo, porque parece amarelo. Parecia. No espaço vertiginoso de um instante, o pequeno sonhador, de espírito imaginativo mas operacional, revelou-me um segredo.
IX
- É impossível, Damião. Tu também viste? O Aníbal parara embasbacado no meio do caminho, com a atenção paralisada, o olhar fixo no renque de salgueiros que bordejava o caminho, junto da velha ponte romana. - Ora, Aníbal... Eu sou cego. - Não sei bem ainda se és. Mas por isso mesmo te pergunto. Se és cego não podes ter miragens, nem ilusões visuais. - Raios, Aníbal! Se sou cego, só posso ter miragens, ou ilusões visuais. Tu, como és doudo, tens ilusões em todos os sentidos. Mas também não sei bem ainda se és doudo. Mas, diz-me, o que é que viste, que tanto te assustou? - Nada me assustou. Assustei-me comigo próprio, por ter visto. Lembras-te daquele pássaro azul, pintalgado com estrelas doiradas semeadas pelo peito, as asas e a cauda raiadas das sete cores do arco-íris, que só vimos uma vez, enrolado nos entrelaços de um silvedo, entre amoras e romãs, sob a mira de um arqueiro, tudo enovelado nas hastes de um a capitular, numa folha de pergaminho de um cartapácio qualquer? Recordas-te de te ter dito para falares baixo e não te agitares, porque me parecia que poderia espantar-se e fugir? Recordas-te de teres agitado a folha, para que ele despertasse e pudesse escapulir-se ao tiro do arqueiro? Pois está mesmo ali, a olhar para nós, poisado num galho daquele salgueiro. Era uma manhã ensolarada de Outono adiantado, as árvores quase nuas, uma brisa ténue rolando as folhas pelo chão. Durante toda a noite chuviscara. O Sol despontava, polvilhando
de cintilações miríades de gotículas de água que escorriam pelas ramagens de árvores e arbustos, pelas fragas e penedias e parecia ainda que andavam perdidas e em rebuliço pelos ares, sopradas pela aragem. Quase um caleidoscópio. Toda a paisagem parecia refractada explodindo em cores que, logo que se insinuavam, se desvaneciam ou transmutavam. Uma espontânea e indisciplinada alquimia. - Ora, Aníbal, a luz do Sol, refractada pelas gotículas, pode produzir efeitos mágicos. Vê lá bem, que ainda te aparece por aí algum mafarrico, ou o próprio arcanjo brandindo a sua espada flamejante. Vamos descansar. - Pois é pena, se assim foi, como dizes. Gostei muito daquele pássaro. Sentámo-nos tranquilamente sobre as guardas da ponte, a ouvir marulhar as águas do ribeiro. O Aníbal levantou do chão um pequeno e bem afeiçoado seixo rolado e despediu-o despreocupadamente, com uma expressão de contrariedade, em direcção à copa de um salgueiro. Ambos ouvimos com toda a nitidez um breve bater de asas, senti pela deslocação quase imperceptível do ar um pássaro elevar-se, voltear e picar de novo para se imobilizar na copa de outra árvore. O Aníbal tocou-me com o cotovelo e imobilizou-se expectante. Segredou-me: - E agora, não viste? - É algum gavião, ou um mocho, que tu quase alvejaste. - Os mochos e os gaviões são pardos ou negros. Ou cor de burro quando foge. Este era azul, todo sarapintado de estrelas doiradas. E a cauda era um arco-íris.
- Bem, para dizer a verdade, também foi assim que o vi, ou pressenti. Possivelmente, era o nosso pássaro. Tenho a certeza de que ainda o haveremos de ver muitas vezes, pelo caminho. O doudo passou o resto da manhã a alvejar as copas dos salgueiros à calhoada, na esperança de voltar a levantar o passarouco. Nunca mais o vimos. Um dia, como quem não quer a coisa, sem nomearmos sequer o episódio, voltámos a folhear tranquilamente o alfarrábio. Quando atingimos a página desejada, olhámos distraídos, reprimindo a ansiedade. Ficámos longamente prisioneiros da imagem, mudos e boquiabertos. O pássaro não estava lá. Do galho onde poisara, pingava uma gota de sangue, reflectindo brevemente a luz de um Sol imaginário. O arqueiro despedira a sua flecha, imobilizada agora na carreira, uma polegada à frente do lugar onde faltava a ave. Ainda hoje não sei se o doudo a lá pôs quando me descreveu o ornato pela primeira vez, ou se a erradicou agora. É bem possível, até, que o livro jamais tenha existido. Nem o Aníbal. Nem eu. Pois não há quem diga que as cores não existem, senão nos nossos sentidos? Na alma, diria eu.
X
Todo aquele dia o doudo foi perseguido pelo vermelho. Um vermelho vidrado, intenso, cristalino e húmido, mas duro, de cerejas cristalizadas. Projectado na brancura açucarada  da cobertura de um bolo, que estruturava, mesmo no centro geométrico, a composição da montra de uma confeitaria, rodeado de chocolates, caramelos, amêndoas, fardos e fardos de palha de ovos, algumas garrafas de vinho da Madeira, outras do Porto. Uma explosão de cores, que não eram já só um estímulo visual, mas faziam convergir todos os sentidos convocando os paladares. Nos grandes painéis publicitários, nos automóveis, nas bancadas das floristas, o vermelho proliferava na medida em que a boca do doudo salivava e se lhe alucinavam os sentidos. A fome assediara-o consubstanciada no vermelho. Um amarelo distingue-se de qualquer outro, de forma que podemos quase substancialmente imaginar duas cores distintas. O azul também, que por vezes se projecta vertiginosamente no verde. Mas o vermelho das cerejas, tão unido todavia ao seu material depósito, mal se distingue, mesmo na substância, de qualquer outro. Porque o vermelho á a mais unida das cores a um complexo cultural de referências que a imaginam e informam. De modo que o seu impacto sensorial se desmaterializa em milhões de arquétipos significantes, um imenso túnel por onde se escoa e difunde a sua materialidade e por onde deambulam toiros, hercúleas façanhas, sábios reis, alucinados cavaleiros, rubis e uma taça singela de cristal recolhendo o sangue de um cordeiro, onde satisfazemos algumas das nossas antropófagas fantasias. Tudo invocando uma mesma cor que não admite graduações pois não reside já nos sentidos, mas quase exclusivamente no verbo. Tínhamo-nos deslocado a Lisboa, em época de precariedade, para cobrar uma velha dívida de um livreiro, que durante alguns anos distribuíra os meus sarrabais e almanaques. Era questão arrumada. Levava nos bolsos dinheiro que bastasse para os bilhetes do comboio, pouco mais. E foi logo depois da chegada que passámos em frente da montra. Quase tive que arrastar o Aníbal, que ficou pasmado com o olhar magnetizado pelas cerejas. Não falou já noutra coisa. A minha boca salivava já também e, por mais que quisesse afastar a ideia, também eu via cerejas por todo o lado.
Bem, não reavi o dinheiro e passámos um atormentado dia em Lisboa, sem comer. Nem nos martirizavam as intensas exalações dos cozinhados nas proximidades dos restaurantes, tabernas e casas de pasto. Só víamos cerejas vermelhas. Ergueu-se no ar uma bola, jogada por um miúdo. Foi diminuindo enquanto se afastava no céu luminoso, do tamanho de uma bolacha, de um ovo, por fim de uma cereja e era vermelha. Ali fiquei eu, de boca escancarada, à espera que caísse, como um cão a que lançaram um osso. Quando chegámos por fim a casa, fizemos o inventário das vitualhas. Um naco macio de queijo bem cremoso, o fundo de um paio vermelhinho, alguns dos primeiros morangos do ano. Enfastiei-me e fui incapaz de comer. Sonhei toda a noite com cavalgadas intermináveis no poente de um deserto incontível e cavaleiros de toga vermelha ondulando ao vento. Tudo numa atmosfera incendiada. De manhã levantei-me e emborquei um copo de vinho, com os olhos fechados. Os pós sufocantes da noite desértica removeram-se-me das mucosas do pálato e desvaneceu-se a alucinação pelas cerejas. Dizem que a fome é negra. Eu acho que é da cor do apetite.
 
XI
Durante toda a manhã ensolarada de Abril, o Aníbal permanecera entediado e estirado nos degraus da escadaria do adro da remota ermida, de olhos semicerrados, alheio ao rebuliço da romaria. A rapariguinha, graciosa mas implicativa, impertinente, abeirou-se dele com as mãos atrás das costas, olhou no céu as andorinhas que entrelaçavam os seus voos e ordenou: - Escolhe uma cor. - O amarelo - disse ele com decisão, tentando evadir-se ao torpor. - Escolhe uma planta para essa cor. - A mimosa. - Uma pedra. - O rubi. - O rubi é encarnado. Pensa num desejo. - O rubi é vermelho. Já pensei... - És meu namorado. O doudo riu-se.
- Porquê? - Foi o teu desejo. Deixou-se descair um pouco para o meu lado, rebolando sobre o degrau, para me encarar, e resmungou absorto: - Então, eu escolho as cores e ela escolhe-me os afectos? Voltou à posição inicial, recostando a cabeça sobre as mãos, e por ali ficou, com o Sol a abrasar-lhe o rosto, até que a fome o impulsionou como a uma mola em direcção ao assador das castanhas e ao garrafão de vinho tinto.
 
XII
- Faz-me um obséquio, Aníbal. Procura-me aquele livro que tenho estado a ler, com a capa verde. - Com a capa verde?... E como sabes tu que tem a capa verde? - Não é verde? - Claro que é verde. Mas como sabes tu que é? - Ora, Aníbal. Tu disseste-me. - Não me lembro de ter dito. Mas, já agora, adivinha lá que cor tem a camisa que trago vestida. - Basta, Aníbal. Eu adivinhei a cor da capa do livro, como vou adivinhar a cor da camisa que trazes vestida. Como decidiste sustentar contra todos, sobretudo contra mim, que és doudo, deves trazer vestida uma camisa invulgar, com uma cor que ninguém mais ousaria usar. Posso imaginar uma meia dúzia de cores, que tu poderias ter escolhido para te distinguires de todos os outros pela tua camisa. Mas, na verdade, penso que não tens mais do que duas camisas, desde que te conheço. Devem estar tão puídas e desbotadas, que não devem ter já cor alguma. Nem tu já te lembras da cor que tiveram outrora. Mas tenho a certeza de que lhes atribuis uma cor, ou duas. E essas eu posso adivinhá-las. - Está bem, Damião, ganhaste, tenho a certeza de que adivinharias as cores das minhas camisas.
Mas adivinhá-las-ias porque as minhas camisas não têm cor alguma, como dizes, fui eu quem as inventou. Na escuridão, vês tu melhor do que eu. Porém, enganas-te na cor da capa do livro. O livro que tens estado a ler não tem capa, deve tê-la perdido há muito tempo. Eu colei-lhe provisoriamente uma que andava por aí perdida, que não sei aonde pertence. Está tão usada e tão desbotada que ninguém lhe conseguiria restituir a cor. Tem agora a cor parda do papel de embrulho, com umas nódoas de vinho. - Mas garanto-te que foi verde. - Ora, Damião. Nem tu nem eu sabemos que cor foi a desta capa, pois já te disse que andava por aí perdida e não sei aonde pertencia. É uma capa qualquer. As cores das camisas podias deduzi-las, porque sabias que eram minhas. Quanto à capa, nem sabes a que livro pertenceu. Mas, afinal, Damião, queres que te traga o teu livro, ou queres passar o resto da manhã a disputar sobre cores? Fico com a impressão de que me pediste o livro como pretexto para falares sobre as minhas camisas. - Tens razão, Aníbal. Traz-me então o livro. Esse com a capa agora parda, que teve outrora uma cor qualquer, talvez verde. Tenho uma vantagem sobre ti, não me sujeito às cores que os sentidos me impõem. - Não me parece vantagem alguma. Quando fecho os olhos, as cores são menos belas do que quando os abro. Mas gostava de saber como consegue um cego, que nunca as viu, imaginar as cores. Serão as cores que tu imaginas as mesmas que eu vejo? E, se não são, como podes denominá-las de azul, amarelo, encarnado ou verde?
- Essa é uma questão muito antiga, tem, pelo menos, quase três mil anos. Trata-se de saber se as cores residem nos objectos, ou na luz do Sol, ou de qualquer outro astro mesmo artificial, ou nos nossos sentidos, ou, singelamente, na nossa alma, sempre na expectativa de que um estímulo aos sentidos as desperte e convoque. Se assim fosse, as cores de um cego seriam iguais ou correspondentes às tuas e atribuídas com os mesmos nomes, só que as tuas seriam convocadas por objectos exteriores, através dos sentidos, e as de um cego seriam convocadas por objectos interiores através da imaginação, porque, no seu esboço essencial, as formas também existiriam na alma. Alguns filósofos dir-te-iam que as tuas cores, tal como as convocas quando recebes o estímulo de um objecto exterior através dos sentidos, são, por isso mesmo, corruptas. E só quando cerras os olhos e interrogas a alma estás apto a convocar as cores na sua pureza essencial. Mas como a tua alma está inundada dos espectros do mundo exterior, contaminada pelos objectos, isso exigir-te-ia um grande esforço de concentração. O próprio cego deixou contaminar a sua alma através do verbo, que é a janela que tem aberta para comunicar com o mundo exterior, através dos sentidos dos outros. Sendo assim, as cores do cego perderam o vínculo exclusivo aos objectos íntimos da imaginação e da alma e transferiram-se, através dos sentidos alheios, para os objectos exteriores do mundo que os outros lhe comunicaram. Assim se corromperam também. Podemos até concluir que a imaginação é também, ela própria, um sentido, que desperta a alma em reacção a estímulos exteriores. - Bem, Damião, a tua cegueira é um exemplo retórico. Sabemos bem que finges que és cego. - Sabemos, Aníbal? Tu sabes, eu não. Eu não sei se sou ou não. Acho que sou. Quem o descobriu foi a minha mãe, tinha eu dois ou três anos, que todavia
nunca conseguiu formular uma certeza. Porque desde muito cedo desenvolvi uma grande euforia na comunicação, com a ajuda do meu tio Atanásio, que era padre e me dispensou muito tempo, transferi para a minha imaginação tudo o que os outros me comunicavam. Sorvia tudo reportado a imagens vigorosas, cheias de pormenor. A partir de certa altura era impossível determinar se eu via ou imaginava, se adivinhava ou pressentia. Já ninguém sabia se eu era realmente cego, mas a todos interessava que fosse, porque ninguém queria aceitar o mundo tal qual eu o via. Podiam ter decidido que era doudo, mas foi mais radical decidirem que era cego. Transferi com tanto empenho o mundo que os outros me comunicavam para a minha imaginação, que era já capaz de recriá-lo e devolvê-lo transmutado. Mas, sobretudo, tornara-me muito atento à forma individual como cada um parecia apercebê-lo através dos sentidos. Às incongruências e contradições entre as diversas formas com que cada um o apercebia. Foi por isso que decidi que o mundo dos sentidos é mais ilusório e mais contingente do que o da imaginação. E é por isso que te digo que somos nós quem deposita as cores sobre os objectos. E não é a coincidência entre os sentidos de todos os homens o que lhes permite atribuir uma mesma cor a um mesmo objecto, mas a coincidência na substância da sua alma, onde reside tanto a cor como a ideia do objecto, ou o seu esboço. É por isso que, se tu disseres céu, eu, que sou cego, vejo azul. Embora, como tu me dizes, o céu, dadas as circunstâncias, se te possa apresentar com diversas cores. - Não acredito, deveras, que estejas mesmo convencido do que acabas de dizer. Se estás, é por isso que és cego. A tua cegueira é um modo de dizer. Toma lá, aqui tens o teu livro. - Ora, Aníbal, não foi esse livro que te pedi. Esse, já acabei de o ler há uns dias. É aquele que comecei a ler anteontem, com a capa verde. - Ah... esse. Há muita gente que chama verde a essa cor. Para mim é azul.
 
XIII
E para concluir, então, o azul, que é a cor radical, ou a falta dela. Nada no universo há que seja azul. Dizem do mar que é azul, do céu também. A água não tem todavia cor alguma, nem o ar, embora o Sol os possa tingir de variadas cores, de acordo com o estado da nossa alma. É por isso que no crepúsculo vespertino, quando a nostalgia e a tristeza nos atingem, o céu se inunda de vermelhos sanguíneos e amarelos doirados, como as parras das videiras no Outono, e de manhã explode em verdes cristalinos. E que o mar encapelado, quando a borrasca se alevanta e as vagas se despenham de encontro às falésias, quando a nossa alma toda treme avassalada por pânicos que remontam aos tenebrosos inícios do cosmos, ganha uma cor verde muito escura, quase a do invólucro escamoso de um dragão. E que quando os céus ribombam, no cúmulo da procela, se tingem do amarelo pálido do enxofre. Mas, azul, que há que seja azul no universo, senão o frio que nos penetra pelas costelas, a ausência, o ar rarefeito, a distância? Que há que seja azul no universo, senão o olhar perdido daquele casal de velhos, fixo já no nada? O azul não é uma cor substancial, não se fixa a qualquer corpo, senão ao estado das almas doentes e solitárias. Aparece por vezes num pormenor, uma nesga, numa flor, num pássaro, num peixe. Mas logo se desvanece, para se perder no vazio. Foi a cor de Van Gogh. O resto das cores foi-se evadindo, o amarelo, o vermelho, o verde foi tomando conta da sua alma e perdeu-se no azul. Suicidou-se em azul. O azul é a cor de tudo aquilo de que o Sol se ausenta. O azul é a cor do início e do fim, a cor em que todo o universo se concluirá. Mais nenhuma cor existiria no universo se o azul existisse substancialmente. Quando já só vires azul, prepara-te. Estás perto do fim. A tua alma em breve abandonará o teu corpo, como um vapor que se esvai, para se perder no azul dos espaços vazios.
Nada temas, porque então saberás que todas as cores residiram em ti, exclusivamente em ti, em nada mais senão em ti e foste tu, o tintureiro, quem as depositou no universo.
 
Epílogo E se tivesse que atribuir-te, a ti, que és a minha alma e o cadinho em que amasso os pigmentos e os depuro da escória, uma cor? Uma que jamais fora vista ou nomeada, que não pudera ser sequer calculada da infinitude de graduações possíveis e imagináveis, operadas por associação ou mistura das que compõem o espectro da decomposição da luz. Uma que fosse a luz em si, una e indivisível, com a sua cor própria, de onde brotaria o arco-íris, que concebeu as cores todas do universo. A quinta essência da cor. Uma cor anterior ao azul, ao nada. Uma ânsia apenas, um estertor, um grito. Um balbúcio, um sopro breve e instantâneo por entre os lábios, que não chegaria a ser sequer um nome. Antes do prólogo e depois do epílogo de tudo.
 

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Elmano d'Argus Tinturas - breve resumo de um documento sobre cores e percepções

  • 1. elmano d’argus t i n t u r a s
  • 2. autor título fotografia copyright composição e design versão videográfica 2ª edição bibliográfica 1ª edição bibliográfica elmano d’argus tinturas maria do rosário gamito maria do rosário gamito maria do rosário gamito / mcn mcn em microssoft office powerpoint 2.000 exemplares, Abrantes 2004, em curso inserto em A Legião dos Invisíveis, Abrantes, 2004, LITEXA EDITORA edição patrocinada por FEPPHA, Rossio ao Sul do Tejo, Abrantes. 2.000 exemplares ficha técnica
  • 3.  
  • 4. elmano d’argus t i n t u r a s
  • 5. Há uns tempos, numa altura em que me preparava para lançar nas bocas do mundo a história da sua vida, uma espécie de autobiografia recolhida pela minha pena com alguns acrescentos literários, o Damião das Bróteas, já muito velho e alquebrado, com uma surdez galopante a acrescer-lhe à cegueira de nascença, ou de feitio, apontou-me dois fardos de papel amarelecido, atados com cordéis, e deu-mos, para que velasse por eles. Era apenas uma pequena porção do vasto espólio de memórias com que fora mobilando a sua casa, atadas em resmas e fardos, e serviam para tudo, como assentos, enxergas, mesa para o concílio gastronómico, muitas vezes para atear as achas no fogão. O resto não sei a quem deu, talvez ao títere Perdigão, seu dilecto amigo. A minha parte constava de uma grande colecção de sarrabais, alguns entremezes, panfletos sortidos, tudo impresso em oitavo e encadernado em peças de um prego ou dois, ou em fólio avulso de vários padrões. E ainda um cento de manuscritos breves, a maior parte epístolas, duas ou três de amor. Deduzi que o gesto do Damião significava um pedido. Para que reorganizasse, para os vindouros, a sua memória dispersa pelos caminhos. Se pudesse folhear este livrito, o Damião alegaria que não importunasse os vindouros com a memória de um pobre cego que os enfadaria. Se assim for, prego-lhe uma partida. De acordo com o tempo e os recursos, cada vez mais minguados, presentearei então o leitor com a edição desta papelada. Entre o espólio manuscrito, andava, um pouco desmembrado, um prego aqui e outro acolá, o espectro de um velho caderno de papel pardo, muito besuntado e com a caligrafia descuidada a esvair-se, atulhado de notas, umas breves e circunstanciais, um relato diário de uma viagem, o apontamento de uma visita, a lembrança de uma leitura ou a translacção de uma sentença,
  • 6. outras mais consequentes, o esboço de um romance, uma comédia, metade de um tratado, até, sobre a arte da conjura, todas estas coisas intercaladas, suspensa uma retomava outra que vinha de trás. Uma trapalhada. E entre tudo isto vinha de cambulhada uma peça bizarra, que o próprio Astrólogo denominara Tinturas, que se distinguia do resto porque se apresentava sempre escrita com uma tinta de cor singular, verde. Um verde muito escuro com uma textura espessa, como a cor da pele dos lombos de um sardão. Era, talvez na intenção, um tratado sobre as cores, sob a forma de breves crónicas de episódios na sua relação com o Aníbal. O Aníbal era o mais permanente companheiro e comensal do Damião. Era estatutariamente doudo, mas dotado de uma argúcia, de um sarcasmo ingénuo e espontâneo e de uma profundidade tão singular na observação, que o Astrólogo o acolhera na presunção de que a acutilância do espírito do doudo Aníbal era o eleito complemento da acutilância do olhar do cego Damião, conclusivo intérprete de tudo o que os outros viam, mas não conseguiam enxergar. Os episódios recenseados tinham entre si em comum uma relação circunstancial, ou calculada, com o registo de uma cor, no contexto de um estado de alma ou de um afecto. Pareceu-me evidente que grande parte destas crónicas respeitavam a um período da vida do Damião em que, já velho, se interessou, com uma avidez que eu nunca soube interpretar, por iluminuras e gravuras capitulares. Eu próprio o guiei na visita a muitas bibliotecas e sobretudo tardes a fio no vasculhar de alfarrábios na penumbra pachorrenta da Biblioteca de Évora. Eu escolhia os livros, referenciava-lhe os conteúdos literários e, seguidamente, o Aníbal descrevia, gesticulando profusamente, os conteúdos iconográficos. Quando saíamos, pela tardinha, ficava a sala cheia de moscas e o ar empestado do cheiro a alho e a cebolas.
  • 7. I
  • 8. - Que belo, Damião, parece a cena de um teatro. Um teatro grego, encafuado entre serranias e penhascos, num vale profundo da antiga Jónia. Só falta que alguém, o nosso amigo Perdigão porventura, o títere, lhe bote as personagens e as anime. - Diz-me como é, Aníbal. Eu imagino depois, para ti, as personagens. O Damião e o Aníbal assomavam extenuados, depois de algumas léguas calcorreadas entre Brotas e Pavia, pela manhã de um dia de Outono, a uma recatada clareira que o atalho ladeava. Sentaram-se em duas pedras para recobrar fôlego e alento. O Aníbal esbracejava, no afã de comunicar o esplendor bucólico do lugar. Quando concluiu, já a arfar, o Damião, com a cabeça entre as mãos, encheu de magia a cena, como se soltara, inadvertidamente, a mola que accionaria o movimento de uma caixa de música. Inseguro, o pequeno veado de fulva pelagem despontou nos limites da clareira, olhou em redor nervosamente e, já descontraído, invadiu a mancha verde do prado recatado, mordiscando a erva. Da quietude penumbrenta do montado, o lobo saltou. O célere movimento nem se fixou na retina. Apenas o ambiente se perturbou num ápice, como se as árvores, em uníssono com os pássaros irrequietos, lançassem no ar um grito lancinante. No momento imediato, a paisagem reestruturou-se e repousou de novo. Um fio de sangue rubro, ainda fumegante, espraiava-se lentamente sobre a verdura. E um raio de Sol rompeu entre as folhagens e depositou miríades de breves cintilações de oiro sobre o fluido fugidio. Não havia mais vestígios. Num cosmogónico instante, absorto e distraído, Deus criou a bandeira. Era a hora sexta. Estava o Mar ausente ainda.
  • 9. II
  • 10. A água era a presença constante, nesses vazios dias de fim de Maio. Rebolava-se em golfadas pelas calçadas, escorria em lençóis pelas vidraças, penetrava subtil e lentamente nos poros, alagando uma nostalgia dolente e corrosiva. Não se tratava de uma água fria, paralisante, mas de uma enxurrada morna e pesada, de consistência viscosa e sufocante. As palavras saíam húmidas da boca e os gestos como que se volatilizavam, em laços de vapor denso e enrolado. Criara-se-nos na alma uma interioridade labiríntica, um hibernar vigilante e hipersensível. E foi por isso, talvez, que, com unanimidade consentida, abrimos e começámos a folhear o volume de uma bela colecção italiana com a obra completa de Hieronimus Bosch, que alguém deixara esquecido sobre a mesa corrida da sala de leitura da biblioteca. Estávamos os dois sós, eu, o cego, e o doudo que descrevia as imagens, no torpor da hora da sesta, sem sabermos bem o que fazer. Entre a cor e a forma os nossos sentidos foram vadiando, minuto a minuto mais intensos e exaltados, contidos todavia pelo invólucro húmido que envolvia as almas. O pintor usa de uma solução muito perspicaz para comunicar os volumes e as profundidades. Numa exposição sistematicamente plana, laborando superfícies densamente mais povoadas na medida em que os objectos se afastam, a distância dos campos observados organiza-se, quase geometricamente, em graduações dispostas em sucessão ascendente na verticalidade da tábua. Aí, onde a frontalidade é linear, a imaginação explora, penetra, espreita, tentando tornear as figuras, forçando os ângulos. Subitamente, penetráramos já a textura espessa e densa dos óleos, pigmentos e verniz petrificados e ali ficámos emboscados no canto superior da tábua do manípulo esquerdo do Jardim das Delícias. E não me lembro se o peso e a densidade da estrutura rija e seca da madeira, se a crescente viscosidade do ar húmido nos imobilizou. Apenas, nos rostos múltiplos dos seres que nos rodeavam, um breve carregar de expressão. Surpresa pela inesperada presença, uma nota, talvez, de perturbação pela subversão que causáramos na harmonia do diletante universo pictórico.
  • 11. E atónitos verificámos que, como nós penetráramos o ambiente duro, a prisão estática, a atmosfera sólida da esguia tábua de carvalho, todos aqueles seres podiam, repentinamente, libertar-se e habitar a fluidez húmida do espaço exíguo da austera sala. E ali ficaríamos nós, os dois plantados num universo vazio e tocado por cintilações etéreas de uma luz irreal, mitigando uma solidão secular, corroídos por uma nostalgia dilacerante, em contemplação definitiva do nada.
  • 12. III
  • 13.  
  • 14. Naquele tempo fascinava-me a noite. A noite com as suas sombras, as cores diluídas na mole cinzenta da penumbra, a massa informe dos rostos, o sortilégio das amplas superfícies difusamente iluminadas. Ao passo em que o Aníbal me transmitia as suas impressões da noite, na escuridão da minha mente edificava-se um universo, que era um compromisso entre o que ele sentia e eu podia ver. Uma superfície iluminada na noite impregna-se de um aspecto de tal forma estático e mudo, que enche o espírito de quietude vazia. Nós próprios nos tornáramos como gatos, silenciosos e esquivos, dobrando furtivos as esquinas cozidos com as paredes. E como estava a ler e a traduzir, para gozo próprio, o arrevesado tratado de Telésio De colloribus, foi na noite que projectei o vigoroso universo das suas colorações. Não sei, hoje, se Telésio escreveu De colloribus para que o lessem de noite, ou de dia. O facto é que me entusiasmou a ideia de estar, eventualmente, a subverter o espírito e a doutrina. Se as cores são reminiscentes, a noite é o espaço e o tempo adequados para lhes fazer apelo. Potencia-se em nós o Sol, o nosso Sol, de cada um, e inflama-se a massa cinzenta da penumbra. Porque na noite não se projectam sombras, que suspendam o livre curso do seu fluir uniforme, as cores surgem então puras, distendidas como um véu sobre os corpos, os volumes e as superfícies, sem nuances e contínuas. Bem, foi por isso que surgiu na minha vida um espectro de cor verde. Cor de esmeralda, que é o puro verde, cristalino e luminoso. Residia num discreto nicho, numa viela escura, na fachada setentrional do Convento de São Francisco de Évora. Tinha a forma de um anjo, de rosto impávido e sorridente, anunciando a concepção de Maria, talhado no mais alvo e fino mármore. Mas em qualquer inesperada circunstância, uma noite, desfrechou sobre a minha alma o fulgor de um verde inebriante, porventura o instantâneo reflexo do corisco fugaz de uma estrela corredora. Habitou a minha escuridão, povoou os meus sonhos e o meu próprio rosto tinha agora um tom esverdeado, ainda que macilento
  • 15. Todas as noites o procurava, emboscado no vão de uma porta, na viela. Umas vezes não estava, parecia ter-se evadido, mas quando estava o verde irradiava e cobria como um manto toda a penumbra da praça contígua. Havia rostos em que eu inflamara o amarelo, o azul, o vermelho púrpura. Mas o verde, a cor da esmeralda, o místico único e a cor arquétipa do chaos antigo, era só para o seu rosto. E como era a cor irradiante, reflectia-se em todas as outras, depositando sobre elas um manto diáfano que as graduava. Um dia, um dia de Sol encandescente, atravessava a praça, de olhos semicerrados, protegendo o espírito tranquilo do êxtase da luz. E passou por mim, mesmo de frente, olhando-me nos olhos com surpresa. O seu rosto incendiou-se de uma cor branca, pálida e neutra. Tão pálida que a luz esfuziante não lograva colocar-lhe uma sombra, senão no cavado insinuado dos olhos. Foi assim que perdi o sortilégio de rememoriar a pureza elementar das cores e a minha paixão pela noite. De Telésio, a saudade.
  • 16. IV
  • 17. Numa tarde abrasada de Verão, na penumbra adormecida de uma fresca sala de biblioteca, embrenháramo-nos na leitura displicente e indisciplinada de uma bela edição quinhentista de Basileia de De Triplici Vita de Marsilio Ficino. Entre outras obras do filósofo, o volume trazia apensa, por economia, a celebrada tradução latina de um diálogo entre Hermes e Pimander, arcano da tradição hermética. Belas gravuras, abertas a buril, ornamentam as capitulares. Uma empolada carta a Lourenço, no incomparável estilo ficiniano, deliciara-me já no início da leitura. Subitamente, a quietude tumular do ambiente deprimiu-me e senti necessidade absoluta de imediata acção. Pedi ao doudo que me copiasse uma sequência de gravuras que se desenvolvia ao longo de todo o volume e que já encontráramos, idênticas em espírito, traço e assuntos, numa bela edição in follio dos Comentarios In Platonem, e corremos para casa. Dispus as cópias sobre o estirador, aprestei os lápis, as tintas e o papel e preparámo-nos para alguns devaneios em torno da temática, iconograficamente, de resto, coerente e bem arrumada. Algumas horas passadas, atoláramo-nos já na mais impertinente das angústias. O instinto, capaz de transmutar todo aquele universo de formas num intenso elenco de cores e graduações, era incapaz de discorrer, reinvocar e recrear as formas. As cores dispunham-se, sobrepunham-se e misturavam-se, sem que lográssemos impor-lhes os limites das formas que voavam céleres, subtis, não se deixando captar, aprisionar. O Aníbal desesperava já. Era como se o universo se constituísse de cores eternas, fixas e inteligíveis e de formas breves, fugazes e quiçá ilusórias. Ocorreu-me o ditado antigo: de noite todos os gatos são pardos. Que exprime singelamente a massa neutra e caótica das formas, quando a cor e a luz as não individualizam. E ultrapassada e digerida esta angustiante impressão sensorial, apeteceu-me reescrever o terceiro dos livros do sábio florentino, De Vita Coelitus Producenda.
  • 18. V
  • 19. O Aníbal chegou hoje absorto e ensimesmado a casa, sentou-se ao rés do lume junto do fogão, com a cabeça entre os joelhos, nem disse nada. - Então Aníbal, vamos à sopa. Estás com ar de te doer alguma coisa. A alma ou algum dente - atirei com cautela, não fosse andar amuado por razão qualquer que eu não alcançara. - Hoje vi uma mulher, que nem posso descrever senão pelo seu vestido. O resto posso-o imaginar, tirar o semelhante pelo semelhante, porque um invólucro assim requer um espírito e uma alma de eleição. O vestido era amarelo, de um tom de amarelo a que tu chamas enxofre. - Ora, Aníbal, não te lembras sequer do rosto, dos cabelos ou da cor dos olhos? - Não, de mais nada. O vestido era amarelo. Bem, o amarelo do enxofre é um tom tão puro que, pela sua espessa textura, pela natureza cálida do seu brilho e pela sua fágica capacidade de incorporar a luz, só podemos associar ao branco de chumbo. O azul do cobalto e o vermelho da púrpura, na sua intensa luminosidade arquétipa, ficam muito aquém. São as quatro cores com que Vermeer comunica a quietude reflexiva dos seus ambientes de densa intimidade doméstica, as cores da alma estática e contemplativa. As cores são a estrutura de toda a matéria, disse Zenão o Cítico no seu pórtico, citado por Teofrasto, Historia Plantarum. Havia na tradição filosófica antiga uma corrente de reflexão ontológica sobre a cor. Matiza ainda as indecisões platónicas balbuciadas no Timeu, sobre a sua exterioridade à alma. Este prólogo filosófico parece encerrar-se com Aristóteles, a partir do qual se consolida
  • 20. a ideia de que as cores não têm qualquer suporte real, que não os sentidos. É o que enuncia vigorosamente em De Sensu Et Sensiti como doutrina genérica, se não escreveu De Colloribus. Já Pitágoras concebera a cor como uma ilusão extrínseca ao ser. A tradição médico alquímica, mau grado a sua alucinação pela tintura e a implantação quase poética da cor nos seus sistemas, de Discórides e Teofrasto a Arnaldo de Villanova, Paracelso e Bernardino Telésio, o Telésio da assombrante intuição cromática, De Colloribus Generatione, atolou-se na indefinição ontológica. O que é conclusivo é que as cores, mau grado o valor operativo das tinturas, são sintomatta ou indicia. Não conheço nenhuma cosmogonia em que se enuncie expressamente o acto da criação das cores, que parecem não ser mais do que estados ou vestígios dos seres. Há dois mundos, todavia, em que as cores assumem, não apenas natureza ontológica expressa, mas agência cosmogónica tácita. O mundo dos tintureiros, que não percebe as cores apenas pelos olhos, mas apalpa os pigmentos, sente-lhes a humidade e a secura, a dureza, o calor e o gelo, que opera e envolve todos os sentidos nas suas manipulações, mesmo quando não produz doutrina produz atitude. Obras como o Liber magistri de Sancto Audemauro de colloribus faciendis, o ubíquo Ad Tingendam Rosam de Ateherius, ou os atabalhoados Mappae Clavicula, são receituários vigorosos que não toleram ambiguidade. Mas mais perspicaz ainda é o pensamento que emana dos lapidários. Ocorre-me a tradução latina do antiquíssimo Liber Evax pelo Bispo Marbodus, cujo espectacular anexo Liber sigillorum (...) in eis sculptorum é retomado quase literalmente por Ficino em De Triplici Vita, em colagem aliás contraditória com a sua própria doutrina sobre a geração das cores, e o De Lapidibus de Alberto Magno. Aí a cor é a potência generativa e o próprio ser. Pois que diferenças existiriam entre dois informes pedaços de cristal, puro e transparente, se a cor os não matizasse, diferenciando-os? A cor é o princípio de corrupção e individuação da matéria prima, que gera o ser.
  • 21. ser. Ultima principium gemis india fert adamantis, começa o lapidário de Marbodus. E segue-se o espectro de individuação da pedra neutra indiferenciada, percorrendo as cores fundamentais e os mistos. Num sopro raro de primado da cor sobre a forma, aquela gerará o elenco iconográfico que guiará as operações do lapidador, do ourives e até do médico. A cor impôs-se na nossa estrutura discursiva como um adjectivo. Que é feito do nome daquela mulher que passou pelo doudo esta tarde e incendiou a su’alma? Só se recorda de que o seu vestido, cujo corte apenas consegue, brevemente, imaginar, era amarelo. E não sei se as cores são a estrutura de toda a matéria, mas são, indubitavelmente, a estrutura de toda a memória.
  • 22. VI
  • 23. O Aníbal tem um afecto especial pelo retrato. Andam lá por casa perdidos, entre os meus papéis, centenas de retratos desenhados pelo Aníbal. Tem um génio singular para capturar as expressões, com dois ou três traços infantis, de gestos largos e incisivos. Ao contrário do que sempre lhe ensinaram, começa sempre a desenhar um rosto pelos olhos. Por isso, geralmente, os olhos cobrem mais de metade da superfície de todo o desenho. Em torno dos olhos, em espiral, vai então criando o universo e os acidentes restantes do rosto. É como se os olhos fossem o centro de uma cosmogonia. Aprecia, também, retratar as expressões em que os olhos fixam o alto. Todo o rosto roda, então, sobre si próprio, até que a superfície do seu plano frontal coincida com a horizontalidade, e os olhos, o sentido do seu olhar, são um totem, um poste demiúrgico. Não há nisto nada de rebuscado, senão um jeito, um hábito ou um afecto. Bem, mas serve isto para dizer que a minha alucinação pela cor anda geralmente de candeias às avessas com a minha paixão pelos olhos. A última coisa que retenho de uns olhos é a cor. Faço frequentemente má figura quando alguém me pergunta sobre outrem. - De que cor são os seus olhos? O meu espírito que, entretanto, já captou o elenco das expressões, a natureza do olhar, a sua profundidade, o tamanho e a forma, fica bloqueado. Mas aquilo que mais aprecio nuns olhos é a sua limpidez, o seu brilho, a densidade aquosa da sua superfície vítrea. Porque aí a nossa relação com os olhos é plena, pois olhando-os, vemo-nos, reflectidos na superfície de um lago. Modiglianni foi o mais sábio dos retratistas. Na maior parte dos seus retratos, os olhos são uma superfície densa, uniforme e espessa, mas vazia. Branca, para que a cor os não corrompa.
  • 24. A individualidade do olhar é laborada na delimitação subtil das superfícies, na espessura das tintas, na intensidade do seu brilho. Ao branco são adicionados ligeiros matizes, breves sombras, que exprimem o que vêem quando olham. Não me é necessário muito esforço para ver reflectida nos olhos de um dos seus modelos a simetria fria e despida da minha sala, ou o meu rosto esquálido de tez pálida. O mais inebriante encanto dos olhos consiste na forma individual como se transmutam nas cores daquilo que olham.
  • 25.  
  • 26. VII
  • 27. Quando passo junto à frontaria da Catedral de Évora e repouso o espírito imaginando o sereno e equilibrado apostolado que suporta há seis séculos as ogivas do seu pórtico, ritual em que perco, invariavelmente, algum incomensurável tempo, defendo-me sempre de tentar reconstituir as cores que outrora devem ter animado a sublime assembleia. Não é o caso do meu impaciente companheiro, congeminador de sonhos, sempre ávido por completar o universo com tudo o que lhe falta. - Parecem-me todos iguais. Faltam-hes as cores, o único e subtil pormenor que os distinguiria. Vá, Damião, aplica a cada um a cor que o distinga. - Esse papel costuma ser o teu, Aníbal. - Quando as há e eu as vejo. Agora, como se trata de imaginar, é a tua vez. Para além do mais, é de noite. Na escuridão, vês tu melhor do que eu. E o Aníbal ficou plantado na escadaria, impassível, à espera que respondesse ao seu apelo. O silêncio de uma noite luarenta de Outono, apenas perturbado, de tempos a tempos, pelo rebuliço breve da aragem nas folhagens dos plátanos, era propício à invocação dos espectros. A operação de reconstituir o elenco de colorações que o tempo e as intempéries furtaram à pedra, sem contudo a deixar inanimada, tem, ao fim e ao cabo, um guia seguro. Numa outra tintura, em que me ocorreram os lapidários antigos, omiti, intencionalmente, referência ao mais escorreito, sintético e criativo dos catálogos das cores. Os apóstolos do cordeiro são uma das referências e chaves mais permanentes no Apocalipse de São João, que os nomeia sempre neste singelo plural, indiscriminadamente.
  • 28. A única individualização acontece quando descreve a Jerusalém celestial. Delimitando-a com uma alta muralha, estabelece-lhe por guardas e fundamentos, precisamente, os doze apóstolos do cordeiro, atribuindo-lhes a essência de doze pedras preciosas. (...) o primeiro era de jaspe, o segundo (...). Os doze fundamentos, que na lógica intrincada do poema parecem entrelaçados com outras tantas portas de assédio ao sagrado espaço, são uma referência linear ao tempo e ao processo cosmogónico e colocam as cores no seu preâmbulo, como seres agentes. É fácil, pois, restituir as tinturas originais àquele singular grupo de figurações humanas, tão pouco individualizadas no resto, aliás. Excluindo os elementos iconográficos subtilmente distribuídos pelos parterres e as nuances discretas na expressão e direcção do olhar, todas elas representam o mesmo indivíduo, retratado com sábio realismo, em fases sucessivas da sua idade. Era o prólogo, facilmente resolvido, de uma aventura que penetrou pela madrugada, em vigília atenta e irrequieta. Da experiência individual de percorrer as doze cores fundamentais, da exploração radical da memória sensorial, da extenuação da imaginação em correria, posso dizer que teria que escrever um tratado íntimo sobre a cor. Sobre a forma como vive enquistada no nervo e na memória, alheia mesmo à intervenção dos sentidos. E não há como o doido, para guiar um pobre cego na jornada da exploração do labiríntico universo das cores e o conduzir ao ponto onde todas elas se comunicam. Explorar e deixarmo-nos possuir pelas cores dos apóstolos é uma experiência tão perigosa quanto a de penetrar no sortilégio da cor dos olhos. Coisas de que me defendo e que devemos evitar. Só não o consigo na companhia do meu frenético e desaparafusado amigo, sempre ávido de sorver o mundo todo, o que se lhe oferece e o que lhe falta, através da janela aberta dos olhos, que um dia, contudo, se cerrarão para sempre. Quando tal acontecer, as cores permanecerão no obscuro significado destas pétreas figuras, despertando, quiçá, outros devaneios.
  • 29.  
  • 30. VIII
  • 31. Havia um universo para devorar naquele canteiro. Uma sábia mão de mestre congeminara aquele cosmos, simultaneamente organizado e anárquico, um misto de caos lógico de simetria aberrante, mas loquaz. As cores, profusas, combinadas de forma agressiva mas ritmada, incendiavam a vista. Há formas e cores que não convivem, senão dispostas com tal mestria que o indivíduo se dilua na mensagem do conjunto. Constituem universos sintéticos que não toleram a análise, pois são a cabal negação de que o todo seja a mera soma das partes. Não conseguimos aí seleccionar o indivíduo, porque a primeira tentativa de individuação faz-nos atentar na desordem, na incoerência e na perversidade das associações lineares. Só a precária textura do pensamento ingénuo da criança é capaz de dobrar este obstáculo. Porque então o todo e a harmonia das composições são uma experiência actual, viva, formativa e a memória não tem ainda aquela impertinente tendência analítica que faz de nós observadores cristalizados e inibidos. O garoto de olhar vivo, mas reflectido e sonhador, encaminhou-se decididamente para o canteiro. - Vou escolher uma flor para a minha mãe! Fiquei atónito e em pânico, temendo a quebra do sortilégio da estranha harmonia, mas a curiosidade de poder observar um critério de escolha a que não me aventuraria paralisou-me. - De que cor? - perguntei. - A minha mãe gosta do amarelo.
  • 32. Assombro! Não havia amarelo no canteiro. Ficámos a olhar, durante alguns instantes, surpreendidos. - Não faz mal, a seguir ao amarelo, a minha mãe gosta do verde. O petiz fez um breve ramo com verduras várias, o que não perturbou o equilíbrio do conjunto, pois era a massa cromática predominante. E, surpreso com as suas próprias descobertas, rematou: - Se pudesse, levava o canteiro todo, porque parece amarelo. Parecia. No espaço vertiginoso de um instante, o pequeno sonhador, de espírito imaginativo mas operacional, revelou-me um segredo.
  • 33. IX
  • 34. - É impossível, Damião. Tu também viste? O Aníbal parara embasbacado no meio do caminho, com a atenção paralisada, o olhar fixo no renque de salgueiros que bordejava o caminho, junto da velha ponte romana. - Ora, Aníbal... Eu sou cego. - Não sei bem ainda se és. Mas por isso mesmo te pergunto. Se és cego não podes ter miragens, nem ilusões visuais. - Raios, Aníbal! Se sou cego, só posso ter miragens, ou ilusões visuais. Tu, como és doudo, tens ilusões em todos os sentidos. Mas também não sei bem ainda se és doudo. Mas, diz-me, o que é que viste, que tanto te assustou? - Nada me assustou. Assustei-me comigo próprio, por ter visto. Lembras-te daquele pássaro azul, pintalgado com estrelas doiradas semeadas pelo peito, as asas e a cauda raiadas das sete cores do arco-íris, que só vimos uma vez, enrolado nos entrelaços de um silvedo, entre amoras e romãs, sob a mira de um arqueiro, tudo enovelado nas hastes de um a capitular, numa folha de pergaminho de um cartapácio qualquer? Recordas-te de te ter dito para falares baixo e não te agitares, porque me parecia que poderia espantar-se e fugir? Recordas-te de teres agitado a folha, para que ele despertasse e pudesse escapulir-se ao tiro do arqueiro? Pois está mesmo ali, a olhar para nós, poisado num galho daquele salgueiro. Era uma manhã ensolarada de Outono adiantado, as árvores quase nuas, uma brisa ténue rolando as folhas pelo chão. Durante toda a noite chuviscara. O Sol despontava, polvilhando
  • 35. de cintilações miríades de gotículas de água que escorriam pelas ramagens de árvores e arbustos, pelas fragas e penedias e parecia ainda que andavam perdidas e em rebuliço pelos ares, sopradas pela aragem. Quase um caleidoscópio. Toda a paisagem parecia refractada explodindo em cores que, logo que se insinuavam, se desvaneciam ou transmutavam. Uma espontânea e indisciplinada alquimia. - Ora, Aníbal, a luz do Sol, refractada pelas gotículas, pode produzir efeitos mágicos. Vê lá bem, que ainda te aparece por aí algum mafarrico, ou o próprio arcanjo brandindo a sua espada flamejante. Vamos descansar. - Pois é pena, se assim foi, como dizes. Gostei muito daquele pássaro. Sentámo-nos tranquilamente sobre as guardas da ponte, a ouvir marulhar as águas do ribeiro. O Aníbal levantou do chão um pequeno e bem afeiçoado seixo rolado e despediu-o despreocupadamente, com uma expressão de contrariedade, em direcção à copa de um salgueiro. Ambos ouvimos com toda a nitidez um breve bater de asas, senti pela deslocação quase imperceptível do ar um pássaro elevar-se, voltear e picar de novo para se imobilizar na copa de outra árvore. O Aníbal tocou-me com o cotovelo e imobilizou-se expectante. Segredou-me: - E agora, não viste? - É algum gavião, ou um mocho, que tu quase alvejaste. - Os mochos e os gaviões são pardos ou negros. Ou cor de burro quando foge. Este era azul, todo sarapintado de estrelas doiradas. E a cauda era um arco-íris.
  • 36. - Bem, para dizer a verdade, também foi assim que o vi, ou pressenti. Possivelmente, era o nosso pássaro. Tenho a certeza de que ainda o haveremos de ver muitas vezes, pelo caminho. O doudo passou o resto da manhã a alvejar as copas dos salgueiros à calhoada, na esperança de voltar a levantar o passarouco. Nunca mais o vimos. Um dia, como quem não quer a coisa, sem nomearmos sequer o episódio, voltámos a folhear tranquilamente o alfarrábio. Quando atingimos a página desejada, olhámos distraídos, reprimindo a ansiedade. Ficámos longamente prisioneiros da imagem, mudos e boquiabertos. O pássaro não estava lá. Do galho onde poisara, pingava uma gota de sangue, reflectindo brevemente a luz de um Sol imaginário. O arqueiro despedira a sua flecha, imobilizada agora na carreira, uma polegada à frente do lugar onde faltava a ave. Ainda hoje não sei se o doudo a lá pôs quando me descreveu o ornato pela primeira vez, ou se a erradicou agora. É bem possível, até, que o livro jamais tenha existido. Nem o Aníbal. Nem eu. Pois não há quem diga que as cores não existem, senão nos nossos sentidos? Na alma, diria eu.
  • 37. X
  • 38. Todo aquele dia o doudo foi perseguido pelo vermelho. Um vermelho vidrado, intenso, cristalino e húmido, mas duro, de cerejas cristalizadas. Projectado na brancura açucarada da cobertura de um bolo, que estruturava, mesmo no centro geométrico, a composição da montra de uma confeitaria, rodeado de chocolates, caramelos, amêndoas, fardos e fardos de palha de ovos, algumas garrafas de vinho da Madeira, outras do Porto. Uma explosão de cores, que não eram já só um estímulo visual, mas faziam convergir todos os sentidos convocando os paladares. Nos grandes painéis publicitários, nos automóveis, nas bancadas das floristas, o vermelho proliferava na medida em que a boca do doudo salivava e se lhe alucinavam os sentidos. A fome assediara-o consubstanciada no vermelho. Um amarelo distingue-se de qualquer outro, de forma que podemos quase substancialmente imaginar duas cores distintas. O azul também, que por vezes se projecta vertiginosamente no verde. Mas o vermelho das cerejas, tão unido todavia ao seu material depósito, mal se distingue, mesmo na substância, de qualquer outro. Porque o vermelho á a mais unida das cores a um complexo cultural de referências que a imaginam e informam. De modo que o seu impacto sensorial se desmaterializa em milhões de arquétipos significantes, um imenso túnel por onde se escoa e difunde a sua materialidade e por onde deambulam toiros, hercúleas façanhas, sábios reis, alucinados cavaleiros, rubis e uma taça singela de cristal recolhendo o sangue de um cordeiro, onde satisfazemos algumas das nossas antropófagas fantasias. Tudo invocando uma mesma cor que não admite graduações pois não reside já nos sentidos, mas quase exclusivamente no verbo. Tínhamo-nos deslocado a Lisboa, em época de precariedade, para cobrar uma velha dívida de um livreiro, que durante alguns anos distribuíra os meus sarrabais e almanaques. Era questão arrumada. Levava nos bolsos dinheiro que bastasse para os bilhetes do comboio, pouco mais. E foi logo depois da chegada que passámos em frente da montra. Quase tive que arrastar o Aníbal, que ficou pasmado com o olhar magnetizado pelas cerejas. Não falou já noutra coisa. A minha boca salivava já também e, por mais que quisesse afastar a ideia, também eu via cerejas por todo o lado.
  • 39. Bem, não reavi o dinheiro e passámos um atormentado dia em Lisboa, sem comer. Nem nos martirizavam as intensas exalações dos cozinhados nas proximidades dos restaurantes, tabernas e casas de pasto. Só víamos cerejas vermelhas. Ergueu-se no ar uma bola, jogada por um miúdo. Foi diminuindo enquanto se afastava no céu luminoso, do tamanho de uma bolacha, de um ovo, por fim de uma cereja e era vermelha. Ali fiquei eu, de boca escancarada, à espera que caísse, como um cão a que lançaram um osso. Quando chegámos por fim a casa, fizemos o inventário das vitualhas. Um naco macio de queijo bem cremoso, o fundo de um paio vermelhinho, alguns dos primeiros morangos do ano. Enfastiei-me e fui incapaz de comer. Sonhei toda a noite com cavalgadas intermináveis no poente de um deserto incontível e cavaleiros de toga vermelha ondulando ao vento. Tudo numa atmosfera incendiada. De manhã levantei-me e emborquei um copo de vinho, com os olhos fechados. Os pós sufocantes da noite desértica removeram-se-me das mucosas do pálato e desvaneceu-se a alucinação pelas cerejas. Dizem que a fome é negra. Eu acho que é da cor do apetite.
  • 40.  
  • 41. XI
  • 42. Durante toda a manhã ensolarada de Abril, o Aníbal permanecera entediado e estirado nos degraus da escadaria do adro da remota ermida, de olhos semicerrados, alheio ao rebuliço da romaria. A rapariguinha, graciosa mas implicativa, impertinente, abeirou-se dele com as mãos atrás das costas, olhou no céu as andorinhas que entrelaçavam os seus voos e ordenou: - Escolhe uma cor. - O amarelo - disse ele com decisão, tentando evadir-se ao torpor. - Escolhe uma planta para essa cor. - A mimosa. - Uma pedra. - O rubi. - O rubi é encarnado. Pensa num desejo. - O rubi é vermelho. Já pensei... - És meu namorado. O doudo riu-se.
  • 43. - Porquê? - Foi o teu desejo. Deixou-se descair um pouco para o meu lado, rebolando sobre o degrau, para me encarar, e resmungou absorto: - Então, eu escolho as cores e ela escolhe-me os afectos? Voltou à posição inicial, recostando a cabeça sobre as mãos, e por ali ficou, com o Sol a abrasar-lhe o rosto, até que a fome o impulsionou como a uma mola em direcção ao assador das castanhas e ao garrafão de vinho tinto.
  • 44.  
  • 45. XII
  • 46. - Faz-me um obséquio, Aníbal. Procura-me aquele livro que tenho estado a ler, com a capa verde. - Com a capa verde?... E como sabes tu que tem a capa verde? - Não é verde? - Claro que é verde. Mas como sabes tu que é? - Ora, Aníbal. Tu disseste-me. - Não me lembro de ter dito. Mas, já agora, adivinha lá que cor tem a camisa que trago vestida. - Basta, Aníbal. Eu adivinhei a cor da capa do livro, como vou adivinhar a cor da camisa que trazes vestida. Como decidiste sustentar contra todos, sobretudo contra mim, que és doudo, deves trazer vestida uma camisa invulgar, com uma cor que ninguém mais ousaria usar. Posso imaginar uma meia dúzia de cores, que tu poderias ter escolhido para te distinguires de todos os outros pela tua camisa. Mas, na verdade, penso que não tens mais do que duas camisas, desde que te conheço. Devem estar tão puídas e desbotadas, que não devem ter já cor alguma. Nem tu já te lembras da cor que tiveram outrora. Mas tenho a certeza de que lhes atribuis uma cor, ou duas. E essas eu posso adivinhá-las. - Está bem, Damião, ganhaste, tenho a certeza de que adivinharias as cores das minhas camisas.
  • 47. Mas adivinhá-las-ias porque as minhas camisas não têm cor alguma, como dizes, fui eu quem as inventou. Na escuridão, vês tu melhor do que eu. Porém, enganas-te na cor da capa do livro. O livro que tens estado a ler não tem capa, deve tê-la perdido há muito tempo. Eu colei-lhe provisoriamente uma que andava por aí perdida, que não sei aonde pertence. Está tão usada e tão desbotada que ninguém lhe conseguiria restituir a cor. Tem agora a cor parda do papel de embrulho, com umas nódoas de vinho. - Mas garanto-te que foi verde. - Ora, Damião. Nem tu nem eu sabemos que cor foi a desta capa, pois já te disse que andava por aí perdida e não sei aonde pertencia. É uma capa qualquer. As cores das camisas podias deduzi-las, porque sabias que eram minhas. Quanto à capa, nem sabes a que livro pertenceu. Mas, afinal, Damião, queres que te traga o teu livro, ou queres passar o resto da manhã a disputar sobre cores? Fico com a impressão de que me pediste o livro como pretexto para falares sobre as minhas camisas. - Tens razão, Aníbal. Traz-me então o livro. Esse com a capa agora parda, que teve outrora uma cor qualquer, talvez verde. Tenho uma vantagem sobre ti, não me sujeito às cores que os sentidos me impõem. - Não me parece vantagem alguma. Quando fecho os olhos, as cores são menos belas do que quando os abro. Mas gostava de saber como consegue um cego, que nunca as viu, imaginar as cores. Serão as cores que tu imaginas as mesmas que eu vejo? E, se não são, como podes denominá-las de azul, amarelo, encarnado ou verde?
  • 48. - Essa é uma questão muito antiga, tem, pelo menos, quase três mil anos. Trata-se de saber se as cores residem nos objectos, ou na luz do Sol, ou de qualquer outro astro mesmo artificial, ou nos nossos sentidos, ou, singelamente, na nossa alma, sempre na expectativa de que um estímulo aos sentidos as desperte e convoque. Se assim fosse, as cores de um cego seriam iguais ou correspondentes às tuas e atribuídas com os mesmos nomes, só que as tuas seriam convocadas por objectos exteriores, através dos sentidos, e as de um cego seriam convocadas por objectos interiores através da imaginação, porque, no seu esboço essencial, as formas também existiriam na alma. Alguns filósofos dir-te-iam que as tuas cores, tal como as convocas quando recebes o estímulo de um objecto exterior através dos sentidos, são, por isso mesmo, corruptas. E só quando cerras os olhos e interrogas a alma estás apto a convocar as cores na sua pureza essencial. Mas como a tua alma está inundada dos espectros do mundo exterior, contaminada pelos objectos, isso exigir-te-ia um grande esforço de concentração. O próprio cego deixou contaminar a sua alma através do verbo, que é a janela que tem aberta para comunicar com o mundo exterior, através dos sentidos dos outros. Sendo assim, as cores do cego perderam o vínculo exclusivo aos objectos íntimos da imaginação e da alma e transferiram-se, através dos sentidos alheios, para os objectos exteriores do mundo que os outros lhe comunicaram. Assim se corromperam também. Podemos até concluir que a imaginação é também, ela própria, um sentido, que desperta a alma em reacção a estímulos exteriores. - Bem, Damião, a tua cegueira é um exemplo retórico. Sabemos bem que finges que és cego. - Sabemos, Aníbal? Tu sabes, eu não. Eu não sei se sou ou não. Acho que sou. Quem o descobriu foi a minha mãe, tinha eu dois ou três anos, que todavia
  • 49. nunca conseguiu formular uma certeza. Porque desde muito cedo desenvolvi uma grande euforia na comunicação, com a ajuda do meu tio Atanásio, que era padre e me dispensou muito tempo, transferi para a minha imaginação tudo o que os outros me comunicavam. Sorvia tudo reportado a imagens vigorosas, cheias de pormenor. A partir de certa altura era impossível determinar se eu via ou imaginava, se adivinhava ou pressentia. Já ninguém sabia se eu era realmente cego, mas a todos interessava que fosse, porque ninguém queria aceitar o mundo tal qual eu o via. Podiam ter decidido que era doudo, mas foi mais radical decidirem que era cego. Transferi com tanto empenho o mundo que os outros me comunicavam para a minha imaginação, que era já capaz de recriá-lo e devolvê-lo transmutado. Mas, sobretudo, tornara-me muito atento à forma individual como cada um parecia apercebê-lo através dos sentidos. Às incongruências e contradições entre as diversas formas com que cada um o apercebia. Foi por isso que decidi que o mundo dos sentidos é mais ilusório e mais contingente do que o da imaginação. E é por isso que te digo que somos nós quem deposita as cores sobre os objectos. E não é a coincidência entre os sentidos de todos os homens o que lhes permite atribuir uma mesma cor a um mesmo objecto, mas a coincidência na substância da sua alma, onde reside tanto a cor como a ideia do objecto, ou o seu esboço. É por isso que, se tu disseres céu, eu, que sou cego, vejo azul. Embora, como tu me dizes, o céu, dadas as circunstâncias, se te possa apresentar com diversas cores. - Não acredito, deveras, que estejas mesmo convencido do que acabas de dizer. Se estás, é por isso que és cego. A tua cegueira é um modo de dizer. Toma lá, aqui tens o teu livro. - Ora, Aníbal, não foi esse livro que te pedi. Esse, já acabei de o ler há uns dias. É aquele que comecei a ler anteontem, com a capa verde. - Ah... esse. Há muita gente que chama verde a essa cor. Para mim é azul.
  • 50.  
  • 51. XIII
  • 52. E para concluir, então, o azul, que é a cor radical, ou a falta dela. Nada no universo há que seja azul. Dizem do mar que é azul, do céu também. A água não tem todavia cor alguma, nem o ar, embora o Sol os possa tingir de variadas cores, de acordo com o estado da nossa alma. É por isso que no crepúsculo vespertino, quando a nostalgia e a tristeza nos atingem, o céu se inunda de vermelhos sanguíneos e amarelos doirados, como as parras das videiras no Outono, e de manhã explode em verdes cristalinos. E que o mar encapelado, quando a borrasca se alevanta e as vagas se despenham de encontro às falésias, quando a nossa alma toda treme avassalada por pânicos que remontam aos tenebrosos inícios do cosmos, ganha uma cor verde muito escura, quase a do invólucro escamoso de um dragão. E que quando os céus ribombam, no cúmulo da procela, se tingem do amarelo pálido do enxofre. Mas, azul, que há que seja azul no universo, senão o frio que nos penetra pelas costelas, a ausência, o ar rarefeito, a distância? Que há que seja azul no universo, senão o olhar perdido daquele casal de velhos, fixo já no nada? O azul não é uma cor substancial, não se fixa a qualquer corpo, senão ao estado das almas doentes e solitárias. Aparece por vezes num pormenor, uma nesga, numa flor, num pássaro, num peixe. Mas logo se desvanece, para se perder no vazio. Foi a cor de Van Gogh. O resto das cores foi-se evadindo, o amarelo, o vermelho, o verde foi tomando conta da sua alma e perdeu-se no azul. Suicidou-se em azul. O azul é a cor de tudo aquilo de que o Sol se ausenta. O azul é a cor do início e do fim, a cor em que todo o universo se concluirá. Mais nenhuma cor existiria no universo se o azul existisse substancialmente. Quando já só vires azul, prepara-te. Estás perto do fim. A tua alma em breve abandonará o teu corpo, como um vapor que se esvai, para se perder no azul dos espaços vazios.
  • 53. Nada temas, porque então saberás que todas as cores residiram em ti, exclusivamente em ti, em nada mais senão em ti e foste tu, o tintureiro, quem as depositou no universo.
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  • 55. Epílogo E se tivesse que atribuir-te, a ti, que és a minha alma e o cadinho em que amasso os pigmentos e os depuro da escória, uma cor? Uma que jamais fora vista ou nomeada, que não pudera ser sequer calculada da infinitude de graduações possíveis e imagináveis, operadas por associação ou mistura das que compõem o espectro da decomposição da luz. Uma que fosse a luz em si, una e indivisível, com a sua cor própria, de onde brotaria o arco-íris, que concebeu as cores todas do universo. A quinta essência da cor. Uma cor anterior ao azul, ao nada. Uma ânsia apenas, um estertor, um grito. Um balbúcio, um sopro breve e instantâneo por entre os lábios, que não chegaria a ser sequer um nome. Antes do prólogo e depois do epílogo de tudo.
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