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Textos moleques que fugiram da gaveta só para se exibirem.

                                          Humberto Bley Menezes




                   Para minha esposa Elizete, meus filhos
         Valéria, Fábio, e Felipe. Também para meus netos Isadora e
                  Luis Gustavo com amor. Com carinho para
                    Luiz Augusto e Melissa, pelo apoio.




                                      “Em verdade, em verdade vos digo que, se o
                                      grão de trigo que cai na terra não morrer, fica
                                   infecundo; mas, se morrer, produz muito fruto.”

                                                  São João, CapXII, Vers. 24 e 25.



                                                                                        3
.
    4
.
CONVITE




Convidei-te para caminhar ao meu lado.
      Vieste, andaste, andamos.
      Desconfio, no entanto, que
        Fomos longe demais...




                                         5
AO MENOS UM ACENO

Fim de tarde.
Passeando pela alameda da nostalgia
Deparei-me com o rio da minha infância.
Um rio e uma ponte.
Um pequeno barco.
Um menino, uma canoa.
Nas mãos um comprido bambu,
Movimentando a paisagem.
Quanta semelhança com o guri
Que fui aos dez anos.
O mesmo boné de feltro quadriculado,
Calça curta presa por uma só alça de suspensórios,
A camisa, suja das brincadeiras
Presa por um só botão.
Os óculos “fundo de garrafa”
Escorregado no meio do nariz.
De algum lugar conhecia aquele petiz.
Olhamo-nos longamente...
Imagem de fotografia antiga.
A tarde encolheu devagar,
Afastou-se o barquinho
E o menino de pés enlameados também.
Nem sequer um aceno...
O passado não se despede.
Dei as costas aos últimos raios de sol,
Ergui os óculos,
Ajeitei o boné quadriculado,
Engoli a bílis amarga da saudade,
E segui.
Nômade, errático, andejo.
Cativo das minhas fotos desbotadas.



                                                     6
A CHAVE




  Tempo e silêncio,
 Eis a chave do enigma.
 Saudade é uma serpente
Que corrompe a serenidade




                            7
ARDIL

Não me pergunte quando, pois certamente errarei no palpite,
mas, de alguma forma o equilíbrio se fará naturalmente.
Parece que ações opostas teimam em se harmonizar no fim
das contas.
Toda a criação humana embora pareça revolucionária não
passa de ferramenta da natureza para encontrar seu
equilíbrio.
Ao homem cabe o papel de se descobrir, enquanto ser
racional, como qualquer marionete impulsionada pelo vírus do
novo e do desconhecido. Desvendar fórmulas, que
escondidas esperam o amadurecimento da inteligência para
surgir como invenção, descoberta, ou criação humana.
O ser humano como parte da natureza coabita o mesmo
ambiente das coisas passadas e futuras, tudo o que houve,
há, e haverá na história do universo.
A explosão inicial na medida em que se preservava absorvia
composições possíveis.
A ordem universal e todas as coisas fecharam a fôrma do
plano possível.
Enfim tudo se delineou, se entrelaçou de tal modo, que tudo
está resolvido.
Cabe ao tempo, através de seus agentes, o ser humano e
todas as coisas e seres existentes, caminhar, evoluindo passo
a passo, montando as peças do enigma para enfim conhecer
a verdade. E aí sim descobrir a felicidade ou a desilusão de se
descobrir apenas mais um ente da trama, sem forma, sem
moral, sem ética ou estética que encobre a existência. Ela
mesma apenas um detalhe no buraco negro do holocausto.




                                                              8
ECOS DE VERÃO.

Pingo...
Pingo...
Pingado, do céu e do telhado.
Pingo...
Pingo...
Molhado, da goteira e dos meus olhos.
Restinho de água escorrendo pela face e assoalho.
Um gato lambe a última das gotinhas.
Meus lábios ensaiam um sorriso.
Sufoca-me a última gota represada no coração.
O gato me olha sedento.
Deito-me na rede, coberto pelo céu.
Vejo canários da terra beliscando o gramado,
E vespas montando casulos no beiral.
Conto as telhas no telhado aparente.
Percebo o vento, conversando gentil,
Com as folhas e galhos dos sombreiros.
O peito não resiste,
A represa se rompe
Encharcando o presente,
Remoendo o passado,
Devassando o futuro.
E escurece.
Tempestade não pede licença.
Cai furiosa para confundir pingos e pranto.
Chuva de verão,
Que assusta o felino,
Espanta os passarinhos,
Agita os marimbondos,
E se arvora arrogante,
Para findar com o encanto.




                                                    9
ATEU. GRAÇAS A DEUS.
Não sei. A falta de argumento e a obrigação que me imponho
de escrever alguma coisa se transforma em desafio. Nada de
idéia, nem de assunto. Como é difícil esta merda de ter que
escrever. No meu caso, pretensioso e preguiçoso que sou
realmente torna-se difícil passar um texto sem motivação,
assunto ou vontade. Mas muitas vezes foi assim que comecei
minhas obras primas Estou achando que este é mais um
exemplo. Sim, tenho muitas obras primas. Pena que o mundo
não as conhece. Ninguém as conhece. Vou dormir muitas
noites, certo de que passei a quem por desgraça leu em meus
textos algo do que se passa no seu coração, e se reconfortou.
Durmo feliz, achando que de alguma forma, dentro da minha
mediocridade estaria passando a alguém mais medíocre
ainda, algo de positivo que ensejasse ações de fortalecimento
do caráter e do bem que existe em todo o ser humano; quem
sabe um nó na garganta, abafando a emoção, válvula de
escape para suportar o cotidiano. O ser humano não lê. Não
lê porque não sabe ler. Porque ler é tempo e tempo é
sobrevivência. E a sobrevivência é mais importante que a
literatura. Sei que com as minhas obras cada vez mais
primeiras, na medida em que vou perdendo os escrúpulos e
escrevendo sobre o que realmente penso, ou melhor, quanto
mais penso mais me desprezo porque nada do que penso ou
sinto resiste a alguns momentos de reflexão. Sendo assim, a
obra prima da noite anterior se torna lixo na manhã seguinte.
O maior problema é que o que realmente penso e sinto de um
momento para o outro muda de direção como o vento como
a insegurança do mais seguro dos mortais. A vida é rio
correndo para o mar, o medo de exame de sangue, da AIDS,
a bolsa de valores, é a polícia, a justiça dos homens. Pena
que em termos de justiça, como não acredito na dos homens
e como não creio na do céu, encontro-me perdido nas minhas
certezas. E na condição de ateu, já decidi: seja o que Deus
quiser.

                                                          10
ANITA




O ar cinzento e fino, a tarde lívida e seca, nenhum aceno na
distância, a vida parada, o mundo ausente, assim. Perdido o
prumo. Neste momento de não sei que, não sei onde, luzes
passam com rapidez, olhos acima inquisidores, tilintar de
ferramentas extraindo a bala, regenerando a vida recuperando
um destino que renderá certamente muita tristeza, muita
euforia, contradições, traições, devoção, felicidade, desgraça,
tragédias e paixões debochadas. Tudo enfim que a vida de
uma pessoa nascida para usufruir todos os elementos,
inclusive da morte, a maior testemunha da existência da vida
que muitos valorizam de tal forma que não percebem que
desejada ardentemente, muitas vezes torna-se prólogo da
felicidade.
- Anita. Está livre deste hospital. Pode agora sair para onde
quiser, até mesmo para este lugar misterioso que diz existir no
mundo, o qual eu duvido que resista a você. Sossega menina.
De qualquer forma, embora minha vontade tenha se perdido
nos teus beijos arrebatadores e nos teus deboches e risadas
do meu jeito de fazer amor, não te esquecerei, vagabundinha.
Espero que alguém possa te fazer mais feliz que este tal de
Armando.
- Doutor, eu espero nunca mais encontrá-lo, mas para seu
consolo, devo dizer que você é muito gostoso. Tuas últimas
noites de plantão me tiraram da sensação de estar só, tão só
que não resistia mais aos apelos da morte, desta vez sem

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sentido. Deixa estar sairei por aí a procura novamente de um
amor tão pungente que as asas imóveis do tempo possam
transformá-lo em vida plena e feliz até na velhice, ou na
morte, cuja substância lentamente me arrebata e consome.
Tchau, doutorzinho.
Anita saiu, percorreu ruas e avenidas, Nas costas uma
mochila quase vazia carregava Conchita,sua bonequinha
 espanhola, dançarina de castanholas mudas que girava para
um lado e outro ao som de uma musiquinha chata que às
vezes irritava Armando. No pensamento a estória de Cintia
que um jornal vagabundo o vento grudou em sua barriga e por
acaso indicou seu destino A tragédia da mulher assassinada
pelo amante traçou o rumo da moça que sem Armando tomou
a direção da cidadezinha. Sem o alento tênue e vago, com a
confiança dos que nada mais tem a perder, nem a ganhar, e
passam a vida como agentes do contraditório usufruindo os
fatos que provocam, buscando a satisfação incontrolável não
medindo parâmetros, desprezando o convencional
cinicamente usando da mediocridade
O fato é que ela chegou para tornar-se uma nova Cintia ou
mesmo redimir Anita, não se sabe. Mas, seu primeiro ato ao
plantar gerânios foi ornamentar o ambiente para Conchita
dançar livremente A música da caixinha ecoou pela cidade. E
no coração das pessoas estancou-se o vácuo e aquele
casarão que seria desabitado para sempre, tocou a melodia
da vida, gargalhou debochado, gemeu e desmaiou
escandaloso como presente de Anita, dona de herança
incalculável, que ao deixar o convento aos dezoito anos
decidiu ao ultrapassar as muralhas, viver a substância da vida
desprendida de moral e costumes. Ser livre, expor a carne e a
alma ao imponderável destino.




                                                            12
ÁGUA VIVA




Sentimento, palavra, emoção,
Procura, encontro, existência,
Perda, tristeza, vida,
Nuvem, cinza, tormenta,
Paz, trabalho, amor,
Dor, separação,
Água, ritmo,
Pernas, braços, bocas,
Sedução, dança, luz,
Movimento, música, paixão,
Fogo, chama, calor,
Ritmo, espuma, vento, mar,
Tantas palavras,
Bailando no ar.




                                 13
TICO, QUASE PELÉ

   Tico era um menino esperto. Morava perto da minha casa
quando criança em uma vila de casas juntinhas e iguais.
Antigamente se destinavam a empregados de uma fábrica de
macarrão. Menino bom de bola, esperto e sempre sorridente
passava seus dias entre a escola pública pela manhã e as
peladas durante as tardes. Também ajudava sua mãe fazendo
alguma coisa dos trabalhos domésticos. Mas a maior parte do
tempo passava no campinho no qual se reunia a criançada da
rua para memoráveis peladas diárias. Tico se sobressaía
entre os guris, pois possuía um refinado tratamento com a
bola de futebol. Tratava-a com carinho e delicadeza, mesmo
porque a bola de couro, um tanto surrada de tantos embates,
era sua. De tal maneira que as pelejas só começavam quando
ele chegava. Vinha só com a bola nos dias de treinos e com
um saco de farinha cheio de camisas e meias do time que
Dona Maria, sua mãe, tratava de lavar e passar depois de
todas as partidas que Real Futebol Clube se apresentava nos
desafios dos times das ruas vizinhas ou mesmo de algum
outro bairro.Até do centro da cidade já haviam recebido
convites para torneios de fim de semana . Muitos valiam até
taças aos vencedores. Tico tinha uma verdadeira paixão por
futebol. Mais do que ele apenas seu Chico seu pai adorava
tanto o modo de jogar de seu filho que o tratava como um
verdadeiro herói. Sim, Tico era o herói de seu Chico embora
este tivesse mais nove filhos sendo destes seis mulheres. Tico
adorava seu pai e ouvia encantado as estórias das partidas
que este havia disputado como soldado do exército no tempo
do “tiro de guerra”. Até convite para treinar no Primavera,
clube da primeira divisão, havia recebido. Infelizmente, a


                                                           14
necessidade de sustentar sua mãe viúva e muitos irmãos
menores não lhe permitiu seguir carreira. Acabou se tornando
motorista de caminhão e viajava pelo país entregando
mercadorias e contando aos outros colegas o quanto era bom
de bola seu querido Tico. Terminado o treino Tico colocava
sua bola embaixo do braço e antes de ir para casa passava no
açougue da esquina para pegar um pedaço de pelanca de
carne com bastante gordura, ficava sentado no degrau da
porta da cozinha em casa esfregando sebo na bola. Dizia que
era para não ressecar o couro. Feito isto tomava seu banho
jantava aquela gostosa sopa de feijão com ovo inteiro e couve
mais um pãozinho que sua mãe preparava e ia deitar, sem
antes fazer os deveres da escola. Sonhava. Tico sonhava com
as oportunidades perdidas na última partida. ”– Eu devia ter
entrado mais, a bola era para bater de esquerda, meu pai
sempre me diz para travar de direita e bater de esquerda. Foi
pra isso que ele me treinou desde pequeno para chutar com
os dois pés. E naquela hora eu tinha que penetrar mais na
área, tinha espaço, meu pai não gostou, espaço é para ser
ocupado e explorado. É que nem posseiro, se tiver
desocupado ocupe e tire proveito, dizia. Se clarear chute.
Felizmente consegui aquele drible, bati de bico mesmo, mas
valeu. Ganhamos. Preciso me ligar, um chapéu no zagueiro ia
ser bonito. Ainda vou tentar.”
   Finalmente chegaram as férias escolares. Toda a garotada
em alvoroço. O campeonato organizado pelo seu Chico com o
patrocínio do Dono da Transportadora em que trabalhava
estava preste a começar. Já tinha tabela organizada e doze
times iam participar. Viria time até do outro lado da cidade,
gente rica, filhinhos de papai. Valia faixa, medalha para o
artilheiro, melhor goleiro e até uma taça enorme que seria
disputada todos os anos. Assim como é na copa do mundo.
    O Real Futebol Clube ia muito bem no campeonato. Tico já
era considerado o melhor do campeonato. Seu Chico
orgulhoso não cansava de pagar cervejas para os amigos a

                                                          15
cada partida, exaltando sempre as qualidades do filho. Todos
concordavam, Tico teria de treinar em algum clube grande,
realmente seu talento era um dom.’ Eu que preparei o
moleque desde pequeno. Ensinei a chutar com os dois pés, a
cabecear, a se colocar na área e tudo o mais. Esse moleque é
demais se vangloriava o orgulhoso pai. ’
    O domingo chegou e com ele a partida final: Real contra o
Social Clube. Era um time da zona mais rica da cidade. Clube
de pessoas de dinheiro. Seu Chico andava preocupado com a
 arbitragem e exigiu que se convocasse um árbitro lá de Rio
Negro, uma cidade próxima, pois tinha fama de honesto nos
jogos que apitava. Não cobrou nada veio só pela cerveja e a
linguiçada no fim do jogo.
    Infelizmente Seu Chico a pedido de seu patrão precisou
fazer uma viajem inesperada, para uma entrega urgente. Ao
chegar a casa chamou Tico e explicou que não se
preocupasse, pois iria viajar, mas retornaria a tempo de
assistir a partida, nem que para isto viajasse a noite toda.
Olha meu filho trouxe um presente para você. Tico quase não
acreditou ao ver uma chuteira novinha reluzente, de marca,
como nunca tinha visto na vida.
Pelo que você fez até agora no campeonato está a merecer.
Esta chuteira vai fazer muitos gols. Tico quase desmaiou de
felicidade, chorou muito e soluçando abraçou fortemente seu
pai. Afinal ele sempre dividia um par de chuteiras com seu
irmão mais velho. E quando jogavam juntos usava um pé e
Zezinho o outro. No outro pé ele colocava o tênis da
escola..Agora ele tinha um par só para ele.e novinha. Se o Zé
precisa-se ele emprestaria de vez em quando, coitado.
    Seu Chico nunca faltou a nenhum jogo do qual Tico
participasse. Para o menino os gritos de seu pai e a certeza
de que tinha sempre o incentivo dele a beira do campo o
fortalecia e enchia de confiança. Tomara que ele chegue a
tempo desta vez. Quando ele fazia uma boa jogada procurava
na platéia o boné azul e branco que seu Chico não tirava da

                                                           16
cabeça e via o sorriso aberto e as mãos enormes aplaudindo.
Também apoiava quando ele errava um passe ou chutava
para fora. Boa, Tico, na próxima nós acertamos, dizia. Ele
jogava junto.

Tico estava ansioso, o jogo final já estava por começar e nada
do Boné do seu Chico aparecer. Acho que ele quer fazer
surpresa, pensou.
   O jogo corria nervoso. Segundo tempo empate em um a um.
Tico havia dado o passe para o gol do Real. O juiz prejudicava
abertamente os meninos do Real. Parece que se interessou
mais com o vinho e um churrasco no clube social. Tico corria.
Driblava, centrava e nada de gol. Segundo tempo, e Seu
Chico não aparecia. Tico volta e meia o procurava na
assistência. Nem precisava, pois seus gritos ele os ouviria
com certeza se lá ele estivesse.
Em vez disso viu suas seis irmãs a beira do campo acenando
desesperadamente. Na primeira oportunidade que o jogo lhe
permitiu se achegou a elas. Percebeu que choravam.
 -Tico o caminhão tombou, papai morreu “”.
 O goleiro gritou; Tico é tua ta sozinho. Tico matou a bola no
peito, viu espaço para correr e explorar, entrou na área o
zagueiro grandão vinha sobre ele, conseguiu aplicar um
chapéu, pegou do outro lado, e de esquerda emendou um
chute que estufou a rede. O gol do seu Chico.Todos
comemoravam. Tico saiu de campo tirou as chuteiras colocou
o seu velho e surrados chinelos de dedo , entregou chuteira
novinha para o Zé e saiu pela avenida cheia de carros e
 indiferença. Mergulhou no cotidiano da cidade e por alguns
anos ninguém soube dele.
    Certo dia, na fila de entrada, para um espetáculo de teatro,
escutei uma voz conhecida. – ‘Baleiro, Balas’. Reconheci
aquele rapaz esguio com um tabuleiro pendurado ao pescoço.
---Bala doutor, amendoim? Puxei imediatamente do bolso do
meu, sobretudo o boné azul e branco que prometi a sua mãe

                                                             17
entregar a ele se um dia o encontrasse. Coloquei-o na cabeça
e quando de mim ele se aproximou eu disse apenas:
amendoim, do salgado. Ele me olhou fixamente por alguns
segundos entre surpreso e emocionado. Eu lhe passei o boné
e balbuciei – Espaço vazio é para se avançar e ocupar, Tico.
Ele tirou o tabuleiro do pescoço colocou-o sobre o colo de um
mendigo sentado no meio-fio e partiu. Sumiu na escuridão.
   Estou contando esta estória porque ontem depois de alguns
anos participei de uma festa de formatura de Medicina e
durante a solenidade muito me chamou atenção à figura
imponente do reitor da universidade. Depois de todos os
discursos e entrega de diplomas, por ocasião dos festejos
finais, comuns em todas as formaturas, quando todos os
formandos se confraternizam, percebi o Magnífico Reitor
despojar-se da indumentária formal, e emocionado colocar na
cabeça um boné azul e branco. Para mim o parágrafo final
desta narrativa. Tico realmente fora um goleador.




                                                           18
PASSEIO DOS LOBOS




Noite, escura madrugada. Vento soprando forte.
Calor sufocante.
A esquina me direcionou ao cemitério.
Lobo de olhos amarelos novamente guiando minhas atitudes.
Duas almas passaram ao meu lado indiferentes, riam,
gargalhavam..
Sete cachorros e uma cadela no cio ziguezagueavam na
dança pela reprodução.
Um vulto saiu por detrás de uma árvore. Os olhos
profundamente amarelos dos lobos.

Estáticos em todos os desertos do planeta

aguardavam o desenrolar deste meu delírio.
Um cheiro forte de urina contaminou meu terror.
Um gato preto pulou do muro.
Um bêbado se levantou de repente e
vomitou no meu sapato.
Lagartixas fugiram gargalhando.
As minhocas eram serpentes. Perto da lua ausente, o olhar
estático da fera.
A noite escura, o muro branco, escancara uma abertura
cúmplice, permitindo minha passagem.
A escada rolante me levou ao campo santo.
Chapéus e lenços brancos acenavam
Dois lobos uivavam
Vovó levantou do túmulo e me abraçou.
Seus ossos caíram aos meus pés.

                                                            19
Seus filhos, os do além, urgiram em juntá-los.
Um rastro de fogo me seguiu.
Todas as velas anteriores acenderam.
Véus e dançarinas circundavam os túmulos.
Aves negras riscavam o vento.
Virgens gritavam desesperadas.
Flores murchas se revigoraram.
Um copo de leite me tirou para dançar
Ossos irromperam das covas
Lápides de mármore e granito flutuaram
Como tapetes voadores.
Um anjo de cobre derreteu-se em agonia

E aos gritos desesperados.
Lobos expuseram as presas em todos os desertos.
Corri como nunca.
Derrubei almas penadas.
Fui xingado, amaldiçoado.
Onde se viu, ser tão mal educado?
Exausto sentei na amurada de um túmulo.
Flores ainda fedendo,
Algumas pisadas,
Por alguém descuidado no enterro recente.
Ofegante, desesperado, conformado,
Procuro guarida no nome do descarnado.
Local de morto inconformado.
O buraco teimosamente aberto,
A lápide reluzente,
A frase definitiva:

Não sei se cheguei ou parti.

Os lobos, então, descontraídos, voltam as costas para minha
agonia e saem altivos e solitários, como eu, pela escuridão
adentro, deixando os fantasmas que teimam em não me
abandonar.

                                                          20
ZAZAGUGA

Para Isadora e Luis Gustavo.

Por humilde que seja meu pensamento, e nem sei por que
penso assim, acho que nada mais perfeito do que me diminuir
ao ponto de penetrar na grama do jardim, abaixo desta
simples planta inglesa, absorver meu ego, minha vida, meus
amores e dissabores. Acho que neste ambiente diminutivo me
seja possível libertar das injunções do ambiente Supondo,
meus ais libertos da filosofia reinante, dos críticos, da
realidade, entre minhocas, e todo o resto que se joga no
chão... Convivo. Não por prazer, mas por necessidade de me
esconder do dia a dia, para conseguir voar nestas palavras
cheias de sentimento e verdade.

Era uma vez:...
Acho que não está pronta a estória.

Na verdade foi uma vez na minha condição de ser minúsculo,
um privilegiado. Ser possível observar no vai e vem de
determinadas pessoas os verdadeiros objetivos de um
coração condicionado ao “meio ambiente”. Pobre tatu bola’,
cada vez mais enrolado no seu desalento, medo das minhas
palavras otimistas, apavorado pelos gritos de realidade que
enterrei na grama do jardim. Baú de bons sentimentos, que
descobri um pouco abaixo das boas intenções, enterrado por
aí. Talvez dentro de uma maleta de couro de jacaré, forradas

                                                          21
com manchetes de jornais.
Tudo isto pode ser apenas um sonho, mas entre migalhas,
terra, microorganismos, neste meu sonho louco surgiram os
pés incautos do meu Guga e as mãos sôfregas da minha
Záza. Era um sonho. Meu menino sorria, gargalhava pisando
formigas. Minha menina delicadamente rebuscava entre as
folhas do jardim minha imagem contente, esparramada como
um mar de essências perfumadas. Tudo para tentar absorver
a felicidade de duas crianças. Uma, o menino, em busca da
cumplicidade, outra, a menina, na certeza da delicadeza. Os
dois, parceiros da minha colheita de perfumes que
sobreviverão certamente ao húmus transgênicos, ou não, da
saudade.

Tatu bola,
Formiguinha,
Zangão do maracujá.

Se esta rua.
Se esta rua
Fosse minha....
Eu mandava, eu a mandava brilhar...
Se esta festa, este sonho me pertence.
Gostaria,
Gostaria,
Nesta vida, nesta vida
Realizar




                                                          22
INSPIRAÇÃO




          Instante...
         Súbito raio,
    Tolos pensamentos.
       Faísca atrevida,
   Resgatada do enigma.
       Sonhos libertos,
Por instantes livres e plenos.
   Delírios e transpiração
     Liberdade ancestral
 Explosão de imortalidade.
Candura, riso e choro, agonia.
  Momento que antecede
          A criação.




                                 23
A ARANHA.



         Tecendo
          Subindo
         Descendo
        Indiferente,
   A aranha assusta-se.
Olha-me com olhar curioso.
      Sorrio apático.
        Ela boceja.
 Prossegue na sua labuta,
   Retorna a alinhavar.
      E eu continuo
  Preso ao emaranhado,
Cativo da minha preguiça,
   Carente do teu colo.

 Sou mosca presa na teia
    Da tua ausência.




                             24
ANGÚSTIA



 Como se fosse vento.
 Como se fosse brisa.
Como se fosse o tempo.
 Como se fosse hoje.

 Como se fosse agora.
Como se fosse sempre.
Como se fosse eterno.
Como se fosse ontem.

 Como se fosse tênue.
 Como se fosse pluma.
  Como se fosse raio.
Como se fosse espuma.

 Como se fosse água.
 Como se fosse fogo.
 Como se fosse nada.
 Como se fosse tudo.

 Como se fosse vida.
 Como se fosse fim.

                         25
CONCLUSÃO



  Da vida desejei interjeição.
Busquei decifrar a interrogação.
   Vivi somente a afirmação!
       E em reticências...
  ·Cheguei a este ponto final.




                                   26
DÚVIDA ATROZ



 Quem sou, onde estou?
    Na casa da árvore,
      Ou nas pétalas
   Das flores do jardim?
Na poeira do vento furioso,
Ou no calor da brisa suave?

  Sou apenas granito,
  Suspenso no abismo,
 Que o tempo certamente
     Fará derrubar.




                              27
ESCALADA


      Ao escalar seu corpo
      Fixei-me no negativo
      E assim na horizontal,
    Seus cabelos como corda
Presa ao grampo dos meus dedos,
        Balancei o corpo
       Com ritmo e prazer.
       Saboreei seu gozo.
          Atingi o cume.
     Pratiquei rappel radical
     Até acima das nuvens.




                                  28
LÁGRIMAS.


   Cristais de sal
 Grudados no rosto.
Desperto de um sonho
Que você freqüentou.




                       29
SAUDADE.

     Hoje é vento.
Amanhã, lembranças...
Viver hoje com volúpia.
Garantir recordações,
    Plantar na vida,
    O direito futuro
      À saudade.




                          30
TEMPO



              Perdi,
            Ganhei,
              Vendi,
            Comprei.
          Menosprezei,
         Deixei passar.
   Tentei resgatar o passado.
O futuro esgotou-se no presente,
     Bebi com gelo e limão.
    Diante do imponderável,
   Entre todos os elementos,
      No decurso da vida,
 Faltou-me mais que o tempo,
          Faltou-me ar.



                                   31
CAMINHOS




Nos teus lábios, só beijo,
Nas tuas mãos, ninhos.
Nos teus olhos, desejos.
    No teu destino,
      Caminhos...




                             32
VENTANIA




         Dou um passo,
         O solo recua dois.
    O vento revolve os cabelos,
      O talento passa voando.
        Um jornal vagabundo
      Gruda na minha barriga,
     Dou a luz a uma canção.
   Folhas secas em redemoinho,
       Angustiam o coração,
   Questionam minhas certezas
       Provocam a discussão.
         Sou apenas poeta,
    Das coisas e das emoções,
        Não vejo inspiração,
       No vento em turbilhão.
          Vendaval é vida,
      De párias e vagabundos.
  Por mim, finjo ignorar a ventania.
   Jogo meus versos no espaço,
Observo-os planarem por um instante,
   Abrigo-me no colo da amada,
     Pois tenho medo do vento.




                                       33
LINHA DA VIDA




        A cidade assiste tristemente os vagabundos nos
biongos abraçados, se defendendo do frio, enganando a fome,
imunes ao cheiro azedo de suor impregnado nos farrapos,
unidos pelo instinto de preservação, compartilhando o calor
que os preservam. Ao lado, amontoados, papeis velhos
exaustivamente colhidos de casa em casa, de lixo em lixo, de
pedido em pedido, de raiva e repugnância.
       A cidade assiste tristemente o diálogo dos homens
importantes, defendendo ponto de vista, discutindo soluções,
negociando cargos, fazendo promessas, baseando-se em
sistemas, análises,pós-graduações, simpósios, e nas leis dos
homens importantes.
       A cidade assiste tristemente os meninos nas ruas
correndo da repressão, correndo da fome, correndo para o
vício, correndo para a prostituição, dirigindo-se
irremediavelmente para as garras protetoras das instituições
dos homens importantes.
       A cidade assiste tristemente os indivíduos sem nome
que pisam apressados por cima de tudo, uns atropelando
outros, apesar dos meninos de rua que correm famintos pelas
avenidas da cumplicidade.
       A cidade assiste tristemente o destino de seus filhos,
levanta os olhos, e finge não ver no horizonte, por detrás dos
obstáculos de concreto, o limiar da luta de seu povo.




                                                           34
NAVEGANDO.


Um passo ao futuro,
Dois passos para a saudade.
Dança dos meus sentimentos
Na palma da tua mão.

Sentimentos que o vento espalha
Entre vasos vazios e estátuas frias.
Barquinho de vela inflada,
Navegando sem direção...




                                       35
VIRTUDE...

As razões se sucedem.
Tudo é justificável.
Na minha cabeça nada de errado,
Apenas o incontrolável.
Sem pecados,
Sem máculas,
Sem remorso.
Para tudo encontro remissão,
Isto foi por isto,
Aquilo foi por aquilo.
Não sou culpado.
Porque haveria de agir assim
Se não fosse a única saída esta forma,
Porque trilharia este caminho?
Está errado?
Sim, é antiético, incorreto, desleal, é traição.
Quem julga?
Onde se esconde o deus da virtude?
Existe ser humano
Capaz de condenar outro?
Matei um amor por letargia,
Matei um sonho por interesse material,
Sucumbi à corrupção por comodidade.
Traí por prazer e luxuria,
Roubei lágrimas e esperanças,
Menti muito como legitima defesa,
Apaguei muitos sorrisos inocentes.



                                                   36
Não sou culpado.
Apenas meu travesseiro me incomoda
Sacerdote que é do meu confessionário.
Planejo destroçá-lo
Jogar pluma por pluma em lugares distantes
Para que assim espalhadas
Não me acusem mais,
Esvoaçantes e indiferentes,
De ter vivido.




                                             37
CHUVA SUAVE

Chuva suave,
Caminhos encharcados e sonolentos
Réstias de sol, por entre nuvens,
Dourando cabelos molhados.
Esbarrando em postes e guarda-chuva.
Cruzamos olhares.
A ti coube um sorriso
A mim o deslumbramento.

Como é bonito o amor que se descobre
Numa tarde de chuva.

Depois um chocolate quente
Um até logo
Um muito prazer
Uma carona,
Uma despedida.
Um beijo consentido.
Ter que ir querendo ficar.
Até amanhã
Gostei de você.
Adeus.

Como é bonito o amor que se descobre,
Numa tarde de chuva...



                                        38
NA DA ORDEM.



       Possi
       Velho
       Caso
       Ismo.
    Reto e som
   Breve silêncio
 O NA DA ORDEM.

  Quieto descanso.
      Em mim
Visão hipermetrópica.
  Pedras e cheiros
  Rolando otimismo
       Mesmo
 Escalando degraus
     Chegando
         1º
      E tudo o
          +




                        39
AROMAS

Quando meus olhos viram os teus,
Teus olhos foram os meus,
Meu olhar foi nosso olhar.
Quando teus olhos viram os meus,
Meus olhos foram os teus,
Teu olhar foi nosso olhar....

Quando um raio traçou destinos,
Quando a ponte balançou,
Quando o céu escureceu,
O alvo ficou mais branco
E o tempo esmaeceu...

Quando de repente o vinho entornou.
A vida em bolhas seguiu
Em forma de realidade.

Meus olhos viram os teus
Teus olhos viram os meus
O alvo se derreteu
Na forma de uma ilusão
Os teus e os meus olhos
Cansados de tanto amor
Fecharam extenuados
E assim ficaram.
Sem rancor...




                                      40
ÁGUAS PASSADAS, SAUDADE.

Saudade.
   Para começar prometo não repetir que esta palavra só
existe em português. Por esse motivo vou substituí-la por, não
sei, talvez, nostalgia? Não quero ouvir tangos, também não
ouvirei Cazuza ou Zeca. Quem sabe para embalar meu
teclado possa sentir o Noturno No 20 de Chopin ou a Ária em
G de Bach.. Parecem mais apropriadas para música de fundo,
não do texto, mas da inspiração para discorrer sobre a volúpia
que insiste em movimentar meus dedos pelas teclas,
marcando na tela palavras que não sei de onde vem, nem sei
para que servem, a não ser para aliviar o desejo de
materializar momentos vividos e sentidos que corroem minha
quietude.
     Seria os folguedos de criança a razão desta nostalgia?
 Seriam os mimos os beijos e abraços dos primeiros anos? As
descobertas, o sentimento de imortalidade quando se pensava
que tudo era possível, da primeira paixão, do primeiro
desengano? Ou seria o passeio solitário pelas areias
desertas desta época do ano em que o mesmo balneário da
minha infância permanece vazio e frio, visto ser inverno, e de
repente estar no mesmo lugar em que muitas vezes freqüentei
por anos seguidos.
Desde a infância percebo que as ondas comovidas
guardavam com cuidado cada passagem do meu passado
nas finas camadas de areia, escondendo até agora o sentido
da minha vida. Hoje decifrando meu coração, lavando
sutilmente da areia camadas finas que vão revelando ano a
ano minha existência as ondas devolvem à minha lembrança
passagens esquecidas na brutalidade da vida. “Viva o Guga”


                                                           41
(meu neto) “Viva a Záza” (minha neta) .” O Guga é muito
Esperto”. “A Záza é minha princesa querida”. Muitos corações
vão aparecendo com a palavra Zéte. Uma onda maior limpa a
areia surgindo um belo castelo e o nome da razão de tudo,
escrito nas janelinhas: Zéte na torre maior, Valéria, Fabio e
Felipe,nas muralhas que protegiam meus sonhos, meu existir.
    O vento... O vento sopra sem cessar no fim de tarde quase
noite: o castelo desaparece e o passado mais remoto vai
surgindo. De quem seria esta letrinha infantil? ““ Papai meu
herói, eu te amo”, “ Mamãe eu te adoro”. Mais vento, mais
areia retirada, mais recordações, mais constatações.
Aparecem algumas pegadas. As marcas das muletas do meu
pai, os passos curtinhos de minha mãe e por incrível que
pareça pezinhos marcados levemente na areia; os meus e de
meus três mais jovens irmãos. Modestamente mais crianças
felizes amparadas a caminhar ao encontro de seus destinos.
Seria isto nostalgia?
Não, isto é saudade.




                                                          42
IRONIA ECOLÓGICA

Amazônia,
O fogo comendo o futuro
Criança nascendo nas barrancas.
Esperando um barco branco
Gritando mais forte que sagüis.
Sangue que jorra na estrada
Mais do que o leite da seringueira.
Mais do a malária.
Meninos barrigudos e famintos.
Mulheres tentando abortar o grito
Sonhando com um boto cor de rosa .
Um pouquinho de ilusão...
Piranhas escondidas nos igarapés.
Esperando,esperando,
Como jagunço na tocaia.
O Brasil e seus meninos...
Vontade de rodar no encontro das águas.
Alcançar o mar,
Mergulhar nas taças de champagne,
Brindar com a fumaça das chaminés,
Comemorar o progresso,
Na Barra ou na Paulista.




                                          43
CURITIBA MEU AMOR

Não sou daqui: estou aqui.
Nas alamedas de pedras, embaixo dos candelabros,
No Museu Sacro da "Igreja da Ordem"
No “Relógio das Flores”,
Que permanece deitado
Na praça do "Cavalo de Ferro".

E o vômito de polenta, pierogui, chucrute e cachaça,
Escorre nas calçadas,
na água fétida e musgosa do chafariz,
no qual banham-se os meninos.

Não sou da periferia,
Dos bairros afastados e pobres.
Sou classe média e boêmio
Mas, freqüento as lajes,
As rodas de fumo, de samba e linguiçadas

Não sou da elite,
Mas freqüento os apartamentos e mansões,
As rodadas de coca, chanpagne e mignon,
Onde se desfrutam das meninas da periferia,


                                                       44
E dos meninos de academia.
Com direito a passeios de iate no litoral.

Torci o tornozelo na "Rua das Flores",
Ali na "Boca Maldita",
Bem juntinho da "Praça Ozório".
Sou cidadão urbano.
Fui assaltado na “Esquina das Marechais”.

Pratico caminhadas no “Parque Bariguí”.
Respiro o ar mal cheiroso do lago.
-O “Jacaré” anda sumido-, talvez de vergonha.


Sentado em um dos bancos da “Boca Maldita”
Sinto o odor dos bueiros,
O cheiro gostoso do Café Damasco,
Ouço o tóc-tóc das sandálias das “Mocinhas da Cidade”.
Saboreio as barriguinhas de fora.
Ninguém é de ferro.

É um privilégio viver
Na “Cidade Ecológica”,
Que já foi "Cidade Universitária”




                                                         45
PRIMEIRO AMOR

    Olhos tristes
 Lágrimas brilhando
São como nascentes
De um rio se formando
  E se avolumando
Umedecendo o rosto.
   Soluços suaves
Cachoeira de dúvidas
 Mar de sentimentos
   Toda a tristeza
 Toda a melancolia
  De chorar sozinha
    As incertezas
  Do primeiro amor.




                        46
LUZ E SOMBRA.

( Rocio – Bailarina)



Apenas entrou,
E a luz lhe agasalhou o corpo.
E seus movimentos,
Provocaram os ventos,
E o compasso do tema,
Remexeu seus cabelos.

Sexo e dança...
Ventre e luz...
Moinhos, desejos e lança...
A provocar paixão,
Sexo, sonho e dança
Volta e revolta
Pois tudo é perdão.

Arte de puros amantes,
No instante da entrega total.
No palco da vida trabalho.
Na vida do palco prazer.
É pra você este tema,
O qual você mesma escreveu,
Palavras bailando tão soltas,
No universo só teu.
E meu...


                                 47
SONHEI COM VOCÊ.


Braços soltos preguiçosos
Sensação de mais dormir, e mais sonhar, e mais querer
As costas remexendo motivos, preguiça.
Pernas rebeldes espalhando-se pelos lençóis
Braços indomáveis em movimentos cínicos
Mãos percorrendo caminhos recentes
Quadris impertinentes
Seios intumescidos, queimando desejos.
Coxas ardentes,
Dentes rangendo sedentos,
Língua encontrando o céu da boca.
Pêlos grudados aos panos
Pensamento debochado
Travesseiros em cumplicidade
Uma declaração de amor em surdina
Dedos sedentos pesquisando profundezas.

Sonhos...
Motivos secretos.
Raio de sol descobrindo pecados.
Rasgo meu sonho
Entendo meu humano coração
E saio confiante,
Para a vida...




                                                        48
A PORTA DA PALAVRA




Palavra,
Onde encontrar tua janela,
A brecha, o vão, a abertura?
Nos degraus da palavra torre?
Nos perigos do abismo?
No c de céu, no i de inferno,
No a de amor, ou no o de ódio?
Será no t da ternura, ou no s da saudade?
Em todas as formas não encontro entradas,
Labirinto ardiloso e cruel.
No entanto existem fendas,
 Ou seriam transposições?
Que fissura descobriu o poeta,
Que a domina e constrói,
Que vira e revira, mistura e cria outra?
Como consegue penetrar nos teus segredos.
E através de ti, dentro de ti,
Encontrar os “poemas que esperam para serem escritos?”




                                                         49
CAIÇARA.




Sou caiçara,
Ganho a vida no mar.
No mar eu embalo,
No balanço das ondas,
Os sonhos de um dia voar.

Sou caiçara,
Ganho a vida no mar.
No mar eu embalo meu sonho
No segredo de meu pensamento,
De largar a espuma e a areia
Para um dia voar.

Sou caiçara,
Pescador de todos os peixes,
Senhor de todos os ventos,
De todas as formas e cheiros.
De ondas, ressacas e maresias

Queria voar mais alto,
Que o sonho que me embala,
Para ver lá de cima,
Se a vida que ganho no mar,
Está desenhada na areia.
Em forma de poesia.




                                50
CHORINHO



Atordoado de Pixinguinha
Desci ladeira descalço
Chutei as pedras e as latas....
Sangue no dedão do pé.

Caminhos que não percorri
Mas deixei o solo marcado.
Esquinas malditas
Que teimam em não se revelar.

Música de não sei que dimensão
Tocando meu coração
Com a agonia dos criadores

Porque estou nesta estrada?
Com as feridas abertas
A alma em desespero
Procurando as harmonias
Desta música demoníaca
Que transborda de sentimento
Este farrapo de Lamento,
Mendigo de toda a beleza.
Carinhoso, como Naquele Tempo




                                  51
DESTINATÁRIO NÃO ENCONTRADO.



Maldita folha em branco que queres de mim?
Sou apenas um batuqueiro de teclas, nada a acrescentar,
tudo dito, tudo escrito.
Verso e reverso, todas as questões resolvidas.
No entanto, nas entrelinhas, parece sobrar espaço. Inútil.
Minha vida, minha experiência, nada acrescentará.
Vida sem fato relevante, nada espetacular.
Pode-se viver como mata borrão do tempo, apagando
excessos?
Como colagem do contemporâneo?
A imaginação, esta sim, é ladina.
Não permite abandonar o sonho, de desvendar os segredos
do ser humano.
Neste sentido, um universo a descobrir.
Porque me olhaste, porque te olhei e elegi rainha?
Tudo para mim, meu ponto final?
 Não sei e, não tentarei explicar, apenas aceito.
Aceito como equação matemática que estabelece a conjunção
de átomos conseqüentes.
Sou; és, e nada pode mudar este sentido.
Somos nós, únicos, para todo o sempre.




                                                        52
DISCRETA SEMELHANÇA.

Dia destes, em um fim de tarde.
Dei por mim num barranco de rio.
Ao longe um pequeno barco,
Um menino empurrando a canoa.
Nas mãos um comprido bambu.
Quanta semelhança com o guri
Que fui aos dez anos de idade.

O mesmo boné de feltro quadriculado
A calça curta, presa
Por uma só alça de suspensórios,
A camisa suja de estripulias
Abotoada em um só botão.
Os óculos “fundos de garrafa”
Escorregado no meio do nariz.

De algum lugar eu conhecia aquele petiz.
Eu o observava, ele ficou me olhando,
Imagem de uma fotografia antiga.

A noite foi chegando devagar.
Afastou-se o barquinho
E o menino também.
Não lhe fiz sequer um aceno.
O passado não se despede.

Dei-lhe as costas
Ergui os óculos
Ajeitei o boné quadriculado
E segui
Nômade, errático, andejo.
Cativo das minhas fotos desbotadas



                                           53
VENTOS DO NORTE

Existe sangue no chão.
Vermelho em fundo azul.
Estrelas rodeando o espaço,
Cometas sem rumo, perdidos.

Ao fundo Mickey Mouse sorrindo.
Para uma tribo africana
E os dentes, aqueles dentes,
Iluminavam Wall Street.

Mandrake morreu de engodo
Fantasma esqueceu os pigmeus
Sinatra escapou de Alcatraz.
Liz deitou na ilusão.
Oswald fechou o enredo.

Existe sangue no chão
Estrelas no fundo azul,
Listas vermelhas no branco
E a vida seguindo serena
Ao ritmo da injeção letal,
Com testemunhas.

Assim estou redimido
Das mortes em Bagdá.
O verso se esparrama abusado
Pelos tapetes da Casa Branca,
Jerry o leva para a toca.
Tom como sempre atrasado
Bate a cara no piano
Que neste exato momento
Bush toca My Way.

                                  54
VISITA AO REI.


Se ele realmente sentisse medo não estaria ali. Só o fato de
entrar demonstra o quanto corajoso se sentia agora. No
entanto, já fora um maricas, como o chamavam os piás da
rua, e do Grupo Escolar onde cursara o primário. Sentia um
medo terrível de qualquer pássaro ou ave; asas se debatendo,
sem direção, apavoravam seus sonhos. Sabia, sentia que algo
o espreitava de algum lugar naquele aposento. Olhos negros,
sobrancelhas muito grossas, uma boca enorme de sorriso
debochado, na cabeça uma cartola azul, vermelha e branca
seguiam seus movimentos cuidadosos. Não se importava.
Pensando bem, havia crescido e se tornado adulto com esta
mesma sensação de ser observado constantemente. Porque
então este sentimento desconfortante, porque o arrepio na
espinha? E a sua coragem? O ambiente não era escuro nem
sombrio, ao contrário, pessoas transitavam, mulheres
elegantes circulavam e homens de óculos escuros se faziam
importantes a seu redor.
O pescoço apertado pela gravata de cores extravagantes. No
horizonte um mastro gigante mostrava farrapos verde e
amarelo. Seria o "pendão da esperança?” Os olhos, de
soslaio, observavam sua vontade de vomitar.
A luz lá fora era intensa, olhos ardendo, e ele com a missão
de trilhar este espaço de sol refletido no mármore do caminho;
ou seria uma rampa?
De repente os monstros de sempre invadem sua alma. Á
direita o parlatório, e uma figura quixotesca prometendo a
felicidade. Seus ouvidos queimam, querem vazar palavras da
memória. -' “Minha gente. Não me abandonem, não me
deixem só." Não. Impossível conviver com o mesmo destino.
Não depois de tudo que se fez pelo fim do pesadelo.

                                                           55
O piso é fofo e verde, o sonho é negro e febril.
Neste momento a memória se mostrou cruel. Não seria
preciso coragem para enfrentar estes mortos vivos. O medo
era justificável. Nada, no entanto deveria tê-lo conduzido a
esta cerimônia fúnebre. Seus representados e camaradas que
o perdoassem, mas um solene gesto involuntário e
incontrolável seria o epílogo deste dia de terror.
- Parabéns, o senhor é o exemplo de brasileiro que todos nós
admiramos. Obrigado por acreditar na pujança desse país. Em
nome deste governo passo-lhe às mãos esta menção
honrosa,.Obrigado pela visita. Eram mãos reticentes, frias
como as palavras.
Pensou. Pouco resta logo tudo estará consumado. Os
fantasmas sorrateiros vencerão. Engolirão sua dignidade e
tudo estará terminado.
Ânsia. Tentativa de controlar o pavor, mas a bílis e o almoço
de rodízio de carnes com maionese não esperou pela
digestão. Tudo derramado no fofo chão verde, no calçado de
couro alemão, terno de corte inglês, gravata italiana
manchados agora pela consciência de um brasileiro. O
anfitrião reclamou:- “Assim não pode, assim não dá." Se
retirou e todos o seguiram.
Corria o ano da graça de um mil novecentos e noventa e
nove. Pelo menos cem de promessas de terra, moradia,
saúde, educação, segurança, igualdade de oportunidades,
dignidade e soberania para os brasileiros.

Em tempo: Atrás de uma bandeira enorme, listrada de
vermelho e branca, os olhos negros, as sobrancelhas muito
grossas, a boca enorme de sorriso debochado cobriu o rosto
com a cartola vermelha, azul, e branca gargalhando
grotescamente.




                                                          56
SUA PRÓPRIA ESTÓRIA.



SUA PRÓPRIA ESTÓRIA


EU, ATEU E AGNÓSTICO DO FORTUITO
CRENTE DA DECRENÇA E FILHO DO ASTIGMATIMO
ENFEITAM DE PAISAGEM AOS QUE ACHAM QUE TEM O
PODER DE ENXERGAR.
UM DEDO À FRENTE DOS OLHOS, MAS NÃO VEEM NEM
UM MILIMETRO DENTRO DE SI MESMOS, LUGAR ONDE
SE ESCONDE A VERDADE E HABITA A CONDIÇÃO
HUMANA. NEM O INFERNO NEM O CÉU, APENAS A
INUTILIDADE.



As semelhanças, nos fatos, nos pensamentos, nas atitudes
são de tal modo pertinente à natureza humana que
extrapolam o universo individual e se inserem em todos os
universos, visto que o corpo humano de per si é um mundo
em separado. Um elo da corrente. Esta corrente infinita na
qual todos estamos unidos com o nosso sentido de auto-
preservação. O começo desta linha ninguém mais sabe onde
se encontra, nem mesmo o fim se sabe onde esta.
A esta corrente grossa e pesada chamaremos vida. Se formos
analisar suas subdivisões este ensaio seria comparado à
existência humana, pois de começo desconhecido e

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seqüência no infinito. No entanto apesar de estarmos de mãos
dadas e cúmplices do mesmo destino vivemos como se o livre
arbítrio realmente existisse. Na verdade o livre arbítrio é
apenas o poder de não ter poder nenhum. A vida coletiva é a
ilusão da liberdade individual. Sucumbimos sempre aos
desígnios do acaso. Este sim, com suas manifestações
espontâneas e próprias, direciona as nossas atitudes. A
ciência, a religião, enfim toda a manifestação humana, embora
muitas vezes pretensiosamente independente, não passa de
um atestado de submissão à natureza, ao fortuito, ao
inesperado. Os desígnios da natureza, esta sim
pretensamente previsível e, no entanto tão surpreendente e
indomável.




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PORQUE HOJE É SÁBADO.


Não desejava este final.
Lágrimas misturadas ao sangue.
Um líquido viscoso, grosso e negro,
Esparramado pelo chão.

Os gatos arriscam lamber seu pescoço
O odor é adocicado.
Minhas mãos úmidas de sangue
Mancham as paredes.
A faca caiu em ponta,
Segue na vertical,
Espetada no chão de tábuas.

A televisão noticia o fato.
Estampado no vídeo o meu retrato.
Ser desprezível,
Com números abaixo.
Assassino cruel!

Espelho quebrado.
Pedaços de vidro sobre o sofá.
Tapete manchado.
A água do macarrão secou no fogão,
O vinho congelou no freezer.
Ela chegou menstruada e chorosa.

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Meu colchão estampado de vermelho,
Lençóis, travesseiros, minha solidão,
Tudo dançando neste sábado infernal.

Copos espalhados.
Garrafas tombadas no sofá
Corpos estendidos no chão.
Inertes e bêbados.
Os gatos lambendo coturnos policiais.

Ela ao piano cantando:
‘Pra não dizer que não falei das flores’.
O maldito poodle latindo sem parar.
As notas da partitura flutuando pela minha garganta,
Sol, Fá. Ré, Dó sustenido.
Herança de Geraldo Vandré.

Desmaio para continuar
Refém do meu pesadelo
Atravesso seu corpo
Estupro a silhueta,
Arrebentando as cordas do violão,
Desenhada no chão.




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CAMINHOS DOS SEIXOS



No jardim da minha casa, que na verdade nunca teve um, e
na minha lembrança, persiste a alegria que possivelmente
povoa os canteiros da vida de quem o teve. Que graça tem as
flores sem nome? Que significado terá se seus aromas não
nos induzirem á nossas verdades pessoais. As flores são
representações de nossas vivências. Os cheiros são os
caminhos da memória. Nada representam sem a história de
nosso viver. Um bouquet de rosas jogado na calçada,
encharcado de cotidiano, é apenas uma intenção descartada.
Que destino teria se num vaso de cristal qualquer adornasse a
amargura de uma vida sem amor? Um dia vazio como os dias
das pessoas que labutam, que se acreditam produtivas,
enquanto rosas balançam ao vento e samambaias caem
curiosas das samambaiaçus. Nas encostas das montanhas,
mosquitinhos e manacás adornam passeios burgueses de
domingos dorminhocos, cansados dos segredos, enfim
libertos das quatro paredes.
 E assim caminham minhas lembranças, meu jardim, meus
sonhos, bem-te-vis sugando vida e minha vida sendo rolada
como os seixos no rio. Lá embaixo, água fria e cristalina me
convida a olhar o céu refletido na sua pureza, meditar,
continuar ou morrer extenuado de tamanha beleza inútil.



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MAIS UM VERÃO.




  Chega-se toda dengosa,
  Como bichinho enjeitado
   Deita-se toda chorosa,
Encolhe-se toda ao meu lado.

Olha-me com olhos gulosos,
  Parece pedindo perdão.
   E eu te aceito jeitosa,
  Dentro do meu coração.

  Chega-se do vento leste,
 Quente com o sol de verão
   A rede balança lenta,
 Na batida do meu coração.

  Assim, passo as tardes,
  Dolentes, no meu rincão.
Assim eu espanto a saudade,
    De que, eu não sei,
   Não sei, não sei não...




                               62
SOL INTROMETIDO


    Fora de hora acendeu a luz.
Paixão se esvaiu na claridade do dia
Sedução se perdeu na nova manhã

Quem rompeu o breu deste momento?
     Um raio de sol intrometido,
          Um feixe de luz,
        Uma azia indomável.
           Uma vontade
       De não ter participado?
   Arrepios que não posso negar.

        Amores de ocasião.
  Raios de desejos inconfessáveis
          Razão seduzida
       Gozo e apenas gozo.
     Delicias que se escondem
             Nas bolsas
     Dos caçadores da virtude,
  Monopólios da virgindade alheia.

      Esta revista me reserva
        Páginas vermelhas
   Que eu necessite esconder?
      Mocinha, menina, guria
Suas reentrâncias serão percebidas?
     Se não, condenado serei.
   Se sim redimido me sentirei.
           Valeu a pena.
 Para isto se presta a imaginação.


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ASSIM QUE ACONTECE

           Acontece,
        E quando acontece,
          Não se esquece.
Não se esquece de um olhar de relance,
        Fulminante e distraído
        Quando se está farto.
         Não era o momento,
      Mas se deu de passagem.
      A canção diria, acontece...

      Juro, meu olhar foi curioso,
        Seu olhar foi indecente
      Assanhou o meu coração.

         Assim de passagem,
            Como acontece.
     Acontece um atropelamento,
              Um assalto,
         Um prêmio na loteria.
               Acontece
       De se encontrar pessoas,
        Acontece ser multado,
         Acontece ser culpado,
        Acontece que te cobicei
      Quando te vi de passagem.
     Acontece que tudo acontece.
        E como tudo acontece
        Ainda procuro entender
        Porque tudo acontece.
          E tudo que acontece
         Acontece de repente.

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Arrisco, pois, navegar
  Como marujo estreante.
Grumete sob ondas raivosas
    Tentando intimidar,
 Rasgando velas que inflei
   Para vencer oceanos
 E suplantar tempestades.
         Acontece.
 Barco que não sai do cais.
 Âncora colada ao destino
  Aprisionado ao trapiche.
   Mares que não velejei.
   Porque tudo acontece
   Distraído, de relance.
   É assim de passagem
    Sem eira nem beira,
    Que tudo acontece.




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NATURAL NATUREZA

A força do homem
Encontra aqui,
Nas águas revoltas
Das Cataratas
No abraço fraterno de todos nós.
A afirmação da natureza
Desaguando história em sua fóz
E a voz dos que amam
Os bichos, o verde, os ventos
Ecoa forte nas matas, nas águas,
Nos animais.
Fronteira que une e iguala
Três países e povos irmãos
Unidos em um mesmo destino.
Pescadores de esperança
Que acalmam as águas no
Alvorecer da Livre América.




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STING E RAONI


E por falar em ecologia
Nesta manhã
as flores não deram leite.
A chuva da noite
Não cobriu de acrílico a relva.
A chuva da noite
Não cobriu de acrílico a relva.
Os sonhos dos homens,
Persistem tão pobres
Pantanal de andarilhos
Vendendo a seiva dos troncos
Bebendo o sangue dos índios.

E por falar em ecologia
Foi manchete no Time
Seringueiro, garimpeiro
Peixe Boi, Jacaré...
Nosso chão é pulmão
Nosso chão, servidão
Do mundo.
Nosso chão é pulmão
Nosso chão, servidão
Do mundo.
Nosso chão é pulmão
Nosso chão, servidão
Do mundo.
Nosso chão é pulmão
Nosso chão, servidão
Do mundo.




                                  67
A DAMA DA TARDE



De onde vem este amor
Revelando mundos
Revirando tudo
Como se fosse um tufão?
Varrendo, cuspindo entulhos,
Num erguer e demolir muros,
Nas esquecidas e despovoadas,
Ruas do meu coração?

De onde vem este amor,
Às vezes festa, às vezes fúria,
Num abrir e fechar de portas,
Louca procura de respostas,
Mistura de murmúrios
Fonte de delicias e torturas?

Onde anda agora este amor?
No mundo do faz de conta,
Brincando de subterfúgios,
Fazendo-se de surdo,
Deixando-me assim,
Um pobre menino
A flutuar em sonhos absurdos?

Onde anda este amor?
A que horas chegará,
Com preciosos sorrisos
Que recolho agradecido,
Para traçar o rumo dos meus dias?
Onde anda este amor?


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“XÃO BATIDO”

O ideal é ser sóbrio com algumas recaídas de vez em quando.

O baile corre solto
Samba, forró e vanerão.
Casais em êxtase.
O som com volume descomedido.
A cerveja quente.
O chão de tábuas irregulares.
Os pés variando botas, sandálias e chinelas
Cigarro.
Mais um traçado.
E o estilo exuberante dos casais,
Rodam e giram.
Uns compenetrados,
Outros às gargalhadas.
Uma Coca Cola que explode.
Mais um Cuba querido?
Outro cigarro.
Na mesa de plástico encharcada
Azeitonas e salaminho.
Os palitos espetados.
Mais uma bem gelada.
A banda silencia!
Dançarinos se recolhem às mesas.
Mais um cigarro.
Um conhaque pra rebater.
A cadeira de plástico se quebra.
Olhos varrem o ambiente,
Som de gaita e violão.
A banda ataca um tango.
Levanto-me, ajeito as partes,
E corto o salão.

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A dama do outro lado se me oferece.
Levanta os seios.
Beijo sua mão,
Enlaço sua cintura,
E dançamos, bailamos
O tango no melhor estilo.
Calamos os presentes.
Inebriados ignoramos os aplausos.
Esta merece outro conhaque.
Mais um cigarro.
O lenço encharcado
Passa pela testa vaidosa.
Outra cerveja quente.
Urinar fora do vaso,
Jogar papel no chão.
Uma delícia
Romper com as regras,
Ser alguém por hoje
Que não serei amanhã.
Noite que segue
Num banco de automóvel,
Com a dançarina.
Ou seria a garçonete?
Mais um conhaque amor?
Outro cigarro.
O vento fresco da madrugada
Anunciando a ressaca moral.
Uma latinha gelada.
Adoro estas recaídas de vez em quando.
Onde estão os meus cigarros?
Daria tempo para a saideira?




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MORANGOS CHANTILLY E HORTELÃ

Silenciosamente saiu de manhã
sem um beijo, sem adeus.

Sei, eu dormia.
Ainda dormia, pois o dia, já era pleno
De todo o cotidiano.
Não tenho vontade de levantar.
Os lençóis e este torpor me impedem.
Um punhal de sol atravessa as cortinas,
Crava no meu peito dança sobre meus seios.
Sinto o calorzinho nos mamilos
Agora empinados.
Suas mãos de ontem correndo minha virilha
Os dedos catatônicos buscando as dobras
As coxas se movimentam
Ajeitando, despistadas, melhor acesso.
E me sinto úmida, transbordando.
Minha língua roça o céu da boca
Mordo a pontinha do lençol.
Uma explosão acontece no meu peito,
Um delírio, um gosto de hortelã,
Um cheirinho de morango.
Chantilly escorrendo pelas coxas
Uma sirene cortando meu sonho.

Um homem que partiu de manhã
Sem me beijar...




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UM BEIJO ARDENTE



Um beijo ardente. Uma imagem de Guadalupe, a noite quente
sufocante e um som cadenciado animando a praça. Vozes
incessantes. Clima de feira e festa. O povo rindo desbragado.
Passeio entre corpos morenos suados e cabeludos. Luzes e
gritos. Som, muito som. Compasso latino. Ao fundo o som da
orquestra . Cheiro de mulher .Aromas fortes bailando mais
que as saias coloridas. Frescor de flores e tabaco. E risadas.
Muitas risadas. E atabaques batendo e saltando entre as
pessoas. Frutas, muitas frutas aparentemente abandonadas
em tabuleiros insolentes e despudoradamente floridas. Entre
as pedras do calçamento, quase invisíveis filetes de urina
escorregam sinuosos pelas frestas. Misturam-se flores,
tabaco, suor, risadas, pernas morenas, colos abundantes,
bocas vermelhas e dentes muito brancos emoldurando línguas
safadas. Quem foi? Como um roubado beijo neste ambiente
de êxtase provoca tamanha vertigem.? Corro através da
melodia e da algazarra. Onde está? Quem será? Não sei se
 o rum, se a música, se as saias rodando coloridas, se as
mulheres de pés descalços, se o líquido nas calçadas, se a
multidão, se a minha falta de fôlego, se o calor, se a noite, se
os boleros mambos e salsas, se as risadas, se as barrigas e
quadris bailando, se o beijo, se aquelas coxas morenas, se o
sorriso provocante, se Guadalupe comparsa e redentora, me
propiciaram este delírio. Sei apenas que passei por entre o
casario nas ruelas de Havana antiga. Tão antiga que
escondem paredes encardidas do sangue dos escravos, das
pobres vítimas de Batista, dos revolucionários, dos que
acreditaram e dos que ainda tem esperança. Tudo ao ritmo
antigo de Ibrahim Ferrer e seus músicos. Como no tempo e ao
som de Buena Vista Social Club. Arriba.


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CRUZES NA BEIRA DA ESTRADA

Estórias de cada cruz.

Lamento de um passante.

Não questiono nada na forma, nem no conteúdo, nem na
crença, nem no futuro, nem no passado; sou do presente e do
material. De repente assombrou meu sonho este depoimento
sem sentido.

“Iscutaqui meu fio, num apense que tudo se passô assim tão
faci não.Nu cumeço era por demais difici, as arma sufria
mermo. Nois se acheguemo aqui sem nada. Tinha acabado
tudo de cumê nos caminho desta tria que abrimo no machado
e facão, no suó, padecendo que nem dá gosto de lembrá. Era
bicho de tudo o jeito, dos pequeno dos maió. Bugre nois não
viu mas sabemo que espiavam nois, dava pra escuitá. Ocê
nasceu no mato meu fio, nas beira de um riaçhão. Tua mãe
gritô três dia. Sofrimento de matá. Máto mermo. Não parava
de
sangrá. Tá cismado? Vai lá, há de ter uma cruzinha bem
debaxo de um pinhero, lugá bom pra se rezá. Adispois vorta
pra casa. Este aqui é o se lugá.”

As carretas furiosas e os andarilhos penitentes se apossam
das estórias enterradas em cada cruz do caminho. E
espalham pelos caminhos do Brasil.




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TRIVIAL CASEIRO

Se você é recém casada, nunca cozinhou na vida, certamente
gostaria de saber como fazer um almocinho simples para o
maridinho, não? Deve estar pensando em surpreender seu
homem e provar para sua querida mãezinha que você pode.
Melhor seria ter ouvido os conselhos maternos e tentado
aprender. Mas não, em vez disto escolheu passar o tempo no
computador, no chópim e nas baladas. Foi numa desta que
sem querer querendo engravidou. Ainda bem que o moço é
boa gente. Assumiu e casou .Tudo bem. Agora é fazer a tua
parte. O moço trabalha é esforçado e por enquanto vai
cumprindo com a obrigação de manter sozinho a casa
enquanto você espera o rebento. Para sua sorte ele te adora
te enche de carinho de noite e de dia e ainda mora longe da
família. Sem problemas com sogra, certo? Bom, então porque
não arriscar? Surpreender com um almoçinho caseiro para
começar. Não é tão complicado assim Com um pouco de boa
vontade tudo sairá bem. Ele vai lembrar-se da casa da mamãe
e de quanto era feliz e não sabia. Vamos lá:

Primeiro passo: Vá até a cozinha e se apresente à aqueles
objetos que lá se encontram.O fogão é aquele que ostenta em
cima quatro bolachas pretas abaixo de uma grade e cinco
botões na frente. Possui um depósito escuro chamado forno.
Não se preocupe desta vez não irá usá-lo (o forno), fica para
outra quando atingires o estágio intermediário. Verifique se
tem na sua cozinha tudo o que vai precisar: além do fogão, a
geladeira e aquele parecido com televisão; o micro ondas,
este mesmo que você esquenta aquela sopinha de envelope.
Na verdade esqueça o micro. Tire do armário aquele faqueiro
que você ganhou da sua querida, mui amada e distante
madrinha. Abra a caixa de panelas, selecione a frigideira
maior do conjunto chinês, aquele envolto em papel celofane, e
duas panelas desta caixa enorme, presente daquela tia que

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mora em Londres. Cuidado para não abrir a caixa do relógio
cuco, não vai ser útil nesta empreitada. O titio telefonou para
saber se vocês haviam gostado. Adoramos você disse
obrigado vou usar bastante este jogo de panelas. Bom filha,
mas não estou falando de mestre cuca mas do relógio cuco. O
tio ficou magoado. A gente se atrapalha mesmo, paciência.

Então trate de levantar cedo e depois que o benzinho sair
para trabalhar vá às compras

.Segundo passo: No mercado compre arroz, feijão, óleo,
cebola, pimenta do reino, alho, manteiga, ovos e sal. Não
fique nervosa se não achar o tal do sal agosto. As receitas
geralmente citam estas palavras, mas o sal a gosto quer dizer
que você pode colocar a quantidade que mais agrada seu
paladar, não é uma marca de sal. Compre também batatas,
um maço de agriões, cheiro verde e um bom azeite de oliva.
Algum atendente no mercado pode te apresentar ao agrião e
ao tal cheiro verde. Trata-se daquele maçinho de cebolinha
verde e salsinha. Não se assuste, não é complicado. As folhas
compridas e redondinhas parecendo um canudinho de festa é
a cebolinha, o outro matinho é a salsinha.
Muito bem, mas falta o principal: a carne. Esta é a parte mais
difícil. Sua mãe sempre comentava que carne se compra em
açougue e no açougueiro de confiança. Aí então poste-se a
frente do balcão e sorria para o açougueiro. É um belo
começo para ser bem servida. Observe se ele te olha com
respeito ou já enfiou aquele olhar guloso no seu decote. Finja
olhar as peças de carne na vitrine. Não precisa pensar em
pedir CPF, Título de Eleitor, Comprovante de endereço ou
Folha Corrida na Polícia, o moço provavelmente é de
confiança. Afinal toda a fila está disposta a ser atendida por
ele. Olhando bem ele é até simpático. Peça então quatro bifes
de alcatra, não muito grossos.


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-Se estiver bom, te elejo meu açougueiro de confiança!

Não precisava dizer nada, mas já que disse poderia disfarçar
este rostinho vermelho de constrangimento. Ignore os sorrisos
maldosos das mulheres da fila. Saia de fininho, direto ao caixa
e correndo para casa. Ufa!



Continua... Saí para almoçar.




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PASSEATA



A multidão seguia agitada, olhos voltados para as esquinas,
rostos a procura da repressão esperada.
Ela caminhava ao meu lado, gritava, cantava. Vestia calça
justa e um blusão folgado preso à cintura por um cinto
vermelho. Seu corpo agitava-se continuamente, os braços
erguidos, rosto ligeiramente pálido, mas expressão que refletia
coragem e segurança. Os olhos azuis pareciam ver tudo pela
primeira vez, tal era o brilho de felicidade que transmitiam. Ela
tudo via, observava, devorava, menos a mim que lhe
implorava um olhar, um sorriso.
Agora estamos de mãos dadas, todos fazem um cordão.
Arrisco uma carícia, ela sorri sem me olhar, e seguimos.
De repente, os soldados. Corri para um muro, subi. Lá de
cima olhei para a rua e a vi correndo ora para a direita, ora
para a esquerda, até que parou. Ficou como a esperar o fim,
entregar-se. Gritei: - Marina, aqui. Apesar da distância e do
barulho me viu, correu. Quando o gás já era intenso, pulamos.
Estávamos em um terreno baldio que fazia fundos de uma
casa. A impressão era de estar desocupada, pois o quintal
descuidado, as janelas fechadas denotavam abandono. O
mato era alto e a construção era destes palacetes que se
encontra às vezes no centro das grandes cidades.
Ficamos afundados no mato. Eu escutava sua respiração
ofegante junto ao meu rosto. Um soldado subiu no muro, disse
qualquer coisa para outros lá fora, ouviu a resposta e voltou
para a rua. Uma bomba de gás explodiu perto de nós. Xinguei
e corremos.
Ela me apontou um barraco de madeira, oculto junto ao muro.
Nos arrastamos até lá. A porta cedeu sem esforço, entramos.
O paiol estava vazio, com exceção de alguns sacos de milho


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já mofados. Sentamos no chão. Lá fora se ouvia gritos,
palavrões, correria.
- Obrigada.
- Não foi nada. Perdeu-se de alguém?
-Não, estava sozinha.
-Como se chama?
-Marina. Como você soube?
-Não sei, engraçado adivinhar.
-Alguém?
-Não.
Uma ratazana atravessou o barraco. Assustei-me, ela gritou.
-Vamos sair daqui.
Saímos. Na janela do casarão um velho barbudo apareceu e
nos chamou, Corremos para a casa e entramos.
Dentro, a riqueza dos móveis, os lustres, obras de arte,
tapetes, nos impressionaram. Percorremos a casa cômodo
por cômodo sem encontrar ninguém. Salas enormes
ricamente decoradas, intensamente iluminadas
completamente desertas. Ela permanecia junto a mim,
assustada. Passei o braço em torno de sua cintura e subimos
as escadas de mármore. Em cima muitos quartos, com
decoração antiga. No maior deles uma cama muito macia e
grande, grossos tapetes e uma lareira acesa.
Ela jogou-se na cama e ficou a pular, rindo como criança. Saí,
andei por toda a casa sem encontrar ninguém. Na sala de
refeições um enorme relógio de carrilhão enchia o ambiente
de ruídos compassados. Eram onze horas da noite
Voltei ao quarto e a encontrei envolta em montanhas de
cobertores. Seu corpo parecia menor na imensidão da cama.
-Ninguém em casa. Os soldados interditaram o quarteirão,
houve tiros e os homens estão por toda parte. O jeito é ficar
aqui.
Ela me olhava sorrindo. Já apagara a luz e nos iluminava
apenas a chama vermelha da lareira. A cama era luz e
sombra, calor e desejo. Seus cabelos espalhavam-se pelos

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travesseiros. Virou-se de costas mostrando os ombros nus e o
contorno de seu corpo perfeito delineados nos lençóis.
O tempo é breve quando se é feliz.
Quando acordei não a encontrei na cama. Vesti-me e desci.
Um aroma de café vinha do andar de baixo. Na sala de
refeições a mesa estava posta com pães, geléias, frios e
sucos. O café na chapa quente do fogão à lenha era
irresistível. Enquanto bebia escutei o carrilhão bater cinco
horas. Lá fora ainda estava escuro e uma chuvinha miúda
acompanhava um vento gelado. Ouvi uma porta bater. Corri
até a janela e já longe pude ver os cabelos compridos e louros
de Marina. Ela corria na escuridão. Ainda por alguns
segundos fiquei observando seu vulto liberto. Mas as garras
da repressão caíram sobre ela. Agora caminhava triste e
escoltada.
Lembrei-me do sorriso moleque quando lhe acariciei a mão,
seu grito de medo do rato inofensivo, seu braços assustados
me apertando quando entramos na casa, seus olhos
provocadores, seu corpo entre lençóis iluminados pela
claridade trêmula da lareira, minha noite de amor, minha
descoberta da felicidade.
Cobri a cabeça, saí andando pela rua deserta, na chuva
miúda, no vento frio rasgando a madrugada violada agora
pelos primeiros raios de sol de um novo dia.




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O CÃO E O PORÃO

O cão raspava o chão de tábuas
Todos os dias no mesmo horário.
Ansioso, se cansava, desistia da tarefa
Correndo para o quintal.
Um pau de lenha às vezes o acertava
Sempre nas patas de trás.
- Sai cachorro maldito,
Ainda me furas o assoalho
Sei ser esta a tua intenção.
Que tanto queres lá embaixo?
Não há nada no porão.
Além de chorar escandaloso
Mancava a cada dia mais.
Mas sempre repetia a tarefa
Com afinco e determinação.A tal ponto chegou seu intento
Que um buraco no assoalho se fez
E uma luz muito brilhante surgiu
Logo na primeira frestinha.
Se espremeu, se espremeu,
Tão fininho se fez
Que pela fresta estreitinha,
Com muito treino e vontade
O cão desapareceu.
 Caiu na luz do porão
Das pernas não mais precisava
Embalado no clarão forte
Surfou para a liberdade.
Alguns ainda perguntam
Para que tanto trabalho?
Se para conquistar a liberdade
Bastava pular o muro.
O cão, não sei se interessa,
A todos poderia informar


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Que a liberdade tão fácil
É caso de corrupção.
Mas aquela alcançada com o esforço
Com o sonho e a determinação
É que redime
O cidadão, ou um cão.
Muitos preferem pular os muros,
Outros cavar seus sonhos,
Se encolher perante o destino,
Passar mancando pela vida
Sem se jogar na luz,
Que pode ser a inteligência
Ou a determinação.
E para esclarecer o caso
Deixo esta mensagem.
Às vezes muito difícil,
Tão difícil e improvável
A porta se abre para a felicidade
Numa frestinha de luz
Para não terminar sem desfecho:
O cão vai bem obrigado,
Navegando sorridente,
Na luz da felicidade.
Que conquistou dia a dia
Raspando a vida,
Buscando a luz,
Levando paulada
E escolhendo entre
Pular o muro
Ou viver seus sonhos.




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GAIOLA VAZIA.

Na parede externa de minha casa está pendurada uma gaiola
vazia. A portinhola permanece aberta e posso vê-la daqui de
minha cadeira enquanto escrevo. Na verdade à meses que ela
permanece vazia. Está toda enfeitada com fitas coloridas e os
arames estão cortados e virados para cima. Cortei-os para
abrir novas entradas e saídas. Na verdade quando ela me foi
trazida com a recomendação de que seria por poucos dias já
portava as fitinhas, idéia de seu verdadeiro dono, que assim
como trouxe, prometendo vir buscá-la tão logo voltasse de
uma viagem. Esqueci de dizer que dentro havia um
passarinho. Um canário amarelo de penas arrepiadas que
cantava lindamente. Prometi cuidar, mas perdi o sono. No
meio da primeira madrugada levantei para abrir a portinhola. A
escolha seria dele. Olhou-me de lado com fazem os
passarinhos e continuou no poleiro encolhido. Fui dormir mais
leve.
Pela manhã a gaiola estava vazia. Mesmo assim coloquei
comida e água fresca como me fora recomendado. No meio
do dia escuto o trinar do bichinho. Estava dentro da gaiola se
refrescando com a água fresquinha. Assim nos dias que se
seguiram eu servia sua refeição, ele aparecia durante o dia
cantava para mim e ia embora. Às vezes pousava na minha
janela.
Certo dia trouxe companhia; uma fêmea muito da espevitada
que logo no primeiro dia foi se adonando da gaiola.
Refrescaram-se e foram embora. Voltaram muitos dias
seguidos e eu com o compromisso de alimentá-los. Foi ai que
cortei alguns arames para lhes dar mais espaço e liberdade.
Quem sabe gostariam de trazer convidados? Sumiram
novamente. Assim como o dono da gaiola, que voltou de
viagem não tocou mais no assunto e eu naturalmente não fiz
questão, eles também desapareceram. Há semanas que troco

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a água e coloco ração e eles não aparecem. Substituí umas
fitas que estavam desbotadas e fiz uma cobertura com
papelão pois o sol anda quente, estes dias. Acho que não
virão mais, assim é a vida...

Em tempo: Acabo de rever os meus amigos. Trouxeram uma
novidade: um jovem canarinho amarelo talvez no seu primeiro
vôo. Não foram até a gaiola, pousaram na minha janela,
cantaram e piaram por alguns instantes, acho até que sorriram
para mim. Logo foram embora, parece que para não mais
voltar. Deixaram-me feliz, apesar deste aperto no peito.




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O GRAFITEIRO


Novamente aqui, sentado esperando para desincumbir-me da
tarefa de contar mais uma estória. Mais alguns minutos de
angústia e curiosidade pelo que terei a dizer. Como será?
Sobre o que será? Enfim esperemos, nem mesmo eu tenho
idéia.
Guerreiros também cansam e amam. Cansam mais do que
amam. Principalmente os que lutam pela própria liberdade.
Engraçado como leva tempo para que se perceba que aquela
angústia que nos atormenta desde a infância não passa da
certeza subconsciente de que somos escravos, presos a
correntes e grilhões. Sem nos darmos conta desta realidade
seguimos usufruindo o que nos é permitido, como concessão
ao longo de nosso crescimento. Aí explode a adolescência.
Esse sim, tempo do exercício da liberdade. Logo somos
rotulados de adolescentes, algo assim como debiloides, que
inconseqüentemente se desenquadram. Aqui desta cela que
chamam de quarto com o olho grudado nas grades que me
protegem pela piedade daqueles que me amam, penso o
quanto eu sou inofensivo à integridade das pessoas. Odeio
violência. Jamais morderia a orelha de ninguém. Queria
apenas minhas calçadas de madrugada, as brigas das
prostitutas e travestis disputando ponto. Os primeiros raios de
sol, aquele ventinho levemente frio, a luz se mostrando
arrogante, trazendo consigo a primeira buzina, depois as
sirenes, o burburinho dos robôs depois os meninos futuros
escravos “Tio me deixa cuidar...”. E assim seguiria a vida de
liberdade e felicidade que muitos adoram. Meu colégio estaria
sempre no mesmo lugar embora muitas vezes eu esquecesse

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em frequentá-lo. Meu quarto sempre limpinho e organizado
com todos os CDs no devido lugar, meu pijama embaixo do
travesseiro e um dinheirinho para o cinema ou mesmo um
pico. Quem se importava? Todos, vovó o vovô, meu pai, aliás,
meu pai tem bom gosto: que gata maravilhosa ele levou lá em
casa quando mamãe viajou. (Pensou que eu havia ido
acampar). Mamãe sempre preocupada comigo marca
encontros saborosos na praça de alimentação do shopim da
moda. Peço sempre um Mac qualquer e Coca Cola. Deixo
para o fim de tarde a pedra e o conhaque. Sou um
adolescente como meus amigos. Ta certo, eles não escrevem
o que sentem. Não tem diário. Eu tenho esta mania de expor
tudo o que penso ou sinto nas paredes lisas e virgens da
minha e das outras casas. É um impulso irresistível. Escrevi
na parede da sala de audiências quando iria ser ouvido pelo
juiz no caso da separação de meus pais “Este juiz é bicha, o
conheço da noite, é travesti, perguntem ao escrivão que é seu
amante, adora ser chamado de Deise.” É verdade, mas
parece que ali não era a casa da justiça e da verdade. E mais:
Viva Che! Marijuana é liberdade! No muro do escritório onde
minha mãe trabalhava escrevi: “Mamãe chorou quando o
dentista terminou seu tratamento interminável e deu seu
horário para minha irmã de 21 anos. A maninha agora anda
de aparelho nos dentes e um carro conversível bem legal.”
Papai é meu herói, ficou rico como diretor de licitações no
governo. ¨¨
 Dá-me tudo. Apenas parece que está com alguns cabelos
brancos. Faz tempo que não o vejo mas ele paga muito caro
pela minha internação, acha que saio desta para assumir o
escritório de turismo, acha que lavar dinheiro dos outros é
bom negócio. Deve ser, ele sempre tem razão.
Minha cela, digo, meu quarto recebe a visita do guarda
penitenciário, digo, enfermeiro, que me deseja bom dia. Tomo
o café da manhã, ou seria desjejum? Junto me enviaram dois
livros. Papai e mamãe estão preocupados com o meu

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intelecto. Um trata de auto-ajuda destes picaretas que não
sabem viver sem o dinheiro dos idiotas que compram, seus
livros de obviedades e exploração da fraqueza e ignorância
humana injetando ânimo para a insignificância da vida das
pessoas e dinheiro para suas próprias contas bancárias, e
outro do Paulo Marmota, este de fardão na contra capa, é um
assalto com estupro à mão armada. Rasguei folha por folha e
com uma bisnaga de cola colei uma a uma em seqüência de
modo a se tornar um rolo que coloquei ao lado do sanitário
para usar sempre que preciso. Os papéis higiênicos, aliás
dois rolos que possuo, uso para escrever poemas. Este texto
é um deles. Pena que são muito finos se rasgam e muitas
palavras se perdem, se misturam, embaralham o sentido das
frases as tornando sem sentido. No fundo gosto disto pois me
deixa mais intelectualizado, segundo o bibliotecário da minha
casa de descanso. Ele não entende nada e quanto mais não
entende, mais ele gosta. Na audiência de avaliação está
sempre a me elogiar, a dar pareceres favoráveis a minha
recuperação mas, sempre vota contra a minha alta. È um fã
obcecado dos meus textos. Teme me perder. Outro dia se
encostou chorando à minha porta desesperado e chorando
pediu conselho de como se livrar da esposa que o chifrava
despudoradamente e no entanto o sugava sexualmente todos
os dias a ponto de não se sentir com força para trabalhar no
outro dia.. Recomendei que ele convidasse o amante para a
mesma noite. E assim juntos deixasse que o outro usufruísse
enquanto ele dormiria. Achou uma boa idéia. Mas o que fazer
com os outros dois que ela havia confessado desfrutar? Disse
que convidasse a todos para a mesma e todas as noites.
Resgatasse seus filhos e fosse morar na cela, digo, quarto ao
lado do meu, pois com certeza sua mulher logo estaria
saturada de tantos homens fogosos e imploraria para ele
voltar para casa e dormir de verdade ao seu lado. Certamente
ela rapidamente sentiria falta dos filhos chorando de febre,
tosse, e birra de madrugada, de trocar fraldas e fazer

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sopinhas e mamadeiras. Ele concordou. Infelizmente, de tão
contente foi contar o caso para o diretor do presídio, isto é, da
casa de repouso. Agora, está na cela realmente, repousando
como eu, só que na ala dos adolescentes, digo,dos
perturbados.
Acho que era o que tinha para o momento . O papel higiênico
está acabando. Dois novos rolos somente na semana que
vem.
Guerreiros também cansam e amam Cansam mais do que
amam. Especialmente aqueles que lutam pela sua própria
liberdade.
Adolescência é uma linha invisível.
Todo o cuidado é pouco.
Os monstros da Tv estão velhos e cansados.
Nada surpreende as crianças.
Tudo é velho
Todo o cuidado é pouco
Os riscos luminosos no céu não são de artifício
Adolescência é uma tênue linha na razão de um menino ou
menina.
Acabou.
PLIM. PLIM.




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INDULTO DE NATAL DE 1969 *

Querido diário.

Quantas vezes sonho em voltar para casa. Ver novamente
meus amigos, parentes, minha cidade, o céu do meu país.
Gostaria de andar livremente pelas ruas. Naquela rua clara e
calma do meu bairro, na qual os meninos hoje rolam em seus
skates, no meu tempo eram carrinhos de rolamentos, feitos
por eles mesmos. As corridas emocionantes que sempre
terminavam em joelhos esfolados, as peladas de fim de tarde,
as broncas dos passantes, sujeitos à boladas ocasionais. São
lembranças de pouco tempo atrás, sete ou oito anos apenas,
mas para mim tão distantes, assim como a distância que me
separa de minha terra.
Foi no primeiro dia de abril. Nuvens negras envolveram minha
rua e parece que estão lá até hoje. Numa noite, a pontapés,
invadiram minha casa e sombras verdes levaram meu pai.
Alguns anos eu e mamãe procuramos por ele.
- Não está aqui. Aqui não deu entrada.
- Foi transferido.
- Nada consta em nossos arquivos.
- Uma moça linda como você não terá dificuldade em
conseguir informações, desde que queira de verdade...
Certo dia papai apareceu numa lista de pessoas trocadas por
um embaixador. Algum tempo depois viemos, eu e mamãe, ao
encontro dele aqui.
Poucos meses e a mesma nuvem verde desceu aqui. Eu em
“atitude suspeita”, pois conversava com amigos na porta de

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uma fábrica, filha de exilado, não deveria ter amigos
operários, nem portar jornais de minha terra que denunciavam
atrocidades. Eu apenas sentia falta da minha rua, dos meus
amigos, do céu do meu país. Voz de prisão. Confusão.
Ameacei correr, me lembrei que neste assunto de segurança
nacional os homens são violentos e eu não suporto dor.
Tenho muito medo. Uma bala de carabina me queimou a
garganta. O promotor acusou; pichação de muros; distribuição
de panfletos esquerdistas; trotes telefônicos com finalidade de
conturbar os órgãos de segurança; vigilância de bancos com
objetivos escusos, subversão.
Condenada, rolei de prisão em prisão. Na "menina linda
"como eu, meus interrogadores deixaram suas marcas. Minha
virgindade pertence a um grupo de animais e cassetetes de
borracha. Não há maneira de descrever o que os defensores
da lei praticam em nome de Deus, Família e Propriedade.
Campos de extermínio não ficaram restritos à segunda
guerra.

Hoje foi assinado o indulto de Natal. Muitos ladrões e
assassinos estarão nas ruas novamente. Fico pensando que
talvez possa estar entre eles, voltar para a minha rua
participar das peladas com os meninos. Não, atualmente não
é possível, creio que nunca mais me livrarei deste colete que
me aperta a coluna e desta tosse que mancha de sangue meu
lenço.

O carcereiro me disse que não estou na lista dos presidiários
que serão indultados este ano.

* Carolina morreu de tuberculose e infecção generalizada no
dia em que completaria vinte e três anos. No exato momento
em que o Brasil conquistava a copa do mundo de futebol e o
povo todo cantava “Pra frente Brasil”.


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POR DETRÁS DA ILUSÃO.




No quintal do vizinho havia muitas árvores frutíferas, as
melhores peras e ameixas, da vermelha e da amarela, maçã,
verde e vermelha azedinhas quando tenras e doces, como
mel, quando maduras. No quintal do vizinho vivia um velho
barbudo e capenga, apoiado no seu cajado, resguardava as
frutas e o território. O quintal do vizinho tornou-se o objetivo
da minha vida. Vivia no quintal do vizinho uma menina. Um
pedacinho de sonho. Solitária. Sozinha percorria as alamedas,
como uma margarida altaneira recém desabrochada para a
vida. Andava desafiando o vento, encarando o sol, surda aos
meus apelos juvenis. Indiferente colhia cravos e mosquitinhos.
Agachada esquecia-se de cobrir as pernas e levantava o
vestido em forma de concha para carregar as frutas colhidas.
Calcinha branca avental quadriculado, cabelos loiros longos e
um sorriso debochado.
Construí um castelo de sonhos e lixo reciclado pregado ao
pinheiro, escondido pelos meus medos e pés de mamona
para observar minha paixão. Ela passeava fingindo
indiferença. Eu me arranhava todo, agarrado aos galhos mais
altos fingindo camuflagem. Ela fingia não me ver, eu fingia não
saber.
Certo dia o galho quebrou. Caí como jaca mole, de costas

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sobre um pé de milho. O mundo escureceu, faltou fôlego,
desmaiei por instantes. Quando abri os olhos pensei estar no
céu. A menina das bochechas rosadas, avental quadriculado,
calcinha branca, me tinha ao colo, ares de preocupada e
mãos afagando docemente meu rosto. Bendito acidente.
Neste momento se deu o encontro da razão com o destino
que nortearia toda a minha vida. Fusão de beleza e timidez,
atitude e deslumbramento.
Hoje no meu quartinho da casa de repouso encontrei uma
fotografia antiga, da minha casa antiga, do pinheiro antigo e
dos pés de milho no quintal. De pernas cruzadas, encostado
ao tronco a criança que fui. Nota-se claramente o olhar
curioso em direção ao terreno vizinho. Certamente buscava a
menina do avental quadriculado. Embora as mãos tremam
sem cessar posso visualizar o passado e assim a memória me
enseja recordar tudo que passou desde aquele dia em que me
vi acarinhado pelas mãos que para todo o resto da minha vida
segurou a minha nos bons, maravilhosos e nos maus e
tenebrosos anos que se seguiram. Os momentos de
esquecimento são tenebrosos embora suaves, pois deles não
tenho consciência. Quando recobro o conhecimento me sinto
frustrado por não ter compartilhado este tempo da minha vida.
Nestes fragmentos de tempo que acho estar em sintonia com
a realidade procuro desenvolver a minha estória rapidamente,
antes que tudo se perca na penumbra desta minha doença.


Obs: Aos amigos do pai informo que ele faleceu segunda
feira. Publico da maneira que deixou este relato. Um abraço
agradecido a todos os seus leitores. Até sempre.




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PISE NO CUSPE SE FOR HOMEM


-Pise no cuspe se for homem,
Se pisar tá xingando.
-Te quebro a cara
Seu fio da puta.
-È tua mãe.
-Não ponha minha mãe no meio
Que eu ponho no meio da tua.
-Quatro olhos desgraçado.
-Vem, vem se for homem.
-Filhinho de papai, bichona.
Cuide, se tua irmã sair sozinha eu faturo ela.
-Não tem cacete p’ra isto. Você é brocha.
-Te cuida piá.
-Depois da aula de catecismo, pego ela.
-Vou falar p’ro meu pai, vai te matar.
-Ela já me mostrou a calcinha.
E os peitinhos também.
Disse que me gosta.
-Se você não parar vou falar pr’a tua mãe
-Não faça isso.
-Então pare.
Vamos jogar bola?
-Vou de goleiro.
-Ta bom.
-Não se esqueça de beijar a maninha por mim.
-Filho da puta.
-Cunhadinho.
-Um dia te arrebento
-Quer sobrinhos órfãos?

                                                 92
-Cachorro.
-Me empresta seu tênis p’rá amanhã?
-Só desta vez, lazarento.
-Deixa disso, ta na hora da janta, já vou.
Passa lá em casa depois.
-Eu vou.
-Tua irmã ta em casa?
-Não me importo.
-Ela não é meu tipo, guri.
Tava só te enchendo o saco.
-Ta bom.
- Mas deixa eu te conta,
Sonhei com tua mãe.
Ela tava peladinha;
Rebolando p´ra mim.
-Seu filho da puta.
Pise no cuspe se for homem.




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SONHO DE VALSA

       - Aceita dançar?
      - Como? Desculpe sou casada. Não sei...
      - Não sou ciumento. Permite?
      - Desculpe. Estou acompanhando minha filha.
      - Você está sozinha. Estou vendo. Tão linda.
      - Obrigada. Não sei. Acho que não.
      - Esta rosa é para você, por favor, aceite.
      - Por favor, senhor, eu aceito, mas meu marido ...
      - É um bolero...
       - Não, é uma valsa.
       - É. Na verdade entendo muito pouco de música. Gosto.
Mas, a vida me levou por outros caminhos. Quer saber? Na
verdade eu nunca dancei, nunca frequentei um baile, nunca
tive em meus braços uma mulher.
        - Por favor.Não exagere.Olhe..Me deixe pensar. Daqui a
pouco eu resolvo. Obrigada.
        - Pensou?
        - Está bem, uma só.
        - Acho que estou louco. Nunca em minha vida tive
tamanho arrojo. Eu te agradeço por aceitar, mas me desculpe,
não sei dançar. Você é minha música, meu ritmo, minha
esperança de não decepcioná-la.
          - Acho que você dança bem.
          - Obrigado Simone.
          - Como sabe meu nome?
          - Não sei, mas acho que este nome frequentou a minha
vida. Realmente também não sei. Acertei? Como pode?
Escute, Simone é o nome que embalou todos os meus
sonhos. Não sei porque, mas sempre soube que a minha
felicidade estava ligada a este nome.
           - Estás brincando comigo.. Por favor, estamos muito


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juntos. As pessoas...
         - São dois pra cá, dois prá lá. Você é maravilhosa...
        - Obrigada... Minha filha está olhando... Não exagere.
         - Não resisto.
         - Por favor... Encoste os lábios ao meu pescoço. ...
Fale mais. Não... Pare..
         - Pense que meus lábios podem percorrer além de
seu pescoço, minha língua está ansiosa para percorrer seu
colo, e, mais além, circundar seu umbigo, descer em seu
sexo e coxas,
lamber seus pés , tirar seu fôlego e desmaiar de paixão.
          - A música...
          - Desculpe. Mas estou neste momento vivendo algo
que nunca havia sentido.
          - Eu compreendo. Está bem. Você está me tirando do
sério. Sou casada.
          - Desculpe. Acho que realmente passei do limite. Na
verdade fiquei louco, ou, achei o amor da minha vida.
          - Você me tirou do sério. Não brinque comigo. Eu...
paixão. Fale mais, seja sincero.
          - Embora você não acredite, estou sendo eu mesmo
como nunca fui, jamais me senti assim. Será que é paixão?
Estou sentindo suas coxas mais disponíveis, aos passos mais
desejados, solte-se. Nada mais acontece neste salão, a não
ser a música. Nós dois, e a volúpia que embala o ritmo de
nossos corpos.
         - Tenha piedade, nem ao menos sei seu nome, Ta
bem, estou completamente seduzida. Farei tudo que você
quiser, mas, por favor, seja discreto, todos nos olham. Minha
filha está nos observando, contenha-se
            - Ela está sorrindo...
            - É verdade. Está com certeza se divertindo a minha
custa. Será que ela me compreenderá? Na verdade não quero
mais pensar nisso, aperte-me, beije meu pescoço, me leve
daqui. Ai, meu Deus. Adoro-te. De onde você apareceu? Meu

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amor. Querido...
            - Vamos para a minha casa?
            - Vamos Alcides.
            - Que surpresa! Como descobriu?
            - Acho que nasci para amar alguém com este
nome. Acertei?
            - Na mosca. O inconsciente se manifestou nos fatos
e na vontade, somos as metades que se juntaram pela força
do amor.
          - A música acabou. Por favor, tire a mão do meu
decote, podem reparar.
           - Sabe, minha vida começou aqui. Vamos embora.
Venha comigo.
           - A menina, minha filha. Está bem, me entrego ao
destino, vamos.
           - Se somos ou estamos loucos nos entreguemos a
loucura. Ela que nos aguarde. Salve a loucura. Viva o prazer.
            - Também estou feliz.
            - Meu amor.
            - Minha paixão.
            - É aqui, querido?
            - É meu amor, aqui termina esta noite e começa o
resto de nossas vidas. Onde estão as chaves?
             - Você deixou com nossa filha. Ela ficou com o
carro; a chave, no chaveiro.
              - Puta que pariu. Deste jeito não há tezão que
aguente Assim não dá.
              - Calma querido. Achamos outro jeito. Vamos para
um motel?
              - Motel? Você quer ir para um motel? Ta maluca
mulher? Vou levar a mãe da minha filha pra um motel em
plena sexta feira. Ficar na fila com adolescentes gozando
nossa cara? Vê se te enxerga, cansei dessa tal de fantasia
 sexual. Vá a merda, pois eu vou dormir na garage.



                                                           96
O MENINO GENTIL


Uns governam o mundo, outros são o mundo." B S
Principalmente aos quatro anos de idade.


-OI tudo bem?
-Como é seu nome?
-Eu vou bem, obrigado.
-Muiiiiito obrigado.
-Oi vovó querida, sua gostosona.
-Oi vovô querido do meu coração.
-Trouxe presente? Obrigado meu deus.
-Com licença, posso passar? Obrigado.
-Tem uma sobremesinha aí?
Sorvete, leite condensado.
-Vovó faz bolinho de arroz pra mim?
-Faz um camarãozinho a milanesa, vovô?
-Vou esperar aquela deliciosa mamãe chegar.
-Oi moço, tudo bem?
-Eu vou bem, obrigado.
-Onde você mora?
-Moro na minha casa.
-Trouxe presente para mim?
-Bom dia vovô ...
-Está bravo vovô?
Deixa eu dar um beijinho.
-Vovó faz brigadeiro?
-É muito bom, delicia...




                                                 97
-Vovô, vou dormir aqui,
-Você vai roncar muito?
-Não estou muito bom,
-Tem um sorvetinho aí?
-Alô vovô, seu cara de pau,
-Ta bom, queridinho do meu coração.



“ Deuses, se são justos em sua injustiça, nos conservem os
sonhos ainda quando sejam impossíveis, e nos dêem bons
sonhos, ainda que sejam baixos." B S




                                                             98
ISADORA


Recordo de ti
Como lembro um corredor
De um túnel imenso
Túnel que nos separava.
Não na distância
Nem no amor.
Vejo-te correndo
Em minha direção
Com anseio de proteção.
Com perninhas curtas e trôpegas
Ensaiando as primeiras vontades
Experimentando as primeiras escolhas.
.
É verdade não lhe restava outra opção.
Acolhia-te nos braços e na memória
Como uma benção
Amoleceu meu coração
E me fez compreender além de mim
E tudo em você.

Querida, por minha vontade
Andarás pelas pedras que andei
Pelas alegrias e tristezas as quais padeci
Para delas tirar proveito
Para que possa compreender o mundo
Como o templo da sabedoria, não se aprende na escola
Que só os dotados do conhecimento universal

                                                       99
E daquele dom especial
Que ninguém sabe de onde vem.
Eximem-se das vaidades materiais.
Destas que no fim das contas,
Na solidão em que um dia todos se defrontam,
Possas pensar que o amor,
A boa vontade, a falta de rancor, te absolve.
Assim terás a vida que nenhuma religião pregou,
Que santo nenhum viveu
Pois serás na verdade
A representação da divindade,
A vida.
Com todos os seus trejeitos e vontades
A expressão maior do ato de existir sem preconceitos
Na paz por ter vivido plenamente.
Combatendo como menina, mulher, mãe, avó.
Isadora.




                                                       100
ESTRELA DO MAR

Eu era pequeno,
Meu avô dizia:
-“Te cuida piá”,
Não saia p’ra longe.
Tem bugre no mato,
São botocudos,
Comem criança,
Podem te pegá.

Hoje vovô já morreu,
Bugre virou índio,
Outros mendigos,
Botocudo vende cocar.
Expulsos p’ra tão longe
Que podem ter caído no mar.
Onde estão os donos da terra?
Onde estão os guerreiros?
Cadê os brasileiros?

- Talvez, filhinho,
Tenham virado conchinhas,
Que o mar espalha na areia,
Para as crianças brincarem.
O grande cacique,
É aquela pedra maior
Que parece de seu povo cuidar.
E a filha dele, quem sabe?
Aquela estrela do mar.


                                 101
MEU PÉ DE PÊRA.

Curitiba, julho de l955. Inverno. Frio de antigamente...
Meu pai chega em casa com uma caixa enorme.
- Meu filho é para você passar as férias.
Abri com volúpia. Livros. Eu mal saído das primeiras letras
recebo livros de presente. E logo uma coleção inteira de
Monteiro Lobato. Antes desta somente “Tesouros da
Juventude” adornava meu quarto.
- É obra de um grande comunista!
Lembrei: “Comunista come criancinhas”.Meu avô, integralista
camuflado, sempre dizia isso para irritar meu pai.
Muitos volumes. Na parte ’Os 12 Trabalhos de Hércules’
separei’ O Touro de Creta’ e parti para o quintal, rumo ao meu
galho preferido na velha pereira, refúgio de todos os medos e
de todos os sonhos do menino de oito anos que um dia fui. Foi
ali, em cima da árvore, que tomei conhecimento da Mitologia
Grega através das aventuras de Pedrinho, Narizinho, Emilia e
Visconde de Sabugosa. Aprendi saboreando o sol e a solidão
que a união, a amizade, a solidariedade, a inteligência, além
da força física é que concretizavam as vitórias de Hércules
perante os desafios de Euristeu e Juno, no Olimpo impondo-
lhe impossíveis trabalhos. Quase sem parar devorei: O
Minotauro, A Chave do Tamanho, O Saci, Reinações de
Narizinho, e todos os outros. Naqueles livros assimilei muito
do que de melhor contém minha personalidade, pois, os
defeitos são de minha própria arquitetura.
De alma lavada, sentindo-me tão herói quanto Hércules me
recolhia ao fim da tarde para continuar vivendo as aventuras à
noite embaixo aos cobertores.




                                                          102
Sei que naquele inverno, naquela árvore, nos Doze Trabalhos
de Hercules, enfim, nas obras de José Bento Monteiro Lobato
aprendi a sonhar com um mundo mais justo, descobri a
poesia, o sentido da vida, os valores do ser humano, a magia
dos livros. Descobri também, entre uma página e outra, com a
brisa fria lambendo meu rosto, o valor da liberdade. E também
que comunista não comia criancinhas.




                                                          103
Sem Ao Menos Um Aceno
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Sem Ao Menos Um Aceno

  • 1.
  • 2. 2
  • 3. Textos moleques que fugiram da gaveta só para se exibirem. Humberto Bley Menezes Para minha esposa Elizete, meus filhos Valéria, Fábio, e Felipe. Também para meus netos Isadora e Luis Gustavo com amor. Com carinho para Luiz Augusto e Melissa, pelo apoio. “Em verdade, em verdade vos digo que, se o grão de trigo que cai na terra não morrer, fica infecundo; mas, se morrer, produz muito fruto.” São João, CapXII, Vers. 24 e 25. 3
  • 4. . 4 .
  • 5. CONVITE Convidei-te para caminhar ao meu lado. Vieste, andaste, andamos. Desconfio, no entanto, que Fomos longe demais... 5
  • 6. AO MENOS UM ACENO Fim de tarde. Passeando pela alameda da nostalgia Deparei-me com o rio da minha infância. Um rio e uma ponte. Um pequeno barco. Um menino, uma canoa. Nas mãos um comprido bambu, Movimentando a paisagem. Quanta semelhança com o guri Que fui aos dez anos. O mesmo boné de feltro quadriculado, Calça curta presa por uma só alça de suspensórios, A camisa, suja das brincadeiras Presa por um só botão. Os óculos “fundo de garrafa” Escorregado no meio do nariz. De algum lugar conhecia aquele petiz. Olhamo-nos longamente... Imagem de fotografia antiga. A tarde encolheu devagar, Afastou-se o barquinho E o menino de pés enlameados também. Nem sequer um aceno... O passado não se despede. Dei as costas aos últimos raios de sol, Ergui os óculos, Ajeitei o boné quadriculado, Engoli a bílis amarga da saudade, E segui. Nômade, errático, andejo. Cativo das minhas fotos desbotadas. 6
  • 7. A CHAVE Tempo e silêncio, Eis a chave do enigma. Saudade é uma serpente Que corrompe a serenidade 7
  • 8. ARDIL Não me pergunte quando, pois certamente errarei no palpite, mas, de alguma forma o equilíbrio se fará naturalmente. Parece que ações opostas teimam em se harmonizar no fim das contas. Toda a criação humana embora pareça revolucionária não passa de ferramenta da natureza para encontrar seu equilíbrio. Ao homem cabe o papel de se descobrir, enquanto ser racional, como qualquer marionete impulsionada pelo vírus do novo e do desconhecido. Desvendar fórmulas, que escondidas esperam o amadurecimento da inteligência para surgir como invenção, descoberta, ou criação humana. O ser humano como parte da natureza coabita o mesmo ambiente das coisas passadas e futuras, tudo o que houve, há, e haverá na história do universo. A explosão inicial na medida em que se preservava absorvia composições possíveis. A ordem universal e todas as coisas fecharam a fôrma do plano possível. Enfim tudo se delineou, se entrelaçou de tal modo, que tudo está resolvido. Cabe ao tempo, através de seus agentes, o ser humano e todas as coisas e seres existentes, caminhar, evoluindo passo a passo, montando as peças do enigma para enfim conhecer a verdade. E aí sim descobrir a felicidade ou a desilusão de se descobrir apenas mais um ente da trama, sem forma, sem moral, sem ética ou estética que encobre a existência. Ela mesma apenas um detalhe no buraco negro do holocausto. 8
  • 9. ECOS DE VERÃO. Pingo... Pingo... Pingado, do céu e do telhado. Pingo... Pingo... Molhado, da goteira e dos meus olhos. Restinho de água escorrendo pela face e assoalho. Um gato lambe a última das gotinhas. Meus lábios ensaiam um sorriso. Sufoca-me a última gota represada no coração. O gato me olha sedento. Deito-me na rede, coberto pelo céu. Vejo canários da terra beliscando o gramado, E vespas montando casulos no beiral. Conto as telhas no telhado aparente. Percebo o vento, conversando gentil, Com as folhas e galhos dos sombreiros. O peito não resiste, A represa se rompe Encharcando o presente, Remoendo o passado, Devassando o futuro. E escurece. Tempestade não pede licença. Cai furiosa para confundir pingos e pranto. Chuva de verão, Que assusta o felino, Espanta os passarinhos, Agita os marimbondos, E se arvora arrogante, Para findar com o encanto. 9
  • 10. ATEU. GRAÇAS A DEUS. Não sei. A falta de argumento e a obrigação que me imponho de escrever alguma coisa se transforma em desafio. Nada de idéia, nem de assunto. Como é difícil esta merda de ter que escrever. No meu caso, pretensioso e preguiçoso que sou realmente torna-se difícil passar um texto sem motivação, assunto ou vontade. Mas muitas vezes foi assim que comecei minhas obras primas Estou achando que este é mais um exemplo. Sim, tenho muitas obras primas. Pena que o mundo não as conhece. Ninguém as conhece. Vou dormir muitas noites, certo de que passei a quem por desgraça leu em meus textos algo do que se passa no seu coração, e se reconfortou. Durmo feliz, achando que de alguma forma, dentro da minha mediocridade estaria passando a alguém mais medíocre ainda, algo de positivo que ensejasse ações de fortalecimento do caráter e do bem que existe em todo o ser humano; quem sabe um nó na garganta, abafando a emoção, válvula de escape para suportar o cotidiano. O ser humano não lê. Não lê porque não sabe ler. Porque ler é tempo e tempo é sobrevivência. E a sobrevivência é mais importante que a literatura. Sei que com as minhas obras cada vez mais primeiras, na medida em que vou perdendo os escrúpulos e escrevendo sobre o que realmente penso, ou melhor, quanto mais penso mais me desprezo porque nada do que penso ou sinto resiste a alguns momentos de reflexão. Sendo assim, a obra prima da noite anterior se torna lixo na manhã seguinte. O maior problema é que o que realmente penso e sinto de um momento para o outro muda de direção como o vento como a insegurança do mais seguro dos mortais. A vida é rio correndo para o mar, o medo de exame de sangue, da AIDS, a bolsa de valores, é a polícia, a justiça dos homens. Pena que em termos de justiça, como não acredito na dos homens e como não creio na do céu, encontro-me perdido nas minhas certezas. E na condição de ateu, já decidi: seja o que Deus quiser. 10
  • 11. ANITA O ar cinzento e fino, a tarde lívida e seca, nenhum aceno na distância, a vida parada, o mundo ausente, assim. Perdido o prumo. Neste momento de não sei que, não sei onde, luzes passam com rapidez, olhos acima inquisidores, tilintar de ferramentas extraindo a bala, regenerando a vida recuperando um destino que renderá certamente muita tristeza, muita euforia, contradições, traições, devoção, felicidade, desgraça, tragédias e paixões debochadas. Tudo enfim que a vida de uma pessoa nascida para usufruir todos os elementos, inclusive da morte, a maior testemunha da existência da vida que muitos valorizam de tal forma que não percebem que desejada ardentemente, muitas vezes torna-se prólogo da felicidade. - Anita. Está livre deste hospital. Pode agora sair para onde quiser, até mesmo para este lugar misterioso que diz existir no mundo, o qual eu duvido que resista a você. Sossega menina. De qualquer forma, embora minha vontade tenha se perdido nos teus beijos arrebatadores e nos teus deboches e risadas do meu jeito de fazer amor, não te esquecerei, vagabundinha. Espero que alguém possa te fazer mais feliz que este tal de Armando. - Doutor, eu espero nunca mais encontrá-lo, mas para seu consolo, devo dizer que você é muito gostoso. Tuas últimas noites de plantão me tiraram da sensação de estar só, tão só que não resistia mais aos apelos da morte, desta vez sem 11
  • 12. sentido. Deixa estar sairei por aí a procura novamente de um amor tão pungente que as asas imóveis do tempo possam transformá-lo em vida plena e feliz até na velhice, ou na morte, cuja substância lentamente me arrebata e consome. Tchau, doutorzinho. Anita saiu, percorreu ruas e avenidas, Nas costas uma mochila quase vazia carregava Conchita,sua bonequinha espanhola, dançarina de castanholas mudas que girava para um lado e outro ao som de uma musiquinha chata que às vezes irritava Armando. No pensamento a estória de Cintia que um jornal vagabundo o vento grudou em sua barriga e por acaso indicou seu destino A tragédia da mulher assassinada pelo amante traçou o rumo da moça que sem Armando tomou a direção da cidadezinha. Sem o alento tênue e vago, com a confiança dos que nada mais tem a perder, nem a ganhar, e passam a vida como agentes do contraditório usufruindo os fatos que provocam, buscando a satisfação incontrolável não medindo parâmetros, desprezando o convencional cinicamente usando da mediocridade O fato é que ela chegou para tornar-se uma nova Cintia ou mesmo redimir Anita, não se sabe. Mas, seu primeiro ato ao plantar gerânios foi ornamentar o ambiente para Conchita dançar livremente A música da caixinha ecoou pela cidade. E no coração das pessoas estancou-se o vácuo e aquele casarão que seria desabitado para sempre, tocou a melodia da vida, gargalhou debochado, gemeu e desmaiou escandaloso como presente de Anita, dona de herança incalculável, que ao deixar o convento aos dezoito anos decidiu ao ultrapassar as muralhas, viver a substância da vida desprendida de moral e costumes. Ser livre, expor a carne e a alma ao imponderável destino. 12
  • 13. ÁGUA VIVA Sentimento, palavra, emoção, Procura, encontro, existência, Perda, tristeza, vida, Nuvem, cinza, tormenta, Paz, trabalho, amor, Dor, separação, Água, ritmo, Pernas, braços, bocas, Sedução, dança, luz, Movimento, música, paixão, Fogo, chama, calor, Ritmo, espuma, vento, mar, Tantas palavras, Bailando no ar. 13
  • 14. TICO, QUASE PELÉ Tico era um menino esperto. Morava perto da minha casa quando criança em uma vila de casas juntinhas e iguais. Antigamente se destinavam a empregados de uma fábrica de macarrão. Menino bom de bola, esperto e sempre sorridente passava seus dias entre a escola pública pela manhã e as peladas durante as tardes. Também ajudava sua mãe fazendo alguma coisa dos trabalhos domésticos. Mas a maior parte do tempo passava no campinho no qual se reunia a criançada da rua para memoráveis peladas diárias. Tico se sobressaía entre os guris, pois possuía um refinado tratamento com a bola de futebol. Tratava-a com carinho e delicadeza, mesmo porque a bola de couro, um tanto surrada de tantos embates, era sua. De tal maneira que as pelejas só começavam quando ele chegava. Vinha só com a bola nos dias de treinos e com um saco de farinha cheio de camisas e meias do time que Dona Maria, sua mãe, tratava de lavar e passar depois de todas as partidas que Real Futebol Clube se apresentava nos desafios dos times das ruas vizinhas ou mesmo de algum outro bairro.Até do centro da cidade já haviam recebido convites para torneios de fim de semana . Muitos valiam até taças aos vencedores. Tico tinha uma verdadeira paixão por futebol. Mais do que ele apenas seu Chico seu pai adorava tanto o modo de jogar de seu filho que o tratava como um verdadeiro herói. Sim, Tico era o herói de seu Chico embora este tivesse mais nove filhos sendo destes seis mulheres. Tico adorava seu pai e ouvia encantado as estórias das partidas que este havia disputado como soldado do exército no tempo do “tiro de guerra”. Até convite para treinar no Primavera, clube da primeira divisão, havia recebido. Infelizmente, a 14
  • 15. necessidade de sustentar sua mãe viúva e muitos irmãos menores não lhe permitiu seguir carreira. Acabou se tornando motorista de caminhão e viajava pelo país entregando mercadorias e contando aos outros colegas o quanto era bom de bola seu querido Tico. Terminado o treino Tico colocava sua bola embaixo do braço e antes de ir para casa passava no açougue da esquina para pegar um pedaço de pelanca de carne com bastante gordura, ficava sentado no degrau da porta da cozinha em casa esfregando sebo na bola. Dizia que era para não ressecar o couro. Feito isto tomava seu banho jantava aquela gostosa sopa de feijão com ovo inteiro e couve mais um pãozinho que sua mãe preparava e ia deitar, sem antes fazer os deveres da escola. Sonhava. Tico sonhava com as oportunidades perdidas na última partida. ”– Eu devia ter entrado mais, a bola era para bater de esquerda, meu pai sempre me diz para travar de direita e bater de esquerda. Foi pra isso que ele me treinou desde pequeno para chutar com os dois pés. E naquela hora eu tinha que penetrar mais na área, tinha espaço, meu pai não gostou, espaço é para ser ocupado e explorado. É que nem posseiro, se tiver desocupado ocupe e tire proveito, dizia. Se clarear chute. Felizmente consegui aquele drible, bati de bico mesmo, mas valeu. Ganhamos. Preciso me ligar, um chapéu no zagueiro ia ser bonito. Ainda vou tentar.” Finalmente chegaram as férias escolares. Toda a garotada em alvoroço. O campeonato organizado pelo seu Chico com o patrocínio do Dono da Transportadora em que trabalhava estava preste a começar. Já tinha tabela organizada e doze times iam participar. Viria time até do outro lado da cidade, gente rica, filhinhos de papai. Valia faixa, medalha para o artilheiro, melhor goleiro e até uma taça enorme que seria disputada todos os anos. Assim como é na copa do mundo. O Real Futebol Clube ia muito bem no campeonato. Tico já era considerado o melhor do campeonato. Seu Chico orgulhoso não cansava de pagar cervejas para os amigos a 15
  • 16. cada partida, exaltando sempre as qualidades do filho. Todos concordavam, Tico teria de treinar em algum clube grande, realmente seu talento era um dom.’ Eu que preparei o moleque desde pequeno. Ensinei a chutar com os dois pés, a cabecear, a se colocar na área e tudo o mais. Esse moleque é demais se vangloriava o orgulhoso pai. ’ O domingo chegou e com ele a partida final: Real contra o Social Clube. Era um time da zona mais rica da cidade. Clube de pessoas de dinheiro. Seu Chico andava preocupado com a arbitragem e exigiu que se convocasse um árbitro lá de Rio Negro, uma cidade próxima, pois tinha fama de honesto nos jogos que apitava. Não cobrou nada veio só pela cerveja e a linguiçada no fim do jogo. Infelizmente Seu Chico a pedido de seu patrão precisou fazer uma viajem inesperada, para uma entrega urgente. Ao chegar a casa chamou Tico e explicou que não se preocupasse, pois iria viajar, mas retornaria a tempo de assistir a partida, nem que para isto viajasse a noite toda. Olha meu filho trouxe um presente para você. Tico quase não acreditou ao ver uma chuteira novinha reluzente, de marca, como nunca tinha visto na vida. Pelo que você fez até agora no campeonato está a merecer. Esta chuteira vai fazer muitos gols. Tico quase desmaiou de felicidade, chorou muito e soluçando abraçou fortemente seu pai. Afinal ele sempre dividia um par de chuteiras com seu irmão mais velho. E quando jogavam juntos usava um pé e Zezinho o outro. No outro pé ele colocava o tênis da escola..Agora ele tinha um par só para ele.e novinha. Se o Zé precisa-se ele emprestaria de vez em quando, coitado. Seu Chico nunca faltou a nenhum jogo do qual Tico participasse. Para o menino os gritos de seu pai e a certeza de que tinha sempre o incentivo dele a beira do campo o fortalecia e enchia de confiança. Tomara que ele chegue a tempo desta vez. Quando ele fazia uma boa jogada procurava na platéia o boné azul e branco que seu Chico não tirava da 16
  • 17. cabeça e via o sorriso aberto e as mãos enormes aplaudindo. Também apoiava quando ele errava um passe ou chutava para fora. Boa, Tico, na próxima nós acertamos, dizia. Ele jogava junto. Tico estava ansioso, o jogo final já estava por começar e nada do Boné do seu Chico aparecer. Acho que ele quer fazer surpresa, pensou. O jogo corria nervoso. Segundo tempo empate em um a um. Tico havia dado o passe para o gol do Real. O juiz prejudicava abertamente os meninos do Real. Parece que se interessou mais com o vinho e um churrasco no clube social. Tico corria. Driblava, centrava e nada de gol. Segundo tempo, e Seu Chico não aparecia. Tico volta e meia o procurava na assistência. Nem precisava, pois seus gritos ele os ouviria com certeza se lá ele estivesse. Em vez disso viu suas seis irmãs a beira do campo acenando desesperadamente. Na primeira oportunidade que o jogo lhe permitiu se achegou a elas. Percebeu que choravam. -Tico o caminhão tombou, papai morreu “”. O goleiro gritou; Tico é tua ta sozinho. Tico matou a bola no peito, viu espaço para correr e explorar, entrou na área o zagueiro grandão vinha sobre ele, conseguiu aplicar um chapéu, pegou do outro lado, e de esquerda emendou um chute que estufou a rede. O gol do seu Chico.Todos comemoravam. Tico saiu de campo tirou as chuteiras colocou o seu velho e surrados chinelos de dedo , entregou chuteira novinha para o Zé e saiu pela avenida cheia de carros e indiferença. Mergulhou no cotidiano da cidade e por alguns anos ninguém soube dele. Certo dia, na fila de entrada, para um espetáculo de teatro, escutei uma voz conhecida. – ‘Baleiro, Balas’. Reconheci aquele rapaz esguio com um tabuleiro pendurado ao pescoço. ---Bala doutor, amendoim? Puxei imediatamente do bolso do meu, sobretudo o boné azul e branco que prometi a sua mãe 17
  • 18. entregar a ele se um dia o encontrasse. Coloquei-o na cabeça e quando de mim ele se aproximou eu disse apenas: amendoim, do salgado. Ele me olhou fixamente por alguns segundos entre surpreso e emocionado. Eu lhe passei o boné e balbuciei – Espaço vazio é para se avançar e ocupar, Tico. Ele tirou o tabuleiro do pescoço colocou-o sobre o colo de um mendigo sentado no meio-fio e partiu. Sumiu na escuridão. Estou contando esta estória porque ontem depois de alguns anos participei de uma festa de formatura de Medicina e durante a solenidade muito me chamou atenção à figura imponente do reitor da universidade. Depois de todos os discursos e entrega de diplomas, por ocasião dos festejos finais, comuns em todas as formaturas, quando todos os formandos se confraternizam, percebi o Magnífico Reitor despojar-se da indumentária formal, e emocionado colocar na cabeça um boné azul e branco. Para mim o parágrafo final desta narrativa. Tico realmente fora um goleador. 18
  • 19. PASSEIO DOS LOBOS Noite, escura madrugada. Vento soprando forte. Calor sufocante. A esquina me direcionou ao cemitério. Lobo de olhos amarelos novamente guiando minhas atitudes. Duas almas passaram ao meu lado indiferentes, riam, gargalhavam.. Sete cachorros e uma cadela no cio ziguezagueavam na dança pela reprodução. Um vulto saiu por detrás de uma árvore. Os olhos profundamente amarelos dos lobos. Estáticos em todos os desertos do planeta aguardavam o desenrolar deste meu delírio. Um cheiro forte de urina contaminou meu terror. Um gato preto pulou do muro. Um bêbado se levantou de repente e vomitou no meu sapato. Lagartixas fugiram gargalhando. As minhocas eram serpentes. Perto da lua ausente, o olhar estático da fera. A noite escura, o muro branco, escancara uma abertura cúmplice, permitindo minha passagem. A escada rolante me levou ao campo santo. Chapéus e lenços brancos acenavam Dois lobos uivavam Vovó levantou do túmulo e me abraçou. Seus ossos caíram aos meus pés. 19
  • 20. Seus filhos, os do além, urgiram em juntá-los. Um rastro de fogo me seguiu. Todas as velas anteriores acenderam. Véus e dançarinas circundavam os túmulos. Aves negras riscavam o vento. Virgens gritavam desesperadas. Flores murchas se revigoraram. Um copo de leite me tirou para dançar Ossos irromperam das covas Lápides de mármore e granito flutuaram Como tapetes voadores. Um anjo de cobre derreteu-se em agonia E aos gritos desesperados. Lobos expuseram as presas em todos os desertos. Corri como nunca. Derrubei almas penadas. Fui xingado, amaldiçoado. Onde se viu, ser tão mal educado? Exausto sentei na amurada de um túmulo. Flores ainda fedendo, Algumas pisadas, Por alguém descuidado no enterro recente. Ofegante, desesperado, conformado, Procuro guarida no nome do descarnado. Local de morto inconformado. O buraco teimosamente aberto, A lápide reluzente, A frase definitiva: Não sei se cheguei ou parti. Os lobos, então, descontraídos, voltam as costas para minha agonia e saem altivos e solitários, como eu, pela escuridão adentro, deixando os fantasmas que teimam em não me abandonar. 20
  • 21. ZAZAGUGA Para Isadora e Luis Gustavo. Por humilde que seja meu pensamento, e nem sei por que penso assim, acho que nada mais perfeito do que me diminuir ao ponto de penetrar na grama do jardim, abaixo desta simples planta inglesa, absorver meu ego, minha vida, meus amores e dissabores. Acho que neste ambiente diminutivo me seja possível libertar das injunções do ambiente Supondo, meus ais libertos da filosofia reinante, dos críticos, da realidade, entre minhocas, e todo o resto que se joga no chão... Convivo. Não por prazer, mas por necessidade de me esconder do dia a dia, para conseguir voar nestas palavras cheias de sentimento e verdade. Era uma vez:... Acho que não está pronta a estória. Na verdade foi uma vez na minha condição de ser minúsculo, um privilegiado. Ser possível observar no vai e vem de determinadas pessoas os verdadeiros objetivos de um coração condicionado ao “meio ambiente”. Pobre tatu bola’, cada vez mais enrolado no seu desalento, medo das minhas palavras otimistas, apavorado pelos gritos de realidade que enterrei na grama do jardim. Baú de bons sentimentos, que descobri um pouco abaixo das boas intenções, enterrado por aí. Talvez dentro de uma maleta de couro de jacaré, forradas 21
  • 22. com manchetes de jornais. Tudo isto pode ser apenas um sonho, mas entre migalhas, terra, microorganismos, neste meu sonho louco surgiram os pés incautos do meu Guga e as mãos sôfregas da minha Záza. Era um sonho. Meu menino sorria, gargalhava pisando formigas. Minha menina delicadamente rebuscava entre as folhas do jardim minha imagem contente, esparramada como um mar de essências perfumadas. Tudo para tentar absorver a felicidade de duas crianças. Uma, o menino, em busca da cumplicidade, outra, a menina, na certeza da delicadeza. Os dois, parceiros da minha colheita de perfumes que sobreviverão certamente ao húmus transgênicos, ou não, da saudade. Tatu bola, Formiguinha, Zangão do maracujá. Se esta rua. Se esta rua Fosse minha.... Eu mandava, eu a mandava brilhar... Se esta festa, este sonho me pertence. Gostaria, Gostaria, Nesta vida, nesta vida Realizar 22
  • 23. INSPIRAÇÃO Instante... Súbito raio, Tolos pensamentos. Faísca atrevida, Resgatada do enigma. Sonhos libertos, Por instantes livres e plenos. Delírios e transpiração Liberdade ancestral Explosão de imortalidade. Candura, riso e choro, agonia. Momento que antecede A criação. 23
  • 24. A ARANHA. Tecendo Subindo Descendo Indiferente, A aranha assusta-se. Olha-me com olhar curioso. Sorrio apático. Ela boceja. Prossegue na sua labuta, Retorna a alinhavar. E eu continuo Preso ao emaranhado, Cativo da minha preguiça, Carente do teu colo. Sou mosca presa na teia Da tua ausência. 24
  • 25. ANGÚSTIA Como se fosse vento. Como se fosse brisa. Como se fosse o tempo. Como se fosse hoje. Como se fosse agora. Como se fosse sempre. Como se fosse eterno. Como se fosse ontem. Como se fosse tênue. Como se fosse pluma. Como se fosse raio. Como se fosse espuma. Como se fosse água. Como se fosse fogo. Como se fosse nada. Como se fosse tudo. Como se fosse vida. Como se fosse fim. 25
  • 26. CONCLUSÃO Da vida desejei interjeição. Busquei decifrar a interrogação. Vivi somente a afirmação! E em reticências... ·Cheguei a este ponto final. 26
  • 27. DÚVIDA ATROZ Quem sou, onde estou? Na casa da árvore, Ou nas pétalas Das flores do jardim? Na poeira do vento furioso, Ou no calor da brisa suave? Sou apenas granito, Suspenso no abismo, Que o tempo certamente Fará derrubar. 27
  • 28. ESCALADA Ao escalar seu corpo Fixei-me no negativo E assim na horizontal, Seus cabelos como corda Presa ao grampo dos meus dedos, Balancei o corpo Com ritmo e prazer. Saboreei seu gozo. Atingi o cume. Pratiquei rappel radical Até acima das nuvens. 28
  • 29. LÁGRIMAS. Cristais de sal Grudados no rosto. Desperto de um sonho Que você freqüentou. 29
  • 30. SAUDADE. Hoje é vento. Amanhã, lembranças... Viver hoje com volúpia. Garantir recordações, Plantar na vida, O direito futuro À saudade. 30
  • 31. TEMPO Perdi, Ganhei, Vendi, Comprei. Menosprezei, Deixei passar. Tentei resgatar o passado. O futuro esgotou-se no presente, Bebi com gelo e limão. Diante do imponderável, Entre todos os elementos, No decurso da vida, Faltou-me mais que o tempo, Faltou-me ar. 31
  • 32. CAMINHOS Nos teus lábios, só beijo, Nas tuas mãos, ninhos. Nos teus olhos, desejos. No teu destino, Caminhos... 32
  • 33. VENTANIA Dou um passo, O solo recua dois. O vento revolve os cabelos, O talento passa voando. Um jornal vagabundo Gruda na minha barriga, Dou a luz a uma canção. Folhas secas em redemoinho, Angustiam o coração, Questionam minhas certezas Provocam a discussão. Sou apenas poeta, Das coisas e das emoções, Não vejo inspiração, No vento em turbilhão. Vendaval é vida, De párias e vagabundos. Por mim, finjo ignorar a ventania. Jogo meus versos no espaço, Observo-os planarem por um instante, Abrigo-me no colo da amada, Pois tenho medo do vento. 33
  • 34. LINHA DA VIDA A cidade assiste tristemente os vagabundos nos biongos abraçados, se defendendo do frio, enganando a fome, imunes ao cheiro azedo de suor impregnado nos farrapos, unidos pelo instinto de preservação, compartilhando o calor que os preservam. Ao lado, amontoados, papeis velhos exaustivamente colhidos de casa em casa, de lixo em lixo, de pedido em pedido, de raiva e repugnância. A cidade assiste tristemente o diálogo dos homens importantes, defendendo ponto de vista, discutindo soluções, negociando cargos, fazendo promessas, baseando-se em sistemas, análises,pós-graduações, simpósios, e nas leis dos homens importantes. A cidade assiste tristemente os meninos nas ruas correndo da repressão, correndo da fome, correndo para o vício, correndo para a prostituição, dirigindo-se irremediavelmente para as garras protetoras das instituições dos homens importantes. A cidade assiste tristemente os indivíduos sem nome que pisam apressados por cima de tudo, uns atropelando outros, apesar dos meninos de rua que correm famintos pelas avenidas da cumplicidade. A cidade assiste tristemente o destino de seus filhos, levanta os olhos, e finge não ver no horizonte, por detrás dos obstáculos de concreto, o limiar da luta de seu povo. 34
  • 35. NAVEGANDO. Um passo ao futuro, Dois passos para a saudade. Dança dos meus sentimentos Na palma da tua mão. Sentimentos que o vento espalha Entre vasos vazios e estátuas frias. Barquinho de vela inflada, Navegando sem direção... 35
  • 36. VIRTUDE... As razões se sucedem. Tudo é justificável. Na minha cabeça nada de errado, Apenas o incontrolável. Sem pecados, Sem máculas, Sem remorso. Para tudo encontro remissão, Isto foi por isto, Aquilo foi por aquilo. Não sou culpado. Porque haveria de agir assim Se não fosse a única saída esta forma, Porque trilharia este caminho? Está errado? Sim, é antiético, incorreto, desleal, é traição. Quem julga? Onde se esconde o deus da virtude? Existe ser humano Capaz de condenar outro? Matei um amor por letargia, Matei um sonho por interesse material, Sucumbi à corrupção por comodidade. Traí por prazer e luxuria, Roubei lágrimas e esperanças, Menti muito como legitima defesa, Apaguei muitos sorrisos inocentes. 36
  • 37. Não sou culpado. Apenas meu travesseiro me incomoda Sacerdote que é do meu confessionário. Planejo destroçá-lo Jogar pluma por pluma em lugares distantes Para que assim espalhadas Não me acusem mais, Esvoaçantes e indiferentes, De ter vivido. 37
  • 38. CHUVA SUAVE Chuva suave, Caminhos encharcados e sonolentos Réstias de sol, por entre nuvens, Dourando cabelos molhados. Esbarrando em postes e guarda-chuva. Cruzamos olhares. A ti coube um sorriso A mim o deslumbramento. Como é bonito o amor que se descobre Numa tarde de chuva. Depois um chocolate quente Um até logo Um muito prazer Uma carona, Uma despedida. Um beijo consentido. Ter que ir querendo ficar. Até amanhã Gostei de você. Adeus. Como é bonito o amor que se descobre, Numa tarde de chuva... 38
  • 39. NA DA ORDEM. Possi Velho Caso Ismo. Reto e som Breve silêncio O NA DA ORDEM. Quieto descanso. Em mim Visão hipermetrópica. Pedras e cheiros Rolando otimismo Mesmo Escalando degraus Chegando 1º E tudo o + 39
  • 40. AROMAS Quando meus olhos viram os teus, Teus olhos foram os meus, Meu olhar foi nosso olhar. Quando teus olhos viram os meus, Meus olhos foram os teus, Teu olhar foi nosso olhar.... Quando um raio traçou destinos, Quando a ponte balançou, Quando o céu escureceu, O alvo ficou mais branco E o tempo esmaeceu... Quando de repente o vinho entornou. A vida em bolhas seguiu Em forma de realidade. Meus olhos viram os teus Teus olhos viram os meus O alvo se derreteu Na forma de uma ilusão Os teus e os meus olhos Cansados de tanto amor Fecharam extenuados E assim ficaram. Sem rancor... 40
  • 41. ÁGUAS PASSADAS, SAUDADE. Saudade. Para começar prometo não repetir que esta palavra só existe em português. Por esse motivo vou substituí-la por, não sei, talvez, nostalgia? Não quero ouvir tangos, também não ouvirei Cazuza ou Zeca. Quem sabe para embalar meu teclado possa sentir o Noturno No 20 de Chopin ou a Ária em G de Bach.. Parecem mais apropriadas para música de fundo, não do texto, mas da inspiração para discorrer sobre a volúpia que insiste em movimentar meus dedos pelas teclas, marcando na tela palavras que não sei de onde vem, nem sei para que servem, a não ser para aliviar o desejo de materializar momentos vividos e sentidos que corroem minha quietude. Seria os folguedos de criança a razão desta nostalgia? Seriam os mimos os beijos e abraços dos primeiros anos? As descobertas, o sentimento de imortalidade quando se pensava que tudo era possível, da primeira paixão, do primeiro desengano? Ou seria o passeio solitário pelas areias desertas desta época do ano em que o mesmo balneário da minha infância permanece vazio e frio, visto ser inverno, e de repente estar no mesmo lugar em que muitas vezes freqüentei por anos seguidos. Desde a infância percebo que as ondas comovidas guardavam com cuidado cada passagem do meu passado nas finas camadas de areia, escondendo até agora o sentido da minha vida. Hoje decifrando meu coração, lavando sutilmente da areia camadas finas que vão revelando ano a ano minha existência as ondas devolvem à minha lembrança passagens esquecidas na brutalidade da vida. “Viva o Guga” 41
  • 42. (meu neto) “Viva a Záza” (minha neta) .” O Guga é muito Esperto”. “A Záza é minha princesa querida”. Muitos corações vão aparecendo com a palavra Zéte. Uma onda maior limpa a areia surgindo um belo castelo e o nome da razão de tudo, escrito nas janelinhas: Zéte na torre maior, Valéria, Fabio e Felipe,nas muralhas que protegiam meus sonhos, meu existir. O vento... O vento sopra sem cessar no fim de tarde quase noite: o castelo desaparece e o passado mais remoto vai surgindo. De quem seria esta letrinha infantil? ““ Papai meu herói, eu te amo”, “ Mamãe eu te adoro”. Mais vento, mais areia retirada, mais recordações, mais constatações. Aparecem algumas pegadas. As marcas das muletas do meu pai, os passos curtinhos de minha mãe e por incrível que pareça pezinhos marcados levemente na areia; os meus e de meus três mais jovens irmãos. Modestamente mais crianças felizes amparadas a caminhar ao encontro de seus destinos. Seria isto nostalgia? Não, isto é saudade. 42
  • 43. IRONIA ECOLÓGICA Amazônia, O fogo comendo o futuro Criança nascendo nas barrancas. Esperando um barco branco Gritando mais forte que sagüis. Sangue que jorra na estrada Mais do que o leite da seringueira. Mais do a malária. Meninos barrigudos e famintos. Mulheres tentando abortar o grito Sonhando com um boto cor de rosa . Um pouquinho de ilusão... Piranhas escondidas nos igarapés. Esperando,esperando, Como jagunço na tocaia. O Brasil e seus meninos... Vontade de rodar no encontro das águas. Alcançar o mar, Mergulhar nas taças de champagne, Brindar com a fumaça das chaminés, Comemorar o progresso, Na Barra ou na Paulista. 43
  • 44. CURITIBA MEU AMOR Não sou daqui: estou aqui. Nas alamedas de pedras, embaixo dos candelabros, No Museu Sacro da "Igreja da Ordem" No “Relógio das Flores”, Que permanece deitado Na praça do "Cavalo de Ferro". E o vômito de polenta, pierogui, chucrute e cachaça, Escorre nas calçadas, na água fétida e musgosa do chafariz, no qual banham-se os meninos. Não sou da periferia, Dos bairros afastados e pobres. Sou classe média e boêmio Mas, freqüento as lajes, As rodas de fumo, de samba e linguiçadas Não sou da elite, Mas freqüento os apartamentos e mansões, As rodadas de coca, chanpagne e mignon, Onde se desfrutam das meninas da periferia, 44
  • 45. E dos meninos de academia. Com direito a passeios de iate no litoral. Torci o tornozelo na "Rua das Flores", Ali na "Boca Maldita", Bem juntinho da "Praça Ozório". Sou cidadão urbano. Fui assaltado na “Esquina das Marechais”. Pratico caminhadas no “Parque Bariguí”. Respiro o ar mal cheiroso do lago. -O “Jacaré” anda sumido-, talvez de vergonha. Sentado em um dos bancos da “Boca Maldita” Sinto o odor dos bueiros, O cheiro gostoso do Café Damasco, Ouço o tóc-tóc das sandálias das “Mocinhas da Cidade”. Saboreio as barriguinhas de fora. Ninguém é de ferro. É um privilégio viver Na “Cidade Ecológica”, Que já foi "Cidade Universitária” 45
  • 46. PRIMEIRO AMOR Olhos tristes Lágrimas brilhando São como nascentes De um rio se formando E se avolumando Umedecendo o rosto. Soluços suaves Cachoeira de dúvidas Mar de sentimentos Toda a tristeza Toda a melancolia De chorar sozinha As incertezas Do primeiro amor. 46
  • 47. LUZ E SOMBRA. ( Rocio – Bailarina) Apenas entrou, E a luz lhe agasalhou o corpo. E seus movimentos, Provocaram os ventos, E o compasso do tema, Remexeu seus cabelos. Sexo e dança... Ventre e luz... Moinhos, desejos e lança... A provocar paixão, Sexo, sonho e dança Volta e revolta Pois tudo é perdão. Arte de puros amantes, No instante da entrega total. No palco da vida trabalho. Na vida do palco prazer. É pra você este tema, O qual você mesma escreveu, Palavras bailando tão soltas, No universo só teu. E meu... 47
  • 48. SONHEI COM VOCÊ. Braços soltos preguiçosos Sensação de mais dormir, e mais sonhar, e mais querer As costas remexendo motivos, preguiça. Pernas rebeldes espalhando-se pelos lençóis Braços indomáveis em movimentos cínicos Mãos percorrendo caminhos recentes Quadris impertinentes Seios intumescidos, queimando desejos. Coxas ardentes, Dentes rangendo sedentos, Língua encontrando o céu da boca. Pêlos grudados aos panos Pensamento debochado Travesseiros em cumplicidade Uma declaração de amor em surdina Dedos sedentos pesquisando profundezas. Sonhos... Motivos secretos. Raio de sol descobrindo pecados. Rasgo meu sonho Entendo meu humano coração E saio confiante, Para a vida... 48
  • 49. A PORTA DA PALAVRA Palavra, Onde encontrar tua janela, A brecha, o vão, a abertura? Nos degraus da palavra torre? Nos perigos do abismo? No c de céu, no i de inferno, No a de amor, ou no o de ódio? Será no t da ternura, ou no s da saudade? Em todas as formas não encontro entradas, Labirinto ardiloso e cruel. No entanto existem fendas, Ou seriam transposições? Que fissura descobriu o poeta, Que a domina e constrói, Que vira e revira, mistura e cria outra? Como consegue penetrar nos teus segredos. E através de ti, dentro de ti, Encontrar os “poemas que esperam para serem escritos?” 49
  • 50. CAIÇARA. Sou caiçara, Ganho a vida no mar. No mar eu embalo, No balanço das ondas, Os sonhos de um dia voar. Sou caiçara, Ganho a vida no mar. No mar eu embalo meu sonho No segredo de meu pensamento, De largar a espuma e a areia Para um dia voar. Sou caiçara, Pescador de todos os peixes, Senhor de todos os ventos, De todas as formas e cheiros. De ondas, ressacas e maresias Queria voar mais alto, Que o sonho que me embala, Para ver lá de cima, Se a vida que ganho no mar, Está desenhada na areia. Em forma de poesia. 50
  • 51. CHORINHO Atordoado de Pixinguinha Desci ladeira descalço Chutei as pedras e as latas.... Sangue no dedão do pé. Caminhos que não percorri Mas deixei o solo marcado. Esquinas malditas Que teimam em não se revelar. Música de não sei que dimensão Tocando meu coração Com a agonia dos criadores Porque estou nesta estrada? Com as feridas abertas A alma em desespero Procurando as harmonias Desta música demoníaca Que transborda de sentimento Este farrapo de Lamento, Mendigo de toda a beleza. Carinhoso, como Naquele Tempo 51
  • 52. DESTINATÁRIO NÃO ENCONTRADO. Maldita folha em branco que queres de mim? Sou apenas um batuqueiro de teclas, nada a acrescentar, tudo dito, tudo escrito. Verso e reverso, todas as questões resolvidas. No entanto, nas entrelinhas, parece sobrar espaço. Inútil. Minha vida, minha experiência, nada acrescentará. Vida sem fato relevante, nada espetacular. Pode-se viver como mata borrão do tempo, apagando excessos? Como colagem do contemporâneo? A imaginação, esta sim, é ladina. Não permite abandonar o sonho, de desvendar os segredos do ser humano. Neste sentido, um universo a descobrir. Porque me olhaste, porque te olhei e elegi rainha? Tudo para mim, meu ponto final? Não sei e, não tentarei explicar, apenas aceito. Aceito como equação matemática que estabelece a conjunção de átomos conseqüentes. Sou; és, e nada pode mudar este sentido. Somos nós, únicos, para todo o sempre. 52
  • 53. DISCRETA SEMELHANÇA. Dia destes, em um fim de tarde. Dei por mim num barranco de rio. Ao longe um pequeno barco, Um menino empurrando a canoa. Nas mãos um comprido bambu. Quanta semelhança com o guri Que fui aos dez anos de idade. O mesmo boné de feltro quadriculado A calça curta, presa Por uma só alça de suspensórios, A camisa suja de estripulias Abotoada em um só botão. Os óculos “fundos de garrafa” Escorregado no meio do nariz. De algum lugar eu conhecia aquele petiz. Eu o observava, ele ficou me olhando, Imagem de uma fotografia antiga. A noite foi chegando devagar. Afastou-se o barquinho E o menino também. Não lhe fiz sequer um aceno. O passado não se despede. Dei-lhe as costas Ergui os óculos Ajeitei o boné quadriculado E segui Nômade, errático, andejo. Cativo das minhas fotos desbotadas 53
  • 54. VENTOS DO NORTE Existe sangue no chão. Vermelho em fundo azul. Estrelas rodeando o espaço, Cometas sem rumo, perdidos. Ao fundo Mickey Mouse sorrindo. Para uma tribo africana E os dentes, aqueles dentes, Iluminavam Wall Street. Mandrake morreu de engodo Fantasma esqueceu os pigmeus Sinatra escapou de Alcatraz. Liz deitou na ilusão. Oswald fechou o enredo. Existe sangue no chão Estrelas no fundo azul, Listas vermelhas no branco E a vida seguindo serena Ao ritmo da injeção letal, Com testemunhas. Assim estou redimido Das mortes em Bagdá. O verso se esparrama abusado Pelos tapetes da Casa Branca, Jerry o leva para a toca. Tom como sempre atrasado Bate a cara no piano Que neste exato momento Bush toca My Way. 54
  • 55. VISITA AO REI. Se ele realmente sentisse medo não estaria ali. Só o fato de entrar demonstra o quanto corajoso se sentia agora. No entanto, já fora um maricas, como o chamavam os piás da rua, e do Grupo Escolar onde cursara o primário. Sentia um medo terrível de qualquer pássaro ou ave; asas se debatendo, sem direção, apavoravam seus sonhos. Sabia, sentia que algo o espreitava de algum lugar naquele aposento. Olhos negros, sobrancelhas muito grossas, uma boca enorme de sorriso debochado, na cabeça uma cartola azul, vermelha e branca seguiam seus movimentos cuidadosos. Não se importava. Pensando bem, havia crescido e se tornado adulto com esta mesma sensação de ser observado constantemente. Porque então este sentimento desconfortante, porque o arrepio na espinha? E a sua coragem? O ambiente não era escuro nem sombrio, ao contrário, pessoas transitavam, mulheres elegantes circulavam e homens de óculos escuros se faziam importantes a seu redor. O pescoço apertado pela gravata de cores extravagantes. No horizonte um mastro gigante mostrava farrapos verde e amarelo. Seria o "pendão da esperança?” Os olhos, de soslaio, observavam sua vontade de vomitar. A luz lá fora era intensa, olhos ardendo, e ele com a missão de trilhar este espaço de sol refletido no mármore do caminho; ou seria uma rampa? De repente os monstros de sempre invadem sua alma. Á direita o parlatório, e uma figura quixotesca prometendo a felicidade. Seus ouvidos queimam, querem vazar palavras da memória. -' “Minha gente. Não me abandonem, não me deixem só." Não. Impossível conviver com o mesmo destino. Não depois de tudo que se fez pelo fim do pesadelo. 55
  • 56. O piso é fofo e verde, o sonho é negro e febril. Neste momento a memória se mostrou cruel. Não seria preciso coragem para enfrentar estes mortos vivos. O medo era justificável. Nada, no entanto deveria tê-lo conduzido a esta cerimônia fúnebre. Seus representados e camaradas que o perdoassem, mas um solene gesto involuntário e incontrolável seria o epílogo deste dia de terror. - Parabéns, o senhor é o exemplo de brasileiro que todos nós admiramos. Obrigado por acreditar na pujança desse país. Em nome deste governo passo-lhe às mãos esta menção honrosa,.Obrigado pela visita. Eram mãos reticentes, frias como as palavras. Pensou. Pouco resta logo tudo estará consumado. Os fantasmas sorrateiros vencerão. Engolirão sua dignidade e tudo estará terminado. Ânsia. Tentativa de controlar o pavor, mas a bílis e o almoço de rodízio de carnes com maionese não esperou pela digestão. Tudo derramado no fofo chão verde, no calçado de couro alemão, terno de corte inglês, gravata italiana manchados agora pela consciência de um brasileiro. O anfitrião reclamou:- “Assim não pode, assim não dá." Se retirou e todos o seguiram. Corria o ano da graça de um mil novecentos e noventa e nove. Pelo menos cem de promessas de terra, moradia, saúde, educação, segurança, igualdade de oportunidades, dignidade e soberania para os brasileiros. Em tempo: Atrás de uma bandeira enorme, listrada de vermelho e branca, os olhos negros, as sobrancelhas muito grossas, a boca enorme de sorriso debochado cobriu o rosto com a cartola vermelha, azul, e branca gargalhando grotescamente. 56
  • 57. SUA PRÓPRIA ESTÓRIA. SUA PRÓPRIA ESTÓRIA EU, ATEU E AGNÓSTICO DO FORTUITO CRENTE DA DECRENÇA E FILHO DO ASTIGMATIMO ENFEITAM DE PAISAGEM AOS QUE ACHAM QUE TEM O PODER DE ENXERGAR. UM DEDO À FRENTE DOS OLHOS, MAS NÃO VEEM NEM UM MILIMETRO DENTRO DE SI MESMOS, LUGAR ONDE SE ESCONDE A VERDADE E HABITA A CONDIÇÃO HUMANA. NEM O INFERNO NEM O CÉU, APENAS A INUTILIDADE. As semelhanças, nos fatos, nos pensamentos, nas atitudes são de tal modo pertinente à natureza humana que extrapolam o universo individual e se inserem em todos os universos, visto que o corpo humano de per si é um mundo em separado. Um elo da corrente. Esta corrente infinita na qual todos estamos unidos com o nosso sentido de auto- preservação. O começo desta linha ninguém mais sabe onde se encontra, nem mesmo o fim se sabe onde esta. A esta corrente grossa e pesada chamaremos vida. Se formos analisar suas subdivisões este ensaio seria comparado à existência humana, pois de começo desconhecido e 57
  • 58. seqüência no infinito. No entanto apesar de estarmos de mãos dadas e cúmplices do mesmo destino vivemos como se o livre arbítrio realmente existisse. Na verdade o livre arbítrio é apenas o poder de não ter poder nenhum. A vida coletiva é a ilusão da liberdade individual. Sucumbimos sempre aos desígnios do acaso. Este sim, com suas manifestações espontâneas e próprias, direciona as nossas atitudes. A ciência, a religião, enfim toda a manifestação humana, embora muitas vezes pretensiosamente independente, não passa de um atestado de submissão à natureza, ao fortuito, ao inesperado. Os desígnios da natureza, esta sim pretensamente previsível e, no entanto tão surpreendente e indomável. 58
  • 59. PORQUE HOJE É SÁBADO. Não desejava este final. Lágrimas misturadas ao sangue. Um líquido viscoso, grosso e negro, Esparramado pelo chão. Os gatos arriscam lamber seu pescoço O odor é adocicado. Minhas mãos úmidas de sangue Mancham as paredes. A faca caiu em ponta, Segue na vertical, Espetada no chão de tábuas. A televisão noticia o fato. Estampado no vídeo o meu retrato. Ser desprezível, Com números abaixo. Assassino cruel! Espelho quebrado. Pedaços de vidro sobre o sofá. Tapete manchado. A água do macarrão secou no fogão, O vinho congelou no freezer. Ela chegou menstruada e chorosa. 59
  • 60. Meu colchão estampado de vermelho, Lençóis, travesseiros, minha solidão, Tudo dançando neste sábado infernal. Copos espalhados. Garrafas tombadas no sofá Corpos estendidos no chão. Inertes e bêbados. Os gatos lambendo coturnos policiais. Ela ao piano cantando: ‘Pra não dizer que não falei das flores’. O maldito poodle latindo sem parar. As notas da partitura flutuando pela minha garganta, Sol, Fá. Ré, Dó sustenido. Herança de Geraldo Vandré. Desmaio para continuar Refém do meu pesadelo Atravesso seu corpo Estupro a silhueta, Arrebentando as cordas do violão, Desenhada no chão. 60
  • 61. CAMINHOS DOS SEIXOS No jardim da minha casa, que na verdade nunca teve um, e na minha lembrança, persiste a alegria que possivelmente povoa os canteiros da vida de quem o teve. Que graça tem as flores sem nome? Que significado terá se seus aromas não nos induzirem á nossas verdades pessoais. As flores são representações de nossas vivências. Os cheiros são os caminhos da memória. Nada representam sem a história de nosso viver. Um bouquet de rosas jogado na calçada, encharcado de cotidiano, é apenas uma intenção descartada. Que destino teria se num vaso de cristal qualquer adornasse a amargura de uma vida sem amor? Um dia vazio como os dias das pessoas que labutam, que se acreditam produtivas, enquanto rosas balançam ao vento e samambaias caem curiosas das samambaiaçus. Nas encostas das montanhas, mosquitinhos e manacás adornam passeios burgueses de domingos dorminhocos, cansados dos segredos, enfim libertos das quatro paredes. E assim caminham minhas lembranças, meu jardim, meus sonhos, bem-te-vis sugando vida e minha vida sendo rolada como os seixos no rio. Lá embaixo, água fria e cristalina me convida a olhar o céu refletido na sua pureza, meditar, continuar ou morrer extenuado de tamanha beleza inútil. 61
  • 62. MAIS UM VERÃO. Chega-se toda dengosa, Como bichinho enjeitado Deita-se toda chorosa, Encolhe-se toda ao meu lado. Olha-me com olhos gulosos, Parece pedindo perdão. E eu te aceito jeitosa, Dentro do meu coração. Chega-se do vento leste, Quente com o sol de verão A rede balança lenta, Na batida do meu coração. Assim, passo as tardes, Dolentes, no meu rincão. Assim eu espanto a saudade, De que, eu não sei, Não sei, não sei não... 62
  • 63. SOL INTROMETIDO Fora de hora acendeu a luz. Paixão se esvaiu na claridade do dia Sedução se perdeu na nova manhã Quem rompeu o breu deste momento? Um raio de sol intrometido, Um feixe de luz, Uma azia indomável. Uma vontade De não ter participado? Arrepios que não posso negar. Amores de ocasião. Raios de desejos inconfessáveis Razão seduzida Gozo e apenas gozo. Delicias que se escondem Nas bolsas Dos caçadores da virtude, Monopólios da virgindade alheia. Esta revista me reserva Páginas vermelhas Que eu necessite esconder? Mocinha, menina, guria Suas reentrâncias serão percebidas? Se não, condenado serei. Se sim redimido me sentirei. Valeu a pena. Para isto se presta a imaginação. 63
  • 64. ASSIM QUE ACONTECE Acontece, E quando acontece, Não se esquece. Não se esquece de um olhar de relance, Fulminante e distraído Quando se está farto. Não era o momento, Mas se deu de passagem. A canção diria, acontece... Juro, meu olhar foi curioso, Seu olhar foi indecente Assanhou o meu coração. Assim de passagem, Como acontece. Acontece um atropelamento, Um assalto, Um prêmio na loteria. Acontece De se encontrar pessoas, Acontece ser multado, Acontece ser culpado, Acontece que te cobicei Quando te vi de passagem. Acontece que tudo acontece. E como tudo acontece Ainda procuro entender Porque tudo acontece. E tudo que acontece Acontece de repente. 64
  • 65. Arrisco, pois, navegar Como marujo estreante. Grumete sob ondas raivosas Tentando intimidar, Rasgando velas que inflei Para vencer oceanos E suplantar tempestades. Acontece. Barco que não sai do cais. Âncora colada ao destino Aprisionado ao trapiche. Mares que não velejei. Porque tudo acontece Distraído, de relance. É assim de passagem Sem eira nem beira, Que tudo acontece. 65
  • 66. NATURAL NATUREZA A força do homem Encontra aqui, Nas águas revoltas Das Cataratas No abraço fraterno de todos nós. A afirmação da natureza Desaguando história em sua fóz E a voz dos que amam Os bichos, o verde, os ventos Ecoa forte nas matas, nas águas, Nos animais. Fronteira que une e iguala Três países e povos irmãos Unidos em um mesmo destino. Pescadores de esperança Que acalmam as águas no Alvorecer da Livre América. 66
  • 67. STING E RAONI E por falar em ecologia Nesta manhã as flores não deram leite. A chuva da noite Não cobriu de acrílico a relva. A chuva da noite Não cobriu de acrílico a relva. Os sonhos dos homens, Persistem tão pobres Pantanal de andarilhos Vendendo a seiva dos troncos Bebendo o sangue dos índios. E por falar em ecologia Foi manchete no Time Seringueiro, garimpeiro Peixe Boi, Jacaré... Nosso chão é pulmão Nosso chão, servidão Do mundo. Nosso chão é pulmão Nosso chão, servidão Do mundo. Nosso chão é pulmão Nosso chão, servidão Do mundo. Nosso chão é pulmão Nosso chão, servidão Do mundo. 67
  • 68. A DAMA DA TARDE De onde vem este amor Revelando mundos Revirando tudo Como se fosse um tufão? Varrendo, cuspindo entulhos, Num erguer e demolir muros, Nas esquecidas e despovoadas, Ruas do meu coração? De onde vem este amor, Às vezes festa, às vezes fúria, Num abrir e fechar de portas, Louca procura de respostas, Mistura de murmúrios Fonte de delicias e torturas? Onde anda agora este amor? No mundo do faz de conta, Brincando de subterfúgios, Fazendo-se de surdo, Deixando-me assim, Um pobre menino A flutuar em sonhos absurdos? Onde anda este amor? A que horas chegará, Com preciosos sorrisos Que recolho agradecido, Para traçar o rumo dos meus dias? Onde anda este amor? 68
  • 69. “XÃO BATIDO” O ideal é ser sóbrio com algumas recaídas de vez em quando. O baile corre solto Samba, forró e vanerão. Casais em êxtase. O som com volume descomedido. A cerveja quente. O chão de tábuas irregulares. Os pés variando botas, sandálias e chinelas Cigarro. Mais um traçado. E o estilo exuberante dos casais, Rodam e giram. Uns compenetrados, Outros às gargalhadas. Uma Coca Cola que explode. Mais um Cuba querido? Outro cigarro. Na mesa de plástico encharcada Azeitonas e salaminho. Os palitos espetados. Mais uma bem gelada. A banda silencia! Dançarinos se recolhem às mesas. Mais um cigarro. Um conhaque pra rebater. A cadeira de plástico se quebra. Olhos varrem o ambiente, Som de gaita e violão. A banda ataca um tango. Levanto-me, ajeito as partes, E corto o salão. 69
  • 70. A dama do outro lado se me oferece. Levanta os seios. Beijo sua mão, Enlaço sua cintura, E dançamos, bailamos O tango no melhor estilo. Calamos os presentes. Inebriados ignoramos os aplausos. Esta merece outro conhaque. Mais um cigarro. O lenço encharcado Passa pela testa vaidosa. Outra cerveja quente. Urinar fora do vaso, Jogar papel no chão. Uma delícia Romper com as regras, Ser alguém por hoje Que não serei amanhã. Noite que segue Num banco de automóvel, Com a dançarina. Ou seria a garçonete? Mais um conhaque amor? Outro cigarro. O vento fresco da madrugada Anunciando a ressaca moral. Uma latinha gelada. Adoro estas recaídas de vez em quando. Onde estão os meus cigarros? Daria tempo para a saideira? 70
  • 71. MORANGOS CHANTILLY E HORTELÃ Silenciosamente saiu de manhã sem um beijo, sem adeus. Sei, eu dormia. Ainda dormia, pois o dia, já era pleno De todo o cotidiano. Não tenho vontade de levantar. Os lençóis e este torpor me impedem. Um punhal de sol atravessa as cortinas, Crava no meu peito dança sobre meus seios. Sinto o calorzinho nos mamilos Agora empinados. Suas mãos de ontem correndo minha virilha Os dedos catatônicos buscando as dobras As coxas se movimentam Ajeitando, despistadas, melhor acesso. E me sinto úmida, transbordando. Minha língua roça o céu da boca Mordo a pontinha do lençol. Uma explosão acontece no meu peito, Um delírio, um gosto de hortelã, Um cheirinho de morango. Chantilly escorrendo pelas coxas Uma sirene cortando meu sonho. Um homem que partiu de manhã Sem me beijar... 71
  • 72. UM BEIJO ARDENTE Um beijo ardente. Uma imagem de Guadalupe, a noite quente sufocante e um som cadenciado animando a praça. Vozes incessantes. Clima de feira e festa. O povo rindo desbragado. Passeio entre corpos morenos suados e cabeludos. Luzes e gritos. Som, muito som. Compasso latino. Ao fundo o som da orquestra . Cheiro de mulher .Aromas fortes bailando mais que as saias coloridas. Frescor de flores e tabaco. E risadas. Muitas risadas. E atabaques batendo e saltando entre as pessoas. Frutas, muitas frutas aparentemente abandonadas em tabuleiros insolentes e despudoradamente floridas. Entre as pedras do calçamento, quase invisíveis filetes de urina escorregam sinuosos pelas frestas. Misturam-se flores, tabaco, suor, risadas, pernas morenas, colos abundantes, bocas vermelhas e dentes muito brancos emoldurando línguas safadas. Quem foi? Como um roubado beijo neste ambiente de êxtase provoca tamanha vertigem.? Corro através da melodia e da algazarra. Onde está? Quem será? Não sei se o rum, se a música, se as saias rodando coloridas, se as mulheres de pés descalços, se o líquido nas calçadas, se a multidão, se a minha falta de fôlego, se o calor, se a noite, se os boleros mambos e salsas, se as risadas, se as barrigas e quadris bailando, se o beijo, se aquelas coxas morenas, se o sorriso provocante, se Guadalupe comparsa e redentora, me propiciaram este delírio. Sei apenas que passei por entre o casario nas ruelas de Havana antiga. Tão antiga que escondem paredes encardidas do sangue dos escravos, das pobres vítimas de Batista, dos revolucionários, dos que acreditaram e dos que ainda tem esperança. Tudo ao ritmo antigo de Ibrahim Ferrer e seus músicos. Como no tempo e ao som de Buena Vista Social Club. Arriba. 72
  • 73. CRUZES NA BEIRA DA ESTRADA Estórias de cada cruz. Lamento de um passante. Não questiono nada na forma, nem no conteúdo, nem na crença, nem no futuro, nem no passado; sou do presente e do material. De repente assombrou meu sonho este depoimento sem sentido. “Iscutaqui meu fio, num apense que tudo se passô assim tão faci não.Nu cumeço era por demais difici, as arma sufria mermo. Nois se acheguemo aqui sem nada. Tinha acabado tudo de cumê nos caminho desta tria que abrimo no machado e facão, no suó, padecendo que nem dá gosto de lembrá. Era bicho de tudo o jeito, dos pequeno dos maió. Bugre nois não viu mas sabemo que espiavam nois, dava pra escuitá. Ocê nasceu no mato meu fio, nas beira de um riaçhão. Tua mãe gritô três dia. Sofrimento de matá. Máto mermo. Não parava de sangrá. Tá cismado? Vai lá, há de ter uma cruzinha bem debaxo de um pinhero, lugá bom pra se rezá. Adispois vorta pra casa. Este aqui é o se lugá.” As carretas furiosas e os andarilhos penitentes se apossam das estórias enterradas em cada cruz do caminho. E espalham pelos caminhos do Brasil. 73
  • 74. TRIVIAL CASEIRO Se você é recém casada, nunca cozinhou na vida, certamente gostaria de saber como fazer um almocinho simples para o maridinho, não? Deve estar pensando em surpreender seu homem e provar para sua querida mãezinha que você pode. Melhor seria ter ouvido os conselhos maternos e tentado aprender. Mas não, em vez disto escolheu passar o tempo no computador, no chópim e nas baladas. Foi numa desta que sem querer querendo engravidou. Ainda bem que o moço é boa gente. Assumiu e casou .Tudo bem. Agora é fazer a tua parte. O moço trabalha é esforçado e por enquanto vai cumprindo com a obrigação de manter sozinho a casa enquanto você espera o rebento. Para sua sorte ele te adora te enche de carinho de noite e de dia e ainda mora longe da família. Sem problemas com sogra, certo? Bom, então porque não arriscar? Surpreender com um almoçinho caseiro para começar. Não é tão complicado assim Com um pouco de boa vontade tudo sairá bem. Ele vai lembrar-se da casa da mamãe e de quanto era feliz e não sabia. Vamos lá: Primeiro passo: Vá até a cozinha e se apresente à aqueles objetos que lá se encontram.O fogão é aquele que ostenta em cima quatro bolachas pretas abaixo de uma grade e cinco botões na frente. Possui um depósito escuro chamado forno. Não se preocupe desta vez não irá usá-lo (o forno), fica para outra quando atingires o estágio intermediário. Verifique se tem na sua cozinha tudo o que vai precisar: além do fogão, a geladeira e aquele parecido com televisão; o micro ondas, este mesmo que você esquenta aquela sopinha de envelope. Na verdade esqueça o micro. Tire do armário aquele faqueiro que você ganhou da sua querida, mui amada e distante madrinha. Abra a caixa de panelas, selecione a frigideira maior do conjunto chinês, aquele envolto em papel celofane, e duas panelas desta caixa enorme, presente daquela tia que 74
  • 75. mora em Londres. Cuidado para não abrir a caixa do relógio cuco, não vai ser útil nesta empreitada. O titio telefonou para saber se vocês haviam gostado. Adoramos você disse obrigado vou usar bastante este jogo de panelas. Bom filha, mas não estou falando de mestre cuca mas do relógio cuco. O tio ficou magoado. A gente se atrapalha mesmo, paciência. Então trate de levantar cedo e depois que o benzinho sair para trabalhar vá às compras .Segundo passo: No mercado compre arroz, feijão, óleo, cebola, pimenta do reino, alho, manteiga, ovos e sal. Não fique nervosa se não achar o tal do sal agosto. As receitas geralmente citam estas palavras, mas o sal a gosto quer dizer que você pode colocar a quantidade que mais agrada seu paladar, não é uma marca de sal. Compre também batatas, um maço de agriões, cheiro verde e um bom azeite de oliva. Algum atendente no mercado pode te apresentar ao agrião e ao tal cheiro verde. Trata-se daquele maçinho de cebolinha verde e salsinha. Não se assuste, não é complicado. As folhas compridas e redondinhas parecendo um canudinho de festa é a cebolinha, o outro matinho é a salsinha. Muito bem, mas falta o principal: a carne. Esta é a parte mais difícil. Sua mãe sempre comentava que carne se compra em açougue e no açougueiro de confiança. Aí então poste-se a frente do balcão e sorria para o açougueiro. É um belo começo para ser bem servida. Observe se ele te olha com respeito ou já enfiou aquele olhar guloso no seu decote. Finja olhar as peças de carne na vitrine. Não precisa pensar em pedir CPF, Título de Eleitor, Comprovante de endereço ou Folha Corrida na Polícia, o moço provavelmente é de confiança. Afinal toda a fila está disposta a ser atendida por ele. Olhando bem ele é até simpático. Peça então quatro bifes de alcatra, não muito grossos. 75
  • 76. -Se estiver bom, te elejo meu açougueiro de confiança! Não precisava dizer nada, mas já que disse poderia disfarçar este rostinho vermelho de constrangimento. Ignore os sorrisos maldosos das mulheres da fila. Saia de fininho, direto ao caixa e correndo para casa. Ufa! Continua... Saí para almoçar. 76
  • 77. PASSEATA A multidão seguia agitada, olhos voltados para as esquinas, rostos a procura da repressão esperada. Ela caminhava ao meu lado, gritava, cantava. Vestia calça justa e um blusão folgado preso à cintura por um cinto vermelho. Seu corpo agitava-se continuamente, os braços erguidos, rosto ligeiramente pálido, mas expressão que refletia coragem e segurança. Os olhos azuis pareciam ver tudo pela primeira vez, tal era o brilho de felicidade que transmitiam. Ela tudo via, observava, devorava, menos a mim que lhe implorava um olhar, um sorriso. Agora estamos de mãos dadas, todos fazem um cordão. Arrisco uma carícia, ela sorri sem me olhar, e seguimos. De repente, os soldados. Corri para um muro, subi. Lá de cima olhei para a rua e a vi correndo ora para a direita, ora para a esquerda, até que parou. Ficou como a esperar o fim, entregar-se. Gritei: - Marina, aqui. Apesar da distância e do barulho me viu, correu. Quando o gás já era intenso, pulamos. Estávamos em um terreno baldio que fazia fundos de uma casa. A impressão era de estar desocupada, pois o quintal descuidado, as janelas fechadas denotavam abandono. O mato era alto e a construção era destes palacetes que se encontra às vezes no centro das grandes cidades. Ficamos afundados no mato. Eu escutava sua respiração ofegante junto ao meu rosto. Um soldado subiu no muro, disse qualquer coisa para outros lá fora, ouviu a resposta e voltou para a rua. Uma bomba de gás explodiu perto de nós. Xinguei e corremos. Ela me apontou um barraco de madeira, oculto junto ao muro. Nos arrastamos até lá. A porta cedeu sem esforço, entramos. O paiol estava vazio, com exceção de alguns sacos de milho 77
  • 78. já mofados. Sentamos no chão. Lá fora se ouvia gritos, palavrões, correria. - Obrigada. - Não foi nada. Perdeu-se de alguém? -Não, estava sozinha. -Como se chama? -Marina. Como você soube? -Não sei, engraçado adivinhar. -Alguém? -Não. Uma ratazana atravessou o barraco. Assustei-me, ela gritou. -Vamos sair daqui. Saímos. Na janela do casarão um velho barbudo apareceu e nos chamou, Corremos para a casa e entramos. Dentro, a riqueza dos móveis, os lustres, obras de arte, tapetes, nos impressionaram. Percorremos a casa cômodo por cômodo sem encontrar ninguém. Salas enormes ricamente decoradas, intensamente iluminadas completamente desertas. Ela permanecia junto a mim, assustada. Passei o braço em torno de sua cintura e subimos as escadas de mármore. Em cima muitos quartos, com decoração antiga. No maior deles uma cama muito macia e grande, grossos tapetes e uma lareira acesa. Ela jogou-se na cama e ficou a pular, rindo como criança. Saí, andei por toda a casa sem encontrar ninguém. Na sala de refeições um enorme relógio de carrilhão enchia o ambiente de ruídos compassados. Eram onze horas da noite Voltei ao quarto e a encontrei envolta em montanhas de cobertores. Seu corpo parecia menor na imensidão da cama. -Ninguém em casa. Os soldados interditaram o quarteirão, houve tiros e os homens estão por toda parte. O jeito é ficar aqui. Ela me olhava sorrindo. Já apagara a luz e nos iluminava apenas a chama vermelha da lareira. A cama era luz e sombra, calor e desejo. Seus cabelos espalhavam-se pelos 78
  • 79. travesseiros. Virou-se de costas mostrando os ombros nus e o contorno de seu corpo perfeito delineados nos lençóis. O tempo é breve quando se é feliz. Quando acordei não a encontrei na cama. Vesti-me e desci. Um aroma de café vinha do andar de baixo. Na sala de refeições a mesa estava posta com pães, geléias, frios e sucos. O café na chapa quente do fogão à lenha era irresistível. Enquanto bebia escutei o carrilhão bater cinco horas. Lá fora ainda estava escuro e uma chuvinha miúda acompanhava um vento gelado. Ouvi uma porta bater. Corri até a janela e já longe pude ver os cabelos compridos e louros de Marina. Ela corria na escuridão. Ainda por alguns segundos fiquei observando seu vulto liberto. Mas as garras da repressão caíram sobre ela. Agora caminhava triste e escoltada. Lembrei-me do sorriso moleque quando lhe acariciei a mão, seu grito de medo do rato inofensivo, seu braços assustados me apertando quando entramos na casa, seus olhos provocadores, seu corpo entre lençóis iluminados pela claridade trêmula da lareira, minha noite de amor, minha descoberta da felicidade. Cobri a cabeça, saí andando pela rua deserta, na chuva miúda, no vento frio rasgando a madrugada violada agora pelos primeiros raios de sol de um novo dia. 79
  • 80. O CÃO E O PORÃO O cão raspava o chão de tábuas Todos os dias no mesmo horário. Ansioso, se cansava, desistia da tarefa Correndo para o quintal. Um pau de lenha às vezes o acertava Sempre nas patas de trás. - Sai cachorro maldito, Ainda me furas o assoalho Sei ser esta a tua intenção. Que tanto queres lá embaixo? Não há nada no porão. Além de chorar escandaloso Mancava a cada dia mais. Mas sempre repetia a tarefa Com afinco e determinação.A tal ponto chegou seu intento Que um buraco no assoalho se fez E uma luz muito brilhante surgiu Logo na primeira frestinha. Se espremeu, se espremeu, Tão fininho se fez Que pela fresta estreitinha, Com muito treino e vontade O cão desapareceu. Caiu na luz do porão Das pernas não mais precisava Embalado no clarão forte Surfou para a liberdade. Alguns ainda perguntam Para que tanto trabalho? Se para conquistar a liberdade Bastava pular o muro. O cão, não sei se interessa, A todos poderia informar 80
  • 81. Que a liberdade tão fácil É caso de corrupção. Mas aquela alcançada com o esforço Com o sonho e a determinação É que redime O cidadão, ou um cão. Muitos preferem pular os muros, Outros cavar seus sonhos, Se encolher perante o destino, Passar mancando pela vida Sem se jogar na luz, Que pode ser a inteligência Ou a determinação. E para esclarecer o caso Deixo esta mensagem. Às vezes muito difícil, Tão difícil e improvável A porta se abre para a felicidade Numa frestinha de luz Para não terminar sem desfecho: O cão vai bem obrigado, Navegando sorridente, Na luz da felicidade. Que conquistou dia a dia Raspando a vida, Buscando a luz, Levando paulada E escolhendo entre Pular o muro Ou viver seus sonhos. 81
  • 82. GAIOLA VAZIA. Na parede externa de minha casa está pendurada uma gaiola vazia. A portinhola permanece aberta e posso vê-la daqui de minha cadeira enquanto escrevo. Na verdade à meses que ela permanece vazia. Está toda enfeitada com fitas coloridas e os arames estão cortados e virados para cima. Cortei-os para abrir novas entradas e saídas. Na verdade quando ela me foi trazida com a recomendação de que seria por poucos dias já portava as fitinhas, idéia de seu verdadeiro dono, que assim como trouxe, prometendo vir buscá-la tão logo voltasse de uma viagem. Esqueci de dizer que dentro havia um passarinho. Um canário amarelo de penas arrepiadas que cantava lindamente. Prometi cuidar, mas perdi o sono. No meio da primeira madrugada levantei para abrir a portinhola. A escolha seria dele. Olhou-me de lado com fazem os passarinhos e continuou no poleiro encolhido. Fui dormir mais leve. Pela manhã a gaiola estava vazia. Mesmo assim coloquei comida e água fresca como me fora recomendado. No meio do dia escuto o trinar do bichinho. Estava dentro da gaiola se refrescando com a água fresquinha. Assim nos dias que se seguiram eu servia sua refeição, ele aparecia durante o dia cantava para mim e ia embora. Às vezes pousava na minha janela. Certo dia trouxe companhia; uma fêmea muito da espevitada que logo no primeiro dia foi se adonando da gaiola. Refrescaram-se e foram embora. Voltaram muitos dias seguidos e eu com o compromisso de alimentá-los. Foi ai que cortei alguns arames para lhes dar mais espaço e liberdade. Quem sabe gostariam de trazer convidados? Sumiram novamente. Assim como o dono da gaiola, que voltou de viagem não tocou mais no assunto e eu naturalmente não fiz questão, eles também desapareceram. Há semanas que troco 82
  • 83. a água e coloco ração e eles não aparecem. Substituí umas fitas que estavam desbotadas e fiz uma cobertura com papelão pois o sol anda quente, estes dias. Acho que não virão mais, assim é a vida... Em tempo: Acabo de rever os meus amigos. Trouxeram uma novidade: um jovem canarinho amarelo talvez no seu primeiro vôo. Não foram até a gaiola, pousaram na minha janela, cantaram e piaram por alguns instantes, acho até que sorriram para mim. Logo foram embora, parece que para não mais voltar. Deixaram-me feliz, apesar deste aperto no peito. 83
  • 84. O GRAFITEIRO Novamente aqui, sentado esperando para desincumbir-me da tarefa de contar mais uma estória. Mais alguns minutos de angústia e curiosidade pelo que terei a dizer. Como será? Sobre o que será? Enfim esperemos, nem mesmo eu tenho idéia. Guerreiros também cansam e amam. Cansam mais do que amam. Principalmente os que lutam pela própria liberdade. Engraçado como leva tempo para que se perceba que aquela angústia que nos atormenta desde a infância não passa da certeza subconsciente de que somos escravos, presos a correntes e grilhões. Sem nos darmos conta desta realidade seguimos usufruindo o que nos é permitido, como concessão ao longo de nosso crescimento. Aí explode a adolescência. Esse sim, tempo do exercício da liberdade. Logo somos rotulados de adolescentes, algo assim como debiloides, que inconseqüentemente se desenquadram. Aqui desta cela que chamam de quarto com o olho grudado nas grades que me protegem pela piedade daqueles que me amam, penso o quanto eu sou inofensivo à integridade das pessoas. Odeio violência. Jamais morderia a orelha de ninguém. Queria apenas minhas calçadas de madrugada, as brigas das prostitutas e travestis disputando ponto. Os primeiros raios de sol, aquele ventinho levemente frio, a luz se mostrando arrogante, trazendo consigo a primeira buzina, depois as sirenes, o burburinho dos robôs depois os meninos futuros escravos “Tio me deixa cuidar...”. E assim seguiria a vida de liberdade e felicidade que muitos adoram. Meu colégio estaria sempre no mesmo lugar embora muitas vezes eu esquecesse 84
  • 85. em frequentá-lo. Meu quarto sempre limpinho e organizado com todos os CDs no devido lugar, meu pijama embaixo do travesseiro e um dinheirinho para o cinema ou mesmo um pico. Quem se importava? Todos, vovó o vovô, meu pai, aliás, meu pai tem bom gosto: que gata maravilhosa ele levou lá em casa quando mamãe viajou. (Pensou que eu havia ido acampar). Mamãe sempre preocupada comigo marca encontros saborosos na praça de alimentação do shopim da moda. Peço sempre um Mac qualquer e Coca Cola. Deixo para o fim de tarde a pedra e o conhaque. Sou um adolescente como meus amigos. Ta certo, eles não escrevem o que sentem. Não tem diário. Eu tenho esta mania de expor tudo o que penso ou sinto nas paredes lisas e virgens da minha e das outras casas. É um impulso irresistível. Escrevi na parede da sala de audiências quando iria ser ouvido pelo juiz no caso da separação de meus pais “Este juiz é bicha, o conheço da noite, é travesti, perguntem ao escrivão que é seu amante, adora ser chamado de Deise.” É verdade, mas parece que ali não era a casa da justiça e da verdade. E mais: Viva Che! Marijuana é liberdade! No muro do escritório onde minha mãe trabalhava escrevi: “Mamãe chorou quando o dentista terminou seu tratamento interminável e deu seu horário para minha irmã de 21 anos. A maninha agora anda de aparelho nos dentes e um carro conversível bem legal.” Papai é meu herói, ficou rico como diretor de licitações no governo. ¨¨ Dá-me tudo. Apenas parece que está com alguns cabelos brancos. Faz tempo que não o vejo mas ele paga muito caro pela minha internação, acha que saio desta para assumir o escritório de turismo, acha que lavar dinheiro dos outros é bom negócio. Deve ser, ele sempre tem razão. Minha cela, digo, meu quarto recebe a visita do guarda penitenciário, digo, enfermeiro, que me deseja bom dia. Tomo o café da manhã, ou seria desjejum? Junto me enviaram dois livros. Papai e mamãe estão preocupados com o meu 85
  • 86. intelecto. Um trata de auto-ajuda destes picaretas que não sabem viver sem o dinheiro dos idiotas que compram, seus livros de obviedades e exploração da fraqueza e ignorância humana injetando ânimo para a insignificância da vida das pessoas e dinheiro para suas próprias contas bancárias, e outro do Paulo Marmota, este de fardão na contra capa, é um assalto com estupro à mão armada. Rasguei folha por folha e com uma bisnaga de cola colei uma a uma em seqüência de modo a se tornar um rolo que coloquei ao lado do sanitário para usar sempre que preciso. Os papéis higiênicos, aliás dois rolos que possuo, uso para escrever poemas. Este texto é um deles. Pena que são muito finos se rasgam e muitas palavras se perdem, se misturam, embaralham o sentido das frases as tornando sem sentido. No fundo gosto disto pois me deixa mais intelectualizado, segundo o bibliotecário da minha casa de descanso. Ele não entende nada e quanto mais não entende, mais ele gosta. Na audiência de avaliação está sempre a me elogiar, a dar pareceres favoráveis a minha recuperação mas, sempre vota contra a minha alta. È um fã obcecado dos meus textos. Teme me perder. Outro dia se encostou chorando à minha porta desesperado e chorando pediu conselho de como se livrar da esposa que o chifrava despudoradamente e no entanto o sugava sexualmente todos os dias a ponto de não se sentir com força para trabalhar no outro dia.. Recomendei que ele convidasse o amante para a mesma noite. E assim juntos deixasse que o outro usufruísse enquanto ele dormiria. Achou uma boa idéia. Mas o que fazer com os outros dois que ela havia confessado desfrutar? Disse que convidasse a todos para a mesma e todas as noites. Resgatasse seus filhos e fosse morar na cela, digo, quarto ao lado do meu, pois com certeza sua mulher logo estaria saturada de tantos homens fogosos e imploraria para ele voltar para casa e dormir de verdade ao seu lado. Certamente ela rapidamente sentiria falta dos filhos chorando de febre, tosse, e birra de madrugada, de trocar fraldas e fazer 86
  • 87. sopinhas e mamadeiras. Ele concordou. Infelizmente, de tão contente foi contar o caso para o diretor do presídio, isto é, da casa de repouso. Agora, está na cela realmente, repousando como eu, só que na ala dos adolescentes, digo,dos perturbados. Acho que era o que tinha para o momento . O papel higiênico está acabando. Dois novos rolos somente na semana que vem. Guerreiros também cansam e amam Cansam mais do que amam. Especialmente aqueles que lutam pela sua própria liberdade. Adolescência é uma linha invisível. Todo o cuidado é pouco. Os monstros da Tv estão velhos e cansados. Nada surpreende as crianças. Tudo é velho Todo o cuidado é pouco Os riscos luminosos no céu não são de artifício Adolescência é uma tênue linha na razão de um menino ou menina. Acabou. PLIM. PLIM. 87
  • 88. INDULTO DE NATAL DE 1969 * Querido diário. Quantas vezes sonho em voltar para casa. Ver novamente meus amigos, parentes, minha cidade, o céu do meu país. Gostaria de andar livremente pelas ruas. Naquela rua clara e calma do meu bairro, na qual os meninos hoje rolam em seus skates, no meu tempo eram carrinhos de rolamentos, feitos por eles mesmos. As corridas emocionantes que sempre terminavam em joelhos esfolados, as peladas de fim de tarde, as broncas dos passantes, sujeitos à boladas ocasionais. São lembranças de pouco tempo atrás, sete ou oito anos apenas, mas para mim tão distantes, assim como a distância que me separa de minha terra. Foi no primeiro dia de abril. Nuvens negras envolveram minha rua e parece que estão lá até hoje. Numa noite, a pontapés, invadiram minha casa e sombras verdes levaram meu pai. Alguns anos eu e mamãe procuramos por ele. - Não está aqui. Aqui não deu entrada. - Foi transferido. - Nada consta em nossos arquivos. - Uma moça linda como você não terá dificuldade em conseguir informações, desde que queira de verdade... Certo dia papai apareceu numa lista de pessoas trocadas por um embaixador. Algum tempo depois viemos, eu e mamãe, ao encontro dele aqui. Poucos meses e a mesma nuvem verde desceu aqui. Eu em “atitude suspeita”, pois conversava com amigos na porta de 88
  • 89. uma fábrica, filha de exilado, não deveria ter amigos operários, nem portar jornais de minha terra que denunciavam atrocidades. Eu apenas sentia falta da minha rua, dos meus amigos, do céu do meu país. Voz de prisão. Confusão. Ameacei correr, me lembrei que neste assunto de segurança nacional os homens são violentos e eu não suporto dor. Tenho muito medo. Uma bala de carabina me queimou a garganta. O promotor acusou; pichação de muros; distribuição de panfletos esquerdistas; trotes telefônicos com finalidade de conturbar os órgãos de segurança; vigilância de bancos com objetivos escusos, subversão. Condenada, rolei de prisão em prisão. Na "menina linda "como eu, meus interrogadores deixaram suas marcas. Minha virgindade pertence a um grupo de animais e cassetetes de borracha. Não há maneira de descrever o que os defensores da lei praticam em nome de Deus, Família e Propriedade. Campos de extermínio não ficaram restritos à segunda guerra. Hoje foi assinado o indulto de Natal. Muitos ladrões e assassinos estarão nas ruas novamente. Fico pensando que talvez possa estar entre eles, voltar para a minha rua participar das peladas com os meninos. Não, atualmente não é possível, creio que nunca mais me livrarei deste colete que me aperta a coluna e desta tosse que mancha de sangue meu lenço. O carcereiro me disse que não estou na lista dos presidiários que serão indultados este ano. * Carolina morreu de tuberculose e infecção generalizada no dia em que completaria vinte e três anos. No exato momento em que o Brasil conquistava a copa do mundo de futebol e o povo todo cantava “Pra frente Brasil”. 89
  • 90. POR DETRÁS DA ILUSÃO. No quintal do vizinho havia muitas árvores frutíferas, as melhores peras e ameixas, da vermelha e da amarela, maçã, verde e vermelha azedinhas quando tenras e doces, como mel, quando maduras. No quintal do vizinho vivia um velho barbudo e capenga, apoiado no seu cajado, resguardava as frutas e o território. O quintal do vizinho tornou-se o objetivo da minha vida. Vivia no quintal do vizinho uma menina. Um pedacinho de sonho. Solitária. Sozinha percorria as alamedas, como uma margarida altaneira recém desabrochada para a vida. Andava desafiando o vento, encarando o sol, surda aos meus apelos juvenis. Indiferente colhia cravos e mosquitinhos. Agachada esquecia-se de cobrir as pernas e levantava o vestido em forma de concha para carregar as frutas colhidas. Calcinha branca avental quadriculado, cabelos loiros longos e um sorriso debochado. Construí um castelo de sonhos e lixo reciclado pregado ao pinheiro, escondido pelos meus medos e pés de mamona para observar minha paixão. Ela passeava fingindo indiferença. Eu me arranhava todo, agarrado aos galhos mais altos fingindo camuflagem. Ela fingia não me ver, eu fingia não saber. Certo dia o galho quebrou. Caí como jaca mole, de costas 90
  • 91. sobre um pé de milho. O mundo escureceu, faltou fôlego, desmaiei por instantes. Quando abri os olhos pensei estar no céu. A menina das bochechas rosadas, avental quadriculado, calcinha branca, me tinha ao colo, ares de preocupada e mãos afagando docemente meu rosto. Bendito acidente. Neste momento se deu o encontro da razão com o destino que nortearia toda a minha vida. Fusão de beleza e timidez, atitude e deslumbramento. Hoje no meu quartinho da casa de repouso encontrei uma fotografia antiga, da minha casa antiga, do pinheiro antigo e dos pés de milho no quintal. De pernas cruzadas, encostado ao tronco a criança que fui. Nota-se claramente o olhar curioso em direção ao terreno vizinho. Certamente buscava a menina do avental quadriculado. Embora as mãos tremam sem cessar posso visualizar o passado e assim a memória me enseja recordar tudo que passou desde aquele dia em que me vi acarinhado pelas mãos que para todo o resto da minha vida segurou a minha nos bons, maravilhosos e nos maus e tenebrosos anos que se seguiram. Os momentos de esquecimento são tenebrosos embora suaves, pois deles não tenho consciência. Quando recobro o conhecimento me sinto frustrado por não ter compartilhado este tempo da minha vida. Nestes fragmentos de tempo que acho estar em sintonia com a realidade procuro desenvolver a minha estória rapidamente, antes que tudo se perca na penumbra desta minha doença. Obs: Aos amigos do pai informo que ele faleceu segunda feira. Publico da maneira que deixou este relato. Um abraço agradecido a todos os seus leitores. Até sempre. 91
  • 92. PISE NO CUSPE SE FOR HOMEM -Pise no cuspe se for homem, Se pisar tá xingando. -Te quebro a cara Seu fio da puta. -È tua mãe. -Não ponha minha mãe no meio Que eu ponho no meio da tua. -Quatro olhos desgraçado. -Vem, vem se for homem. -Filhinho de papai, bichona. Cuide, se tua irmã sair sozinha eu faturo ela. -Não tem cacete p’ra isto. Você é brocha. -Te cuida piá. -Depois da aula de catecismo, pego ela. -Vou falar p’ro meu pai, vai te matar. -Ela já me mostrou a calcinha. E os peitinhos também. Disse que me gosta. -Se você não parar vou falar pr’a tua mãe -Não faça isso. -Então pare. Vamos jogar bola? -Vou de goleiro. -Ta bom. -Não se esqueça de beijar a maninha por mim. -Filho da puta. -Cunhadinho. -Um dia te arrebento -Quer sobrinhos órfãos? 92
  • 93. -Cachorro. -Me empresta seu tênis p’rá amanhã? -Só desta vez, lazarento. -Deixa disso, ta na hora da janta, já vou. Passa lá em casa depois. -Eu vou. -Tua irmã ta em casa? -Não me importo. -Ela não é meu tipo, guri. Tava só te enchendo o saco. -Ta bom. - Mas deixa eu te conta, Sonhei com tua mãe. Ela tava peladinha; Rebolando p´ra mim. -Seu filho da puta. Pise no cuspe se for homem. 93
  • 94. SONHO DE VALSA - Aceita dançar? - Como? Desculpe sou casada. Não sei... - Não sou ciumento. Permite? - Desculpe. Estou acompanhando minha filha. - Você está sozinha. Estou vendo. Tão linda. - Obrigada. Não sei. Acho que não. - Esta rosa é para você, por favor, aceite. - Por favor, senhor, eu aceito, mas meu marido ... - É um bolero... - Não, é uma valsa. - É. Na verdade entendo muito pouco de música. Gosto. Mas, a vida me levou por outros caminhos. Quer saber? Na verdade eu nunca dancei, nunca frequentei um baile, nunca tive em meus braços uma mulher. - Por favor.Não exagere.Olhe..Me deixe pensar. Daqui a pouco eu resolvo. Obrigada. - Pensou? - Está bem, uma só. - Acho que estou louco. Nunca em minha vida tive tamanho arrojo. Eu te agradeço por aceitar, mas me desculpe, não sei dançar. Você é minha música, meu ritmo, minha esperança de não decepcioná-la. - Acho que você dança bem. - Obrigado Simone. - Como sabe meu nome? - Não sei, mas acho que este nome frequentou a minha vida. Realmente também não sei. Acertei? Como pode? Escute, Simone é o nome que embalou todos os meus sonhos. Não sei porque, mas sempre soube que a minha felicidade estava ligada a este nome. - Estás brincando comigo.. Por favor, estamos muito 94
  • 95. juntos. As pessoas... - São dois pra cá, dois prá lá. Você é maravilhosa... - Obrigada... Minha filha está olhando... Não exagere. - Não resisto. - Por favor... Encoste os lábios ao meu pescoço. ... Fale mais. Não... Pare.. - Pense que meus lábios podem percorrer além de seu pescoço, minha língua está ansiosa para percorrer seu colo, e, mais além, circundar seu umbigo, descer em seu sexo e coxas, lamber seus pés , tirar seu fôlego e desmaiar de paixão. - A música... - Desculpe. Mas estou neste momento vivendo algo que nunca havia sentido. - Eu compreendo. Está bem. Você está me tirando do sério. Sou casada. - Desculpe. Acho que realmente passei do limite. Na verdade fiquei louco, ou, achei o amor da minha vida. - Você me tirou do sério. Não brinque comigo. Eu... paixão. Fale mais, seja sincero. - Embora você não acredite, estou sendo eu mesmo como nunca fui, jamais me senti assim. Será que é paixão? Estou sentindo suas coxas mais disponíveis, aos passos mais desejados, solte-se. Nada mais acontece neste salão, a não ser a música. Nós dois, e a volúpia que embala o ritmo de nossos corpos. - Tenha piedade, nem ao menos sei seu nome, Ta bem, estou completamente seduzida. Farei tudo que você quiser, mas, por favor, seja discreto, todos nos olham. Minha filha está nos observando, contenha-se - Ela está sorrindo... - É verdade. Está com certeza se divertindo a minha custa. Será que ela me compreenderá? Na verdade não quero mais pensar nisso, aperte-me, beije meu pescoço, me leve daqui. Ai, meu Deus. Adoro-te. De onde você apareceu? Meu 95
  • 96. amor. Querido... - Vamos para a minha casa? - Vamos Alcides. - Que surpresa! Como descobriu? - Acho que nasci para amar alguém com este nome. Acertei? - Na mosca. O inconsciente se manifestou nos fatos e na vontade, somos as metades que se juntaram pela força do amor. - A música acabou. Por favor, tire a mão do meu decote, podem reparar. - Sabe, minha vida começou aqui. Vamos embora. Venha comigo. - A menina, minha filha. Está bem, me entrego ao destino, vamos. - Se somos ou estamos loucos nos entreguemos a loucura. Ela que nos aguarde. Salve a loucura. Viva o prazer. - Também estou feliz. - Meu amor. - Minha paixão. - É aqui, querido? - É meu amor, aqui termina esta noite e começa o resto de nossas vidas. Onde estão as chaves? - Você deixou com nossa filha. Ela ficou com o carro; a chave, no chaveiro. - Puta que pariu. Deste jeito não há tezão que aguente Assim não dá. - Calma querido. Achamos outro jeito. Vamos para um motel? - Motel? Você quer ir para um motel? Ta maluca mulher? Vou levar a mãe da minha filha pra um motel em plena sexta feira. Ficar na fila com adolescentes gozando nossa cara? Vê se te enxerga, cansei dessa tal de fantasia sexual. Vá a merda, pois eu vou dormir na garage. 96
  • 97. O MENINO GENTIL Uns governam o mundo, outros são o mundo." B S Principalmente aos quatro anos de idade. -OI tudo bem? -Como é seu nome? -Eu vou bem, obrigado. -Muiiiiito obrigado. -Oi vovó querida, sua gostosona. -Oi vovô querido do meu coração. -Trouxe presente? Obrigado meu deus. -Com licença, posso passar? Obrigado. -Tem uma sobremesinha aí? Sorvete, leite condensado. -Vovó faz bolinho de arroz pra mim? -Faz um camarãozinho a milanesa, vovô? -Vou esperar aquela deliciosa mamãe chegar. -Oi moço, tudo bem? -Eu vou bem, obrigado. -Onde você mora? -Moro na minha casa. -Trouxe presente para mim? -Bom dia vovô ... -Está bravo vovô? Deixa eu dar um beijinho. -Vovó faz brigadeiro? -É muito bom, delicia... 97
  • 98. -Vovô, vou dormir aqui, -Você vai roncar muito? -Não estou muito bom, -Tem um sorvetinho aí? -Alô vovô, seu cara de pau, -Ta bom, queridinho do meu coração. “ Deuses, se são justos em sua injustiça, nos conservem os sonhos ainda quando sejam impossíveis, e nos dêem bons sonhos, ainda que sejam baixos." B S 98
  • 99. ISADORA Recordo de ti Como lembro um corredor De um túnel imenso Túnel que nos separava. Não na distância Nem no amor. Vejo-te correndo Em minha direção Com anseio de proteção. Com perninhas curtas e trôpegas Ensaiando as primeiras vontades Experimentando as primeiras escolhas. . É verdade não lhe restava outra opção. Acolhia-te nos braços e na memória Como uma benção Amoleceu meu coração E me fez compreender além de mim E tudo em você. Querida, por minha vontade Andarás pelas pedras que andei Pelas alegrias e tristezas as quais padeci Para delas tirar proveito Para que possa compreender o mundo Como o templo da sabedoria, não se aprende na escola Que só os dotados do conhecimento universal 99
  • 100. E daquele dom especial Que ninguém sabe de onde vem. Eximem-se das vaidades materiais. Destas que no fim das contas, Na solidão em que um dia todos se defrontam, Possas pensar que o amor, A boa vontade, a falta de rancor, te absolve. Assim terás a vida que nenhuma religião pregou, Que santo nenhum viveu Pois serás na verdade A representação da divindade, A vida. Com todos os seus trejeitos e vontades A expressão maior do ato de existir sem preconceitos Na paz por ter vivido plenamente. Combatendo como menina, mulher, mãe, avó. Isadora. 100
  • 101. ESTRELA DO MAR Eu era pequeno, Meu avô dizia: -“Te cuida piá”, Não saia p’ra longe. Tem bugre no mato, São botocudos, Comem criança, Podem te pegá. Hoje vovô já morreu, Bugre virou índio, Outros mendigos, Botocudo vende cocar. Expulsos p’ra tão longe Que podem ter caído no mar. Onde estão os donos da terra? Onde estão os guerreiros? Cadê os brasileiros? - Talvez, filhinho, Tenham virado conchinhas, Que o mar espalha na areia, Para as crianças brincarem. O grande cacique, É aquela pedra maior Que parece de seu povo cuidar. E a filha dele, quem sabe? Aquela estrela do mar. 101
  • 102. MEU PÉ DE PÊRA. Curitiba, julho de l955. Inverno. Frio de antigamente... Meu pai chega em casa com uma caixa enorme. - Meu filho é para você passar as férias. Abri com volúpia. Livros. Eu mal saído das primeiras letras recebo livros de presente. E logo uma coleção inteira de Monteiro Lobato. Antes desta somente “Tesouros da Juventude” adornava meu quarto. - É obra de um grande comunista! Lembrei: “Comunista come criancinhas”.Meu avô, integralista camuflado, sempre dizia isso para irritar meu pai. Muitos volumes. Na parte ’Os 12 Trabalhos de Hércules’ separei’ O Touro de Creta’ e parti para o quintal, rumo ao meu galho preferido na velha pereira, refúgio de todos os medos e de todos os sonhos do menino de oito anos que um dia fui. Foi ali, em cima da árvore, que tomei conhecimento da Mitologia Grega através das aventuras de Pedrinho, Narizinho, Emilia e Visconde de Sabugosa. Aprendi saboreando o sol e a solidão que a união, a amizade, a solidariedade, a inteligência, além da força física é que concretizavam as vitórias de Hércules perante os desafios de Euristeu e Juno, no Olimpo impondo- lhe impossíveis trabalhos. Quase sem parar devorei: O Minotauro, A Chave do Tamanho, O Saci, Reinações de Narizinho, e todos os outros. Naqueles livros assimilei muito do que de melhor contém minha personalidade, pois, os defeitos são de minha própria arquitetura. De alma lavada, sentindo-me tão herói quanto Hércules me recolhia ao fim da tarde para continuar vivendo as aventuras à noite embaixo aos cobertores. 102
  • 103. Sei que naquele inverno, naquela árvore, nos Doze Trabalhos de Hercules, enfim, nas obras de José Bento Monteiro Lobato aprendi a sonhar com um mundo mais justo, descobri a poesia, o sentido da vida, os valores do ser humano, a magia dos livros. Descobri também, entre uma página e outra, com a brisa fria lambendo meu rosto, o valor da liberdade. E também que comunista não comia criancinhas. 103