Este trabalho apresenta um projeto de arqueologia pública realizado com alunos de uma escola localizada próxima à Charqueada Santa Bárbara em Pelotas, Rio Grande do Sul. O projeto teve como objetivo ensinar sobre arqueologia e história local relacionada à escravidão por meio de atividades práticas como visitas ao sítio arqueológico e simulação de escavação. Também investigou as percepções dos alunos sobre o trabalho do arqueólogo e sobre a charqueada. Entrevistas com professoras analisaram o
1. UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS
INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS
BACHARELADO EM HISTÓRIA
Trabalho de Conclusão de Curso
BRINCANDO DE ARQUEOLOGIA EM PELOTAS:
História e Arqueologia Pública na Charqueada Santa Bárbara
(RS – Brasil)
Giullia Caldas dos Anjos
Pelotas, 2012
2. GIULLIA CALDAS DOS ANJOS
BRINCANDO DE ARQUEOLOGIA EM PELOTAS:
História e Arqueologia Pública na Charqueada Santa Bárbara
(RS – Brasil)
Trabalho de Conclusão de Curso
apresentado ao Instituto de Ciências
Humanas da Universidade Federal de
Pelotas, como requisito parcial à
obtenção do título de Bacharel em
História.
Orientador: Prof. Dr. Lúcio Menezes Ferreira
Pelotas, 2012
3. Agradecimentos
Em primeiro lugar, gostaria de agradecer ao meu orientador, Prof. Dr.
Lúcio Menezes Ferreira, que desde o início da graduação vem me
acompanhando e me convidou para participar do projeto O Pampa Negro, em
2010. Agradeço por confiar em mim na hora de mudar completamente meu
trabalho e acreditar neste projeto. Agradeço, também, por todas as
oportunidades proporcionadas desde o início da faculdade. Enfim, ao longo
desses quatro anos de convivência, com certeza mereces minha gratidão pela
presença, confiança e, também, é claro, pela amizade.
À FAPERGS (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio
Grande do Sul) que, através da concessão da bolsa de Iniciação Científica,
permitiu a realização desta pesquisa.
Agradeço, ainda, aos professores pesquisadores do LÂMINA, em
especial ao Prof. Pedro Sanches, Prof. Bruno Sanches, Prof. Jaime Mujica,
Prof. Diego Lemos Ribeiro e Prof. Cláudio Carne, os quais, de uma forma ou de
outra, colaboraram ao longo deste trabalho e lograram estabelecer um ótimo
ambiente de trabalho.
Aos colegas de equipe do LÂMINA, em especial à Marta, Estefânia,
Letícia, Luiza, Anelize, Lidorine, Eurico e Gil pelo apoio, motivação e
companheirismo nesses quase dois anos de convivência.
Agradeço à minha companheira de campo, Andressa Domanski, por
todas nossas discussões teórico-metodológicas que deram fruto a esse
trabalho. Tu bem sabes o quão importante fosses pra tudo isto aqui.
Agradeço às diretoras e à supervisora da Escola Estadual de Ensino
Fundamental Incompleto Sagrado Coração de Jesus por haverem me recebido
de braços abertos durante a realização do projeto. E agradeço, especialmente,
4. aos alunos das turmas 4ºA e 4ºB por serem tão interessados e carinhosos ao
longo de todas atividades.
Aos colegas da primeira turma de Bacharelado em História da UFPel,
pela amizade e parceria ao longo dessa nossa caminhada, pelos nossos
grupos de estudos que tanto nos salvaram frente às provas. Agradeço
especialmente aos colegas Rodrigo Dal Forno (“póvo") e ao Victor Gomes
(nariz) por terem sido grandes amigos ao longo dessa jornada.
Agradeço aos bons professores que tive, em especial à Prof.ª Elisabete
Leal que muito auxiliou para que este trabalho fosse realizado. À Prof.ª Ana
Klein por tentar me tranquilizar tantas vezes na reta final.
Agradeço ao professor – e amigo – Bruno Sanches, por vir discutindo e
reelaborando este projeto de forma a sempre buscar melhorar. Sou grata pelas
conversas, sugestões, enfim... Valeu!
Agradeço à minha família, por serem minha base. Agradeço
especialmente à prima Carol por uma vez ter me dito “não te preocupa, quando
menos esperares, a ideia surgirá e saberás exatamente com o que trabalhar”.
À minha tia Karen, por ser essa parceiraça até na faculdade e me ajudar
sempre.
A meus maninhos do coração e de tanto papo, Gisa e Mano, para quem
sempre busco dar o melhor exemplo. Amo vocês incondicionalmente!
À minha querida amiga Paula Mesquita (panqueca), por desde o início
vibrar comigo e torcer por mim.
Agradeço às minhas avós e professoras, vó Elisa e vó Lelene. À minha
querida amiga Marlene, obrigada por ser está avó fantástica e moderna.
Obrigada por me incentivar sempre! À minha pequeninha avó Elisa, obrigada
por cuidar sempre de mim, por me mimar com minhas comidas preferidas, e
me introduzir no mundo das letrinhas. Não tens nem ideia do quão valioso isso
foi pra mim. Vocês duas foram também as responsáveis por esse trabalho
estar aqui, minhas eternas professorinhas.
Agradeço ao meu namorado Paulo (“Pr”), por toda paciência com meu
delicado jeitinho de ser ao longo desses quase quatro anos. Só tu, com esta
paciência que sabe-se lá de onde vem, pra me dar tanto apoio, carinho, amor e
5. compreensão nos meus maiores momentos de tensão. Tu, com essa santa
paz, me fizestes aguentar o tranco por tantas vezes, e me fizestes te amar,
cada dia mais.
Por fim agradeço a quem me deu a vida, meus amados e “capanheiros”
pais. A meu papito, Flávio Sacco dos Anjos, por toda sabedoria, teimosia e
discussões intermináveis sobre meus trabalhos e projetos. Só tu sabes o quão
produtivas elas foram pra mim. À minha querida mamis, minha general e
guardiã, Nádia Velleda Caldas, pelo poder conciliador e paciência. És minha
guerreira e mulher de fibra, meu exemplo e meu apoio. A vocês dois, meus
queridos companheiros de tantas viagens, que nosso tripé nunca se abale.
Agradeço a vocês por me ajudarem a desenvolver cada frase, cada parágrafo e
mais que tudo, por vir desde sempre acompanhando meus singelos passos
com o maior apoio e aplauso.
6. Resumo
ANJOS, Giullia Caldas dos. BRINCANDO DE ARQUEOLOGIA EM
PELOTAS: História e Arqueologia Pública na Charqueada Santa Bárbara (RS
– Brasil). 2012. 94f. Trabalho de Conclusão (Bacharelado em História), Instituto
de Ciências Humanas, Universidade Federal de Pelotas.
O projeto “Brincando de Arqueologia em Pelotas” se insere no marco de uma
pesquisa mais ampla, intitulada “O Pampa Negro: Arqueologia da Escravidão
na região meridional do Rio Grande do Sul (1780-1888)”, coordenado pelo Prof.
Dr. Lúcio Menezes Ferreira. Nosso estudo corresponde a uma experiência de
Arqueologia pública levada a cabo entre os meses de outubro e novembro de
2011, com alunos e professores da Escola Estadual de Ensino Fundamental
Incompleto Sagrado Coração de Jesus, a qual foi escolhida justamente por
situar-se nas imediações da Charqueada Santa Bárbara, onde atualmente
concentram-se as escavações arqueológicas de O Pampa Negro. A
metodologia envolveu atividades realizadas em cinco encontros que incluíram
elaboração de desenhos, visita ao Sítio e simulação de uma escavação
arqueológica. Nessa intervenção, inspirada nas premissas da Arqueologia
pública, buscou-se entender como os alunos percebiam esse campo e no que
consistia o trabalho do arqueólogo, além de investigar seu entendimento sobre
a Charqueada em questão. Também foram realizadas entrevistas com as
professoras no intuito de analisar o que conheciam a respeito da história local e
sua relação com a escravidão e quais materiais utilizavam para trabalhar estes
temas em sala de aula. Os resultados a que chegamos apontam para a
importância da Arqueologia pública no sentido de estabelecer diálogos com as
comunidades implicadas. Dessa forma, buscando, a partir desta primeira
experiência, entender as representações que as comunidades e grupos sociais
têm acerca da Arqueologia, do patrimônio cultural e, particularmente, do
passado escravista pelotense.
Palavras-chave: História de Pelotas, Escravidão, Arqueologia Pública, Ações
Educativas
7. Abstract
ANJOS, Giullia Caldas dos. BRINCANDO DE ARQUEOLOGIA EM
PELOTAS: História e Arqueologia Pública na Charqueada Santa Bárbara (RS
– Brasil). 2012. 94f. Trabalho de Conclusão (Bacharelado em História), Instituto
de Ciências Humanas, Universidade Federal de Pelotas.
The project “Brincando de Arqueologia em Pelotas” has been articulated in the
framework of a broader research, so-called “O Pampa Negro: Arqueologia da
Escravidão na região meridional do Rio Grande do Sul (1780-1888)”. The
present study corresponds to a Public Archaeology experience undertaken
between October and November of 2011 with students and teachers of the
Escola Estadual de Ensino Fundamental Incompleto Sagrado Coração de
Jesus, which has been chosen precisely because is located nearby the
plantation of jerked beef called Santa Bárbara, where the archaeological
excavations of the O Pampa Negro project are concentrated now. The
methodology has involved activities conducted in five meetings that included the
elaboration of drawings, visit to the Site and the simulation of an archaeological
excavation. Is this intervention, inspired in the premises of Public Archeology,
we attempted to understand how students perceive this field and how they
represent the archaeological work and the plantation of jerked beef itself. Also,
interviews were conducted with the teachers in order to analyze what they knew
about the local history and its relation with the slavery and which materials they
used to work these issues in the classroom. The results that we reached point
to the importance of Public Archaeology in order to establish dialogues with the
communities involved. Thereby, we are seeking from this first experience,
understand the representations that communities and social groups have about
the archeology, cultural heritage and, particularly, of the slave past Pelotas.
Key-words: Pelotas’s history, Public Archaeology, Slavery, Educational
Activities
8. Lista de Abreviaturas e Siglas
APERS – Arquivo Público do Rio Grande do Sul
CNPq – Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico
CRM – Cultural Resource Management
E.E.E.F.I.S.C.J. – Escola Estadual de Ensino Fundamental Incompleto Sagrado
Coração de Jesus
FAPERGS – Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul
ICH – Instituto de Ciências Humanas
ICOMOS/ICAHM – International Council on Monuments and Sites/International
Scientific Committee on Archaeological Heritage Management
LÂMINA – Laboratório Multidisciplinar de Investigações Arqueológicas
PRONAPA – Programa Nacional de Pesquisas Arqueológicas
ROPA – Register of Professional Archaeologists
SAA – Society for American Archaeology
SOPA – Society of Professional Archaeologists
SPHAN – Serviço Histórico e Artístico Nacional
UFPel – Universidade Federal de Pelotas
9. Lista de figuras e Boxes
Figura 1 – Mapa ilustrativo da localização das Charqueadas ...................... 21
Figura 2 – Vista frontal da residência de Antônio José Gonçalves Chaves
pela margem direita do Arroio Pelotas ....................................... 25
Figura 3 – Naturalidade dos escravos traficados na Província de São
Pedro do Rio Grande do Sul....................................................... 29
Figura 4 – Divisão dos escravos por ocupação ............................................ 30
Figura 5 – Imagem da principal construção remanescente .......................... 47
Figura 6 – Localização da Sesmaria de Santa Bárbara (1817) .................... 48
Figura 7 – Estruturas da propriedade de José Vieira Vianna (1854) ............ 49
Figura 8 – Localização da E.E.E.F.I.S.C.J.................................................... 51
Figura 9 – Primeira visita da turma 4ºB da E.E.E.F.I.S.C.J. ao Sítio da
Charqueada Santa Bárbara, novembro de 2011 ........................ 54
Figura 10 –Primeira visita da turma 4ºA da E.E.E.F.I.S.C.J. ao Sítio
Charqueada Santa Bárbara, novembro de 2011 ........................ 55
Figura 11 –Simulação de escavação com a turma 4ºB da E E.E.E.F.I.S.C.J.,
novembro de 2011 ...................................................................... 55
Figura 12 –Simulação de escavação com a turma 4ºA da E.E.E.F.I.S.C.J.,
novembro de 2011 ...................................................................... 56
Figura 13 –Simulação de escavação com a turma 4ºB da E.E.E.F.I.S.C.J.,
novembro de 2011 ...................................................................... 56
Figura 14 –Desenho A desenvolvido no primeiro encontro .......................... 58
Figura 15 –Desenho B desenvolvido no primeiro encontro .......................... 58
Figura 16 –Distribuição dos desenhos do primeiro encontro quanto à
presença de cena de escavação ................................................ 59
10. Figura 17 –Frequência de elementos identificados nos desenhos do primeiro
encontro...................................................................................... 59
Figura 18 –Desenho C desenvolvido no quarto encontro ............................ 60
Figura 19 –Desenho D desenvolvido no quarto encontro ............................ 60
Figura 20 –Distribuição dos desenhos do quarto encontro quanto à cena
representada .............................................................................. 61
Box 1 – Legislação de preservação dos recursos culturais e naturais nos
Estados Unidos como suporte para a discussão de proteção do
patrimônio arqueológico ............................................................. 37
Box 2 – Alguns apontamentos relevantes sobre a relação entre Arqueologia
e a sociedade nos Códigos da SAA, SOPA e ROPA ................. 39
Box 3 – Planejamento metodológico do projeto Brincando de Arqueologia
em Pelotas.................................................................................. 66
11. Sumário
Introdução ................................................................................................... 11
1 As charqueadas pelotenses: historiografia e escravidão .................. 15
1.1 A origem do núcleo charqueador pelotense ........................................... 19
1.2 A charqueada como espaço de produção .............................................. 22
1.3 O escravo e a produção de charque ...................................................... 26
2 Arqueologia pública ................................................................................ 33
2.1 Surgimento do Campo ........................................................................... 34
2.2 Arqueologia pública no Brasil e perspectivas atuais .............................. 40
3 Projeto “Brincando de Arqueologia em Pelotas” ................................. 45
3.1 Estância e Charqueada Santa Bárbara .................................................. 46
3.2 Metodologia ............................................................................................ 40
3.3 Alcances, limitações e desafios de uma experiência em Arqueologia
pública .................................................................................................. 57
3.3.1 Análise dos desenhos produzidos ....................................................... 57
3.3.2 Alguns desafios e limitações ............................................................... 62
Considerações finais ................................................................................. 67
Referências ................................................................................................. 69
Apêndices ................................................................................................... 76
Anexos ........................................................................................................ 81
12. Introdução
O presente estudo articula-se a uma pesquisa mais ampla, intitulada “O
Pampa Negro: Arqueologia da escravidão na região meridional do Rio Grande
do Sul (1780-1888)”, coordenada pelo Prof. Dr. Lúcio Menezes Ferreira, desde
2009. Um dos principais objetivos do projeto é instituir uma linha de pesquisa
formal sobre a Arqueologia da escravidão na região meridional do Rio Grande
do Sul, especialmente em Pelotas, tendo em vista que esta cidade concentrou,
em alguns períodos do século XIX, a maior parte da população de escravos
africanos durante a expansão e desenvolvimento da indústria charqueadora 1.
Foi a partir do Projeto O Pampa Negro, desenvolvido pela equipe
Laboratório Multidisciplinar de Investigações Arqueológicas (LÂMINA), do
Instituto de Ciências Humanas (ICH) da Universidade Federal de Pelotas
(UFPel), que surgiu o interesse em realizar intervenções nos moldes da
Arqueologia pública. Partindo desse pressuposto, foram pensadas duas formas
de ação. A primeira compreende um trabalho com as comunidades do entorno
do Sítio arqueológico através de etnografia, enquanto que a segunda forma de
ação visa o trabalho com as escolas circundantes ao Sítio. O recorte de
realidade a que se refere o presente trabalho de conclusão de curso
compreende justamente essa segunda vertente nos moldes da Arqueologia
pública. É concretamente através de atividades desenvolvidas com estudantes
do 4º ano do Ensino Fundamental da Escola Estadual de Ensino Fundamental
1
Foi graças a este projeto que obtive a Bolsa de Iniciação Científica, financiada pela
FAPERGS (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul) durante o
período 2010/2011, o que me permitiu participar com mais fôlego na pesquisa e mais
diretamente no tema.
13. Incompleto Sagrado Coração de Jesus (E.E.E.F.I.S.C.J.), situada nas
proximidades2 da Charqueada Santa Bárbara, que lançaremos mão desse
enfoque.
Feitos estes esclarecimentos iniciais a respeito da pesquisa mais ampla,
onde se insere o presente projeto, é importante destacar quais os objetivos que
norteiam este trabalho de conclusão e de que forma ele foi realizado. Nesse
sentido, é mister afirmar que nosso projeto se baseia nas premissas da
Arqueologia pública. Sendo assim, o que se busca aqui é demonstrar que é
imprescindível ponderar que os arqueólogos têm a incumbência de não ficarem
restritos às suas instituições de trabalho. Segundo Renfrew & Bahn:
os arqueólogos têm o dever, tanto a seus colegas, como a seu
público em geral, de explicar o que fazem e por quê. Isto significa,
sobretudo, a publicação e difusão de seus conhecimentos de forma
que os outros investigadores disponham dos resultados e o público,
que geralmente pagou pelo trabalho, ainda que indiretamente, possa
3
desfrutá-los e compreendê-los (2007, p. 504) .
Diversas experiências de arqueólogos têm mostrado que o envolvimento
das comunidades é fundamental, sendo que “a razão última para nossa ação é
trabalhar para e com tais públicos” (FUNARI; OLIVEIRA; TAMANINI, 2008, p.
131). Com o objetivo de buscar a inserção das comunidades em nossa
pesquisa é que se estrutura esta monografia.
A análise do surgimento da Arqueologia pública nos remete à importância
da participação destas populações como agentes ativos ao longo dos
processos de investigação arqueológica. Todo esse trabalho visado pela
Arqueologia pública e comunitária busca permitir “o entendimento dos
sentimentos e interpretações das comunidades diante das pesquisas”
(FERREIRA, 2011, p.30), viabilizando sentimentos de pertencimento, tendo em
vista que o patrimônio cultural pode ser visto como uma gama de
representações e ligações entre o passado e o presente.
O que se pretende aqui é compreender quais eram as ideias dos alunos
a respeito de Arqueologia, História e Patrimônio Cultural anteriormente às
2
A Escola está sediada no que anteriormente fora uma casa de residência na Rua Anchieta nº
812, que foi adaptada para comportar a Escola, e dista 650m do prédio remanescente da
antiga Charqueada Santa Bárbara. Devemos salientar que, no geral, seus alunos são oriundos
de famílias de baixa renda.
3
Todas as traduções foram feitas pela autora.
12
14. atividades e o que se pode perceber ao final dos encontros. Neste momento,
as análises a respeito das percepções e representações dos alunos e alunas
sobre o passado escravista pelotense não puderam, por estarmos ainda no
início do trabalho, ser aprofundadas. Tal análise será realizada num segundo
momento, ao trabalhar com outras escolas, pois durante as atividades com os
alunos da E.E.E.F.I.S.C.J. a questão escravista não foi contemplada pelos
alunos. Percebemos que eles se fixaram mais sobre os temas que envolvem
representações diversas do patrimônio, conforme o concebem, além da
Arqueologia e o cotidiano do trabalho arqueológico. Visa-se, então, entender de
que forma se dá a representação de Arqueologia, quais são os elementos que
emergem nos trabalhos realizados com os alunos e a eficiência dessas
iniciativas.
Cabe aqui explicitar o modo através do qual desenvolveremos tal
imersão. Como objetivo geral, esta monografia pretende analisar as
percepções dos alunos do 4ª ano do Ensino Fundamental acerca de temas que
envolvem: o que é Arqueologia, o que faz um arqueólogo e o que consideram
patrimônio cultural. Para tanto, foi necessário partir de dois objetivos
específicos. Em primeiro lugar, analisou-se a historiografia regional e local
sobre a escravidão, principalmente no estado do Rio Grande do Sul e Pelotas,
além do processo de formação da referida cidade e da antiga Estância Santa
Bárbara. Em seguida, foi feita, também, uma revisão bibliográfica a respeito de
Arqueologia pública.
Com efeito, será necessário abordar, no primeiro capítulo desse trabalho
de conclusão, uma síntese historiográfica visando trazer elementos a respeito
da formação de Pelotas, retomando a historiografia sobre a escravidão na
cidade, assim tratando sobre o trabalho nas charqueadas e, principalmente,
traçando um histórico da charqueada em foco, antiga Estância Santa Bárbara.
Além disso, buscarei igualmente discutir a relação entre o que a historiografia
produz, ou seja, o que sai da academia e o que chega às escolas e de que
forma são absorvidos tais conhecimentos pelos alunos.
No segundo capítulo, trarei os conceitos deste estudo. Sendo assim,
buscarei analisar o surgimento do campo da Arqueologia pública, em meio a
13
15. qual cenário é concebido e quais são os interesses que o permeiam. Além
disso, aqui se buscará tratar sobre as formas pelas quais o campo de estudo
foi se desenvolvendo com o passar do tempo e quais são os instrumentos em
que ele tem se apoiado desde seu início até atualmente.
O terceiro capítulo reunirá os elementos empíricos deste trabalho. Sendo
assim, apresentarei o projeto de intervenção realizado com duas turmas de 4º
ano do Ensino Fundamental na E.E.E.F.I.S.C.J. Além disso, discutirei os
resultados obtidos com o projeto através de desenhos que foram realizados
pelos alunos, apresentando os elementos referentes a sua concepção de
Arqueologia e percepção do patrimônio cultural. Por fim, tecerei algumas
considerações finais a fim de discutir a eficácia deste tipo de projeto de
intervenção e o papel do pesquisador para com as comunidades.
14
16. 1 As charqueadas pelotenses: historiografia e escravidão
Falar da história e da formação social de Pelotas é falar de charqueadas,
de gado, de sal e, sobretudo, de escravidão. O que é recorrente em boa parte
da aproximação que se faça sobre esse tema. Todavia, desde que comecei a
tomar contato com este assunto, ainda nos tempos de ensino fundamental,
recordo-me de uma questão que me inquietava. Por que razão nossos livros
didáticos, ao falarem da escravidão no Brasil, pouco ou quase nada
mencionavam a respeito do modo como esse processo se desenvolveu no Sul
do Brasil?
Lembro das aulas de história e de como a questão da escravidão se
resumia a uma associação imediata com os grandes ciclos econômicos do
nordeste e sudeste (açúcar e café especialmente), mas raramente se fazia
alusão a outros vínculos igualmente importantes, como o caso do apogeu da
produção saladeril no Rio Grande do Sul. Que fatores conspiram para
conformar um quadro que permanece até hoje no ensino da história local?
Ainda criança lembro, também, de meus pais comentarem um outro fato que
me parece igualmente intrigante. Na Pelotas dos grandes casarões, da
aristocracia do charque4 e da opulência, vicejam imagens iconográficas dos
que construíram essa riqueza e a história política desta cidade, traduzidas em
estátuas como as do maragato, do colono, dos grandes personagens, mas,
paradoxalmente, a única referência ao negro se resume ao negrinho do
pastoreio referida na clássica obra de João Simões Lopes Neto (NETO, 1998).
Há, por certo, razões que contribuem para que essa realidade se apresente, as
4
Carne salgada em mantas produzida nas charqueadas – estabelecimentos associados com
estâncias destinadas à pecuária – onde se extraíam diversos produtos, dentre eles o charque,
sebos, couros secos, línguas, chifres, cascos, graxas, ossos queimados, etc.
17. quais, não obstante sua importância para compreender o quadro social de
Pelotas, ultrapassam, em muito, os limites desse trabalho.
Esta seção tem como ponto de partida esse aspecto, assim como outras
questões que pretendo desenvolver simultaneamente à tarefa de analisar a
produção historiográfica sobre escravidão no Rio Grande do Sul, e,
principalmente, em Pelotas. Os primeiros trabalhos historiográficos que
decidiram abordar o cotidiano da sociedade escravista são apontados por
Maestri (2006), sendo escritos no século XIX, especialmente por memorialistas
locais e viajantes5. Tradicionalmente, boa parte dos rio-grandenses aponta os
louros da história do Estado como sendo fruto do esforço do trabalhador livre
(especialmente luso-brasileiros e ítalo-germânicos) (MAESTRI, 2006, p. 222).
Isso se deve, principalmente, “à construção idealizada do passado rio-
grandense” (SANTOS, 1991, p. 131), através das primeiras obras
historiográficas que enalteciam a participação do homem-livre e se baseavam
em ideias cientificistas, positivistas, e de determinação da sociedade pelo meio
e pela raça (MAESTRI, 2006, p. 223). Fato este que se percebe, por exemplo,
em narrativa da viagem de Auguste de Sant-Hilaire em 1821, onde diz que “os
negros são naturalmente pouco ativos, quando livres só trabalham o suficiente
para não morrerem de fome” (apud MAESTRI, 2006, p. 227). Porém, até
mesmo o naturalista francês mudou um pouco de opinião, segundo Maestri
(2006), ao ver o “trabalho com rudeza” dos cativos que trabalhavam nas
charqueadas do Sul.
Nesse sentido, é interessante apontar a posição de Dreys quanto ao
trabalho na charqueada. Para este viajante francês, o trabalho mais exigente
não era “pesado”. Ali os negros seriam bem vestidos e alimentados – ou seja,
bem tratados –, sendo apenas obrigados a ter um bom comportamento e a um
serviço “usual”. Sendo assim, Dreys defendia a escravidão num intuito de livrar
o cativo de entregar-se “às misérias e aos vícios” (apud MAESTRI, 2006, p.
228). É claro que devemos ter em mente que estes relatos são marcados por
toda uma conjuntura. Porém, apesar de termos de ponderar todas essas
5
Destes trabalhos do século XIX, destacam-se: Anais da Província de São Pedro por José
Feliciano Fernandes Pinheiro, em 1819; Memórias ecônomo-políticas sobre a administração
pública do Brasil, por Antônio José Gonçalves Chaves, em 1822; Notícia descritiva da
Província do Rio Grande de São Pedro do Sul, por Nicolau Dreys, em 1839; além da obra do
naturalista francês Auguste de Saint-Hilaire, em sua Voyage à Rio Grande do Sul (Brésil), de
1821.
16
18. questões, devemos perceber o quão importantes foram essas obras e o quanto
contribuíram para podermos lançar mão de alguns aspectos importantes de
outrora que são abordados por estes escritores.
Maestri elenca autores6 que fazem parte do que ele chama de “A
Geração de 1880”, marcados pelo determinismo geográfico e racismo científico
e que assinalam nesse momento o surgimento de uma “narrativa orgânica”
sobre a formação social sulina (2006, p. 229). Já no início do século XX, são
importantes para compreender essa linha tradicional-conservadora, os
intelectuais Rubens de Barcellos e Jorge Salis Goulart, que, a partir de suas
obras Esboço da formação social do Rio Grande do Sul, de 1955, e A formação
do Rio Grande do Sul, de 1927, mantêm a posição tradicional a respeito da
sociedade rio-grandense, afirmando sua pureza étnica e origem latifundiário-
pastoril, com destaque à participação dos imigrantes na formação social do
Estado. É elucidativa essa posição no livro de Goulart, pois ele retoma “os
mitos da democracia e produção pastoril sem trabalho, aos quais agregou a
proposta do caráter benigno da escravidão do destino excelente do Sul devido
à ‘pureza étnica’” (MAESTRI, 2006, p. 235).
Um giro foi dado na produção historiográfica a respeito da escravidão no
Rio Grande do Sul a partir das décadas de 1960 e 1970. Nesse contexto,
merece destaque a tese de Fernando Henrique Cardoso, Capitalismo e
escravidão no Brasil Meridional: o negro na sociedade escravocrata do Rio
Grande do Sul, publicada em 1962. O autor buscou realizar uma crítica aos
trabalhos precedentes, assim como destacar a importância da escravidão no
Estado, criticando a “democracia pastoril” e a visão tradicional da “escravidão
benigna” (MAESTRI, 2006, p. 239). Porém, segundo Maestri, a mudança
substancial se deu a partir da década seguinte (1970). Nesse momento, além
da transformação na ótica da escravidão, este mesmo tema passa a crescer na
historiografia brasileira, embora alguns, no Rio Grande do Sul, ainda se
utilizassem da historiografia tradicional7.
6
São eles: Alcides Mendonça Lima (História Popular do Rio Grande do Sul, de 1882); Joaquim
Francisco de Assis Brasil (História da república rio-grandense, de 1882); e João Cezimbra
Jacques (Costumes do Rio Grande do Sul, de 1883).
7
Fazem parte desse conjunto, trabalhos como os de Cláudio Moreira Bento, O negro e
descendentes na sociedade do Rio Grande do Sul de 1976; Verônica Aparecida Monti, O
abolicionismo: sua hora decisiva no Rio Grande do Sul – 1884, de 1978; Margareth Bakos, Rio
Grande do Sul: escravismo e abolição, de 1982. Este último se filia à nova historiografia.
17
19. A partir desse entendimento, é necessário deixar claro que neste
trabalho serão analisados os estudos realizados a partir da nova abordagem a
respeito da escravidão. Esta nova ótica dá lugar à compreensão de que os
escravos, africanos ou afrodescendentes, exerceram relações socioculturais
com seus opressores e que este contato não se deu no âmbito da passividade
dos cativos, mas, sim, auxiliaram a compor a sociedade gaúcha. Se atentarmos
ao que vem sendo produzido na historiografia desde 1980, notaremos que são
recorrentes os trabalhos acadêmicos sobre o campesinato negro, família,
cultura escrava, espaços de autonomia econômica dos cativos, as relações
existentes entre senhores e escravos, diversos tipos de irmandades, laços de
parentesco, organização do trabalho, práticas religiosas, etc. Além disso, já
vêm sendo abordados há bastante tempo temas como políticas cotidianas,
revoltas, protestos e resistência dos escravos. Mais recentemente, alguns
estudos demonstram de que forma os escravos reagiam à lógica repressiva de
dominação senhorial e quais foram os seus efeitos na dinâmica social.
Nos últimos anos, têm surgido diversas pesquisas que abrangem temas
como sexualidade, demografia, trabalho urbano e rural, ocupação dos
escravos, etnias, laços familiares e cotidiano dos escravos do Rio Grande do
Sul8. Já a resistência escrava é tratada pela historiografia desde a década de
19709, incorporando as fugas, os quilombos, os esconderijos urbanos, etc. Em
Pelotas, tais temas também são recorrentes. Nota-se o considerável aumento
dos estudos referentes ao trabalho escravo nas charqueadas, destacando os
elementos políticos, sociais e econômicos da escravidão, além do trabalho
escravo não somente no espaço rural, mas nos complexos fabris e, também,
construção dos casarões da cidade10. Atualmente, as pesquisas a respeito da
escravidão vêm crescendo consideravelmente. Fato este que faz com que seja
tarefa árdua dar conta de toda historiografia e nos obriga a optar pelos estudos
mais relevantes ao nosso trabalho. Embora ainda sejam incipientes, a
relevância desses estudos é inquestionável. Principalmente, se tivermos em
8
Eis algumas obras: Almeida (2002); Araújo (2011); Barcellos et alli (2004); Berute (2006);
Pessi (2008; 2011); Reis & Silva (1989); Scheffer (2011); Vargas (2011); Weimer (1991).
9
Gorender (1980); Lima (1997); Maestri (1979a; 1979b; 1993); Moreira (2003a; 2003b); Reis
(1989); Santos (1991).
10
Aguiar (2009); Al-Alam (2007); Arriada (1997); Assumpção (1991; 1995); Caldeira (1992);
Dalla Vechia (1994a; 1994b; 1994c; 1997); Gutierrez (2001; 2004); Maestri (1984); Mello
(1994); Ognibeni (2005); Pessi (2008a; 2008b, 2009a; 2009b); Piccolo (1997); Recondo (1995);
Simão (2002).
18
20. mente o contexto local e a importância que o uso do braço negro teve para a
formação da cidade de Pelotas.
1.1 A origem do núcleo charqueador pelotense
A ocupação dessa coxilha não resultou como de praxe na época, de
empreendimentos militares ou de ocupação do solo pela colonização,
com objetivos de garantir a posse portuguesa do extremo sul do
Brasil, mas antes de uma íntima ligação com a atividade pastoril e,
mais particularmente, com o fabrico do charque. (DOS ANJOS, 2000,
p. 28)
É impossível pensar na escravidão no Rio Grande do Sul sem relacioná-
la com a expansão da cultura charqueadora, concentrada principalmente na
região meridional do Estado. O centro charqueador pelotense estava localizado
às margens da rede fluvial da região, composta principalmente pelos arroios
Pelotas e Santa Bárbara e o canal São Gonçalo. Embora a província tenha tido
uma ocupação tardia – pois aparentemente por determinado período não
possuía atrativos à política econômica colonialista (ASSUMPÇÃO, 1991, p.
118) –, desde o século XVI já era motivo de disputas entre as Coroas Ibéricas,
sobretudo no que diz respeito à demarcação das fronteiras. É um marco nesse
contexto o Tratado de Madrid11 (1750), onde Portugal e Espanha acordam que:
Portugal cedia para sempre à coroa da Espanha a Colônia do
Sacramento e o seu território adjacente, na margem setentrional do
rio da Prata, e as praças, portos e estabelecimentos que se
compreendessem na mesma margem. A navegação do rio da Prata
ficaria também pertencendo, privativamente, à Espanha. Pelo artigo
XIV, a Espanha cedia a Portugal tudo o que por parte dela se achava
ocupado, desde o monte de Castilhos Grande até as cabeceiras do
rio Ibicuí, compreendidas todas e quaisquer povoações situadas entre
a margem setentrional do rio Ibicuí e a oriental do rio Uruguai.
Esse artigo XIV declara, pois, que passaria ao domínio português
todo o território das Missões Orientais do Uruguai, fundadas pelos
jesuítas, [...] a forma de entrega foi feito no artigo XVI, [...] sairão os
missionários com todos os móveis e efeitos, levando consigo os
índios para os aldear em outras terras da Espanha [...]. (CESAR apud
GUTIERREZ, 2001, p. 41)
A região passou a despertar grande interesse a partir da segunda
metade do século XVIII, devido, principalmente, a seus aspectos geopolíticos e
econômicos. Foi neste contexto, e principalmente após a assinatura do Tratado
11
Além do Tratado de 1750, o Tratado de Santo Ildefonso (1777) é essencial para
compreender a estabilidade dos conflitos entre lusitanos e espanhóis, tendo em vista que
acertava a situação pendente da Colônia do Sacramento, que passaria então, a fazer parte da
Coroa espanhola (GUTIERREZ, 2004, p. 41).
19
21. de Santo Ildefonso (1777), que se iniciam as doações de sesmarias na região,
fator que estimulou a exploração da atividade pecuarista. A região na qual se
insere a atual cidade de Pelotas compreendia na época sete propriedades
(Feitoria, Pelotas, Monte Bonito, Santa Bárbara, São Tomé, Santana e Pavão)
(GUTIERREZ, 2001, p. 54) (Fig. 1).
Como se pode perceber, o que ocorreu nesta região foi a ocupação de
vastas extensões de terras através de poucos proprietários (os estancieiros)
com objetivo de criar rebanhos bovinos. Dessa forma, é necessário
compreender o destaque que recebe a atividade pecuarista nestas e em outras
propriedades (ARRIADA, 1994). Segundo Arriada, é a estância que vai marcar
um dos aspectos fundamentais na economia do Estado (1994, p. 32). Estas
estâncias (de porte médio a grande) possuíam diversas instalações, como
“casa de charque, senzala, atafona12, cozinha, forno para pão, galpão, diversos
pátios, poços, pomar, jardim e uma cortina arbórea, circundados pelas
mangueiras e potreiros” (ARRIADA, 1994, p. 39).
Originalmente o charquear era algo com um caráter muito mais artesanal
do que um empreendimento industrial13. O charque era um produto de
autoconsumo, destinado a satisfazer as necessidades proteicas dos habitantes
das estâncias. Como veremos a continuação, o “ciclo do charque” representa
um verdadeiro divisor de águas no processo que culminou no surgimento do
núcleo urbano pelotense. Segundo aponta Maestri, a articulação e
desenvolvimento gerado na região a partir da produção de charque se deve,
também, a fatores climáticos ocorridos no nordeste. Até as duas últimas
décadas do século XVIII (momento em que ocorrem diversas secas que levam
à estiagem e emagrecimento do gado nordestino) os salgadeiros cearenses
eram apontados como importantes fornecedores de carne-seca, tanto para o
mercado nacional como internacional. A partir dessa conjuntura, decai a
produção no nordeste, abrindo uma brecha para a entrada das carnes gaúchas
no mercado. Dessa forma, a transição que marca a passagem de um produto
artesanal para um artigo elaborado em larga escala, para a venda em
mercados tanto locais e regionais quanto longínquos, incluindo até mesmo o
12
Moinho manual ou movido por força animal.
13
Aqui, utilizamos o termo “industrial” com o objetivo de enfatizar a transformação dos
estabelecimentos saladeris em empresas voltadas para a comercialização em larga escala.
20
22. exterior, coincide com as grandes transformações que se assiste desde o final
do século XVIII e início do século XIX nesta região (e também no nordeste), até
então dominada pela produção de grandes rebanhos bovinos. Mas há um outro
aspecto que deve ser destacado. É justamente nesse contexto que a figura de
Pinto Martins se torna emblemática.
Figura 1 – Mapa ilustrativo da localização das Charqueadas. Fonte: Elaborado pela autora a
partir de Gutierrez (2001).
Segundo diversos autores (GUTIERREZ, 2001; OGNIBENI, 2005;
MAESTRI, 1984), foi por volta de 1780 que o comerciante português José Pinto
21
23. Martins, que vivia no Ceará e dedicava-se ao fabrico de carne seca (e, ao que
parece, vinha fugindo das constantes secas do final da década de 1770),
instala-se às margens do arroio Pelotas, na sesmaria do Monte Bonito. O
consenso em torno à figura de José Pinto Martins enquanto inaugurador da
atividade saladeril e o surgimento do que viria a ser Pelotas é objeto de
controvérsia. A meu ver, dessa controvérsia derivam três posições bastante
claras.
A primeira delas assume como premissa que efetivamente foi Pinto
Martins que cria o estabelecimento do gênero em 1780, como também se torna
responsável pela fundação de Pelotas. Em certa medida essa posição é
manifestada por João Simões Lopes Neto na “Revista do 1º Centenário de
Pelotas”, de 1911, a que consagrou essa assertiva a respeito de José Pinto
Martins. A segunda delas, preconizada por Monquelat & Marcolla (2010)
considera que foi justamente essa obra (de 1911) a responsável por apresentar
sem questionamentos o suposto pioneirismo de Pinto Martins. Estes autores
reforçam sua posição com base no fato de que nessa região já era produzido o
charque antes mesmo da vinda do comerciante português. Coincido com a
terceira posição, correspondente à obra de Maestri (1984) e Ognibeni (2005),
que parte do entendimento de que a importância da figura de Pinto Martins não
está no fato de inaugurar essa atividade, mas por convertê-la num
empreendimento em larga escala comercial. Segundo Maestri, “foi ele talvez o
responsável pela introdução da técnica de charquear como ato industrial no
Sul” (1984, p. 56, itálico no original), estruturando, desta forma, um sólido polo
escravista no Brasil meridional.
1.2 A charqueada como espaço de produção
Este rincão no qual está situado Pelotas oferecia outrora as condições
necessárias para que se instalassem as charqueadas. Canais e arroios
recortavam estas terras, fato que as tornavam favoráveis à produção de
charque e outros produtos. Essa rede fluvial navegável permitia que em pouco
tempo se chegasse facilmente ao porto de Rio Grande para encaminhar o
charque para exportação.
22
24. A produção do charque dependia diretamente das condições climáticas.
Dessa forma, era necessária a organização dos trabalhos conforme as
estações do ano, pois no momento de secagem nos varais o clima deveria ser
seco e quente para garantir a secagem. Sendo assim, o abate do gado ocorria
entre os meses novembro e maio (ARRIADA, 1994; GUTIERREZ, 2001;
MAESTRI, 1984; MARQUES, 1990; PESSI, 2008a; OGNIBENI, 2005)
As charqueadas passaram por diversas fases ao longo dos séculos XVIII
e XIX. Desde as charqueadas mais antigas, até as mais modernas, ocorreram
diversas transformações tanto tecnológicas quanto funcionais. Com o passar
do tempo e com o aperfeiçoamento dos trabalhos nas charqueadas o que se
logrou atingir foi justamente o quase total aproveitamento dos animais.
O modo artesanal realizado desde os primórdios na região consistia no
abate a céu aberto e preparo da carne em galpões rústicos, quinchados14 de
palhas. Os mesmos que abatiam os animais deveriam carneá-los, preparar as
carnes, salgar, preparar os couros, etc. (MAESTRI, 1994, p. 56). Maestri
aponta que provavelmente não existiam instalações específicas (1994, p. 56).
Nesse momento, com exceção do couro e da carne, quase nada era
aproveitado. Como se pode perceber, esses primeiros “galpões” para a
charquia eram extremamente simples e rústicos (ARRIADA, 1994, p. 55;
MAESTRI, 1984, p. 56).
Ao longo do tempo, o espaço produtivo das charqueadas passa a sofrer
transformações estruturais. A partir de certo momento, principalmente início do
século XIX, o trabalho na charqueada passa a ser subdividido e especializado,
assim surgindo os diversos ofícios inseridos na produção charqueadora.
Segundo Marques, as dependências básicas de uma charqueada eram
compostas de um curral de encerra, seguido de brete de matança, cancha de
retalhamento, local de preparo e da salga das mantas, além de varais para
secagem, depósitos, graxeiras e das barracas onde os couros eram tratados
(MARQUES, 1990, p. 49).
Boa parte da bibliografia (MARQUES, 1990; MAESTRI, 1984;
GUTIERREZ, 2001) se baseia nos relatos de viajantes (como Dreys e Couty)
para explicitar o modo através do qual funcionavam as charqueadas e quais
14
Cobertura de palha típica das construções; termo empregado por Maestri (1994).
23
25. eram as etapas da produção do charque. Sendo assim, para não tornar
extensa a explicação a respeito do passo-a-passo, farei uma síntese de tais
processos.
A começar pela tablada, os charqueadores examinavam e negociavam
os animais. Então, ao cabo das transações seguia-se para as mangueiras das
charqueadas. Somente no outro dia se daria início aos trabalhos de fato. Os
animais então eram conduzidos para o brete, que possuía piso de tijolos ou de
madeira, propositalmente inclinado de forma a desestabilizar o animal e facilitar
o abate. A partir de então, toma posição o “laçador” que, sobre uma plataforma
de madeira, laçava o animal, estando este laço ligado a uma roldana que
levaria o animal até o final do brete. Aqui então, na zorra, o “matador” ou
“desnucador” abatia o animal com um estilete de ferro na nuca (MAESTRI,
1984, p. 66-67; MARQUES, 1990, p. 49; GUTIERREZ, 2001, p. 187). Depois
de abatido era transferido para a cancha.
Segundo Maestri, a cancha era o “coração da charqueada”, pois era nela
que a maior e mais importante parte do procedimento ocorria (1984, p. 67). Na
cancha o animal tinha, primeiramente, seu couro retirado pelo charqueador;
logo seria sangrado. A partir de então, seus membros seriam retirados e
juntamente com as mantas de carne seriam levados a um galpão próximo. Já
os ossos, cabeça, vísceras, e demais restos seriam utilizados na produção de
cinzas, sebos e graxas. O início da produção do charque em si se dá a partir do
charquear, que consiste justamente em cortar as carnes em pedaços de
espessura uniforme (em torno de 1,5cm), e realizar a laniage15, que permitirá
que as mantas absorvam o sal profundamente (MAESTRI, 1984, p. 67).
Após realizarem-se estes procedimentos, dá-se início ao processo de
salga. Em mesas específicas, as mantas de carne são cobertas de sal e
levadas para as pilhas sob a proteção de galpões. A carne permaneceria
empilhada em média dois dias para então ser estendida. Ao ser retirada,
passariam pela salmoura para que saíssem as mais grossas partículas do sal.
Feito isso, a carne era disposta em varais, onde as carnes permaneceriam
entre 5 e 6 dias com tempo favorável, quando então estariam secas. Assim,
15
“Incisões profundas e paralelas, de 5 a 15cm” (MAESTRI, 1984, p. 67).
24
26. aguardariam apenas o embarque próximo, estando já o charque pronto
(MAESTRI, 1984, p. 68).
Figura 2 – Vista frontal da residência de Antônio José Gonçalves Chaves (atual Charqueada
São João) pela margem direita do Arroio Pelotas (foto). Autor desconhecido, s/d. Fonte:
http://proprata.com/colonizadores-europeus.
Foi somente essa produção em larga escala visando a exportação que
levou ao aperfeiçoamento da técnica de preparo e do sistema charqueador. A
partir desse momento, a produção foi organizada de forma nunca vista antes16.
Assim, passou a existir um aproveitamento quase que completo do animal;
comercializou-se assim, não somente o couro e o charque, mas sebo, graxa,
ossos queimados, chifres, pelos, etc. Nicolau Dreys noticia em seu relato
aspectos referentes ao aproveitamento do animal:
Os ossos, a cabeça e as extremidades são metidas numa caldeira
fervendo, para servirem, com os miolos e o tutano, à preparação da
graxa que se encerra depois na bexiga e nos grossos intestinos para
ser entregue ao comércio.
O peritônio, o epiploon e outras partes cebáceas são socadas para
comporem uns pães de cebo grosseiros que se vendem neste
estado.
16
A respeito da organização do processo produtivo das charqueadas existem dois relatos
extremamente interessantes, que são os de Nicolau Dreys (1839) e Louis Couty (1880).
25
27. O couro estaca-se no chão para secar, dando-se-lhe o competente
declívio para deixar correr as águas; do modo de o estacar, dobrar e
conservar depende seu preço no mercado (DREYS apud ARRIADA,
1994, p. 55 – conforme original).
De qualquer forma, Marques (1990) aponta que as principais
modificações entre as charqueadas antigas e as modernas relacionaram-se
com o aproveitamento integral dos subprodutos da produção, e, principalmente,
com o aperfeiçoamento e divisão dos ofícios.
1.3 O escravo e a produção de charque
Huma charqueada bem administrada
é um estabelecimento penitenciário
(DREYS apud MARQUES, 1990, p. 39).
O ciclo de mudanças que convergiu na transição para os grandes
estabelecimentos saladeris gerou um acúmulo significativo de capitais que foi
responsável por criar as condições necessárias para que ocorresse um rápido
processo de urbanização (ARRIADA, 1994, p. 47). Anteriormente, como aponta
Maestri, a agricultura gaúcha e as charqueadas primitivas não proporcionavam
as bases para a emergência de uma plantação de natureza escravista. Nesse
sentido, “a baixa rentabilidade permitia aos agricultores mais felizes comprar,
com muita economia, um ou mais escravos, mas era só” (MAESTRI, 1984, p.
49). Foi, então, a “nova” charqueada, a responsável pela estruturação desta
sociedade escravagista dominada pela aristocracia do charque (ARRIADA, p.
47; MAESTRI, 1984, p. 54). A partir dessas transformações é que se
apresentou um grave problema relacionado com a força de trabalho requerida
para o fabrico do charque, em que pese a incessante expansão do comércio e
a necessidade de dispor de meios para adquiri-los.
O trabalho nas charqueadas era extremamente duro, exigindo um ritmo
acelerado ligado a condições deletérias. Dessa forma, “não constituía atrativo
para os homens brancos, nem mesmo para aqueles que não possuíam terras e
eram sumamente pobres” (MARQUES, 1990, p. 103). Sendo assim, não havia
outra opção a não ser recorrer ao trabalho escravo. Segundo Maestri, “durante
mais de 100 anos, esta atividade apoiou-se sobre as costas e suor anônimo do
trabalhador negro escravizado” (1993, p. 39). É possível perceber que o
26
28. escravo foi, durante todo o período de produção exponencial da charqueada, o
motor que movia as engrenagens desta imponente máquina de charquia, pois
até o final da escravidão em Pelotas (1884), foi o negro escravizado que,
trabalhando na charqueada, sustentou a economia da região.
O escravo, por muito tempo, foi visto como um bem de consumo. O que
se pretendia não era a longa vida do cativo, mas explorar dele todo o trabalho
possível e substituí-lo por outro. Como afirma Maestri (1993, p. 41), “[...] sob o
incentivo do ‘bacalhau’ dos feitores – no Sul chamados de capatazes – e de
pequenos goles de aguardente, o negro literalmente desfalecia de cansaço e
de sono em seu posto de trabalho”. As charqueadas possuíam de 30 até 150
cativos, tendo, em média, de 60 a 90 escravos (GUTIERREZ, 2001, p. 91;
MARQUES, 1990, p. 107; OGNIBENI, 2005, p. 73; PESSI, 2008a, p. 29). Estes
números variavam conforme o poder aquisitivo do charqueador e tamanho do
estabelecimento.
Era justamente a intensa exploração do cativo nas charqueadas que
tornava a aquisição de novos escravos algo inevitável. E é nesse contexto que
o tráfico transatlântico se torna viável e estável (BERUTE, 2006; PESSI,
2008a). Segundo o censo de 181417, podemos perceber que os grandes
números coincidem. Nele, aparece que de um total de 2.419 habitantes em
Pelotas, cerca de 51% são escravos (1.226). É similar ao percentual que se vê
em 1833, quando a população escrava atinge 52% (5.169) de um universo de
9.860 indivíduos.
Ao analisar a historiografia sobre a participação de escravos nas
charqueadas pelotenses, perceberemos que se destacam estudos sobre
demografia, num intuito de compreender principalmente valores proporcionais
da população (sexo, idade, origem, relação de africanos, crioulos e ladinos,
etc.)18. A questão da origem dos escravos é apresentada como um problema à
boa parte da historiografia gaúcha, principalmente devido à forma pela qual se
deu o tráfico transatlântico. A África é um continente de extensas proporções
17
Dados retirados da publicação de 1981 da Fundação de Economia e Estatística, intitulada
“De Província de São Pedro a Estado do Rio Grande do Sul (censos do RS: 1803-1950)”.
18
Dentre esses estudos, saliento o de Gabriel Berute, “Dos escravos que partem para os
portos do Sul: características do tráfico negreiro do Rio Grande de São Pedro do Sul, c. 1790 -
c. 1825”, de 2006; Bruno Pessi, “O impacto do fim do tráfico na escravaria das charqueadas
pelotenses (C. 1846 – C. 1874)”, de 2008; Thiago Araújo, “Novos dados sobre a escravidão na
Província de São Pedro”, de 2011.
27
29. composto por grupos culturalmente diversificados. Com o comércio de
escravos o que ocorreu foi uma reconfiguração no próprio sistema dessas
populações multiculturais, acarretando uma perda de identidade19. É claro que
existem diversos registros nos quais constam diferentes etnias. Porém, boa
parte da historiografia faz uma ressalva: não se deve confiar completamente
em tais registros (MAESTRI, 1984, 1993; BERUTE, 2006). Isso se deve ao fato
de que nem sempre o registro representa a origem do escravo, mas pode fazer
menção ao local (porto) onde foi embarcado. São frequentes apontamentos
referentes a etnias que foram registradas dentre os escravos no Rio Grande do
Sul, tais como: Angola, Ambaca, Benguela, Cassanje, Congo, Cabundá,
Ganguela, Gege, Mangombe, Messambe, Mina, Moçambique Monjolo,
Mongolo, Mohumbe, Nagô, Quissamba, Rebolo, Songo, etc. (MAESTRI, 1984,
p. 100-104; BERUTE, 2006; ASSUMPÇÃO, 1991; FAUSTINO, 1991).
Em sua dissertação de mestrado, Gabriel Berute (2006) faz uma análise
das características do tráfico negreiro pra o Rio Grande de São Pedro do Sul.
Utilizando-se das guias de transporte de escravos e os códices da Polícia da
Corte do Rio de Janeiro, traz dados referentes à sazonalidade do comércio
escravo, além de elementos demográficos e referências às origens e portos de
embarque (Fig. 3). Dos 3.294 cativos traficados entre os anos 1788-1802,
apenas de 3% não se logrou obter informação sobre procedência. Ele aponta
que, dos escravos traficados entre os períodos 1788-1802 e 1809-1824 que
possuíam origem informada, o número de africanos cresceu significativamente.
Enquanto entre os anos de 1788 e 1802 o percentual de africanos gira em
torno de 88% (2.845) contra 12% (376) de crioulos, durante o segundo período
abordado (1809-1824) o número de africanos é ainda maior, passando a
constar 95% (6.648), havendo apenas 5% (336) de crioulos registrados.
19
Aqui nos referimos à perda de identidade acarretada pela mudança de nome e ruptura com
seu lugar de origem em que pese que todos eram vistos meramente como escravos, sem levar
em consideração sua etnia, seus sistemas de crenças, sua origem, entre outros aspectos
através dos quais se conforma a própria identidade. Ao desembarcar no Brasil, a maior parte
dos africanos era reconhecido como “de Nação” ou “africano” (MAESTRI, 1984, 1993;
ASSUMPÇÃO, 1991).
28
30. Naturalidade dos escravos traficados
6648
7000
6000
5000
2845
4000
3000
2000 376 336
73
1000
0
1788-1802 1809-1824
Africanos Crioulos Sem informação
Figura 3 – Naturalidade dos escravos traficados na Província de São Pedro do
Rio Grande do Sul. Fonte: Elaborado pela autora a partir de Berute (2006, p. 51).
No que diz respeito à faixa etária e sexo dos escravos, é apresentado
pela historiografia a preferência dada aos cativos do sexo masculino em idade
produtiva (GUTIERREZ, 2001; PESSI, 2008a; BERUTE, 2006, MAESTRI,
1984; ASSUMPÇÃO, 1991). Sendo assim, a faixa etária dos cativos varia
conforme o tipo de serviço que estes desempenham. Por exemplo, nas
ocupações domésticas a preferência é dada a mulheres, crianças e idosos.
Nos estudos realizados, a preponderância masculina ultrapassa os 70%,
justamente pela necessidade de força física no preparo do charque, tendo em
vista o quão pesado era este serviço.
Dos cativos que trabalhavam na charqueada, mais da metade são
apontados como sendo especializados numa determinada atividade
(GUTIERREZ, 2001, p. 91). Pessi, em sua monografia, analisando os
inventários post-morten de Pelotas, separa os variados ofícios em três grupos
(Fig. 4), quais sejam os serviços de charqueada, serviços do campo e lavoura
e, por fim, os serviços domésticos (2008a, p. 53). Dentre os principais ofícios
que envolviam o ato de charquear, destacam-se os carneadores,
desnucadores, salgadores, graxeiros, sebeiros, chimangos, charqueadores,
aprendizes e tripeiros (GUTIERREZ, 2006, p. 253). Além desses, também
constam os serviços de marinheiros e carroceiros, pedreiros, carpinteiros,
campeiros (PESSI, 2008a, p. 53-54). Já aqueles que se dedicavam ao trabalho
29
31. no campo e na lavoura, destacam-se os campeiros e roceiros. Dos serviços
domésticos, aparecem com frequência os cozinheiros(as), lavadeiros(as),
costureiros(as), mucama, ama-de-leite, “de todo serviço”, etc. (PESSI, 2008a,
p. 54).
Divisão dos escravos por ocupação
20%
22% 58%
Serviços de charqueada Serviços de campo e lavoura Serviços domésticos
Figura 4 – Divisão dos escravos por ocupação. Fonte: Elaborado pela autora
partir de Pessi (2008a, p.54).
Tendo em mente que Pelotas, como outras regiões charqueadoras,
possuía grandes concentrações de escravos, o medo da insurreição era
incessante. Sendo assim, as sociedades escravocratas que aqui se
constituíram foram extremamente rígidas garantindo a disciplina através do
completo controle da vida do escravo (MARQUES, 1990, p. 105; MAESTRI,
1984, p. 76). Embora boa parte da bibliografia afirme que a elite escravocrata
tenha obtido meios de limitar a liberdade dos cativos, seja através da disciplina,
vigilância ou até mesmo de punição, os escravos também lograram formas de
resistir, tanto através de fugas ou aquilombamentos, como a partir de ações de
criminalidade ou violência (MAESTRI, 1984, 1993; SIMÃO, 2002). Além disso,
são apontados também as formas de resistência: assassinatos, suicídios,
furtos, agressões, transgressões das normas, etc.
Boa parte da historiografia aponta o Rio Grande do Sul como um lugar
diferenciado no que diz respeito às fugas. Aqui, o sonho do escravo estaria na
30
32. transposição da fronteira, na ida ao Uruguai, onde seria livre20. Como apontam
Reis & Silva, “o grande obstáculo às fugas era a própria sociedade escravista,
sua forma de ser e de estar, sua percepção da realidade, seus valores [...]”
(1989, p. 66). Outro ponto a ser destacado faz menção ao que os autores Reis
e Silva apontam como “quebra do paradigma ideológico”, demonstrando a
mudança da tendência às “fugas para fora”, para lugares de difícil acesso,
passando a ocorrer com mais frequência as “fugas para dentro”, quando as
fugas se voltam para o interior da própria sociedade escravista, principalmente
ao final do período escravocrata, já por volta de 1870 (1989, p. 71-72; MELLO,
1994). Mello (1994) aponta que as fugas eram mais frequentes nos meses de
novembro a maio nas charqueadas. Época esta que coincide justamente com o
período da safra do charque (MELLO, 1994, p. 118). O autor justifica tal
informação apontando que o trabalho na charqueada era para o escravo o que
havia de mais aviltante (MELLO, 1994, p. 119).
Tais fatos atestam que a relação escravista não se deu de forma calma
e pacífica. Nesta concepção, a qual Al-Allam critica, só haveria lugar para a
resistência quase que exclusivamente por meio da violência. Caso contrário o
cativo seria destruído pelo senhor, tornando-se “aculturado” (AL-ALLAM, 2007,
p. 42). Porém, alguns autores (MELLO, 1994; REIS & SILVA, 1989) alertam
para outra questão, referente às práticas cotidianas de resistência dos
escravos que nem sempre eram percebidas por seus senhores. Dessa forma,
busca-se afirmar que a resistência poderia se dar de tal maneira que permitisse
certa flexibilidade ao escravo, como afirma Al-Allam (2007, p. 45), ao dizer:
A população negra escravizada construiu alternativas de vida,
conquistando pequenos espaços de autonomia econômica, social e
cultural, e suas ações – individuais ou coletivas – transformaram as
próprias relações de dominação a que estavam submetidos.
Outra forma de resistência elencada é a que diz respeito às
manifestações culturais e religiosas, utilizadas para expressar-se em meio à
opressão daquela sociedade escravocrata. A partir da espiritualidade e das
apropriações de símbolos religiosos, os escravos logravam a manutenção de
sua identidade cultural, o que não quer dizer que abrissem mão de suas
20
No Uruguai a escravidão foi abolida em 1842 através da Ley Nº 242 (Fonte: Presidencia:
República Oriental Del Uruguay. Disponível em:
http://archivo.presidencia.gub.uy/_Web/ddhh/LEY242.htm).
31
33. próprias concepções. Diversos autores apontam essa prática como sinal de
resistência à concepção escravista (AL-ALLAM, 2007; DALLA VECHIA, 1994;
MELLO, 1994).
Não devemos esquecer, também, que o cativo que tinha seu trabalho
explorado no preparo do charque não labutava somente na charqueada.
Diversos autores apontam que estes trabalhadores escravizados eram
rearranjados no período entressafra, seja em olarias ou em diversos ofícios
urbanos, isto é, os senhores realocavam seus escravos ou até mesmo os
alugavam durante a entressafra da produção do charque justamente para que
não obtivessem prejuízo (AL-ALLAM, 2007; ASSUMPÇÃO, 1991; GUTIERREZ,
2001; MAESTRI, 1984,1993; OGNIBENI, 2005; PESSI, 2008a). Sendo assim,
estes escravos conviviam em diferentes meios, com diversas pessoas das
camadas populares, sejam escravos, trabalhadores pobres livres ou ex-
escravos (AL-ALLAM, 2007, p. 48). Segundo o historiador Flávio Gomes,
embora não analisando especificamente o contexto gaúcho, os escravos não
estavam isolados dessa sociedade, mas viviam inseridos em todo esse
complexo (2003, p. 112). Sendo assim, o que existia era uma rede de
solidariedade.
O esboço aqui resumidamente apresentado sobre a escravidão no Rio
Grande do Sul, Pelotas, e, especialmente nas charqueadas do final do século
XVIII e século XIX, intensificam a concepção de que os escravos não foram
meros bens de consumo utilizados por seus senhores para a produção
charqueadora. Mais do que isso, foram importantes atores que, embora
submetidos a essa opressora conjuntura escravista, lograram afirmar-se
culturalmente, tanto a partir de manifestações violentas, quanto através das
práticas cotidianas (nem sempre aparentes) de resistência e das apropriações
simbólicas. Assim, os escravos africanos e afrodescendentes adaptaram-se à
conjuntura na qual estavam subjugados, e, a partir de apropriações e diversas
transformações de suas raízes africanas, lograram criar novas identidades
culturalmente diversas.
Passemos, agora, à discussão sobre Arqueologia pública, disciplina que
nos proporcionará investigar, no capítulo 3, as representações que os alunos
da E. E. E. F. I. S. C. J. têm sobre arqueologia e o cotidiano do trabalho
arqueológico.
32
34. 2 Arqueologia pública
Elaborado a partir de uma nova visão sobre os papéis da ciência
arqueológica, o conceito de Arqueologia pública nos remete a uma
redundância, sendo esta intencional (CARVALHO e FUNARI, 2007). Aline
Carvalho e Pedro Paulo Funari destacam que, para boa parte dos defensores
da Arqueologia pública, “toda Arqueologia, independente de seu recorte
temático ou escolhas teórico-metodológicas, deveria ser, em essência, pública”
(CARVALHO e FUNARI, 2007, p. 133). Ao atentar para o conceito da
Arqueologia pública, vemos que é relativamente recente no que diz respeito ao
campo arqueológico. É a partir dos efeitos de determinadas circunstâncias no
âmbito das sociedades e das ciências, nas últimas décadas, que surgiu esse
campo, sendo fruto de toda uma conjuntura: as grandes transformações
ocorridas em meados do século XX, quando emergiam socialmente grupos que
até então permaneciam subalternizados, tidos como “minorias”.
Nesse sentido, os movimentos empreendidos tanto pelos direitos civis
quanto pela emancipação feminina auxiliaram a fomentar essas ideias de
transformações em diversos setores e grupos da sociedade, como é o caso
das lutas pela liberdade política, social, religiosa, liberdade de opção sexual,
etc. Sendo assim, independente dos consensos (ou dos não consensos), é
importante perceber a Arqueologia pública como uma prática social engajada
que busca, primordialmente, a construção de diálogos a respeito de conceitos
(e campos) como o da própria Arqueologia, História, Patrimônio, Memória e
Identidades com as mais diversas comunidades.
O primeiro aspecto importante a ser elencado diz respeito a qual público
se refere o termo. Em seu livro Public Archaeology, Nick Merriman aponta que
a noção de “público” leva a dois possíveis significados mais específicos do que
um mero “corpo coletivo de cidadãos”:
35. O primeiro é a associação da palavra ‘público’ com o Estado e suas
instituições (organismos públicos, edifícios públicos, escritórios
públicos, interesse público) que emerge na era de intensa formação
de Estados no começo do Período Moderno em diante. [...] O
segundo é o conceito de público como um grupo de indivíduos que
debatem questões e consomem produtos da cultura material, e cuja
reação informa sobre ‘opinião pública’ (MERRIMAN, 2004, p. 1-2,
destaque no original).
Além disso, Merriman também atesta que tais afirmações a respeito da
suposição de que o Estado age em prol do interesse público, na verdade não
quer dizer que o público, incluindo as minorias, seja representado com
eficiência:
A suposição do Estado de que age pelo bem do interesse público
significa que interesses minoritários talvez não sejam representados
com eficiência e uma abordagem exagerada pode significar uma
perda do contato com os desejos do público diverso (MERRIMAN,
2004, p. 2).
Dessa forma, a Arqueologia pública deve assegurar que o Estado leve
em conta as opiniões do público, sendo realizada de forma a prestar contas ao
público sobre suas ações (MERRIMAN, 2004). Segundo Soltys (2010, p. 52),
“as políticas públicas acabam por deixar de fora as chamadas minorias, e
acaba apenas por refletir os interesses da elite que controla o Estado”. O
campo da Arqueologia pública é, assim, de fato significativo pois pretende
estudar os processos e desenvolvimentos por meio dos quais a própria
disciplina transforma-se em parte de uma cultura pública, onde a contestação e
a dissonância são inevitáveis (MERRIMAN, 2004). Nesse sentido, “Arqueologia
pública é inevitavelmente uma questão de negociação e conflito pelo
significado” (MERRIMAN, 2004, p. 5).
A seguir, veremos alguns aspectos relevantes a respeito do surgimento
do conceito, nos Estados Unidos e no Brasil. Buscaremos, conjuntamente,
elucidar as circunstâncias em meio as quais esse campo surge e quais são
suas premissas.
2.1 Surgimento do campo
Pelo menos desde os anos 1970, arqueólogos passaram a se questionar
sobre qual seriam as funções sociais da Arqueologia e, mais do que isso, de
34
36. que forma deveriam se estabelecer as relações entre os arqueólogos, suas
investigações e a sociedade em geral. O termo “Arqueologia Pública” foi
utilizado pela primeira vez por Charles McGimsey III, como título de seu livro,
nos Estados Unidos (“Public Archaeology” de 1972). Nesta obra, o autor
discute questões referentes à destruição de sítios arqueológicos por dois
motivos. O primeiro estaria relacionado ao rápido crescimento devido à
acelerada urbanização e industrialização ocorrida nos Estados Unidos durante
as décadas de 1960 e 1970. O segundo estaria vinculado ao problema gerado
pelo vandalismo nos sítios arqueológicos, além da participação de amadores
nas escavações (MERRIMAN, 2004; JAMESON, 2004; FERNANDES, 2007;
CARNEIRO, 2009).
Nesse sentido, nas palavras de Fernandes (2007, p. 6):
as preocupações sobre a administração pública estavam atreladas
principalmente ao reconhecimento do papel social da pesquisa
científica, que para além de gerar curiosidade, possibilitasse
‘reconstruir’ aspectos significantes da história da ocupação humana
em território americano em benefício público.
No que diz respeito às relações entre Arqueologia e Sociedade, a autora
acima citada chama atenção para o fato de que ambas são caracterizadas por
possuir interesses que ora convergem, ora divergem, visto que a sociedade é
formada não por uma massa amalgamada, mas um conjunto de indivíduos que
podem ser reunidos em inúmeros segmentos. Sendo assim, “a partir desta
compreensão, a disciplina dialoga não com a Sociedade como um todo, mas
com diferentes públicos” (FERNANDES, 2007, p. 7). Complementa-o
McManamon (1991, p. 121):
Os dirigentes da Arqueologia americana perceberam que uma melhor
compreensão pública sobre Arqueologia levará a uma preservação
maior de sítios e dados, a menos pilhagens de sítios e vandalismo,
maior apoio para a curadoria de coleções e registros arqueológicos, e
uma demanda ainda maior interpretações arqueológicas e
participação do público.
O termo foi associado ao desenvolvimento da legislação referente ao
Gerenciamento dos Recursos Culturais (Cultural Resource Management -
CRM)21. McGimsey acreditava que os arqueólogos deveriam rever tanto o seu
21
Ver Box 1.
35
37. papel profissional, como o próprio papel social da produção científica em
Arqueologia (MERRIMAN, 2004; JAMESON, 2004; FERNANDES, 2007;
CARNEIRO, 2009). Merriman aponta que o tamanho dos Estados Unidos e seu
vasto potencial arqueológico levaram à percepção de que o público não-
profissional deveria ser cooptado no serviço arqueológico se os sítios haveriam
de ser protegidos ou investigados responsavelmente (MERRIMAN, 2004).
Segundo Fowler (1982, p. 18), as bases da CRM foram estabelecidas conforme
a compreensão dos recursos culturais como “recipientes” de informação. A
partir desse entendimento, o principal objetivo da CRM é determinar os
significados completos que não só podem, como devem, ser extraídos dos
dados retirados dos recursos. Trata-se, então, de como a pesquisa será
conduzida no controle dos recursos. Segundo Merriman (2004, p. 3):
A CRM foi, portanto, Arqueologia ‘pública’ pois contou com o apoio
público, a fim de convencer os legisladores e empreendedores que os
sítios arqueológicos precisavam de proteção ou atenuação de riscos,
e muitas vezes se baseou em não-profissionais para fazer o trabalho.
Convergindo com esse entendimento, Jameson (2004, p. 22) atesta que
a Arqueologia pública pode ser entendida como um campo do conhecimento
que abrange “as consequências de conformidade da CRM, bem como de
educação em Arqueologia e interpretação do público nas arenas públicas,
como escolas, parques e museus”. Nessa mesma linha de raciocínio, é
interessante a opinião dos autores Renfrew & Bahn (2007), os quais referem-se
à CRM como passível de ser considerada Arqueologia pública, pois faz uso do
financiamento público para empreender as pesquisas arqueológicas, sendo
entendida pelos autores como gestão pública do patrimônio arqueológico que
busca adequar-se aos interesses da disciplina e das coletividades.
Como podemos perceber, o surgimento do campo da Arqueologia
pública está intimamente conectado com a profissionalização da Arqueologia e
com a inserção da responsabilidade profissional. Fernandes (2007) afirma que
a partir da segunda metade dos anos 1970 e início de 1980, com a grande
demanda de arqueólogos no contexto da CRM, questionou-se sobre a atuação
dos profissionais sem uma formação adequada. Sendo assim, outra questão
pública é colocada na ordem do dia, qual seja a ética profissional, que também
36
38. é discutida por McGimsey (Public Archaeology, de 1972) (FERNANDES, 2007,
p. 15).
Box 1 – Legislação de preservação dos recursos culturais e naturais nos Estados Unidos como
22
suporte para a discussão de proteção do patrimônio arqueológico .
Fazem parte desses dispositivos algumas leis e decretos como:
Lei de Antiguidades (Antiquities Act), de 1906, que marcou o reconhecimento nacional da importância
dos recursos arqueológicos, autorizou o presidente a reservar e estabelecer por ordem do executivo ou
decreto nacional, os monumentos contendo sítios e estruturas que possuíssem valor histórico ou científico
em terras públicas, além de requerer permissões para examinar ou escavar ruínas históricas ou pré-
históricas, limitou a emissão de licenças a instituições científicas reconhecidas e proibiu a destruição de
qualquer objeto de antiguidade, além de adotar penalidades para as violações.
Lei Orgânica do Serviço de Parques Nacionais (National Park Service Organic Act), de 1916, que
fundou o Serviço de Parques Nacionais (National Park Service), era encarregado de proteger
preciosidades naturais e culturais da nação.
Lei de Sítios Históricos (Historic Sites Act), de 1935, que estabeleceu uma política nacional de
preservação para o uso público de sítios históricos e arqueológicos, edificações históricas e objetos de
importância nacional e inspiração para o benefício do povo dos Estados Unidos. Esta lei também
autorizou a criação do conselho consultivo National System Advisory Board, para assessorar o
Departamento do Interior nos assuntos relativos ao National Park System e na administração da política
nacional. Este conselho, na opinião de Jameson (2004), foi importante para a Arqueologia pública, pois o
Departamento do Interior autorizou o desenvolvimento de programas educacionais e pesquisas que
buscavam avaliar informações públicas pertinentes à significância de sítios arqueológicos, tanto históricos
quanto pré-históricos. Esta lei aumentou a causa pela preservação histórica e provocou interesse público,
privado e profissional na Arqueologia americana. Assim, tornaram-se acessíveis ao público o conjunto de
sítios históricos, monumentos, parques nacionais e estaduais, etc.
Lei de Preservação Histórica Nacional (National Historic Preservation Act– NHPA), de 1966, que
estabeleceu a Política Nacional de Meio Ambiente (National Environmental Policy Act), em 1969. Esta lei
(NHPA) foi reformada em 1976 e 1980.
Decreto-Lei 11593 – Protection of the Cultural Environment (Proteção do Ambiente Cultural), de
1971.
Lei de Preservação Histórica e Arqueológica (Archaeological and Historic Preservation Act), de
1974.
Este conjunto de leis e decretos mencionados acima transformaram o papel da pesquisa arqueológica e
da preservação, fazendo com que a maneira como a Arqueologia era conduzida nos Estados Unidos
fosse modificada de forma significativa.
No debate subsequente, a Sociedade de Arqueologia Americana
(Society for American Archaeology – SAA), criada em 1934, assume um papel
de destaque pois, sendo a principal organização profissional dos Estados
Unidos, fica a cargo de elaborar uma série de dispositivos referentes ao código
de ética e estatuto profissional. Porém, algo que merece atenção é a questão
da criação da SAA. Possuindo esta uma perspectiva acadêmico-científica,
provocou uma discussão a respeito da validade do registro emitido por esta
22
Realizado a partir de JAMESON (2004), MERRIMAN (2004), RENFREW & BAHN (2007),
FERNANDES (2007) e CARNEIRO (2009).
37
39. Instituição, fato que levou à posterior fundação da Sociedade de Arqueólogos
Profissionais (Society of Professional Archaeologists – SOPA). São realizados
então alguns códigos e normas relevantes23 (FERNANDES, 2007; CARNEIRO,
2009).
O primeiro é o Código de Princípios Éticos da SAA (de 1996) e o
segundo é o Código de Conduta Profissional e as Normas de Desempenho de
Pesquisa do Registro de Arqueólogos Profissionais – ROPA, de 1997. Estes
códigos tinham como objetivo definir as responsabilidades dos arqueólogos
com o público, clientes, empregadores, etc. (JAMESON, 2004; MERRIMAN,
2004; FERNANDES 2007; CARNEIRO, 2009). Segundo apresentado no Box 2,
podemos perceber que uma questão pública que aparece diz respeito à
responsabilidade com a transmissão do conhecimento, cujo aspecto consta em
diversos pontos apresentados.
Por fim, há um aspecto que para os objetivos desse trabalho merece ser
destacado, qual seja a responsabilidade com a transmissão do conhecimento
produzido a partir das interpretações do registro arqueológico e as
apropriações dessas interpretações por parte das comunidades. É nesse
sentido que se torna essencial a elaboração de processos pedagógicos que
criem um espaço para reflexão crítica. Somente dessa forma, permite-se que
os estudantes não somente compreendam o material e os processos sociais
que geram e reproduzem a sua própria subjetividade; mais que isso, possibilita-
se o questionamento e até mesmo a transformação desses processos
(HAMILAKIS, 2004). Segundo Hamilakis (2004, p. 288):
Pedagogia em Arqueologia, ou em qualquer outro campo, não é
simplesmente a transferência passiva do conhecimento produzido
nem a formação de estudantes em certas competências e
habilidades, como o atual discurso dominante nos quer fazer
acreditar.
23
Sobre o Código de Princípios Éticos (SAA), Código de Conduta Profissional (ROPA) e as
Normas de Desempenho de Pesquisa do Registro de Arqueólogos Profissionais (ROPA), ver
Box 2.
38
40. Box 2 – Alguns apontamentos relevantes sobre a relação entre Arqueologia e a
24
sociedade nos Códigos da SAA, SOPA e ROPA
Código de Princípios Éticos – SAA (1996)
Princípio nº02: Responsabilidade social
Pesquisas arqueológicas responsáveis, incluindo todos os níveis de atividade profissional, requererem
um conhecimento da responsabilidade pública e um comprometimento em fazer todo esforço razoável,
em boa-fé, para trocar opiniões ativamente com o(s) grupo(s) afetado(s), com o objetivo de estabelecer
uma relação ativa que possa ser benéfica a todas as partes envolvidas.
Princípio nº04: Educação pública e divulgação
Arqueólogos deveriam divulgar, e participar em esforços de cooperação com outros interessados no
registro arqueológico, com o objetivo de tornar maior a preservação, proteção, e intepretação do
registro. Em particular, arqueólogos deveriam comprometer-se com: 1) obter apoio popular para a
gestão do registro arqueológico; 2) explicar e promover o uso de métodos arqueológicos e técnicas no
entendimento do comportamento humano e cultura; e 3) comunicar interpretações arqueológicas do
passado. Muitos públicos existem ara a Arqueologia, incluindo alunos e professores; nativos americanos
e outras etnias, grupos culturais e religiosos que encontram no registro arqueológico importante aspecto
de sua herança cultural; legisladores e oficiais do governo, repórteres, jornalistas, e outros envolvidos
na mídia; e outros envolvidos na mídia; e o público em geral. Os arqueólogos que são incapazes de
comprometer-se com educação pública e divulgação direta, deveria encorajar e apoiar os esforços de
outros nessas atividades.
Princípio nº06: Reportagem pública e publicação
Dentro de um período razoável, o conhecimento obtido por arqueólogos através da investigação do
registro arqueológico, deve ser apresentado de forma acessível (através de publicação ou outras
maneiras) a uma grande massa de interessados quando houver uma publicação e distribuição de
informações sobre sua natureza e localização.
Código de Conduta Profissional – ROPA (1997)
I. A responsabilidade do arqueólogo para com a sociedade:
I.1 Um arqueólogo deve:
Reconhecer uma sociedade que o represente e publicar resultados de pesquisa para o público de
maneira responsável;
Apoiar ativamente a conservação da base de recursos arqueológicos;
Ser sensível e respeitar as preocupações legítimas de grupos, cuja história cultural é objeto de
investigação arqueológica;
Evitar e desencorajar declarações exageradas, enganosas ou injustificadas sobre questões
arqueológicas que induzam outros a envolver-se em atividades ilegais e antiéticas;
Apoiar e cumprir os termos da Convenção da UNESCO sobre os meios de proibição e prevenção a
importação, exportação e transferência de qualquer propriedade cultural, como adotado pela
Conferência Geral de 14 de novembro de 1970.
Normas de Desempenho de Pesquisa do Registro de Arqueólogos Profissionais –
ROPA (1997)
VI. O arqueólogo tem responsabilidade pela disseminação apropriada dos resultados
de sua pesquisa e distribuidores apropriados com boletim razoável:
6.1 Resultados revistos como contribuições significantes a conhecimentos substantivos do passado ou
progressos em teoria, métodos ou técnicas devem ser disseminados a colegas e a outras pessoas
interessados por meio apropriados, tais como: publicações, apresentações em encontros profissionais,
ou cartas a colegas;
6.2 Pedidos de colegas qualificados para informações de resultados de pesquisa devem ser
prontamente atendidos, se é consistente com os direitos prioritários do pesquisador para publicação e
com suas outras responsabilidades profissionais;
6.3 Falhas em completar um relatório profissional dentro de 10 anos, após o término do projeto de
campo, devem ser interpretados como renúncia dos direitos de primazia do arqueólogo com respeito à
análise e publicações de dados. Após a expiração de tal período ou de um período de tempo menos de
tempo, o arqueólogo deve determinar a divulgação ou não publicação de tais resultados, mas o dado
deve estar plenamente acessível a outros arqueólogos para análise e publicação;
6.4 Ainda que obrigações contratuais devam ser respeitadas, arqueólogos não devem entrar em um
novo contrato que proíba o arqueólogo de incluir suas próprias interpretações ou conclusões nos
relatórios, ou de um direito contínuo para usar o dado após o término do projeto;
6.5 Arqueólogos têm obrigação em consentir com pedidos razoáveis para interpretações de jornais
midiáticos.
24
Aqui optamos por compilar os trechos mais relevantes à nossa pesquisa. Este Box foi
elaborado com base em FERNANDES (2007, p. 18, 20 e 22) e CARNEIRO (2009, p. 94, 95,
96).
39
41. Nesse sentido, cabe fazer uma última ponderação, qual seja a de que a
“pedagogia é, em parte, uma tecnologia de poder, linguagem e prática que
produz e legitima formas de regulação moral e política que construa e ofereça
aos seres humanos visões particulares de si e do mundo” (GIROUX apud
HAMILAKIS, 2004, p. 288).
Essa aproximação serviu para expor o surgimento da Arqueologia
pública tendo o caso norte-americano como expressão última desse processo.
A próxima seção é dedicada ao estudo da trajetória desse campo do
conhecimento na realidade brasileira.
2.2 Arqueologia pública no Brasil e perspectivas atuais
Para tomar conhecimento das questões públicas da Arqueologia no
Brasil e das tentativas de defesa do patrimônio arqueológico brasileiro,
voltamos ao período entre 1920 até 1960, quando então diversos intelectuais
estavam envolvidos em debates preservacionistas em contraposição ao
discurso de progresso e industrialização (FERNANDES, 2007). Nesse sentido,
a fundação da instituição de patrimônio cultural brasileiro, Serviço Histórico e
Artístico Nacional (SPHAN), em 1937, com o objetivo de promover, preservar e
tornar público o patrimônio, demonstra as preocupações em torno da
divulgação, popularização e preservação do patrimônio arqueológico
(CARNEIRO, 2009).
Sendo assim, cabe elencar o Decreto-Lei 25/3725 publicado pelo então
presidente do Brasil, Getúlio Vargas, já durante o seu período ditatorial. Este
Decreto-Lei visa organizar a proteção do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional. Foi justamente devido a este instrumento que todo um código penal
foi emitido na década de 1940, o qual, pela primeira vez, visava a punição para
a destruição de bens culturais. No Decreto-Lei 25/37, o patrimônio histórico é
tido como:
[...] o conjunto de bens móveis e imóveis existentes no país e cuja
conservação seja de interesse público, quer por sua vinculação a
fatos memoráveis da história do Brasil, quer por seu excepcional valor
arqueológico ou etnográfico, bibliográfico ou artístico (BRASIL, 1937).
25
Ver a propósito Anexo B (BRASIL, 1937).
40
42. Em 1952, foi criada a Comissão de Pré-história por Paulo Duarte, que
militou pela proteção do patrimônio arqueológico. Esta Comissão tinha como
objetivo proteger os sítios arqueológicos (FUNARI & GONZÁLEZ, 2008;
FERNANDES, 2007). As discussões subsequentes, principalmente incitadas
por intelectuais como o próprio Paulo Duarte, levaram à aprovação da Lei
3924/6126 pelo Congresso, em 1961. Nessa Lei, os sítios arqueológicos são
tomados como sendo monumentos e bens da União (BRASIL, 1961, Art. 1).
Dessa forma, fica proibida sua destruição e seu uso com objetivos econômicos,
inclusive trazendo penalização para o seu descumprimento (BRASIL, 1961,
Art.3 a 5). Outra questão que cabe mencionar é que através desta Lei, fica a
cargo do IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), o
comprometimento com a gestão do patrimônio, além de tornar-se o órgão
responsável por emitir permissões para intervenções arqueológicas (BRASIL,
1961, Art. 11). Porém, as questões referentes à divulgação das escavações
arqueológicas e programas educacionais não constam na Lei nº 3924/61.
No mesmo ano em que é instaurada a ditadura militar brasileira (1964)
desenvolve-se o Programa Nacional de Pesquisas Arqueológicas (PRONAPA),
coordenado pelos arqueólogos americanos Clifford Evans e Betty Meggers,
montado em colaboração com o SPHAN e financiado pelo Smithsonian
Institution sediado em Washington e algumas instituições brasileiras como o
Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq)
(FUNARI & GONZÁLEZ, 2008; FERNANDES, 2007; CARNEIRO, 2009; SILVA,
2011). Este Programa, que se insere no contexto da vinda de especialistas
estrangeiros, visava realizar um mapeamento de sítios arqueológicos buscando
estabelecer um quadro da ocupação pré-histórica brasileira (FERNANDES,
2007; FUNARI & GONZÁLEZ, 2008; CARNEIRO, 2009; SILVA, 2011). Porém,
também foi bastante criticado, principalmente devido à pressão do governo
ditatorial, que logrou inviabilizar diversas pesquisas arqueológicas que
tivessem uma abordagem mais crítica (FUNARI & GONZÁLEZ, 2008; SILVA,
2011).
No Brasil, o surgimento do campo da Arqueologia pública está
intrinsecamente ligado ao processo de redemocratização política, que a partir
26
Ver a propósito Anexo C (BRASIL, 1961).
41
43. de meados da década de 1980 torna-se crucial para sua consolidação. Sendo
assim, os debates em torno da divulgação das pesquisas arqueológicas e dos
programas educacionais passam a fazer parte do contexto brasileiro após
meados da década de 1980. A partir de então, com o fim da censura,
pesquisadores encontram novos espaços de comunicação com a sociedade de
uma forma geral e com suas pesquisas arqueológicas (CARVALHO & FUNARI,
2007; OLIVEIRA, 2009). Até então, toda investida em divulgação das
investigações arqueológicas estavam relacionadas ao processo de
musealização da Arqueologia. Ao prestar atenção no contexto internacional,
veremos que no ano de 1986 surge o World Archaeological Congress. Dentre
suas discussões, aparecem os aspectos sociais da disciplina, num sentido de
compreender as relações existentes entre a Arqueologia e a sociedade, sendo
este um dos pilares da Arqueologia pública (CARVALHO & FUNARI, 2007).
Como demonstrado até agora, entre os anos de 1961 e 1985 foram
empreendidas diversas iniciativas com objetivo de estreitar as relações entre
Arqueologia e a sociedade de forma geral. Desta maneira procurou-se propiciar
maior proteção aos bens culturais, e, além disso, originaram-se diversas ações
que buscavam realizar divulgação do conhecimento arqueológico no país.
Assim, foram planejadas iniciativas nos próprios trabalhos de campo da
Arqueologia, sendo estas voltadas para o envolvimento das comunidades na
pesquisa arqueológica, preservação dos vestígios materiais e na própria
divulgação (CARVALHO & FUNARI, 2007; FUNARI & GONZÁLEZ, 2008).
Em 1990, o Comitê Internacional para a Gestão do Patrimônio
Arqueológico (ICOMOS/ICAHM) publicou a Carta Internacional para a Gestão
do Patrimônio Arqueológico. Direcionada aos profissionais da área, objetivava
estabelecer meios de proteção específicos de vestígios considerados como
patrimônio arqueológico. Nesta Carta, o patrimônio arqueológico é definido de
forma genérica, englobando:
[...] as marcas da existência do homem e se refere aos lugares onde
se praticou qualquer tipo de atividade humana, às estruturas e
vestígios abandonados de qualquer índole, tanto na superfície como
enterrados, ou em baixo d’água, assim como ao material relacionado
com os mesmos (ICOMOS/ICAHM, 1990).
42
44. Esta Carta estabelece que, de forma a envolver a sociedade, é
imprescindível fornecer ao público geral informações relacionadas ao
patrimônio. Esta destaca que as especificidades de cada localidade devem ser
consideradas, e que não existe, ademais, um modelo específico para a ação de
preservação e educação; por fim, que o passado deve ser respeitado e
mostrado como sendo algo multifacetado (CARVALHO & FUNARI, 2007).
Desta forma, experiências27 de diversos arqueólogos vêm comprovando que o
envolvimento das comunidades é fundamental e primordial (FERREIRA, 2011).
Esta forma de fazer Arqueologia, “oferece-nos metodologias propícias
para reconsiderarmos o trabalho com o público e enfrentarmos as escolhas
quase sempre unilaterais das políticas de representação do patrimônio cultural”
(FERREIRA, 2011, p. 29). Como aponta Lúcio Ferreira, nesse campo atenta-se
para a necessidade de tornar as comunidades em “agentes e colaboradoras
ativas da pesquisa arqueológica”28. Além disso, é necessário realizar
entrevistas periódicas e história oral, pois através destas será possível
compreender o entendimento, interpretações e apropriações das comunidades
para com as pesquisas arqueológicas29.
Cristóbal Gnecco e Carolina Hernández trazem algumas questões
interessantes sobre a atuação do público e criação de interpretações:
O alcance público tem se tornado eticamente obrigatório e
estrategicamente necessário. No entanto, para muitos arqueólogos,
alcance público é somente um meio de compartilhar resultados – ou
seja, não como uma empreitada colaborativa e coletiva, mas como
um processo unidirecional pelo qual conhecimento especializado é
comunicado para o público. Povos nativos são incluídos nesse
processo com a ideia de que eventualmente venham a descobrir a
utilidade da informação arqueológica em suas próprias histórias. Em
contraste, a Arqueologia pública (ou seja, Arqueologia para e pelo
público) é concebida não como um processo unidirecional no qual o
sábio arqueólogo aconselha povos ignorantes sobre sua própria
história, mas como uma co-produção na qual partes interessadas
colaboram, aprendem umas com as outras, e conjuntamente (mas
não sem conflito) produzem história. (GNECCO & HERNÁNDEZ,
2008, p. 452).
27
Algumas experiências já foram publicadas, como: MONTENEGRO & APARICIO (2008);
GREER et all (2002); GNECCO & ROCABADO (2010); ARDREN (2002); COLLEY (2004);
MOSER et all (2002); BARDAVIO et all (2004).
28
FERREIRA, loc. cit.
29
FERREIRA, loc. cit.
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