O documento relata uma viagem de três amigos de Cataguases para o Rio de Janeiro para assistir a uma apresentação de poesia e música sobre Jim Morrison. Eles encontram o poeta Zeca Junqueira e assistem ao espetáculo no Forte de Copacabana, onde a poesia e música dos Doors criam uma atmosfera mágica. Ao retornar para casa, um deles reflete sobre como a arte os fez "mergulhar numa fantástica viagem".
2. Conversa dos chicos
Como diz o Tutti Vasquez, nesta época do ano existem três coisas que só aparecem no
Brasil: discussão da cpmf, mosquito da dengue e jaboticabas. Se ele estivesse em Cataguases,
trocaria de mosquito; aqui, quem nos vampiriza é o maldito pernilongo.
Três dos nossos chicos, espertamente, escaparam até o Rio de Janeiro para curtir a leitura do
“Rei Lagarto – Tributo a Jim Morrison” do poeta Zeca Junqueira, peça programada para estrear em
fevereiro lá no Rio. O que promete sacudir o verão carioca com música e poesia. Esperamos que
algum dos nossos produtores culturais traga o espetáculo até Cataguases. O autor começou a se
meter com poesia na cidade e a peça vale o investimento.
O Antonio Jaime nos enviou e publicamos um ótimo texto de Ernani Buchmann sobre
Leminski. Um poema vertido para o espanhol pela Teresinka Pereira nos apresenta a poetisa
chinesa Choi Lai Sheung indicada ao Nobel deste ano. Via aí tambem um belo poema do
Claudio Sesin com uma transcriação do Zé Antonio. Aproveitamos para cumprimentar o
Claudio pela chegada ao poder, na Argentina de nossos irmãos, da primeira mulher, pelo voto.
O artigo “Querida encolhi o livro” do Felipe Fortuna nos mostra como certos editores tratam o
autor e sua obra. O nosso amigo Tadeu Costa, designer gráfico e ilustrador, continua fazendo
arte com talento. Digno sucessor do nosso Dounê Spindola. Vejam no endereço:
http://www.cronopios.com.br/cronopinhos/portfolio.asp?id=109
Vanderlei Pequeno, Zé Antonio, Zeca Junqueira e
Emerson Teixeira
O Rei Lagarto - A música
O Rei Lagarto - A poesia
Zé Antonio, Zeca Junqueira, Luiz Carlos Maciel e
Emerson Teixeira
3. Relato de uma viagem em que não fomos ver o escrete brasileiro jogar
*Zé Antônio
Manhã de quarta feira, dia dezessete de outubro, estamos na esquina do Rio Pomba
com o Meia Pataca. Cataguases escalda nossas têmporas de tanto calor. Enquanto aguardamos o
Vanderlei Pequeno, o Emerson Teixeira, para conter a ansiedade, gorgoleja feito um sabiá, uma
"água que Passarim não bebe". Pequeno aparece e embarcamos rumo ao Rio de Janeiro, para
assistir, no auditório do Forte Copacabana, à leitura do texto de Zeca Junqueira, O Rei Lagarto, Um
Tributo a Jim Morrison, com encenação prevista para estrear em fevereiro, naquela cidade. Já
dentro do ônibus, percebemos que o nosso programa estava na Agenda do Jornal do Brasil.
Transcrevo: "O Rei Lagarto - Tributo a Jim Morrison, de Zeca Junqueira - Adaptação de Luiz
Carlos Maciel - Dia 17 de outubro às 20horas no Forte Copacabana - Entrada: Uma lata de leite em
pó".
No caminho, em poucos minutos, lemos o JB e comentamos: o diário da condessa acabou,
não passa de um punhado de folhas, que mal daria para fazer o caderno B noutros tempos.
Assusto-me, ao deparar com uma notícia: um maluco enfiou um tiro na própria cabeça, dentro de
um cinema em Recife, assistindo ao Tropa de Elite. Uma profanação! Cinema para nós é um lugar
sagrado. Nele cultuávamos nossos ícones e amávamos nossas deusas.
Estávamos ansiosos, para ver o que o nosso conterrâneo Zeca aprontara lá no Rio.
Desembarcamos na Novo Rio e no meio do nosso caminho havia uma vaca, uma vaca
preguiçosamente esparramada no meio da rodoviária. Pegamos o cento e vinte e seis rumo a
Copacabana; encho a paciência dos meus amigos de viagem, relembrando meus tempos de Rio de
Janeiro. Não tem jeito, é só eu por os pés na velha capital, que de uma brasa dormida reacende a
vulcânica paixão pela cidade. Pequeno na sua inquietude, com aquele olhar sempre atento, já nos
chamara atenção à "faxina" que fizeram na cidade ao eliminar centenas de outdoors. No entanto,
4. dá destaque a um “sobrevivente” que faz referência ao Dia dos Médicos, instalado logo perto de
uma loja de artigos “exutéricos”, toda em vermelho e preto; o anúncio também nos aparece nas
mesmas cores e é escabroso, coisa de encantar o Chifrudo Encarnado. Isto nos remete para este
clima de violência que a cidade vive já há algum tempo e o tal filme, que levou o pernambucano ao
suicídio, retro alimenta.
Chegamos ao ponto final, na Princesinha do Mar, o cheiro do mar nos revigora. Ao virarmos
a esquina rumo ao Forte, outra vaca no meio do nosso caminho. De tênis, ela nos sugere que está a
caminho da praia, para uma caminhada ou uma corridinha, mas notei que o seu bovino abdômen
estava meio caídaço. Ressabiados entramos no Forte Copacabana; simpáticos guardas nos indicam
o itinerário do auditório. Andamos junto a uma mureta, deparamos com vários canhões antigos;
breve parada para olharmos a praia e o mar: é linda a visão. Chegamos. Eu não viajo na história do
forte, só penso no mar e no que verei mais tarde.
Quem nos recebe afetuoso é o Júlio Braga, o Diretor do evento; isto nos deixa mais a vontade
dentro de uma caserna, já que temos razões históricas para não gostar destes locais. Júlio nos
apresenta o Carlos Loffer, o homem que iria viver Jim Morrison, naquela noite de leitura da peça:
"Estes são os amigos do Zeca!" Fico sabendo ali que ele – o Loffer - é neto do genial Oscarito. A
correria é grande para acertar som, luz, estas coisas. Mais uma volta pela cercanias e encontramos
com o nosso amigo. O nosso poeta, Zeca Junqueira, está excitadíssimo. Partimos para a primeira
rodada de cervejas no primeiro quiosque da praia.
-Nós nunca estivemos juntos no Rio de Janeiro, comenta Zeca, eu só me lembro de ter
encontrado o Zé Antônio certa vez na rodoviária, embarcando para Cataguases pela Citran.
Bebamos a isto! Também por estarmos juntos neste dia de poesia.
Vamos entrar e sair do Forte várias vezes. Não tem cerveja dentro da caserna. Alguém
canta: “João bebeu toda cachaça da cidade...” No entra e sai, passamos várias vezes por outra vaca,
protegida da violência nos jardins internos do Forte. Pequeno descobre que a vaca é Angolana.
Resolvemos dar uma olhada no Drummond sentado no calçadão da praia. Outra vaca no caminho,
agora sentada ao lado do poeta a ler um livro. Para mim, é uma profana vaca mística lendo Carlos
Zéfiro no interior de algum livro sagrado. Olho para o poeta em bronze e penso: "É Carlos! No
caminho havia uma vaca... tinha uma vaca no caminho... Prefiro as pedras, meu poeta. As pedras"!
Começo a entrar no clima poético que sinto avizinhar-se de nós. A noite nos abençoa com suas
primeiras estrelas, sinto que Jim ainda está preso no corpo de bronze do Drummond. Emerson
pede sua calibrina, todos convivem e compartilham a mesma ansiedade. Digo ao Zeca: "A poesia
só vai terminar quando o velho canhão lá no Forte disparar sozinho." Com Ricardinho (filho do
Zeca), Pequeno e Emerson saem para uma foto ao lado do Drummond... e da vaca. Só aí fico
sabendo que a exposição pecuária se trata de uma tal Cow Parade, um evento artístico com autores
de diversos locais. Acho que estão, sem querer fazer trocadilho, é avacalhando com a arte.
Caminhamos de volta ao forte. Zeca dialoga coisas “incompreensíveis para as massas” com um
soturno tocador de rabeca, quase à entrada do Forte.
O auditório tem um clima suave provocado pelo incenso. Jim Morrison, como naquele poema
de Maiakóvski à Iessienin, sai do bronze do Carlos Drumond e “entremeado de estrelas” voa sobre
o mar pairando depois sobre nossas cabeças. Começa a leitura do texto. “... Poesia onde está seu
banquete?...” Carlos Loffer sobe ao palco. Soam os primeiros acordes da música dos ótimos
músicos que tiram as arestas do bom e velho rock. O momento exige uma música mais espiritual. E
tome poesia! Carlos agora não é Loffer, nem o Drummond lá da praia, é outro poeta, o Lagarto
Morrison. Bebam poesia! O forte é tomado pelas notas de Light my fire. O tom vai subindo a
platéia sendo seduzida, a pulsação cardíaca de todos segue o ritmo. Vejo Juliana, filha do
5. Zeca, cantando a “plenos pulmões”. De repente - booom! O canhão de luz explodiu sobre
nossas cabeças. Fire... fire... fire... Light my fire. Na parada total não programada, no
silêncio quase absoluto de nossas mentes, escutam-se vários tun tuns.. tun tuns... de incendiados
corações. Rapidamente o ritmo retorna. Comam poesia! Fim do espetáculo, uma verdadeira festa
poético-musical. Todos estão a mil, arrepio-me, minto a mim mesmo achando que é a brisa do mar.
Nas mãos de Márcia, esposa do Zeca, um copo d'água tremula feito bandeira ao vento. Abraço
com imensa alegria o amigo Zeca Junqueira.
No ponto final do cento e vinte seis, enquanto esperamos o ônibus que nos levaria de volta
até a rodoviária, vejo o Morrison passar correndo, talvez no encalço de outra “Entidade”, na
corrente jornada dupla das artes do Rio de Janeiro. Todos estamos ainda impregnados do que
acabamos de presenciar, embriagados.
Já de volta a Cataguases percebo que havia chovido. Caminho com o Pequeno pela madrugada
molhada até o início da Avenida do Lava Pés, estamos integrado àquela umidade que contrastava
com a secura da manhã anterior, quando partimos. Ele vai pela avenida e eu tomo o rumo da Vila
numa vontade de chutar poças d'água, como nos meus tempos de moleque. Na cabeça ressoa
When the music's over. Sinto que não vai mais parar. Estou cansado, mas extremamente feliz.
Lembro-me de uma afirmação do poeta Alexei Bueno: "Ao encontrar-se com qualquer obra de arte,
seja um poema, seja uma música, você sai ampliado, acima de sua existência diurna, cotidiana,
banal." A poesia do Zeca amalgamou-se à música dos Doors e nos fez mergulhar numa fantástica
viagem. Muito obrigado “továrich” Zeca Junqueira
*José Antonio Pereira (Cataguases -MG)
Exílios
*Ronaldo Cagiano
A cidade se des(d)enha em seus próprios labirintos:
pelas serpentes de pedra e asfalto
corre pressuroso um rio de animais metálicos.
Não há mais lugar pra os homens.
Anônimos, como areia na ampulheta,
vamos caindo atarefados em busca
da outra margem: a utopia.
A metrópole, como ventre,
espera o desconhecido, e na solidão geométrica
nascem catedrais de ausências.
Se Paris está lendo Paulo Coelho,
eis minha vingança:
Vou ler Proust em Cataguases.
*Ronaldo Cagiano (São Paulo – SP) autor
de “Dicionários de pequenas solidões” contos
6. O cavaleiro da chuva
*Emerson Teixeira
Preparava-me para sair, quando ouvi os tambores do tempo anunciando chuva.
Imediatamente dei meia volta procurando abrigo e armamamento adequado para enfrentar o
inimigo terrível: a intempérie.
Armei-me de um capote, espécie de vestimenta larga e obsoleta, que além de impermeável
cobria-me até os tornozelos, nos sapatos, providenciais galochas. Não dispensei nem o
último acessório de meu estranho aparato, um potentoso guarda-chuva.
Assim devidamente equipado lancei-me à aventura. Devia buscar nos ares a face do terrível
gigante – mas, ai de mim! O malvado não aparecia.
Largas passadas levou-me a adentrar o prédio do cinema e ali durante toda a sessão de um
filme, tudo que eu podia ver eram as cortinas se agitando. O monstro lá fora rugindo, rugindo.
Findo o evento restava-me cruel alternativa: permanecer alí no recinto ou sair para enfrentar
o adversário no seu próprio campo de guerra. Eu levava a capa e o fatídico guarda-chuva, o que
me parecia o bastante para encarar a fera que rugia e soltava vermelhas labaredas.
Durante todo o tempo que durou a luta senti-me um verdadeiro cavaleiro medieval com
armadura e tudo. Levava a lança e o escudo para o duelo com o dragão líquido e gelado, que
expelia golfadas gigantesca de água pelas narinas.
A batalha foi terrível: minha lança brilhava a cada explosão dos trovões e ao reflexo dos
raios. Repito: foi uma grande peleja. O tempo parecia não ter fim, mas como um
Cavaleiro da Ordem do Império, fui o grande vencedor e o inimigo debandou soltando rugidos de
dor.
O céu apareceu estrelado. Olhei para o alto e dei um grito de vitória depois da luta mortal
que travei.
*Emerson Teixeira Cardoso (Cataguases – MG)
autor de “Similes” poesia
Columna de fuego
Coluna de fogo
*Claudio Sesin
Y en el frío estelar, inevitable,
E no frio estelar, inevitável,
entre las despedidas, que envejecen y callan,
entre as despedidas, que envelhecem e calam
y a ansiedad y el vertigo
entre a ansiedade e a vertigem
con que la incertidumbre cubre a los viajeros
e a incerteza com que se cobre os viajantes
al retumbar de gritos y de besos,
entre o burburinho de gritos e beijos,
7. de diarios y valijas,
de jornais e maletas,
de pisos sucios, cicarrillos y lágrimas,
de pisos sujos, cigarros e lágrimas
anterior al momento, presentida,
anterior ao momento, presentida,
vi,
vi,
como un fuego perfecto que el porvenir abraza
como um fogo perfeito que ao futuro abraça
desde sui magia inacabable,
em sua magia inacabada,
que ella,
que ela,
en silencio,
em silêncio
sostenía el mundo.
sustenta o mundo.
*Claudio Sesín (San Fernando del Valle de Catamarca -Arg)
poeta autor de “El signo del crepúsculo - www.dunken.com.ar
O Polaco Publicitário
Ernani Buchmann*
Não sei bem se Paulo Leminski podia ser chamado de publicitário. Ele mesmo não se
considerava. Nunca escondeu que escrevia anúncios para sobreviver, como muitos escritores. Aqui
no Brasil, Domingos Pellegrini, Luís Fernando Verissimo, João Ubaldo Ribeiro, Antônio Torres,
Ricardo Ramos, entre outros. O Polaco era um agitador, isso sim. Enlouquecia a criação das
agências em que trabalhou, polemizando sobre qualquer assunto. Isso desde a P.A.Z., no início dos
anos 70, até a Exclam, no final de 1987. Era um redator diferente. Não criava para televisão, por
exemplo. No máximo, escrevia textos para locução em off. Sobre a idéia do filme, nada: alguém que
tivesse uma. Já com relação à mídia impressa, sua especialidade, matava a pau. Foi assim ao criar o
título que considerava sua melhor sacada publicitária: A Galvão acha fácil o imóvel que você acha
difícil. O sentido duplo do verbo, criando o jogo de palavras, é a cara dele.
Nos últimos tempos, já admitia que não conseguia mais se concentrar. Escrevia em pé,
como se estivesse de passagem pela máquina de escrever, naquela época em que ainda não se
trabalhava com computadores. Ia longe o tempo em que trabalhava em casa, ao lado de Alice –
ambos redatores, cada um criando para uma agência diferente. Era assim que se sentia melhor,
sem precisar cumprir o doloroso ritual do expediente. Nas agências pelas quais passou, sempre
conseguiu impor sua vontade de não trabalhar pela manhã, até o mercado exigir período integral.
Foi quando o chamei para dizer que a direção da agência havia exigido que passasse a chegar
cedo. No dia seguinte, fiquei comovido. Ao entrar na minha sala, ainda com as janelas cerradas,
luz apagada, em pleno inverno, vi um vulto. O vulto e a brasa do cigarro. Era ele, pouco depois
8. das 8h. Deu aquela risadinha mostrando os cacos dos dentes quando acendi a luz e berrou como se
estivesse num bar – Leminski falava muitos decibéis acima:
- Lá em casa o toque de alvorada é cedo!
Em seguida, puxou aquele chumaço de papel jornal com a produção poética da
madrugada. Era a rotina: passava o dia entregando seus mais recentes poemas para avaliação,
fosse quem fosse o interlocutor. Deu conta do expediente matinal por um ou dois meses. Então
desistiu. Já sofrendo com a cirrose que viria matá-lo, nem sempre passava bem. Não era para
menos. O Polaco bebia em turnos de 24 por 24 horas, dormindo nos intervalos. Na noite em que
morreu, havia uma multidão na ante-sala da UTI. Quando veio a notícia, fui ao orelhão do
corredor ligar para algumas pessoas. Comecei pelo Solda. Não consegui falar. Nem eu disse nada,
nem ele perguntou. Não precisava. Ficamos em silêncio, acho que deixei o telefone lá pendurado.
Mesmo porque pendurados ficamos todos.
*Ernani Buchmann (Curitiba -PR )Publicitário, futebolista, contista e cronista
Extraído de seu livro O caçador de moscas, Ed. Getz Comunicação/2006.
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*Joilson Portocalvo
Uma gaiola sem grades
que comporte milhares de pássaros
azuis, brancos, amarelos: procura-se
Gaiolas capazes de abrigar em revoada
pássaros invisíveis
hospedados na imaginação do escultor
para ele hospedar outros bandos: compram-se
Ao menos uma gaiola
não importam as dimensões nem o valor
ela evolui e valoriza-se no coração: aluga-se
Encontrar uma gaiola
livre feito a imaginação povoada
por um pássaro
quase imperceptível
chamado liberdade: sonha-se
*Joilson Portocalvo (Brasília DF)
Poeta alagoano, de Porto Calvo
9. Lo que un coral puede decir
*Choi Lai Sheung
Como se puede pensar
que los vientos y las ondas
van a causarme
una vida dolorosa?
El movimiento del cielo
depende de mi comando,
la tierra esta pegada a mi
el oceano se hace siempre joven
y vivo por mi.
El mar tiene tantas maravillas
cuantas las que yo quisiera ofrecer!
*Choi Lai Sheung (China) tradução da escritora
Teresinka Pereira (Blufton -Ohio -EUA)
Querida, encolhi o livro
*Felipe Fortuna
Num artigo publicado no jornal Le Monde, o crítico literário Antoine Compagnon relata
haver recebido um e-mail de uma estudante italiana que lhe informou sobre um erro cometido na
edição de um dos seus livros: em vez de traduzirem Lumières por Iluminismo, haviam grafado “os
irmãos Lumière”. Também tenho vontade de enviar um e-mail ao professor francês, por causa da
edição brasileira de La Seconde Main ou Le Travail de la Citation (Seuil, 1979). Publicado pela
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), o livro veio a lume entre nós em 1996, e agora foi
reimpresso, segundo informa a editora, “em novo formato”, numa coleção barbaramente
intitulada Humanitas Pocket, restando-lhe como título o que era apenas o subtítulo na edição
francesa: O Trabalho da Citação (Editora UFMG, 176p., R$30). Decepou-se, assim, A Segunda Mão.
Mas isso não é tudo: o novo formato evidencia um grosseiro trabalho de amputação das seis
partes (ou seqüências) com que o original foi concebido por Antoine Compagnon. A edição
10. brasileira só estampa a quarta parte do conteúdo do livro francês. Não se nomeia o responsável
por esse trabalho da supressão, embora seja razoável atribuí-lo à tradutora, Cleonice P.B. Mourão.
Numa singela “Nota ao Leitor”, sem qualquer assinatura, informa-se que “este volume é uma
edição reduzida” no qual se lê a seleção de 39 tópicos (de um total de 126!) das seis seqüências – o
que não é verdade, uma vez que a segunda seqüência, com seus treze textos, foi integralmente
extirpada. Deve-se mencionar que o trabalho da mutilação empreendido fez sumirem o prefácio e
todas as... citações que abrem cada uma das seqüências, estas, por sua vez, também suprimidas na
edição brasileira, uma vez que os textos apenas se sucedem sem qualquer outra categorização. Na
mesma singela “Nota ao Leitor”, informa-se que esses textos (antes chamados de tópicos e, agora,
de fragmentos!) foram escolhidos porque “tratam da escrita como exercício da intertextualidade”.
Ocorre que todo o livro de Antoine Compagnon é um estudo sobre formas da intertextualidade, no
qual a citação é considerada a “solidariedade de um ato”, “de um fato da linguagem” e “de um
prática institucional”, conforme se lê no prefácio que o leitor brasileiro não lerá graças ao trabalho
da exclusão.
Pergunto-me se Antoine Compagnon teria sido consultado sobre o trabalho da eliminação
que transformou seu livro numa antologia, talvez mais semelhante a uma apostila de cópias xerox
ou uma edição inteligente a aparecer em Seleções do Reader’s Digest. Também me pergunto se as
Editions du Seuil estão satisfeitas com a versão reduzida e o trabalho de segunda mão, e não vêem
implicações legais no negócio. Quando consultado, o catálogo da Editora UFMG revela, no caso do
livro em questão, uma resoluta tendência para fazer sangrar e terminar na UTI. Cito, a propósito:
“o livro torna-se corpo, objeto que é cirurgicamente manipulado pelo autor. Nesta operação,
Compagnon persegue as marcas do sujeito-autor, que é ao mesmo tempo leitor de outros textos,
mergulhado em uma trama intrincada, onde a tarefa é redizer o que já foi dito por outros.” O estilo
insidioso dessa lição de anatomia supõe que é tão fácil mergulhar numa trama quanto se enredar
em águas. É o retrato do que se denomina, para o bem e para o mal, de postura acadêmica.
Sofre o leitor brasileiro – e, em especial, o leitor universitário, a quem certamente se destina
esse fino produto da coleção Humanitas Pocket. Ele nunca saberá que, embora a edição brasileira
prometa uma seleção que trata da intertextualidade, não foi publicado o texto “A Desrazão
Suficiente” (VI.7), um estimulante ensaio sobre Jorge Luís Borges, no qual Antoine Compagnon
estuda de que modo o escritor argentino, perversamente, consegue revelar “o negativo do
funcionamento canônico da citação”. Na análise dos contos “Os Teólogos” e “Pierre Ménard,
Autor do Quixote” – este, um dos maiores exemplos modernos de intertextualidade –, o crítico
francês procede a uma arguta interpretação da presença do filósofo Leibniz na escrita de Borges.
Em “O Verdadeiro e o Verossímil” (III.11), também ausente, Antoine Compagnon mostra como o
uso da repetição das palavras alheias é diferente em Platão e Aristóles, com notável repercussão
quanto ao tratamento da mimesis. O que se quer demonstrar, enfim, sem mais recorrer a textos
subtraídos, é que a impressão e a reimpressão brasileiras desse livro foram péssimas idéias,
sobretudo porque promovidas por uma editora universitária. Imagine-se a mesma sanha redutora
aplicada a Palimpsestos (1982), de Gérard Genette, e também ao Michel Riffaterre de A Produção
do Texto (1979) – outros modelos de estudos sobre a intertextualidade. Seria também necessário
consultar uma “Nota ao Leitor” para saber o que sobrou?
O mau exemplo da edição da UFMG atesta as condições de estudo e de rigor acadêmico que
se praticam no Brasil – por uma minoria, espero eu. Traduz também a preguiça e, por fim, os
ganhos financeiros mais fáceis que podem ser alcançados. Sei que o problema não é só brasileiro:
eu mesmo revelei, nas páginas deste Idéias & Livros (19.03.2005), a resposta acintosa do editor
britânico de Dom Casmurro, quando questionado sobre a retirada de 9 capítulos na tradução do
11. romance de Machado de Assis. Assegurou ele que os cortes realizados “não afetam a qualidade do
livro, e ainda o tornam mais acessível ao leitor britânico. Eu perco dinheiro com os livros
brasileiros do meu catálogo.” Agora sabemos que aos livros nunca lidos, já comentados por Pierre
Bayard, será preciso adicionar nova categoria: a dos livros que não são lidos mesmo quando lidos
por inteiro, como no caso de O Trabalho da Citação feito no Brasil. Encolher um livro é como
censurá-lo: e quem encolhe um livro, encolhe o saber.
*Felipe Fortuna (Rio de Janeiro -RJ) poeta,
ensaísta e diplomata autor de “Em seu lugar”
“A Casa da rua Alferes e outras crônicas”
dos autores: Emerson Teixeira Cardoso, José Antonio Pereira, José Vecchi de Carvalho e
Vanderlei Pequeno
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