O documento conta a história de como o senhor X conheceu a mãe de seus filhos. Em 1986, ele tinha 19 anos e decidiu estudar inglês em uma escola. Na época, o Brasil disputou a Copa do Mundo no México. Ele também começou a frequentar encontros vocacionais para se tornar um padre franciscano, influenciado pelo livro O Nome da Rosa. Mais tarde, ele se envolveu com o PT e decidiu ser padre diocesano em vez de franciscano.
1. Como conheci sua mãe
Capítulo 1 1986
A história e a seguinte.
Um homem (senhor X) está no aeroporto de Guarulhos com seus três filhos. Ele tem 48
anos e os filhos tem, respectivamente, 14, 18 e 22 anos. Eles esperam a mãe dos jovens,
que deve retornar de uma longa viagem aos Estados Unidos. Eles chegaram pouco antes
do horário previsto para a chegada, mas descobrem que o vôo está atrasado. A
companhia aérea informa que uma nevasca obrigou o aeroporto John Kennedy, em Nova
York, a fechar para pousos e decolagens, mas que, naquele exato momento, o vôo XXXX
(que era o que eles esperavam) acabava de decolar rumo ao Brasil.
Aliviados com a explicação e sabendo que o avião demoraria oito horas para aterrissar
em São Paulo, eles avaliam que seria muito cansativo voltar para casa, em Campinas,
para depois retornar, e decidem esperar por ali mesmo.
Para passar o tempo, o senhor X propõe contar aos filhos uma história que nunca havia
contado, a história de como conheceu a mãe deles.
Isso é plágio! Já existe uma série com esta história.
Eu sei e é nesta história mesmo que estou me baseando. Mas a nossa história é
diferente, claro! Querem ouvir ou não?
Que seja!
No ano de 1986, eu acabara de completar dezenove anos. Tinha terminado o
segundo grau e não tinha a menor ideia do que fazer a seguir. Continuava no meu
trabalho de auxiliar de produção numa fábrica de tanques de lavar roupa, onde eu
estava desde os 13 anos e nem sonhava com um vestibular. O que eu decidi
fazer, já que tinha minhas noites livres, foi estudar um pouco de inglês, que era
uma coisa que eu gostava muito, mas o que ensinavam na escola era muito
pouco. Infelizmente, a escola em que eu me matriculei também não era lá grande
coisa, mas pelo menos eu continuava ativo. Naquele ano de 1986, houve a copa
do mundo do México e, pela primeira vez um técnico que havia perdido uma copa
ganhou uma segunda chance na copa seguinte. Era o Telê Santana. O time que
ele montou em 1982 era tão bom que todos acabaram esquecendo a derrota para
a Itália, que nos tirou daquela copa. Na verdade, todo mundo queria dar uma
segunda chance à geração de Zico, Sócrates, Falcão e companhia de ganhar uma
copa. Mas, desta vez, o time não estava tão bom. Mesmo assim, fomos nos
empolgando com a campanha na primeira fase, até toparmos com a França, que
nos tirou daquela copa numa disputa de pênaltis (foi a primeira vez que isso
aconteceu).
2. E o que esta história de Copa tem a ver com a mãe?
Não tem nada a ver, mas, eu quero ambientar vocês sobre o que estava
acontecendo na época.
Ah, é? Então quais as séries que estavam passando na época?
Sim, e quais as músicas eram as mais tocadas e os filmes mais legais, etc?
Não tinha tv a cabo na época e a tv aberta passava poucas séries, que nós
chamávamos de “enlatados americanos”... o Brasil sempre gostou mais de
novelas. Qualquer dia eu faço uma pesquisa na internet para refrescar minha
memória e falo das músicas e dos filmes, etc.
Tá bom, mas continue a história.
Uma coisa muito importante que eu decidi fazer naquele ano foi entrar para o
seminário diocesano, que forma os padres para a igreja católica.
Isso você já contou, que foi para o seminário, mas saiu para casar com a mãe.
Não tão rápido… estamos em 1986 e eu ainda não entrei no seminário. Primeiro
tive que participar de uma série de encontros vocacionais, que eram reuniões
realizadas entre os candidatos e algum padre formador, que avaliaria a vocação
dos candidatos. Geralmente era nos finais de semana.
E vocês faziam o quê nesses encontros.
Bem, em primeiro lugar, a minha intenção era ingressar na ordem franciscana…
O que é essa ordem franciscana?
É uma instituição fundada na Itália, no século XII por são Francisco de Assis e que
passou a fazer parte da estrutura da igreja católica. É uma longa história, mas para
resumir, no princípio os frades franciscanos só queriam viver em comunidade,
fazendo votos de pobreza e castidade, para seguir o exemplo de Jesus de um
modo mais radical, com o tempo eles acabaram sendo incorporados à estrutura da
igreja e se tornaram uma instituição que também formava sacerdotes para atuar
nas igrejas. Acho que eu tive a ideia de entrar para essa ordem depois que eu li O
Nome da Rosa, um romance de Umberto Eco, bem famoso na época, e que vocês
deveriam ler.
Eu assisti o filme…
O filme tem um final diferente…
Mas por que você não ficou lá?
Vamos por partes. Os encontros eram lá no seminário que os franciscanos tinham
(acho que ainda têm) na avenida Independência. A gente chegava no sábado à
tarde e tinha atividades até o domingo na hora do almoço.
Vocês dormiam lá?
Sim, essa era a ideia. Promover a convivência entre os candidatos para avaliar
também essa conduta.
Por que você não ficou?
Este ano de 1986 na verdade foi um ano bem agitado para mim… Acho que em
primeiro lugar está o fato que eu era muito envolvido com a Igreja. Participava de
todas as atividades que podia e cheguei mesmo a coordenar e realizar algumas
como o grupo de jovens e a catequese, por exemplo.
O que é isso?
O grupo de jovens era um grupo de jovens, que se reunia semanalmente para
discutir, refletir sobre temas ligados à nossa fé cristã. A catequese é uma espécie
3. de escola de fé, que procura ensinar às crianças as verdades em que elas
precisam acreditar e o modo como devem se comportar para serem bons cristãos.
A catequese é uma condição para receber os sacramentos: primeira comunhão,
crisma, matrimônio…
Você era tipo um professor de fé…
Vejam só… era mais ou menos isso mesmo.
Por quer você mudou de opinião?
Sobre o quê?
Sobre essas tais verdades de fé.
Acho que eu não mudei tanto assim. Acho que nunca tive muita convicção e, na
época sabia bem pouco sobre aquilo que eu supostamente devia ensinar.
E mesmo assim era professor?
Não era bem um professor, mas é isso mesmo, acho que a crítica vale. Acho que
só me deixavam assumir essas coisas porque não tinham mais ninguém. O fato é
que o meu envolvimento com os grupos acabou por alargar meus horizontes,
comecei a participar de cursos e encontros com outras pessoas, de outros lugares,
com outras ideias. Por exemplo, foi num curso para catequistas que alguém me
indicou esse romance que iria mudar minha vida, O nome da Rosa.
De novo esse livro. O que ele tem de tão importante?
Na verdade, quando eu o li aos 18, 19 anos não cheguei a entender muita coisa.
Gostei muito da história, da ambientação e me despertou a curiosidade por
aprender sobre as coisas de que fala. A história se passa no século XIV, fim da
idade média e o protagonista é um frade franciscano cheio de ideias filosóficas.
Era o primeiro romance do Umberto Eco, um escritor italiano muito erudito
acostumado a escrever ensaios e livros teóricos sobre linguagem e filosofia. Ele
imaginou uma história (na verdade o livro se baseia em eventos reais) onde os
temas de seus outros livros poderiam ser introduzidos como pano de fundo. Por
exemplo, ele sabe muito sobre idade média e sobre filosofia e tudo o que ele sabe
foi usado neste romance.
Esse livro fez sucesso? Tipo, ficou entre os mais vendidos?
Surpreendentemente, sim. Diziam, na época, na verdade foi um best seller bem
surpreendente, por conseguir vender uma história cheia de intrincadas reflexões
filosóficas para tanta gente. Havia a ideia de que o livro não era de fácil leitura.
E era?
Bem, eu acho que consegui entender pelo menos o enredo na primeira vez que o
li.
Daí você leu o livro e decidiu ser frade igual o cara do livro?
Quase isso. Mas enquanto isso, eu conheci também algumas pessoas que faziam
parte da igreja e do PT. O PT, na época, era um partido pequeno, tinha eleito
poucos deputados. Mas para nós, jovens, representava um caminho para mudar a
sociedade.
E o que isso tem a ver com a igreja? Pelo que eu sei, as pessoas que vão à igreja
estão mais preocupadas com a sua alma.
Não é verdade. Muitas pessoas na igreja entendem que o mandamento principal
de Cristo, que é “ame ao seu próximo como a ti mesmo” nos obriga a lutar por uma
sociedade justa e fraterna, onde todos tenham dignidade e um mínimo de conforto
4. para viver como filhos de Deus. Todos somos filhos de Deus, não é? Então, não
deve haver diferenças entre nós. É aí que entrava o PT. Dentro do PT nós (ou o
grupo de pessoas com quem me enturmei) éramos chamados de “igrejeiros”. Já
na Igreja, devo admitir que muitos nos viam com um pouco desconfiança. Pois o
PT era tido como comunista ou socialista e todos sabem que os comunistas são
ateus.
Ou seja, vocês eram marginalizados nos dois grupos.
Eu não diria marginalizados, talvez vistos com alguma desconfiança, mas nos
deixavam participar sem problemas. O primeiro vereador que o PT elegeu em
Piracicaba era apoiado pela Igreja. E até o nosso bispo à época, dom Eduardo
Koaik era um bispo mais à esquerda politicamente.
E o que esse envolvimento com o PT teve a ver com sua entrada no seminário?
Teve a ver que, por causa do meu envolvimento cada vez maior com a política,
numa determinada altura do ano, eu decidi que não queria mais ser frade
franciscano, e sim padre diocesano.
Qual a diferença?
O padre diocesano tem a sua formação a cargo da diocese, que é uma divisão
administrativa da Igreja, que engloba algumas cidades; por exemplo, da diocese
de Piracicaba fazem parte (pelo menos faziam à época) as cidades de Rio Claro,
São Pedro, Capivari e outras menores. O padre formado na diocese atua somente
nesta diocese onde foi formado. O frade franciscano não é fixo de uma diocese,
ele pode ser enviado para qualquer diocese onde haja uma comunidade
franciscana.
E o que essa diferença influiu na decisão de mudar de grupo?
É o seguinte: eu achava que como padre diocesano eu poderia atuar mais de
perto na organização do povo para reclamar melhorias com o poder público?
Como assim?
Organizar discussões, debates sobre a situação política e conscientizar (essa era
a palavra da moda) as pessoas sobre seus direitos.
E o franciscano não podia fazer isso?
Acho que sim. Quer dizer, claro que sim, pois um de nossos maiores ídolos era um
frade franciscano, Leonardo Boff, que tinha escrito vários livros a respeito dessa
visão que tínhamos e que, para resumir, chamávamos de teologia da libertação.
Quer dizer, a libertação que pregávamos não era apenas uma libertação espiritual,
mas também política e econômica, como os judeus (nós chamávamos os judeus
da Bíblia de hebreus) ao se libertarem da escravidão no Egito.
Então, você passou para o lado dos diocesanos… teve que começar tudo de
novo?
Começar o quê?
O cursinho preparatório que você estava fazendo para entrar no seminário
franciscano.
Não era bem um cursinho preparatório e não havia uma regra, tipo um vestibular
ou coisa assim. De qualquer modo, parei de ir aos encontros dos franciscanos e
cheguei a participar de um ou dois encontros com os diocesanos, antes de ser
aceito por eles.
Bem, até aqui a história foi só sobre você. Quando é que a mãe entra na história?
5. Tenham um pouco de paciência. Mas ela já estava por aí, nessa época.
E vocês já se conheciam?
Sim, éramos conhecidos. Mas não muito. Até aconteceu um evento decisivo.
Qual?
Como resultado dessa minha “dupla militância” (era assim que chamávamos o fato
de participar, simultaneamente da igreja e dos movimentos sociais) fui eleito para
participar de um encontro em Goiás, um encontro nacional de CEBs. Antes de
partir para esse encontro, quisemos fazer uma celebração e convidamos, por
carta, algumas pessoas, entre elas, a sua vó.
A vó? Ela também era metida nisso?
Que isso? Até hoje ela é! Nós é que abandonamos a batalha, mas ela segue lá,
firme e forte. Não veem que ela sempre vota no PT?
E ela respondeu o convite?
Ela não, mas a sua mãe (não a dela, a de vocês) sim.
E foi aí que vocês se conheceram? Mas então você não foi para o seminário?
Calma, isso fica para o próximo capítulo. Vamos tomar um café na Starbucks?