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Ana Maria Prande 
CHAPÉU DE PALHA 
História de uma aluna “boia-fria” 
CAMINHOS NÃO OS HÁ 
EU OS FAÇO COM MEUS PRÓPRIOS PASSOS. 
Vida Minha. 
Minha Vida. 
Dedicatória: 
Dedico este livro para todos os meus alunos da cidade de Garça e região que sempre acreditaram no meu trabalho de professora e sempre me chamaram carinhosamente de Dona Geo. 
CAPÍTULO 1 
Estamos na “Estação Ecológica de Caetetus”, falou a diretora, sentada no primeiro banco do ônibus da excursão. Alguns alunos levantaram-se, procurando olhar pelas janelas opostas, centenárias árvores que perfumavam a brisa e forravam toda a estrada com folhas macias. 
Achei que naquele momento, ao ouvir o sussurro das árvores e sentir o aroma da natureza, eu poderia escrever um poema. Mas o que importava aquele cenário se éramos alunos boias-frias, com olhos fundos, ombros furando as camisetas e se no nosso rosto só apareciam cansaço e tristeza? 
Estávamos praticamente nas vizinhanças onde se situava a escola, mas a luta do nosso cotidiano não permitia que nos déssemos o prazer de percorrer a região para interpretarmos o ambiente em que vivíamos. 
A escola é, para muitos de nós, como um pouso onde podemos pelo menos descansar do caminhão de boia fria, dos gatos, da comida fria e das nossas roupas maltrapilhas. 
Ao caminharmos pela mata, senti as sombras das árvores me envolverem, cortadas por vagos clarões. 
A voz grossa da diretora continuava quebrando o silêncio da mata. 
- Tanto o Patrimônio onde está localizada a nossa escola como esta Estação Ecológica estão situados numa altitude média de 690 metros. O tipo climático é definido como mesotérmico, o solo é do tipo posológico e a flora representa um dos últimos remanescentes da Floresta tropical semidecídua, possuindo grande diversidade de espécies. O objetivo principal de estarmos aqui é o de conscientizá-los sobre a importância de preservarmos esta mata.
Anotava todas as observações, não só porque seriam “cobradas” na sala de aula, mas também porque aquele contato com a natureza estava apurando minha sensibilidade e me estimulava a buscar um conhecimento mais profundo sobre mim mesma. 
Gostaria muito de perguntar se nós que também somos explorados apenas para fins lucrativos não deveríamos ser preservados. Até imagino, várias pessoas chegando até o nosso Patrimônio com faixas cujo lema seria: “Vamos Preservar a Vida do Boia-Fria.” 
— Precisamos estar sempre atentos, a fim de que possamos exercer nossa consciência crítica… Falava a diretora. 
Registrei novamente: O problema é que as pessoas, na sua maioria, apenas passam pela vida e decididamente não sabem o que está acontecendo aqui e agora, não têm consciência de si nem do seu mundo. A percepção é fragmentária e embaçada. 
As maiorias de nós estão sempre de queixo caído, com o olhar vago. Como despertar uma cultura ecológica se caminhamos para ser uma cultura de zumbis, que vagamos pela vida? Se já não participamos do nosso mundo, fica fácil violentar a natureza e permanecermos indiferentes aos resultados dessa violência. 
Sabe, perguntou a diretora, me indicar onde está um pé de Caroba ou Jacarandá? 
— Aqui não tem. Mas, sim, Camboatá, Cajarara e Canelinha de Cheiro — respondeu um aluno do grupo. 
Pelo menos aqui temos o direito de mostrar que também sabemos, não marginalizam aqueles que sabem questionar. 
CAPÍTULO II 
Eu tenho que dizer quem sou. 
Há vinte e cinco anos eu vim ao mundo. Era no mês de junho. Minha mãe tinha vergonha de perder um dia de trabalho. Estava na época da colheita de café que representava um pouco menos de miséria para a minha família. Nunca usara franqueza com o meu pai, por isso não se atreveu a dizer que estava tendo contrações. A fazenda onde trabalhavam era perto do Patrimônio. 
Ao chegar ao local de trabalho, minha mãe se alarmou. As dores estavam insuportáveis; resolveu deitar debaixo de um cafeeiro, e assim eu nasci. Mas o verdadeiro significado do meu nascimento foi que saí de um tranquilo ninho, onde a felicidade era perfeita, para um ambiente frio e não propício para minha primeira respiração. 
Minha mãe ficou deitada, segurando—me contra o peito, enquanto meu pai saía à procura de alguém que pudesse nos socorrer. 
Chegaram logo depois, dois homens com um carro velho e desconjuntado, com assentos todos rasgados e enfiaram minha mãe no banco de trás, sem nenhuma preocupação com o fato de ter nascido uma criança em condições tão pouco propícias.
Morávamos numa casinha de cimento com paredes caiadas de branco. Era uma casa simples, não se parecia em nada com os casarões onde moravam os donos das fazendas; mas também não era como as casas dos outros pobres que moravam em barracões feitos de velhas tábuas encardidas pelo tempo. 
A condução chegou em nossa casa e fomos despejadas sem nenhum “até logo”. 
Depois de lavada, minha mãe me olhou, atentamente, e disse: 
— Ana Tereza, perdoe a sua mãe e o seu pai. Que os seus olhos lindos carreguem só as coisas bonitas e alegres da vida. Não enxerguem a tristeza da vida, mas se atenha ao riso fácil do seu pai e a minha voz que sempre entoará canções que vão fazer você voar pela imensidão dos céus. 
CAPÍTULO III 
- Ana Tereza, acabamos de conhecer uma reserva florestal. Que conclusões você tirou das explicações e das observações ao percorrermos a trilha ecológica? 
— Diretora, acredito que a consciência ecológica é um assunto importante, mas creio que ele deva começar pela autopercepção, respondi. 
- Mas então você acha que foi ingenuidade levá-los a conhecer uma reserva? Você está negando o valor da excursão? 
- Não, mas eu creio que a autopercepção começa no momento em que o homem percebe que destrói a natureza como a si própria. 
— Explique—se melhor, Ana Tereza. 
— Tem gente, e creio que é a maioria delas, que seguem pelas vidas imersas no desconhecimento do que está acontecendo em si mesmas, principalmente nos seus corpos, e no mundo… então nem se fala… 
A diretora, como era chamada por todos os alunos da escola, gostava sobremaneira daqueles alunos que estavam ali. Para ela eu era a aluna notável da escola; que tinha nascido para contrariar os que pretendiam determinar meu destino. Fui assim desde que entrei na escola. Talvez pela beleza e candura que meu rosto irradiava. Queriam que eu fosse mansa, uma pacÍfica ovelha do rebanho de Deus. Mas minha trajetória como aluna e como coordenadora dos trabalhadores rurais mostrava que eu trilhava imprevistos caminhos. Eu era rebelde, inteligente, inconformada por vocação. E para ser o que eu era, tentava com todas as minhas forças aprender as acrobacias necessárias para ser uma ave de vôo livre. 
Desde pequena, já na primeira série, eu sabia das diferenças sociais, sentia o cheiro da desigualdade de classes. Conhecia muito bem a cerca de arame farpado que separava a minha existência do mundo dos “barões do café”.
Num discurso que proferi na 4ª série primária, citei que apenas um ocasional perfume das “damas-da-noite”, uma flor que exala um doce perfume durante a noite, ligava estes dois universos: o dos pobres e o dos ricos. 
Apesar de ter materializado tão cedo a realidade que me cercava, conservei a minha imaginação. 
Eu vivia num mundo onde as crianças já nascem velhas, onde a fome e o desemprego obrigavam meninos e meninas de quatro ou mesmo três anos de idade a trabalhar mais de dez horas por dia. Eram os chamados órfãos da colheita, que trabalhavam na varrição, isto é, na varredura dos grãos de café que caíam nos últimos períodos da maturação. 
Só que, mesmo adulta, aos vinte e cinco anos, cursando a última série do segundo grau, jamais me esqueci dos sofrimentos de minha infância, que são os mesmos da infância de hoje. 
- E o lanche? — perguntou um dos alunos da excursão. Quando vamos tomar? 
CAPÍTULO IV 
Meu pai sempre foi um trabalhador caprichoso e honesto. Era alto, magro, de cabelos e barba pretos. Não desperdiçava tempo com conversação desnecessária, para ele “derramamento inútil de energia”. A voz era lenta, nasal, pigarreada pelo excesso de cigarro de palha. Os gestos eram vagarosos. Homem de imenso vigor, resistente, era considerado como o melhor derriçador, isto é, conseguia retirar os grãos, com as mãos correndo pelos galhos do pé de café, sem molestar a árvore, tratando-a com o mesmo carinho com que alisava suas grossas barbas. 
Escutava sereno as minhas histórias, sempre com os olhos castanhos perdidos dentro dos meus, percebendo qualquer sinal invisível das minhas inquietações. 
Minha mãe era ossuda, com longos cabelos castanhos e muito envelhecidos por causa do sol que teimava em varar seu roto chapéu de palha e queimar suas faces. Era uma mulher ocupadíssima e extremamente solicitada pela vizinhança. Gostava de cantar e de contar histórias. 
Um dia, eu lhe perguntei de onde vinham tantas histórias. Parecia que bastava mamãe abrir a boca, com aquele sorriso rosado que ela tinha e lá vinha uma história completa, com bruxas, fadas e príncipes, transpassadas por sacis, mulas sem cabeça e lobisomens. 
A expressão “prestar atenção” fazia parte da sua maneira de encarar a vida. Durante o dia várias eram as vezes em que minha mãe se dirigia a mim com a seguinte frase: 
—Preste atenção, menina, nesta formiga. Olhe aquele cavalinho de Deus. Puxa, que linda dança faz a poeira no raio de sol em frente da janela! Corra. Ana Tereza, preste atenção na corrida da chuva na vidraça. . . 
Mamãe adorava ler. Achava que o mundo da leitura era mágico, e, para que eu entrasse nesse mundo mágico, me alfabetizou aos quatro anos de idade.
Quando a comida começava a escassear na prateleira, minha mãe mudava rapidamente de humor. Então, ela se tornava toda rancor e no seu rosto estampava uma angústia nebulosa. Por qualquer bobagem que eu fizesse, apanhava, mas apanhava tanto que minhas costas ficavam com manchas sangrentas. 
CAPÍTULO V 
Uma das primeiras coisas que guardei na minha memória sobre a minha infância foi uma viagem que fiz de caminhão. Que idade teria eu? Pelas contas de minha mãe, deveria ter uns três anos. 
Estava sentada no colo de mamãe, íamos com um motorista de uma fazenda fazer compras numa cooperativa. 
O motorista conversava o tempo todo com um radinho que tocava músicas caipiras. Gritava, às vezes, com os passageiros que iam na carroceria do caminhão. 
Um pouco depois de sairmos do Patrimônio, o motorista fundou o pé no acelerador com muita força. 
O caminhão ia cada vez mais rápido, os passageiros estavam aflitos e apavorados. 
Por fim, mamãe se inclinou em direção à cabine do caminhão e perguntou ao motorista se era necessário mesmo ir tão depressa. Mas o motorista virou para ela e gritou num vozeirão: – A necessidade é uma serpente escorregadia, e apertou ainda mais o acelerador. 
Meu desespero aumentou, quando ao contornar uma curva muito fechada entramos numa cerração toda raiada de cores cambiantes, era como se entrássemos num pesadelo. O motorista pisou no breque com toda a força. Voltou o barulho. Eram gritos assustados, os pneus derrapavam. Minha mãe gritou tão alto que me assustou ainda mais. 
Ao retornarmos das compras, mamãe comentou com papai sobre o significado da frase de ser a necessidade uma serpente escorregadia, frase que ela adotou sempre que estava em situação conflitante. Meu pai respondeu que a frase era sobre a necessidade que o motorista sentiu de ter emoção diferente e que a necessidade é como um bicho, que faz com que as pessoas não digam a verdade sobre o que sentem. 
Até hoje, quando vou subir em caminhões que me levam para a roça, sinto um frio que percorre minhas entranhas, como se a qualquer momento aquele motorista maluco fosse novamente aparecer no volante do caminhão. 
CAPÍTULO VI 
A estrada de ferro não chegou até o nosso Patrimônio, e ele é mais parecido com uma colônia com suas duzentas casas e um pouco mais de mil habitantes. O café conquistou completamente os espaços em torno do lugar. São poucas as lavouras de gêneros alimentícios. Os imensos cafezais são, praticamente, os principais componentes da paisagem.
O café significava riqueza e ostentação. 
Ele foi introduzido na região já no início do século XX. São enormes as fazendas e elas se multiplicavam por toda a região. A colheita começava sempre em fins de maio. 
O primeiro trabalho é a varrição. Depois vem a derriça e em seguida executa-se a abanação. É a parte do serviço que mais gosto. Ao ver os grãos de café recolhidos sendo movimentados nas peneiras. Nós, como boias-frias, quase não participamos do processo da secagem, que leva aproximadamente dez dias e nem do beneficiamento, quando os grãos são descascados e separados em tipos. 
Nós somos muito solicitados no processo da carpa. É quando nossas mãos ficam enrrugadas e doloridas com a quantidade de calos que se espalham pelas nossas palmas. Essa carpa é realizada cinco vezes por ano, para que o mato não cresça nos corredores da plantação. 
Na época da colheita eu trocava em primeiro lugar o berço e depois a escola pela roça. 
Muitas vezes, aos quatro anos de idade, minha bonequinha de pano me acompanhava na colheita. 
Pegava minha canequinha de um litro e ia me debruçando sob os pés de café, fazendo a varrição. Eu me esforçava além de meus próprios limites, na ânsia de acompanhar meus pais, por isso fiquei até hoje com problemas nas costas que doem continuamente, principalmente quando faz frio. 
Mais tarde, aos seis anos, abandonei várias vezes a escola, e de segunda a sábado eu acordava pouco depois das cinco horas da madrugada. Minha mãe arrumava a nossa comida numa marmita e corríamos para o ponto de embarque. 
Uma vez, quando eu tinha sete anos, assisti a um fato que colocou dentro de mim as sementes da revolta contra o desrespeito ao ser humano. 
Uma criança chorava perto da mãe e não queria colher os grãos que teimavam em cair longe da peneira. Continuou chorando por longo tempo. Ninguém dava atenção, talvez com medo do fiscal da fazenda. Lá pelas tantas, ela cessou de chorar e o fiscal, mal- humorado, cutucou a menina com as botas, para que ela fosse deitar em outro lugar porque estava interrompendo a passagem dos trabalhadores. A criança não se mexeu. Estava morta. Todos pararam a colheita. Uma cena que jamais esqueci. O sol, como se houvesse derramado sangue no horizonte, jogava seus últimos raios sobre a cálida cabeça da criança. Todos acompanharam a mãe rezando soturnas orações. 
O que ainda mais me impressionou foi a impassibilidade da mãe. Seus olhos ficaram enxutos, secos, como era toda a paisagem. Nunca consegui entender o porquê daquele sacrifício – uma mãe com uma filha morta nos braços – sem lágrimas, parecendo um rio assoreado. 
Aprendi mais tarde que, se uma mãe chora, molha as asas dos anjos da guarda que vêm buscar a criança para levá-la para o céu.
Quando enterramos aquela criança, no outro dia, ficou dentro de mim um túmulo de pedras soltas. 
Voltei para casa segurando firmes as mãos de mamãe, e ela baixinho cantava: 
“Batem palmas lá fora… 
— Vai ver quem é minha filha! 
- Não é ninguém patroa. 
É essa gente boia fria 
Que vem pedir emprego, 
Por um prato de comida 
Já mandei a tal embora. 
Que tamanha amolação!” 
CAPÍTULO VII 
Estou há quatro horas na Estação Ecológica e percebo como o descanso ornado pelo verde do local está fazendo bem para todos nós. 
É uma suavidade pousar a vista sobre estas árvores, como se elas nos inundassem com estranhas riquezas. 
— Por favor, aluno, antes do lanche gostaria de completar o que programei para a primeira parte da excursão. 
— Diretora, estamos acordados há tempo… Disse uma aluna do grupo. 
— Daqui a pouco nós vamos lanchar. Mas antes preciso reconhecer, perante o grupo, a importância do Sr. Olavo Ferraz para esta Estação Ecológica. 
Para mim, a Dona Emília, nossa diretora, é como um santuário. É uma mulher pequenina, de busto grande e olhos enormes e azuis e muito, muito séria em tudo que abraça. Faz crítica sobre nosso comportamento com muito cuidado, educadamente, mas muito duramente. Quando chego na escola, detestando meu dia de trabalho na roça, com meu corpo dolorido, certa de minha derrota final na vida, porque nunca serei nada além de uma boia fria, toda minha tristeza desaparece quando a vejo nos esperando no portão da escola. Alguém se importando comigo, verdadeiro milagre. Entro, às vezes, para dentro da escola, com as suas mãos sobre os meus ombros, então me sinto completamente confiante e segura. 
— Há aproximadamente 60 anos, Sr. Olavo Ferraz adquiriu uma gleba de terra de 7.500 ha, com mata, no município de Gália e separou 2.700 ha como reserva florestal e zoológica, destinada à caça.
Em agosto de 1976, através de um Decreto Estadual, foi declarada como área reservada de utilidade pública, para fins de desapropriação para a constituição de reserva florestal e preservação de recursos naturais. 
- Diretora, perguntou Olívia (minha melhor amiga), além de ser utilizada a reserva para estudo ambiental, quais seriam suas outras utilidades? 
Olívia sempre gostou da natureza. Tem a minha idade e é uma morena muito bonita. Sempre considerou qualquer dano à natureza como afronta pessoal. 
— Sim, Olívia, a observação apurada desta reserva já rendeu ricos frutos para o campo das ciências naturais. Aqui é uma área de interesse de vários botânicos brasileiros que a percorrem de ponta a ponta na coleta de informações. 
Após alguns minutos, sentamos numa clareira, com o sol muito amarelo, brilhando por cima das árvores. 
Nós estávamos nos divertindo muito, apreciando o calor e o lanche que a escola nos oferecia. O prazer de deixar o Patrimônio com suas misérias, gozando aquelas brisas amenas. 
CAPÍTULO VIII 
Quando eu tinha seis anos, peguei o embornal que levava para a roça e coloquei um caderno que minha mãe comprara no empório do Patrimônio. Coloquei o lápis e a borracha numa caixa vazia e rumei, decididamente, para a escola, que ficava a cinco quadras de minha casa. A vontade de ir para a escola era enorme, continuar decifrando o significado daquelas letras encerradas entre as capas dos livros da minha mãe! 
Chorei muito no primeiro dia de aula. Senti medo ao ver tanta gente estranha. A diretora me colocou no seu colo e me convenceu a ir para a sala de aula. 
Como já possuía alguma leitura, fui introduzida na primeira série adiantada. 
Não gostei da professora. Humilhava-me por qualquer motivo, até que um dia fui mandada para a diretoria. A diretora conversou bastante comigo até na hora do recreio, então me entregou aos cuidados de outra professora chamada Dona Nena. Foi amor à primeira vista. Alegria tão grande que aprendi a gostar da escola e me provocou a tal ponto que aprendi a ver o mundo de outra forma e também me levou a refugiar na leitura, quando o desânimo me rondava. 
Dona Nena apreciava meus questionamentos, discutia sempre os problemas do cotidiano conosco e, juntos, procurávamos solução. Aprendi pensando, buscando, descobrindo, tirando minhas próprias conclusões. Foi minha professora até a quarta série e o que mais guardei na memória sobre ela foi que sempre comparava uma criança com ela mesma. Respeitava nossa individualidade. 
Nunca houve reprovação na nossa turma, pois ela dizia que cada criança tinha seu ritmo de aprendizagem e que, se reprovasse algum aluno, estaria destruindo tudo que tentava construir no dia a dia.
Quando eu cursava a terceira série e estava faltando à aula para ir ajudar meus pais na colheita, ela foi me buscar na roça. Nem o fiscal nem meus pais queriam tomar conhecimento de sua presença. 
Pensei muito nas razões que levaram meu pai a ignorar a professora. Talvez desejasse evitar falatório, ou receasse assumir publicamente a responsabilidade de trazer sua filha, com apenas oito anos, para trabalhar na colheita. 
Minha mãe se justificou dizendo que ela era obrigada a levar sua filha com ela porque não tinha creche onde deixá-la. Além disso, ela explicou para a professora, que os empreiteiros ficavam com a maior parte do que eles ganhavam no dia a dia e que eu, por ser pequena, ficava só com dez por cento da diária. 
Naquele dia não houve as conversações usuais na minha casa. Ao regressar, achei meu pai muito triste, falando baixo, sem reparar no sentido das palavras. 
CAPÍTULO IX 
Embora eu tenha sido criada sem irmãos, não foi pior e, provavelmente, era muito melhor do que aquelas famílias que se enchiam de filhos e os mandavam para a casa dos avós para se verem livres deles. 
O fato de não ter irmãos não teve influência alguma sobre minha personalidade. Eu era igual às outras crianças. Tinha inúmeras amigas. Quando não estava na roça ou na escola, vivia solta pelos matos da fazenda, perseguindo marrecos, esmagando formigas entre os dedos, nadando nos riachos até que a noite me jogasse na cama, onde meu pequeno corpo dormia cheio de silêncio. 
A noite sempre me assustava. Era misteriosa, com os piados da coruja, cheia de estalos e galopes assombrados. 
Gostava muito da melancolia que irradiava na hora do crepúsculo. Parecia que tanto os bichos como os homens se tornavam mansos, com paz no coração. 
Era o supremo momento de paz dos filhos da terra. Era a hora em que os homens, unidos pelo cansaço, faziam uma pausa para descansar. 
Quando meu pai chegava em casa triste, nessa hora crepuscular, nós já sabíamos o que ele iria dizer: 
- O “fulano” deixou este lugar onde nasceu para se libertar. Foi embora para a cidade grande. Liberdade que a fazenda lhe negara. Vão à procura de um lugar onde não haja tantos sofrimentos. 
Uma vez, um compadre de meu pai se despediu de todos nós, dizendo: 
- Vou embora daqui. No roçado nem temos um lugar para sermos enterrados, na cidade a polícia se encarrega de dar um destino ao corpo. Se eu vou morrer aqui por causa de todas as misérias, sem amparo nenhum, então é melhor morrer na cidade, que pelo menos uma sepultura rasa darão para este cristão que trabalhou sol a sol, nestas
fazendas de café para não ter nada de seu. Nesse dia, minha mãe contou a seguinte cantiga para eu dormir: 
“Trabalhei que nem besta 
De fazer calo na mão 
O meu patrão ficou rico 
E eu pobre, sem tostão 
Não aguento a fome 
Não há mais perdão 
Deus dorme nos ares 
E os ricos nas camas 
Acordo no chão 
Eu quero o meu pão” 
CAPÍTULO X 
Quando terminei a quarta série, fiquei sete anos sem estudar, querendo o mundo só para mim. 
Nessa época tinha dez anos. Terminei o primário como melhor aluna da escola. 
Fiz um discurso que foi muito aplaudido e publicado num jornal da região. Na chegada do Novo Ano balões de gás faziam companhia para as estrelas fixadas no céu. Um grupo de violeiros local percorria as ruas lembrando a todos que o ano velho já tinha partido. 
No primeiro dia do ano, uma tragédia evaporou as esperanças daquele local, levando a um abatimento profundo, minguando as parcas ilusões que davam um colorido para as nossas vidas. 
Naquela tarde caiu uma chuva de pedras que destruiu toda a plantação da região. Todos os cafezais ficaram despidos dos grãos que já estavam prontos para o amadurecimento. 
Ao meio dia uma brisa fria esfriou toda a região. A chuva veio mansa no início e foi engrossando. Depois de uns minutos a chuva deu lugar ao granizo. Caía numa violência tão grande que derrubava os galhos das árvores e trincava as vidraças das janelas. 
Em pouco tempo, o quintal ficou acumulado de gelo 
Quando a chuva parou, meu pai me levou para mostrar os estragos que a chuva provocara.
O rosto do meu pai estava horrorizado. 
A safra estava no chão. Paramos numa vala onde havia camadas de gelo com mais de um metro. Minhas amigas atiravam punhados de gelo umas nas outras. Mas a população adulta foi para o cafezal e ficaram andando em torno dos cafeeiros que antes da chuva estavam carregados de grãos, esperando o amadurecimento para o tempo da colheita. 
Voltamos para casa. Meu pai segurou no meu ombro e falou: 
- Vou- me embora. Disse, correndo os olhos pela casa. Como se procurasse alguma solução mágica para seus problemas. 
- Vou sair daqui, nem que seja só por este ano. Continuou falando com sua voz cansada. “Muitos saem daqui e vão para a cidade grande sem saber o que esperam realmente do lugar”. Começou a mexer na barba, devagarinho: 
- Eu tenho um dinheiro guardado no colchão. Confio em Deus. Sei que não vai faltar o necessário e você, Ana Tereza, vai comigo para São Paulo. 
Eu quis protestar, mas meu pai implorou: 
- Fica quieta, minha filha. Nem um pio. Lá na Rua Barata Ribeiro mora meu irmão. Vamos tentar pelo menos salvar o ano. Vou abraçar qualquer emprego que aparecer. Que os céus nos ajudem a salvar o ano. 
CAPÍTULO XI 
No final do mês de janeiro, me lembro bem, fomos até Marília e partimos para São Paulo numa viagem de trem. 
O trem rasgava os campos e, quanto mais rasgava, mais doía o meu peito. 
A principal razão era por aquilo que deixava: minha mãe, meus livros, o rio onde pescava, minhas amigas… 
Estava trocando meu Patrimônio pela capital do Estado. E quem era esse meu tio, que prometera emprego ao meu pai? 
Eu tinha medo. Dormi a viagem toda e só acordei quando chegamos. Era o fim do que conhecia e o começo do que ignorava. 
A Estação da Luz estava coberta de um nevoeiro denso que mais parecia as horas da madrugada no Patrimônio, só que o relógio marcava dez horas da manhã. 
Papai segurou forte na minha mão, enfrentado os olhares dos transeuntes que conheciam muito bem gente caipira. Fomos caminhando devagar. 
Não sabíamos que ônibus tomar, por isso fomos caminhando pelas ruas daquela cidade tão cinzenta e estranha.
Estava me sentindo muito pequena naquela cidade tão grande. Foi aí que chegamos a uma avenida muito grande e vimos uma quantidade enorme de carros. Achei interessante. Papai colocou a mala entre as pernas e ficamos ali longo tempo observando, pesquisando para ver para onde deveríamos ir. 
Estávamos na Avenida São João, conforme nos disse um guarda que passou perto de nós. No centro de São Paulo. 
Achei a cidade muito incerta, não consegui compreender por que as casas eram tão altas. Papai perguntou: 
O senhor pode nos dizer onde fica a Barata Ribeiro? 
O guarda piscou os olhos e respondeu: 
- Não é muito perto. Mas se o senhor quer ir a pé, então vá até o fim daquela avenida, vire à esquerda e vá sempre em frente. 
Eu ia lendo as placas conforme o guarda falara e não tardou para que encontrássemos a rua e o local onde morava meu tio. 
- Papai ficou decepcionado com o cortiço onde seu irmão morava. Não tinha ninguém no local. Depois de confirmar que o endereço estava correto, e era realmente ali que seu irmão residia, não o esperou chegar. Foi saindo daquele lugar, envergonhado, por ter tentado a sorte num lugar desconhecido. 
Voltamos devagarinho, como se seguíssemos nossos próprios rastros. Papai estava triste, porque pensara que seu irmão estivesse bem de vida. 
Estava cansada e com fome. Fui me encolhendo com vontade de parar e não sair mais do lugar. 
Papai pagou um carro de aluguel que nos levou até a porta da estação. Logo depois estávamos com a passagem do trem. Fomos sentar perto de um povo que, como nós, estampavam no rosto a decepção. 
Quando o trem chegou, entramos no vagão de segunda classe e meu pai cantou baixinho: – É do sonho 
O destino de um pobre 
Busquei meu sonho 
E não tive sorte. 
CAPÍTULO XII 
Ao olhar a Reserva de Caetetus me pergunto: “por que só agora o homem se preocupa com questões ecológicas? Será que isto está ocorrendo porque a continuidade da vida do planeta está ameaçada?”
- Ana Tereza olha quem chegou! Gritou minha amiga. 
- Fique quieta, Olívia, não quero que o professor de história perceba nada, disse baixinho. 
Meu Deus, porque me sinto tão assustada quando vejo o professor? Será que ele veio até aqui por minha causa? Como eu gostaria de ser amada por ele de um modo nunca antes ocorrido. 
Conheço a maneira de ser desse professor. Ele não suporta fazer os outros sofrerem, nunca censurou ninguém na sala de aula e sempre fez o possível para que nenhum aluno deixasse de participar da aula. Eu o vejo como um homem sensual e que pode amar com facilidade. 
Toda a minha dor, meu cansaço desaparecem quando ele entra na sala de aula. Quando me olha me sinto confiante e segura. Seria um verdadeiro milagre se ele me amasse. 
Estranhamente, ele não é convencido quanto aos seus encantos físicos, seu magnetismo pessoal. Na verdade, acho que mesmo o seu rosto sendo um pouco diferente, pois, seus olhos são claros demais, mas ele compensa tudo através da sua constante vivacidade, que sempre magnetiza todos nós. 
Olívia já descobriu que estou apaixonada por ele. Agora mesmo adotou a posição de minha guarda-costas. Está falando comigo com muita autoridade, como convém a alguém que deseja descobrir alguma coisa. 
Falando baixo e com respeito, como a situação requeria, ela me perguntou: 
— Ana Tereza, você acha que o professor Ângelo veio até aqui com algum objetivo? 
Nesse momento, o professor passou na minha frente, com aqueles olhos surpreendentemente verdes claros e sorriu para mim. 
- Não sei, eu respondi. Mas acho que ele sabe que o transformei no objetivo central de minha vida. Este meu amor é um relacionamento injusto. Ele não se interessará por uma trabalhadeira braçal, uma rude mulher do campo. 
O1ívia voltou ao mesmo assunto: 
— Sabe, Ana, você é a moça mais bonita e inteligente da escola; o espírito mais brilhante e a mente mais aberta, duvido que ele não esteja também apaixonado por você. 
Pela primeira vez sinto o meu verão incompleto. Nas aulas de história a minha mão segura muito mal a caneta, num vai e vem na linha reta do papel. Tento dominá-la, mas não consigo. 
Olívia me compreende. Nunca riu ao ver o meu embaraço, mas sempre me dá um olhar de compreensão.
Voltamos novamente para o centro da Reserva. O professor chegou ao meu lado, rindo e me disse com um gosto na voz: 
- Ana Tereza, que bonito o lugar, não? Em setembro esta mata fica diferente. As folhas novas dão um aspecto de irrealidade ao local. 
— Sim, eu respondi, gaguejando. Gosto de lugares sem manchas da civilização. 
— Então você não gosta da história, Ana Tereza? 
Não pude dizer nada, só fiquei olhando para ele sem saber como responder. Estava envergonhada por não conseguir disfarçar a minha emoção. Não sabia como proceder. 
Amar pela primeira vez, com tantos anos vividos, é tão estranho! Começo a reagir às coisas de forma tão impensada. Cada vez que olho para o professor, o meu coração dá um salto. 
Eu acompanhei o professor e sentei-me num tronco de árvore. Ele sentou a meu lado. 
— Aposto que você pensou que hoje eu viria na excursão – disse ele. — Falou muito sobre este passeio na sala de aula no dia de ontem, disse o professor. 
— Realmente. Pensei que os problemas sobre o meio ambiente devessem preocupar não só a geografia ou a ciência. A história pode também ajudar o homem a mudar sua atitude em relação ao meio ambiente. 
O professor Ângelo sacudiu a cabeça, em sinal de afirmação: 
— Uma ideia esperta a sua. Estou aqui exclusivamente para vê-la, apesar de concordar que a história é relevante para colaborar no processo de conscientização sobre os problemas ambientais, mas estou aqui principalmente para sentir como você é, além da sala de aula. 
Senti o meu rosto ferver e pensei: 
- A sua presença não é dessas que se possa recusar. Agora terei sua companhia por algumas horas. 
O professor me olhou com o olhar calmo e parece que todo o meu corpo parecia dizer: olhe-me, por favor! 
- Ana Tereza, como o destino é inexorável! Vim para dar aula no Patrimônio, escolhi um lugar tão retirado, evitando o mais possível qualquer agitação. Alguns dias depois de minha chegada, começou a chover… e você sabe o que trouxe esta chuva? 
Baixei os olhos. Ele me examinou sem cerimônia e continuou falando: 
- Uma aluna interessante, com 25 anos, sensível e curiosa. Não tenho receio de dizer que desde a primeira observação que fez na sala de aula, procurando esconder a sua
angústia debaixo de palavras perdidas, você se tornou a parte mais profunda da minha vida. 
Meus pensamentos começaram a divagar. Será que não estava sonhando… Obriguei-me a responder alguma coisa, mesmo procurando palavras para expressar o espanto de saber que o professor sentia afeição por mim. Não queria ouvir agora o que ele estava dizendo, nem mesmo dizer que o amava. Queria que a essência da vida o dissesse. Em qualquer lugar. Sem espera. Sem tempo. 
Eu estava ligeiramente impaciente: 
- Debaixo de minha solidão, do meu viver tão penoso como filha da terra, neste lugar lindo, me aceito como sou. Na sala de aula, quando vejo seus olhos me fitando, não sei aguentar. Não consigo olhar no seu olhar, sinto apenas que sou uma aluna boia fria. 
O professor falou: 
-Faz dez anos que perdi uma namorada num acidente. Pensei que nunca mais me interessaria por alguém. Apesar de todas as contradições e decepções que a vida note oferece e nos destrói, consegui superar o meu pesar ao observar a sua naturalidade de viver, a sua preocupação pelos companheiros de trabalho. Você me cativou Ana Tereza. 
Pela primeira vez na vida escondo meus olhos nas mãos. 
Um raio de sol faz bri1har as lágrimas que caem e marcam seu caminho pelo meu rosto. 
- Perdoe-me, professor. Muita emoção machuca o coração. Até agora apenas cumpri o rito de existir. Agora tenho que descobrir um novo caminho. 
O professor ficou de pé na minha frente. Para surpresa minha, vi um sorriso estranho no seu rosto. 
— Por favor, Ana Tereza, se o caminho for longo, não tenha medo. Você não estará sozinha. 
CAP1TÜLO XIII 
Não posso dizer com confiança se o meu afastamento da escola foi motivado apenas por razões econômicas. 
Aos treze anos de idade, respondi para a diretora que não retornava porque não queria ser parafusada numa cadeira dura para estudar durante horas e horas. 
Não sei se era por força da natureza, mas não conseguia me manter imóvel, petrificada, reduzida à contemplação das paredes, enquanto o sol brilhava lá fora. Não conseguia ser submissa às ordens da professoras. A posição sentada era um sacrifício enorme, me doíam as costas e os meus pés ficavam formigando. A escola, durante as quatro primeiras sérias, não conseguiu domesticar minha máquina fantástica de desejos e prazeres.
A diretora procurava de todas as maneiras nos reter o maior tempo possível dentro da escola para que aprendêssemos até onde podíamos. 
Prometi para ela que um dia voltaria, mas no momento queria ser livre, pelos menos da escola. Eu sabia também que o simples fato de ser curiosa e inteligente me dispunha ao processo de me educar. O meu pai sempre me dizia que escola é a vida. Então resolvi frequentar apenas essa escola. 
Nessa época, era fácil para eu ver que minha mãe estava se desintegrando de algum modo. Pensei que o excesso de trabalho na roça, associado com um tombo que ela levou de cima do caminhão que nos transportava para a roça, tivesse abalada sua saúde. As bochechas estavam murchas e os braços finos, enquanto a barriga crescia e os pés inchavam. Seus olhos castanhos tinham um brilho que não era muito normal. E havia algo errado com o seu andar, um falsear no passo ou às vezes um desvio para o lado. Eu estava preocupada com ela, porque apesar da luta nos cafezais, ela fazia outros tipos de trabalho nos fins de semana. 
Ela conversava comigo de forma vagarosa, me encorajando e me aconselhando nas coisas da vida. Eu ficava abismada com a quantidade de trabalho que ela tinha. Falei sobre isso com ela, que estava cavando um buraco na sua saúde do qual nunca havia de sair, mas ela não ligou para a minha advertência. 
— Tenho uma saúde de ferro — garantiu. Estou com seu enxoval quase terminado. Mais um ano, talvez, e aí você estará pronta para achar um belo marido. 
Aí tínhamos as piores brigas. Eu a enfurecia com a minha frase, já conhecida, de que só me casaria depois de entender o significado da vida e só se fosse por amor verdadeiro e não por falsa paixão. 
— Você, minha filha — dizia — tem um raio de uma inteligência que a pode transformar no que você quiser. Você tem ideias. Sabe escrever muito bem. Mas gosta de pensar que pode um dia controlar sua vida, que pode escapar das armadilhas que a vida nos prega. 
— Mamãe, a senhora está certa, não vou me casar só para satisfazer um instinto biológico. Vou primeiro ler o mundo nos livros e no meu viver. Não quero desperdiçar o quase nada que tenho. 
Mamãe concordou. 
— Sabe, eu também quis uma vida diferente. E a minha vida virou um grão oco de café. Eu invejo seu modo de viver. Com treze anos de idade você é muito segura, sempre sabe o que quer. 
Ela achava que eu controlava minha vida,, que eu não sofria, que não sentia crises de solidão, de ódio pelo trabalho que executava. Havia tantas coisas que eu não compreendia. Mas no momento eu podia dizer com sinceridade que duas coisas eu sabia: que minha mãe estava definhando; e a outra é que vivíamos num Patrimônio, onde todos sofriam com a vida que levavam e estavam totalmente conformados com isso.
Mesmo que os livros que eu sempre lia dissessem que o ato de viver valia a pena, para mim a vida nunca fora grande coisa. 
Foi então, de repente, que minha mãe teve um problema. Um dia, na roça, recebi um recado de papai, que mamãe tinha sido internada. Bem no fundo do meu coração, há muito tempo estava preocupada. Ela estava muito frágil e parecia estar sempre cansada. Fiquei com tanto medo que saí do trabalho correndo e fui até o hospital. 
Quando cheguei, o médico de plantão me disse baixinho: — não há mais nada a fazer para salvar a sua mãe. 
Fui andando devagarinho para o lugar onde minha mãe estava. Uma irmã de caridade estava segurando as mãos de mamãe e rezava a prece dos agonizantes. 
A saudade de mamãe doeu por muito tempo. 
Durante o velório eu não chorei. Nem que a dor me matasse, que me enfiasse pela terra adentro, ninguém ia me ver chorando. Eu sentia amargura e ódio. A lavoura de café tinha contribuído para a morte prematura da mamãe. Nós não éramos nem trabalhadores rurais, menos ainda volantes ou diaristas, nem tínhamos direitos trabalhistas. Éramos apenas boias-frias. E como boias-frias éramos explorados pelo turmeiro, o gato, e também pelo fiscal da fazenda. 
A mamãe se matou; como o ganho era por produção ela se esforçava além dos limites para acompanhar o papai. Esse trabalho na roça sempre foi muito extenuante e penoso para uma mulher. 
Quando cheguei em casa, na volta do enterro e a encontrei vazia, peguei o livro de Ernest Hemingway que ficava sempre na cabeceira da cama de mamãe e chorei. Não aquele choro alto e escandaloso de minha mãe, quando ela e papai discutiam, mas um choro baixinho e cheio de soluços, uma tristeza esquisita e fina que parecia nascer lá no fundo do coração, e então essa amargura saía aos poucos através das lágrimas. 
Deitei um pouco e deixei meu corpo amolecer. 
Os dias foram passando e o meu mundo foi se tornando pequeno, fui deixando de sentir muitas coisas. A voz da minha mãe ficou longe, longe ficaram suas canções, aí eu fui me esquecendo de como era ser afagada e amada por uma mãe. 
Até a dor da saudade eu fui esquecendo. Só uma certeza ficou: não éramos os cordeiros de Deus. Na vida tínhamos nascido desassistidos da sorte e assim éramos — ninguém. 
Os filósofos diziam que nascíamos um organismo e nos tornávamos pessoas. Mas eles se esqueceram de dizer que o tempo, o vento e o sofrimento não colaboram para esse vir a ser. 
CAPÍTULO XIV 
Nem bem terminamos de lanchar, a diretora já nos chamava para fazermos exercícios, utilizando árvores.
Eu não queria abandonar aquele sonho. O professor também foi convidado para a atividade. Então eu tentei marcar no meu coração aquele momento, pois pela primeira vez falávamos sozinhos. Coloquei minha mão bem de leve na sua boca, como se tentasse unificar um sentimento. 
O professor observou minha fisionomia, como se tivesse esperança de que ela revelasse algum segredo. 
Dessa vez, olhando bem, notei que ele estava contente por ter falado comigo. Deu-me um largo sorriso. O seu olhar era extraordinariamente meigo para um homem. 
— Vou ajudar você nos exercícios — disse ele me desafiando 
Através de um sorriso maroto respondi: 
— Não, as minhas amigas ficariam com ciúmes. 
O professor Ângelo colocou as mãos no meu braço. Eu estava de pé ao seu lado e comecei a sentir um pouco de vergonha por não saber como proceder perto da minha diretora. 
Olhou para mim. Vi uma estranha expressão na sua fisionomia. Ele tinha notado minha preocupação: 
— Não se afobe — prometeu ele – Dou um jeito nesta situação. Vou falar com a diretora que estamos namorando. 
Tentei sorrir. Meus pensamentos estavam correndo para saber como enfrentar uma situação para a qual não estava preparada. Uma coisa era certa: eu tinha vergonha de enfrentar meus amigos. Basicamente era vista como uma moça tímida. Agora eu havia conquistado um homem tão bonito, como eles iriam acreditar que eu merecia aquele sentimento do professor por mim? 
Meu rosto ficou muito quente. Tinha medo do que estava para acontecer. 
- Vamos, Ana Tereza, a diretora nos espera, ele me disse. 
- Alunos! – começou a diretora – as árvores se constituem em um dos mais importantes representantes do reino vegetal, tanto ecologicamente como economicamente. Elas também oferecem uma valiosa contribuição para a manutenção do equilíbrio ambiental. No sentido de auxiliar a compreensão de vocês sobre as árvores. fiz algumas questões que estão mimeografadas. Tentem respondê-las, utilizando uma árvore-padrão. Ao concluir, investiguem outras árvores encontradas próximas a ela. 
Depois que terminei as atividades, fiquei fascinada com o grau de conscientização sobre as árvores que me trouxeram os exercícios. Mesmo tendo crescido cercada de árvores não sabia quase nada sobre elas.
Olívia também estava fascinada com as descobertas, estávamos começando a perceber realmente uma árvore. Foi aí que ela me perguntou: 
- Por que algumas árvores têm tantas folhas danificadas. 
Sorri para ela. 
- Acho que são os fungos ou a poluição que o vento traz. 
- Olívia perguntou, desconfiada: — Como você pode confirmar isso?Dei um sorriso maroto. 
- Uma folha me contou. 
Nesse momento, o professor Ângelo aproximou-se de nós, esmagou uma folha entre seus dedos e pediu para que cheirássemos. 
Tomei lentamente suas mãos e cheirei a folha esmagada. Enternecida pela mão que me arrebatava… 
- É cheiro de vida — eu respondi. 
CAPÍTULO XV 
Aos quinze anos já era uma mulher madura. Já tinha herdado da vida a capacidade de associar o amor ao sofrimento. Como morava num Patrimônio enfeitado de rezas, novenas e tristezas, quase não me distraia. Além dos livros que o vigário ou a diretora me emprestavam, eram poucos os momentos e lazer. Cismava nessa época que o tempo passava quase arrastando. 
Meu pai nunca mais gostou de alguém e eram poucas as coisas que o interessavam. Acho que na vida dele. Depois da morte de mamãe, prevaleceu o medo de sofrer. Minha casa se tornou um lugar de desalento, sem as cantigas de mamãe. Como continuar amando meu pai, se agora ele chegava em casa bêbado e cambaleante? 
No sindicato aprendi que os boias-frias deveriam lutar por condições mais dignas de trabalho. Os representantes dos trabalhadores rurais nos reuniam para discutirmos a nossa situação. As soluções eram difíceis. 
Fiquei contente um dia ao ler um cartaz que dizia: é uma afronta à legislação e um desrespeito ao ser humano transportar os trabalhadores em caminhões sem ter nem ao menos um toldo”. 
Era verdade. Andávamos quilômetros segurando nossa enxada e nossa peneira, apertadas, em caminhões sem nenhuma segurança, muitas vezes dirigidas por motoristas sem carteira de habilitação. 
Às vezes, nas entressafras éramos obrigados a executar qualquer tipo de trabalho para conseguirmos sobreviver.
Durante a safra o dia nem mesmo amanhecia e o caminhão de boias-frias rasgava as estradas, lotado de mulheres, crianças, homens barbados e velhinhos. 
Sempre usei calça de homem debaixo do meu vestido. Usava um boné e um lenço na cabeça. Todos nós trajávamos da mesma maneira. 
Mamãe, quando viva, ensinou-me a fazer um óleo com as raízes de uma árvore que ajudava a minha pele a não ser queimada pelo so1. 
Procurava me alimentar com muita cenoura, beterraba e outros legumes. Eu mesma os cultivava no fundo de casa. Tinha raiva quando via minhas colegas comendo arroz puro. Horta era tão fácil de fazer. Todos nós tínhamos quintal. Parecia que meus colegas tinham nascido só para sofrer, como se tivessem fechado a porta da vontade de viver. 
Aquela gente que trabalhava o dia todo nos cafezais caminhavam num automatismo de sonâmbulos. Era um trabalho que anulava a consciência do que estávamos fazendo e dos perigos que nos assaltavam. Eu também era uma impotente. Não conseguia encontrar soluções para nossos problemas. 
Lia sempre, numa insaciável vontade de encontrar alguma solução mágica “que trouxesse mais dignidade para o trabalhador rural, mas a leitura nunca aplacava minha angústia. 
Muitas vezes eu chorava em segredo diante da infelicidade dos meus companheiros de jornada. Ficava comovida com o sofrimento das crianças que colhiam café com chupeta na boca. 
O desamparo dos velhos que não conseguiram se aposentar, pois nenhum fazendeiro quisera assinar sua carteira, e eram obrigados a continuar trabalhando até mesmo no período da carpa. 
Tinha ódio do orgulho e da prepotência dos políticos e fazendeiros da região, cuja injustiça esmagava a todos nós, pois não se preocupavam e nem mesmo pensavam numa reforma agrária que poderia resolver todos os nossos problemas. Só para exemplificar, trabalhei numa fazenda com quase 2000 alqueires. 
Sentia-me muitas vezes confusa. Traduzia tais estados de espírito ao meu ritmo de vida, Pois se não podia fazer nada, tinha a impressão de ajudar na caminhada que nos levaria a uma total destruição. 
Até essa época, nunca tinha sentido o olhar de um homem sobre mim. Eu não tinha tempo para me deter. Pensava que era necessário muito tempo para semear, alimentar e ver crescer um sentimento. No fundo mesmo, eu acho que não queria passar pelos sofrimentos em que viviam as mães boias-frias, que logo após o casamento já estavam com seus corações deformados, onde acabava rapidamente o frescor do amor. 
Também, o que esperava uma mulher do casamento? Quantas não perdiam os maridos, que partiam para a capital em busca de melhores condições de vida e nunca mais voltavam; quantas não abortavam devido ao trabalho penoso da roça!
Para mim, naquela época, o amor seria como uma janela para as trevas, para o vácuo, para coisa nenhuma. 
CAPÍTULO XVI 
Aconteceu num sábado de aleluia. 
O turmeiro daquela colheita se chamava Severino. Apesar de eu ter completado dezesseis anos e estar bem alta, achava-o do tamanho de um monstro. 
O senhor Severino, de cabelo encaracolado, olhos castanhos num rosto vermelho, vivia explorando o povo do Patrimônio. Obrigava-nos a render o máximo na colheita e nos pagava uma ninharia. As fazendas pagavam para ele, e ele nos roubava. Era por isso que ele era chamado de gato. Era muito esperto. 
Nós já começávamos a colheita devendo, pois tínhamos que comprar as peneiras e os rastelos. 
Nesse tempo, o Patrimônio começou a abrigar muitas pessoas vindas do Paraná. Eram desempregados que vinham tentar arrumar emprego na colheita do café, uma vez que nas suas regiões de origem não tinham trabalho nessa época do ano. 
Nós os chamávamos de peões. Vê-los amontoados num galpão na periferia das fazendas, era como se olhar um cenário de tragédia. Viviam sem as mínimas condições de higiene. E ficavam num isolamento extremo. 
Então, o senhor Severino, querendo apressar a colheita para aproveitar aquela Mão de obra extra, nos obrigou a trabalhar no sábado de aleluia, o que para muitos era um ato de sacrilégio. 
Éramos obrigados a trabalhar porque, caso contrário, além de não recebermos, corríamos o risco de ser dispensados. 
Muita gente foi trabalhar naquele dia com amuletos, cruzes de madeira e palma benta. 
Nos primeiros rumores da madrugada, nossas casas já estavam fechadas com luzes mortas. Já caminhávamos para o ponto de embarque, os nossos passos naquele dia eram pesados, soavam como tambores acelerados. 
Ao menos se cantasse o galo, exclamavam algumas mulheres, tremendo. Porque nós acreditávamos que somente o canto dos galos, que anunciavam a madrugada afugentaria os nossos medos. 
Eles, porém, estavam silenciosos. 
Naquele dia, eu me perguntei por que os galos estavam demorando tanto para chamar, violentamente, o sol. Queríamos que o dia clareasse logo. Era como se os primeiros raios de sol espantassem os nossos pavores.
O silêncio continuava. Os galos continuavam dormindo, tranquilos, e estávamos acostumados com aquele canto, pois era a única voz viva numa hora em que tudo parecia morto. 
O senhor Severino mandou que subíssemos logo nos caminhões. Tive um desejo irresistível de lhe falar um palavrão, mas a sua voz grossa, com acento espanhol, me fez calar. 
Todos reclamavam baixinho. Era como um resmungo, um clamor disparatado de frases aos pedaços. Ninguém se conformava de trabalhar em dia santo de guarda. 
Temíamos que a qualquer hora pudesse haver um choque inevitável entre o gato e algum boia-fria. Seria o despertar da consciência da dor. Mas temíamos que qualquer reação tivesse apenas a utilidade de agravar ainda mais os males de que padecíamos. 
Como para o gato as vitórias da vida tinham sido fáceis, ele odiava quando reclamávamos das dificuldades daqueles que lutavam realmente para obter o sustento do dia a dia. 
Nesse momento, apareceu uma senhora do Sindicato de Garça, cidade próxima do Patrimônio e começou a distribuir alguns folhetos para nós. Esses folhetos alertavam aos “chapéus de palha”, para conferir os salários. Trazia impresso o salário bruto em vigor no mês, a diária bruta, o preço da hora normal e da hora extra. Diziam também para não trabalharmos sem registro na Carteira Profissional. Senão perderíamos o tempo de aposentadoria, o FGTS, o Salário Família, o Auxílio Natalidade e o Seguro Desemprego. 
Além de nos orientar para exigirmos a cópia da nossa folha de pagamento, nos alertava para que não assinássemos recibo em branco, pois se fizéssemos isso estaríamos abrindo mão de nossos direitos. 
Como algumas mulheres estavam rezando, eu dei um grito bem forte e disse: 
— Vamos parar de rezar e tratar de nossas vidas, é o momento, o inferno é aqui mesmo. Somos explorados de todas as formas. De acordo com essa tabela que hoje estamos recebendo, ganhamos uma miséria! 
Ergui os meus braços acima da cabeça e, subindo na carroceria do caminhão, li em voz alta os dizeres daquele folheto, pois sabia que muitos dentre nós eram analfabetos. 
Minha atitude escandalizou o senhor Severino, que não se conformou que uma Maria – ninguém soubesse ir mais longe, além do que estava escrito naquela folha de papel. 
Muitos não acreditavam no que estava ocorrendo, mas mesmo assim se convenceram e começaram a aderir às discussões. Continuei falando: 
- Precisamos criar uma nova mentalidade. Precisamos lutar pelos nossos direitos. Somos nós que fazemos este Brasil. O nosso chapéu-de-palha é a nossa farda. Precisamos reagir, sair desta inércia, deste comodismo. Precisamos gritar para que moralizem a situação do boia-fria. Nesse momento eu já dominava totalmente o ambiente.
- Nossos políticos se esquecem das massas rurais, lutamos no desamparo, morremos à míngua, esquecidos e humilhados, esmagam a vida do trabalhador. 
As minhas palavras despertaram em todos uma força muito grande e começaram a gritar: — “vamos conquistar nossos direitos – só a força coletiva dará sentido a nossa luta.” 
A indisciplina dos boias-frias levou o gato a reagir. 
Pegando uma corrente na mão, veio na minha direção. Senti um sinal de alarme, que produziu em mim vários calafrios. 
Quinze minutos depois eu estava toda ensanguentada. Ferveram nas minhas costas chibatadas de corrente. Desmaiei. 
Acordei na Santa Casa de Garça. Estava desfigurada. Uma madre aproximou-se de mansinho e comecei então a chorar sobre suas mãos largas e brancas. 
Era a hora do crepúsculo e, nesse momento, antes que acendessem as luzes, me senti pela primeira vez na vida contente com minha ação. Tinha lutado por mim, pelos meus companheiros de trabalho. Fiquei sabendo que ninguém foi trabalhar naquele sábado. Não adiantou os gatos ameaçarem os boias-frias. As ameaças foram em vão. Então, tanto o senhor Severino corno os outros gatos resolveram, mesmo a contra gosto, discutir o problema dos salários. 
Apesar da dor das feridas que demoravam a cicatrizar e da injustiça ao ver o senhor Severino livre das penas da Lei, pois ele conseguiu provar que agiu em legitima defesa, aprendi muito com aquela reivindicação. Cheguei à conclusão de que a primeira coisa que um povo oprimido tem que fazer é aprender a enxergar. Depois que a pessoa enxerga, já começa a perceber que pode lutar por sua libertação. Eu precisava ajudar meu povo a clarear o olhar “para fazermos uma união grande, para ganharmos força e assim termos condições de lutar pelos nossos direitos”. 
Uma coisa que eu precisava fazer com urgência era despertar o sentido da luta porque o povo do Patrimônio estava muito preso à tradição da humildade, de sofrer calado e há muito tempo tinham se acomodado. Não enxergavam que vivíamos num mundo irreal, eu tinha que despertar neles o compromisso de que um mundo melhor existiria se soubéssemos utilizar as leis ao nosso favor. 
Precisava abrir os olhos dos meus companheiros e fazer com que eles enxergassem a exploração e ambição dos latifundiários, que compravam todo ano mais terras com o lucro das colheitas. 
Eu não podia impor minhas ideias, não queria ser líder. Queria que todos caminhassem juntos, queria apenas coordenar o movimento, ou apenas organizar. Queria, mais do que nunca, defender a minha classe com força viva, pois como éramos bravos trabalhadores, jamais poderíamos nos privar de lutar. 
Enquanto me convalescia, passeava no silêncio do Patrimônio, sozinha pelas pequenas ruas quentes de sol. Pensava que, naquele momento os habitantes estavam sofrendo a
hora amarga, porque o sol estava a pino. Mas agora eles sofriam conscientes de seus males, uma dor de adultos. Não era mais aquela dor antiga, que padecíamos na roça sem refletir nos motivos da nossa angústia. 
CAPÍTULO XVII 
A presença dos sindicatos tornou-se constante em nossas vidas. 
Quando retornei à escola, nos meus dezoitos anos, já éramos registrados, com carteira assinada, recebendo todos os benefícios traba1histas. 
Mas sabíamos que tínhamos que ficar com os olhos abertos. Os fazendeiros, um dia, iriam nos aprontar alguma. Iriam revidar isso, eu tinha certeza. 
Estudei muito as leis trabalhistas, não perdia as reuniões do sindicato rural. Cresci muitos nos últimos três anos, com o conhecimento das leis que orientam os trabalhadores, talvez imitando os rios que transbordam nas inundações, levando alimento para as plantações. 
Uma pessoa que marcou muito a época da minha convalescença foi Frei Beto, a ordem franciscana a que pertencia. Era pobre, humilde, simples e corajoso. Visitava as famílias de boias-frias sempre com um chapéu de palha e botinas rotas. Frei Beto resgatou a nossa cultura regional, que estava sendo destruída pela televisão. Ele conseguiu fazer com que o povo compreendesse que um homem se desenvolve pelo que realiza, tomando suas próprias decisões; aumentando sua compreensão do que faz e das razões para fazê-la. Enfim, ensinou que o povo do Patrimônio deveria participar de tudo em pé de igualdade na vida da comunidade à qual pertencia. 
Seu prestígio se tornou enorme no local, principalmente por sua forma de alfabetizar adultos. Era um animador do povo, fazendo com que lessem e escrevessem sua realidade criticamente. 
Foi Frei Beto que me incentivou a voltar para a escola. Ele me julgava uma esperança, que muito poderia colaborar com a reconstrução do Patrimônio. 
Ao terminar a oitava série, já com meus vinte e um anos, levantei várias dúvidas se a educação, como estava sendo dada nas escolas, não era perda de tempo. 
Arrumei muitos atritos com meus mestres. Eu tinha quase certeza que, se a escola mesmo legitimando o saber dominante, se voltasse também para o saber do boia-fria e o reforçasse, poderia ser bem melhor. 
Mas acho que os professores não se importavam muito com a nossa situação. Quando falavam sobre o trabalho rural, não desciam até as raízes da nossa situação; eles não trabalhavam dentro da escola para nos ajudar a tomar consciência de nossa real idade. 
Talvez a culpa dessa postura dos professores, mesmo que não quisessem, é que eles não consideravam os boias-frias como companheiros trabalhadores. Eles achavam que estavam mais perto das classes dominantes. Muitas vezes não aceitavam que
argumentássemos criticamente algum conteúdo que nos era passado. O bom aluno era aquele que aceitava pacificamente a orientação do professor. 
Numa aula de Geografia, fui mandada para fora da ciasse porque disse para a professora que no lugar dela mandar que decorássemos os nomes dos rios brasileiros, ela estaria contribuindo muito mais se nos ensinasse a compreender nossa realidade, não como uma coisa parada. À qual a gente devesse simplesmente se adaptar, mas como algo em constante movimento. Nós temos, prossegui dizendo, necessidade de entender a razão verdadeira que explica a realidade do nosso Patrimônio. Precisamos compreender, por exemplo, que não é por causa do trabalhador rural que os rios estavam assoreados, mas que era o desejo do lucro desordenado dos fazendeiros que cortavam as árvores que costeavam os rios para fazer cercas que provocaram a morte dos rios. 
Outra vez, acho que na sétima série, a professora de História entrou na sala de aula. Estávamos discutindo sobre um acidente com um caminhão boia-fria. Gerou uma confusão ao querermos prestar depoimento correto sobre como ocorrera o acidente para a polícia, e o gato intercedeu, obrigando-nos a calar. Os alunos perguntaram à professora sua opinião, sua ajuda para compreenderem as razões que levaram os boias- frias a se calarem frente à ameaça do gato. 
A professora colocou o dedo na boca e pediu silêncio, que se calassem a boca, pois ia começar a aula de História: “O avanço do café no Vale do Ribeira”. 
Digo isso para explicar como o conteúdo era artificial; como era distante o ensino e a realidade que iam nos interiorizando. 
Tínhamos tanta experiência e conhecimentos adquiridos fora da escola, principalmente nós que fomos obrigados a trabalhar desde pequenos, mas tínhamos que conter nossa extraordinária riqueza, pois ela não era levada em conta pela escola. Só as matérias abstratas e livrescas tinham importância. 
CAPÍTULO XVIII 
Às quinze horas, já podíamos deslumbrar através da Reserva de Caetetus um sol muito aberto, sem nuvens. Soprava um vento leve e morno, fazendo dançar as folhas das árvores de caules vermelhos. 
Despertei a Olívia, que dormitava numa rede improvisada. 
— Preguiçosa! Venha, vamos ouvir o repentista de nossa classe. Ele vai desafiar o professor Ângelo! 
Acho que Olívia não percebeu ainda que a considere uma amiga muito mais íntima do que ela poderia acreditar. 
Ela dirigia o seu mundo muito melhor do que minhas outras amigas. Ajudava as suas companheiras que lhe vinham pedir ajuda de boa vontade, sempre com palavras de estímulo para tirar o gosto amargo da caridade que lhes fazia.
A família de Olívia era a mais remediada do Patrimônio. Seu pai era um homem muito respeitado nas redondezas, principalmente por ser o mais valente e o mais arrojado e defendia seus amigos com a força de seus punhos. Sempre era recompensado com alguma coisa material, um agrado, como diziam. 
Olívia gostava de um rapaz chamado Pedro, também aluno da nossa escola. 
Seu amor é feito de solidariedade, de sonhos sonhados juntos e de saudade comum das coisas que passaram juntos. 
Eu não gosto dele. Acho-o muito arrogante. Talvez o meu ódio se associe ao fato dele ser um policial e não gosto da maneira como as mulheres geralmente apreciam uma farda. Sei que é preconceito, mas eu sou assim. 
Olívia é uma moça que sabe muito mais do que os professores pensam. Só que não consegue expor com clareza suas ideias; também acho que não adianta muito, pois em geral não é sempre que somos ouvidas em sala de aula. 
Nesse momento os versos já começaram a ser ritmados pelos dois repentistas. 
Reunimos em torno do aluno e do professor Ângelo para aplaudirmos. 
Era interessante notar como o professor reconhecia a capacidade de seus alunos. Ele tentava aprender com a gente, antes de nos ensinar. 
Naquele momento, ao ver a simplicidade dele e ouvir seus versos tão cheios de humanidade, me levou a quase chorar, e às vezes sorrir, melancolicamente. 
Ângelo tem um aspecto tão distinto, como também tem reputação nos círculos intelectuais, como um homem erudito. A diretora me disse também que ele é a pessoa mais respeitadora que ela conhecia. 
Não sei por que ela fez essa observação, quando me chamou na diretoria. Senti uma profunda leveza ao notar que ela já estava sabendo do meu amor pelo professor. Quando estava saindo da diretoria comecei a chorar, silenciosamente, para aliviar a tensão da demonstração de afeto da diretora. Ela, ao perceber meu choro, me abraçou e disse: 
- Ana Tereza, largue mão deste mistério. Estava ciente de seu sentimento pelo professor há muito tempo, mas só podia falar nisso quando surgisse uma situação propícia. 
— Mas como à senhora soube? 
Fiquei com vergonha de encará-la, agora que ela sabia o que estava acontecendo comigo. 
— Li alguns poemas seus no final dos seus cadernos. Fiquei aborrecida com a notícia e tentei mostrar o meu descontentamento com uma voz um tanto áspera: 
— Diretora, a senhora não podia ter lido os meus poemas!
Ela sorriu para mim e acrescentou: 
— Debati comigo mesmo qual seria o meu maior pecado: ler os seus poemas ou continuar ignorando porque você mudara tanto. A escolha foi simples. Além do mais, dou visto nos cadernos dos alunos com certa regularidade. Afinal de contas, você, Ana, é extremamente romântica para sua idade. Fique alerta! 
Pela primeira vez fiquei contente, por não colocar nos poemas os impulsos sexuais que aquele professor provocava em meu corpo. 
Saí, rapidamente, do meu pensamento, ao sentir que Olívia tinha pegado a minha mão, para fazer com que eu prestasse atenção nos “repentistas”. 
Foi nesse momento que consegui perceber como eram profundos os versos que o homem que eu amava improvisava: 
“Eu tenho muita ciência 
Aprendi educação 
Mas das coisas do sertão 
Não tenho boa experiência 
Nunca fiz uma palhoça 
Nunca trabalhei na roça 
Não posso conhecer bem 
Pois nessa penosa vida 
Só quem provou da comida 
Sabe o gosto que ela tem.” 
CAPÍTULO XIX 
Já estava com vinte e dois anos quando iniciei o colegial. Tinha um rosto grave e um tanto sensual. 
Pela primeira vez, enfrentei as conseqências por não aceitar conselhos. Tomei parte num confronto estúpido e como conseqüência, tive um braço quebrado que me obrigou a esperar um ano para iniciar o colegial. 
Por volta da uma e meia da tarde, num domingo de fevereiro, estava sentada na varanda, a fim de tomar um pouco de ar fresco e olhava uns meninos jogarem bola. Passou um embriagado, pai de um dos garotos. Aliás, o hábito de beber sem limites fazia parte do ritual dos domingos e feriados. Era como se aquele povo tivesse perdido as forças para
se libertar de qualquer vicio. Talvez faltasse coragem mental para enfrentar o tédio da marcha da vida. 
De repente, os meninos que jogavam bola se espalharam. Vinha um carro em alta velocidade. Parou violentamente. Um homem pulou do assento. Tinha um rosto grande e uma boca encurvada, era uma máscara de fúria. Numa fração de segundo estava na frente do homem embriagado e o arrastou para a calçada, na frente da minha casa. 
Papai segurou meu braço e se encolheu todo, procurando esconder seu rosto no meu cabelo. 
O que se seguiu foi revoltante. O homem do carro, que era “protetor” de um fazendeiro, começou a bater no acovardado boia-fria com os punhos, xingando-o por ter entregado seu patrão no sindicato rural. 
Quando vi o que estava acontecendo, tentei ajudar. Quase que num gesto de misericórdia, corri para socorrer o homem que apanhava. 
Entrementes, outro carro apareceu e bateu em mim com toda força. Ao cair, protegi meu corpo com o braço direito. O “protetor” baixou os olhos para mim: 
-Sua intrometida, se você abrir a boca eu a mato, arrematou. 
Permaneci no chão, até que ouvi o valentão dizer numa voz grossa e abafada para o ocupante do carro que me atropelara: 
- Muito bom serviço. Vamos sumir daqui. 
Somente, então, foi que meu pai se atreveu a sair de sua posição. Olhando para mim, me levando para dentro de casa. Os vizinhos foram até o orelhão e chamaram uma ambulância. 
Enquanto isso, o embriagado correu desatinado para sua casa, mesmo estando muito ferido. 
-Ó Cristo, essa Ana Tereza! – falou Frei Beto ao me ver entrar no Centro de Atendimento Médico, na sede do Município. 
Mais do que ninguém, ele compreendia o sofrimento dos boias-frias e da população em geral. Não era como a maioria do meu povo, que aprendera na luta pela sobrevivência que às vezes era muito importante não perceber alguma coisa dolorosa. 
Eu pedi ao Frei Beto que providenciasse um pouco de café. Em minha experiência de vida, o ato de comer diminuía o meu sofrer. 
Fiquei furiosa quando o médico tentou me dar um calmante. Mas uma xícara de café era outra coisa, fazia parte do meu viver. 
E assim, de braço quebrado, esperei um bom tempo para iniciar o colegial. Foi uma espera milagrosa, pois muitas mudanças ocorreram no interior da escola onde eu tinha
feito o primeiro grau. O ensino tradicional que tornava a escola tão enfadonha e de tão pouca serventia, estava dando lugar a uma nova forma de ensinar. 
Ao ingressar no colegial notei, de imediato, que uma revolução estava em andamento. Dei-lhe o nome de Revolução do Livro Vermelho. 
Os professores que adotaram como guia um livro vermelho, semelhante a um caderno de brochura grande, estavam ajudando os alunos a entenderem a realidade com mais lucidez, eles não mais depositavam conhecimentos dentro de nós. Pelo contrário, faziam com que nós descobríssemos as causas da nossa pobreza, do analfabetismo que teimava em não abandonar a população do Patrimônio. 
Não era mais qualquer informação que eles nos passavam, mas, sim, aquelas que seriam necessárias para interpretarmos a realidade do nosso cotidiano. 
Ainda tinha muito a ser feito, pois não eram todos os professores que aderiram à Revolução do Livro Vermelho, mas os alunos que estavam frequentando as séries iniciais iriam colher os frutos dessa mudança. 
Quando um professor chegava na classe e eu via que ele carregava o livro vermelho, respirava tranquila, pois sabia que as provas não seriam mais veículos para derrotar o aluno, mas, sim, uma parada para o professor refletir sobre sua prática diária. 
Era muito mais um ato de humildade em que o professor reconhecia perante a classe que sua forma de ensinar precisava ser refeita. 
O reinado das provas que tinham como objetivo defender interesses ocultos dos professores e nos prejudicar tinha acabado. 
A escola estava agora dirigida para nós, alunos desfavorecidos socialmente. 
Eu sempre acreditei que se as escolas voltassem realmente para a classe explorada, estariam contribuindo para a criação de uma sociedade mais justa. O meu sonho sempre foi o de viver num mundo novo, sem explorados nem exploradores, e, nesse mundo novo, nenhum homem, mulher, criança ou grupo de pessoas exploraria o trabalho dos outros. 
Essa nova atitude da escola, onde estudar não era mais um repetir o que os outros diziam e, sim, pensar criticamente o que os livros diziam, trouxe esperança, pois pela primeira vez na minha história de vida. uma instituição se esforçava para criar uma sociedade nova. 
Aprendi com essa Revolução do Livro Vermelho que estudar também era um dever revolucionário, pois nos davam em nós condições de tentar reorganizar a vida do trabalhador rural. 
Eu sabia que essa revolução seria lenta, mas tinha certeza de que, agora que a escola se voltava para nossos interesses, ela estava contribuindo para fazer nascer dentro de nós, novos trabalhadores, que saberíamos criticar com argumentos as mazelas sociais que nos afligiam.
CAPÍTULO XX 
No início do terceiro colegial, comecei a fazer uma apreciação mais objetiva da minha vida. 
Nos primeiros anos da minha adolescência, sentia-me uma mulher sem base concreta para receber e dar afeto. Sofria, uma grande solidão interior. 
Depois, mais madura, comecei a alimentar um desejo secreto de querer ser abraçada, de sentir o calor de um corpo de homem junto do meu. 
Eu me considerava como um fruta madura, por isso mesmo mais doce, mas estava precisando de um sol para me aquecer. 
Eu andava, prestando atenção nos homens do Patrimônio, mas só conseguia enxergar fisionomias podadas da vontade de amar. 
A solidão se tornava quase total e a certeza de saber que ela poderia se tornar total me assustava horrivelmente. 
Afugentava essa melancolia dando longos passeios pelos campos. Era simplesmente muito perigoso para qualquer pessoa andar passeando por ali. Era perigoso mesmo para uma natural do lugar. A região estava cheia de andarilhos, que agora eram contratados pelos gatos para executarem pequenos serviços na lavoura. Eles eram recolhidos dos albergues noturnos ou sapromis. Trabalhavam apenas para receber alimento, mais nada. Era uma forma dos gatos se vingarem dos boias-frias. 
Esses andarilhos andavam sempre armados e colocavam em perigo toda a população do Patrimônio. Costumavam encurralar quem encontrassem pelo caminho, às vezes, apenas para saquear uma peça do vestuário. 
Assim, numa manhã ensolarada, me coloquei a caminhar através dos campos, seguida pelo meu fiel cão chamado Tigre. Era um animal comum, branco, com o peito pintado de riscas pretas, mas muito valente. Caminhei ao longo das estradas empoeiradas, passando por várias carroças cheias de milho. O campo estava cheio de flores rosadas, laranjeiras e limoeiros em pleno florescimento. Verifiquei, naquele momento. Como era bonito o lugar em que morava e não conseguia conceber como o meu povo se conformava em abandoná-lo para buscar a “sorte” nas cidades grandes. 
Era uma manhã muito bonita e me sentia tal qual quando criança ao sair de casa de manhã cedinho para recolher gravetos para mamãe. 
Um pouco além do laranjal, observei que um homem estava sentado perto de uma árvore. Fui, então, me aproximando cada vez mais. 
Fiquei tão perto, que pude ver todos os traços de seu rosto. 
Ele era tão bonito! Sua pele era de um esquisito marrom-claro e os seus olhos enormes eram verdes.
O meu coração começou a bater forte em meu peito e senti um leve calor subindo para o rosto. O sangue começou a circular rapidamente no meu corpo. Parecia que meu corpo flutuava. 
Então, vi o rapaz sorrindo. Mostrou-se amável e me disse carinhosamente: 
- Calma, menina, calma! 
Senti naquele momento um frio percorrer meu corpo. Era a primeira vez na minha vida que tal coisa acontecia. 
A minha vida agora estava simplificada e fixada naquele homem. O resto não merecia mais qualquer atenção. 
O rapaz, com um rosto honesto me perguntou: 
— Você está bem? 
Não respondi. Fugi do lugar. 
Quando chegou a noite, e fui para a escola, levei um susto quando a diretora entrou na sala e apresentou o novo professor efetivo de história, que tinha se removido para nossa escola, vindo de uma outra cidade. 
Arrastei-me com dificuldade até minha carteira, coloquei os braços em volta da cabeça e compreendi porque minha mãe sempre me dizia que a vida era sempre um encontro. O professor era o mesmo homem que de manhã fizera com que eu sentisse no corpo uma emoção que jamais conhecera. 
CAPÍTULO XXI 
Agora, às cinco horas da tarde, a paisagem estava demasiadamente bela. Não eram só as árvores, com seu verde intenso, também o céu estava deslumbrante. 
Um pequeno galho que o vento mexera prendeu o meu cabelo. Tentei puxar. Nisso uma porção de flores amarelas caíram sobre eles. 
Ângelo chegou de mansinho e começou a tirar as flores com muito carinho. 
Inclinou a cabeça e me olhou bem de perto, cada vez mais perto e assim ficamos por um bom tempo, contemplando um o rosto do outro. 
Uma árvore estalou. Ele inclinou-se ainda mais. Ia tocar nos meus lábios que esperavam um beijo, mas nos afastamos. Então ele disse: 
- A excursão está no fim. Quero conversar um pouco com você. Vamos andar… Disse o professor. 
Fiquei preocupada. Sabia que os homens eram mais sensíveis quando queriam revelar algo íntimo.
— Ana Tereza, quando voltei para Lupércio, minha terra natal , não fiquei contente ao ver minha família. Foi agradável , mas só isso. Então vim para o Patrimônio, vi você, primeiro no campo, depois na escola e fiquei muito feliz. Nunca uma mulher me amou tanto como você. Durante esses cinco meses em que vi sua reação toda vez que entrava na sala de aula, despertou em mim enorme afeição. Agora vou lhe confidenciar uma coisa, e não quero que repita nem a sua melhor amiga: – Jamais conheci uma mulher mais digna de respeito e de amor, por isso vamos nos casar o mais depressa possível. 
Fiquei totalmente perplexa. 
- Como você pode insinuar que gosta de mim? Você nunca me deu a mínima importância na escola, como pode gostar de mim, se nunca nem ao menos tentou conversar comigo? 
- É verdade, respondeu Ângelo, mas isso não quer dizer que não a apreciava. Mesmo sem procurá-la, dediquei a maior lealdade ao seu afeto durante esses meses. 
Fiquei olhando para ele, incredulamente. 
- Você sabe quem eu sou realmente? Eu não aceito as regras da sociedade em que vivo. Não me julgo inferior a ninguém. Reconheço e me aceito como uma boia-fria, mesmo sabendo que a sociedade não protege e nem aceita aqueles que não possuem poder individual e econômico. Como pode se interessar por uma mulher que não tem a intenção de colocar o seu destino nas mãos de ninguém? 
- Sei muito mais sobre você do que possa imaginar. Tudo o que posso dizer é que quero compartilhar minha vida com a sua. Quero estar ao seu lado. E você precisa decidir se deseja o mesmo, 
Eu permaneci calada por muito tempo. Depois perguntei: 
- Quais motivos o levaram a querer se casar tão rapidamente comigo? 
- Você pode ter todos os motivos para achar que não posso me casar com você, menos o de não amá-la. 
Dei um longo suspiro. 
- Vamos continuar a nos encontrar, depois resolvemos. 
Dei um sorriso meio malicioso, como se estivesse contrariando íntimos desejos. Livrei minha mente de todos os pensamentos e depois comecei a pronunciar uma oração a Santa Terezinha por ter encontrado a razão para continuar vivendo. 
Ah! Eu não disse, mas o meu Patrimônio se chama: “Patrimônio de Santa Terezinha”.

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A história de uma aluna boia-fria

  • 1. Ana Maria Prande CHAPÉU DE PALHA História de uma aluna “boia-fria” CAMINHOS NÃO OS HÁ EU OS FAÇO COM MEUS PRÓPRIOS PASSOS. Vida Minha. Minha Vida. Dedicatória: Dedico este livro para todos os meus alunos da cidade de Garça e região que sempre acreditaram no meu trabalho de professora e sempre me chamaram carinhosamente de Dona Geo. CAPÍTULO 1 Estamos na “Estação Ecológica de Caetetus”, falou a diretora, sentada no primeiro banco do ônibus da excursão. Alguns alunos levantaram-se, procurando olhar pelas janelas opostas, centenárias árvores que perfumavam a brisa e forravam toda a estrada com folhas macias. Achei que naquele momento, ao ouvir o sussurro das árvores e sentir o aroma da natureza, eu poderia escrever um poema. Mas o que importava aquele cenário se éramos alunos boias-frias, com olhos fundos, ombros furando as camisetas e se no nosso rosto só apareciam cansaço e tristeza? Estávamos praticamente nas vizinhanças onde se situava a escola, mas a luta do nosso cotidiano não permitia que nos déssemos o prazer de percorrer a região para interpretarmos o ambiente em que vivíamos. A escola é, para muitos de nós, como um pouso onde podemos pelo menos descansar do caminhão de boia fria, dos gatos, da comida fria e das nossas roupas maltrapilhas. Ao caminharmos pela mata, senti as sombras das árvores me envolverem, cortadas por vagos clarões. A voz grossa da diretora continuava quebrando o silêncio da mata. - Tanto o Patrimônio onde está localizada a nossa escola como esta Estação Ecológica estão situados numa altitude média de 690 metros. O tipo climático é definido como mesotérmico, o solo é do tipo posológico e a flora representa um dos últimos remanescentes da Floresta tropical semidecídua, possuindo grande diversidade de espécies. O objetivo principal de estarmos aqui é o de conscientizá-los sobre a importância de preservarmos esta mata.
  • 2. Anotava todas as observações, não só porque seriam “cobradas” na sala de aula, mas também porque aquele contato com a natureza estava apurando minha sensibilidade e me estimulava a buscar um conhecimento mais profundo sobre mim mesma. Gostaria muito de perguntar se nós que também somos explorados apenas para fins lucrativos não deveríamos ser preservados. Até imagino, várias pessoas chegando até o nosso Patrimônio com faixas cujo lema seria: “Vamos Preservar a Vida do Boia-Fria.” — Precisamos estar sempre atentos, a fim de que possamos exercer nossa consciência crítica… Falava a diretora. Registrei novamente: O problema é que as pessoas, na sua maioria, apenas passam pela vida e decididamente não sabem o que está acontecendo aqui e agora, não têm consciência de si nem do seu mundo. A percepção é fragmentária e embaçada. As maiorias de nós estão sempre de queixo caído, com o olhar vago. Como despertar uma cultura ecológica se caminhamos para ser uma cultura de zumbis, que vagamos pela vida? Se já não participamos do nosso mundo, fica fácil violentar a natureza e permanecermos indiferentes aos resultados dessa violência. Sabe, perguntou a diretora, me indicar onde está um pé de Caroba ou Jacarandá? — Aqui não tem. Mas, sim, Camboatá, Cajarara e Canelinha de Cheiro — respondeu um aluno do grupo. Pelo menos aqui temos o direito de mostrar que também sabemos, não marginalizam aqueles que sabem questionar. CAPÍTULO II Eu tenho que dizer quem sou. Há vinte e cinco anos eu vim ao mundo. Era no mês de junho. Minha mãe tinha vergonha de perder um dia de trabalho. Estava na época da colheita de café que representava um pouco menos de miséria para a minha família. Nunca usara franqueza com o meu pai, por isso não se atreveu a dizer que estava tendo contrações. A fazenda onde trabalhavam era perto do Patrimônio. Ao chegar ao local de trabalho, minha mãe se alarmou. As dores estavam insuportáveis; resolveu deitar debaixo de um cafeeiro, e assim eu nasci. Mas o verdadeiro significado do meu nascimento foi que saí de um tranquilo ninho, onde a felicidade era perfeita, para um ambiente frio e não propício para minha primeira respiração. Minha mãe ficou deitada, segurando—me contra o peito, enquanto meu pai saía à procura de alguém que pudesse nos socorrer. Chegaram logo depois, dois homens com um carro velho e desconjuntado, com assentos todos rasgados e enfiaram minha mãe no banco de trás, sem nenhuma preocupação com o fato de ter nascido uma criança em condições tão pouco propícias.
  • 3. Morávamos numa casinha de cimento com paredes caiadas de branco. Era uma casa simples, não se parecia em nada com os casarões onde moravam os donos das fazendas; mas também não era como as casas dos outros pobres que moravam em barracões feitos de velhas tábuas encardidas pelo tempo. A condução chegou em nossa casa e fomos despejadas sem nenhum “até logo”. Depois de lavada, minha mãe me olhou, atentamente, e disse: — Ana Tereza, perdoe a sua mãe e o seu pai. Que os seus olhos lindos carreguem só as coisas bonitas e alegres da vida. Não enxerguem a tristeza da vida, mas se atenha ao riso fácil do seu pai e a minha voz que sempre entoará canções que vão fazer você voar pela imensidão dos céus. CAPÍTULO III - Ana Tereza, acabamos de conhecer uma reserva florestal. Que conclusões você tirou das explicações e das observações ao percorrermos a trilha ecológica? — Diretora, acredito que a consciência ecológica é um assunto importante, mas creio que ele deva começar pela autopercepção, respondi. - Mas então você acha que foi ingenuidade levá-los a conhecer uma reserva? Você está negando o valor da excursão? - Não, mas eu creio que a autopercepção começa no momento em que o homem percebe que destrói a natureza como a si própria. — Explique—se melhor, Ana Tereza. — Tem gente, e creio que é a maioria delas, que seguem pelas vidas imersas no desconhecimento do que está acontecendo em si mesmas, principalmente nos seus corpos, e no mundo… então nem se fala… A diretora, como era chamada por todos os alunos da escola, gostava sobremaneira daqueles alunos que estavam ali. Para ela eu era a aluna notável da escola; que tinha nascido para contrariar os que pretendiam determinar meu destino. Fui assim desde que entrei na escola. Talvez pela beleza e candura que meu rosto irradiava. Queriam que eu fosse mansa, uma pacÍfica ovelha do rebanho de Deus. Mas minha trajetória como aluna e como coordenadora dos trabalhadores rurais mostrava que eu trilhava imprevistos caminhos. Eu era rebelde, inteligente, inconformada por vocação. E para ser o que eu era, tentava com todas as minhas forças aprender as acrobacias necessárias para ser uma ave de vôo livre. Desde pequena, já na primeira série, eu sabia das diferenças sociais, sentia o cheiro da desigualdade de classes. Conhecia muito bem a cerca de arame farpado que separava a minha existência do mundo dos “barões do café”.
  • 4. Num discurso que proferi na 4ª série primária, citei que apenas um ocasional perfume das “damas-da-noite”, uma flor que exala um doce perfume durante a noite, ligava estes dois universos: o dos pobres e o dos ricos. Apesar de ter materializado tão cedo a realidade que me cercava, conservei a minha imaginação. Eu vivia num mundo onde as crianças já nascem velhas, onde a fome e o desemprego obrigavam meninos e meninas de quatro ou mesmo três anos de idade a trabalhar mais de dez horas por dia. Eram os chamados órfãos da colheita, que trabalhavam na varrição, isto é, na varredura dos grãos de café que caíam nos últimos períodos da maturação. Só que, mesmo adulta, aos vinte e cinco anos, cursando a última série do segundo grau, jamais me esqueci dos sofrimentos de minha infância, que são os mesmos da infância de hoje. - E o lanche? — perguntou um dos alunos da excursão. Quando vamos tomar? CAPÍTULO IV Meu pai sempre foi um trabalhador caprichoso e honesto. Era alto, magro, de cabelos e barba pretos. Não desperdiçava tempo com conversação desnecessária, para ele “derramamento inútil de energia”. A voz era lenta, nasal, pigarreada pelo excesso de cigarro de palha. Os gestos eram vagarosos. Homem de imenso vigor, resistente, era considerado como o melhor derriçador, isto é, conseguia retirar os grãos, com as mãos correndo pelos galhos do pé de café, sem molestar a árvore, tratando-a com o mesmo carinho com que alisava suas grossas barbas. Escutava sereno as minhas histórias, sempre com os olhos castanhos perdidos dentro dos meus, percebendo qualquer sinal invisível das minhas inquietações. Minha mãe era ossuda, com longos cabelos castanhos e muito envelhecidos por causa do sol que teimava em varar seu roto chapéu de palha e queimar suas faces. Era uma mulher ocupadíssima e extremamente solicitada pela vizinhança. Gostava de cantar e de contar histórias. Um dia, eu lhe perguntei de onde vinham tantas histórias. Parecia que bastava mamãe abrir a boca, com aquele sorriso rosado que ela tinha e lá vinha uma história completa, com bruxas, fadas e príncipes, transpassadas por sacis, mulas sem cabeça e lobisomens. A expressão “prestar atenção” fazia parte da sua maneira de encarar a vida. Durante o dia várias eram as vezes em que minha mãe se dirigia a mim com a seguinte frase: —Preste atenção, menina, nesta formiga. Olhe aquele cavalinho de Deus. Puxa, que linda dança faz a poeira no raio de sol em frente da janela! Corra. Ana Tereza, preste atenção na corrida da chuva na vidraça. . . Mamãe adorava ler. Achava que o mundo da leitura era mágico, e, para que eu entrasse nesse mundo mágico, me alfabetizou aos quatro anos de idade.
  • 5. Quando a comida começava a escassear na prateleira, minha mãe mudava rapidamente de humor. Então, ela se tornava toda rancor e no seu rosto estampava uma angústia nebulosa. Por qualquer bobagem que eu fizesse, apanhava, mas apanhava tanto que minhas costas ficavam com manchas sangrentas. CAPÍTULO V Uma das primeiras coisas que guardei na minha memória sobre a minha infância foi uma viagem que fiz de caminhão. Que idade teria eu? Pelas contas de minha mãe, deveria ter uns três anos. Estava sentada no colo de mamãe, íamos com um motorista de uma fazenda fazer compras numa cooperativa. O motorista conversava o tempo todo com um radinho que tocava músicas caipiras. Gritava, às vezes, com os passageiros que iam na carroceria do caminhão. Um pouco depois de sairmos do Patrimônio, o motorista fundou o pé no acelerador com muita força. O caminhão ia cada vez mais rápido, os passageiros estavam aflitos e apavorados. Por fim, mamãe se inclinou em direção à cabine do caminhão e perguntou ao motorista se era necessário mesmo ir tão depressa. Mas o motorista virou para ela e gritou num vozeirão: – A necessidade é uma serpente escorregadia, e apertou ainda mais o acelerador. Meu desespero aumentou, quando ao contornar uma curva muito fechada entramos numa cerração toda raiada de cores cambiantes, era como se entrássemos num pesadelo. O motorista pisou no breque com toda a força. Voltou o barulho. Eram gritos assustados, os pneus derrapavam. Minha mãe gritou tão alto que me assustou ainda mais. Ao retornarmos das compras, mamãe comentou com papai sobre o significado da frase de ser a necessidade uma serpente escorregadia, frase que ela adotou sempre que estava em situação conflitante. Meu pai respondeu que a frase era sobre a necessidade que o motorista sentiu de ter emoção diferente e que a necessidade é como um bicho, que faz com que as pessoas não digam a verdade sobre o que sentem. Até hoje, quando vou subir em caminhões que me levam para a roça, sinto um frio que percorre minhas entranhas, como se a qualquer momento aquele motorista maluco fosse novamente aparecer no volante do caminhão. CAPÍTULO VI A estrada de ferro não chegou até o nosso Patrimônio, e ele é mais parecido com uma colônia com suas duzentas casas e um pouco mais de mil habitantes. O café conquistou completamente os espaços em torno do lugar. São poucas as lavouras de gêneros alimentícios. Os imensos cafezais são, praticamente, os principais componentes da paisagem.
  • 6. O café significava riqueza e ostentação. Ele foi introduzido na região já no início do século XX. São enormes as fazendas e elas se multiplicavam por toda a região. A colheita começava sempre em fins de maio. O primeiro trabalho é a varrição. Depois vem a derriça e em seguida executa-se a abanação. É a parte do serviço que mais gosto. Ao ver os grãos de café recolhidos sendo movimentados nas peneiras. Nós, como boias-frias, quase não participamos do processo da secagem, que leva aproximadamente dez dias e nem do beneficiamento, quando os grãos são descascados e separados em tipos. Nós somos muito solicitados no processo da carpa. É quando nossas mãos ficam enrrugadas e doloridas com a quantidade de calos que se espalham pelas nossas palmas. Essa carpa é realizada cinco vezes por ano, para que o mato não cresça nos corredores da plantação. Na época da colheita eu trocava em primeiro lugar o berço e depois a escola pela roça. Muitas vezes, aos quatro anos de idade, minha bonequinha de pano me acompanhava na colheita. Pegava minha canequinha de um litro e ia me debruçando sob os pés de café, fazendo a varrição. Eu me esforçava além de meus próprios limites, na ânsia de acompanhar meus pais, por isso fiquei até hoje com problemas nas costas que doem continuamente, principalmente quando faz frio. Mais tarde, aos seis anos, abandonei várias vezes a escola, e de segunda a sábado eu acordava pouco depois das cinco horas da madrugada. Minha mãe arrumava a nossa comida numa marmita e corríamos para o ponto de embarque. Uma vez, quando eu tinha sete anos, assisti a um fato que colocou dentro de mim as sementes da revolta contra o desrespeito ao ser humano. Uma criança chorava perto da mãe e não queria colher os grãos que teimavam em cair longe da peneira. Continuou chorando por longo tempo. Ninguém dava atenção, talvez com medo do fiscal da fazenda. Lá pelas tantas, ela cessou de chorar e o fiscal, mal- humorado, cutucou a menina com as botas, para que ela fosse deitar em outro lugar porque estava interrompendo a passagem dos trabalhadores. A criança não se mexeu. Estava morta. Todos pararam a colheita. Uma cena que jamais esqueci. O sol, como se houvesse derramado sangue no horizonte, jogava seus últimos raios sobre a cálida cabeça da criança. Todos acompanharam a mãe rezando soturnas orações. O que ainda mais me impressionou foi a impassibilidade da mãe. Seus olhos ficaram enxutos, secos, como era toda a paisagem. Nunca consegui entender o porquê daquele sacrifício – uma mãe com uma filha morta nos braços – sem lágrimas, parecendo um rio assoreado. Aprendi mais tarde que, se uma mãe chora, molha as asas dos anjos da guarda que vêm buscar a criança para levá-la para o céu.
  • 7. Quando enterramos aquela criança, no outro dia, ficou dentro de mim um túmulo de pedras soltas. Voltei para casa segurando firmes as mãos de mamãe, e ela baixinho cantava: “Batem palmas lá fora… — Vai ver quem é minha filha! - Não é ninguém patroa. É essa gente boia fria Que vem pedir emprego, Por um prato de comida Já mandei a tal embora. Que tamanha amolação!” CAPÍTULO VII Estou há quatro horas na Estação Ecológica e percebo como o descanso ornado pelo verde do local está fazendo bem para todos nós. É uma suavidade pousar a vista sobre estas árvores, como se elas nos inundassem com estranhas riquezas. — Por favor, aluno, antes do lanche gostaria de completar o que programei para a primeira parte da excursão. — Diretora, estamos acordados há tempo… Disse uma aluna do grupo. — Daqui a pouco nós vamos lanchar. Mas antes preciso reconhecer, perante o grupo, a importância do Sr. Olavo Ferraz para esta Estação Ecológica. Para mim, a Dona Emília, nossa diretora, é como um santuário. É uma mulher pequenina, de busto grande e olhos enormes e azuis e muito, muito séria em tudo que abraça. Faz crítica sobre nosso comportamento com muito cuidado, educadamente, mas muito duramente. Quando chego na escola, detestando meu dia de trabalho na roça, com meu corpo dolorido, certa de minha derrota final na vida, porque nunca serei nada além de uma boia fria, toda minha tristeza desaparece quando a vejo nos esperando no portão da escola. Alguém se importando comigo, verdadeiro milagre. Entro, às vezes, para dentro da escola, com as suas mãos sobre os meus ombros, então me sinto completamente confiante e segura. — Há aproximadamente 60 anos, Sr. Olavo Ferraz adquiriu uma gleba de terra de 7.500 ha, com mata, no município de Gália e separou 2.700 ha como reserva florestal e zoológica, destinada à caça.
  • 8. Em agosto de 1976, através de um Decreto Estadual, foi declarada como área reservada de utilidade pública, para fins de desapropriação para a constituição de reserva florestal e preservação de recursos naturais. - Diretora, perguntou Olívia (minha melhor amiga), além de ser utilizada a reserva para estudo ambiental, quais seriam suas outras utilidades? Olívia sempre gostou da natureza. Tem a minha idade e é uma morena muito bonita. Sempre considerou qualquer dano à natureza como afronta pessoal. — Sim, Olívia, a observação apurada desta reserva já rendeu ricos frutos para o campo das ciências naturais. Aqui é uma área de interesse de vários botânicos brasileiros que a percorrem de ponta a ponta na coleta de informações. Após alguns minutos, sentamos numa clareira, com o sol muito amarelo, brilhando por cima das árvores. Nós estávamos nos divertindo muito, apreciando o calor e o lanche que a escola nos oferecia. O prazer de deixar o Patrimônio com suas misérias, gozando aquelas brisas amenas. CAPÍTULO VIII Quando eu tinha seis anos, peguei o embornal que levava para a roça e coloquei um caderno que minha mãe comprara no empório do Patrimônio. Coloquei o lápis e a borracha numa caixa vazia e rumei, decididamente, para a escola, que ficava a cinco quadras de minha casa. A vontade de ir para a escola era enorme, continuar decifrando o significado daquelas letras encerradas entre as capas dos livros da minha mãe! Chorei muito no primeiro dia de aula. Senti medo ao ver tanta gente estranha. A diretora me colocou no seu colo e me convenceu a ir para a sala de aula. Como já possuía alguma leitura, fui introduzida na primeira série adiantada. Não gostei da professora. Humilhava-me por qualquer motivo, até que um dia fui mandada para a diretoria. A diretora conversou bastante comigo até na hora do recreio, então me entregou aos cuidados de outra professora chamada Dona Nena. Foi amor à primeira vista. Alegria tão grande que aprendi a gostar da escola e me provocou a tal ponto que aprendi a ver o mundo de outra forma e também me levou a refugiar na leitura, quando o desânimo me rondava. Dona Nena apreciava meus questionamentos, discutia sempre os problemas do cotidiano conosco e, juntos, procurávamos solução. Aprendi pensando, buscando, descobrindo, tirando minhas próprias conclusões. Foi minha professora até a quarta série e o que mais guardei na memória sobre ela foi que sempre comparava uma criança com ela mesma. Respeitava nossa individualidade. Nunca houve reprovação na nossa turma, pois ela dizia que cada criança tinha seu ritmo de aprendizagem e que, se reprovasse algum aluno, estaria destruindo tudo que tentava construir no dia a dia.
  • 9. Quando eu cursava a terceira série e estava faltando à aula para ir ajudar meus pais na colheita, ela foi me buscar na roça. Nem o fiscal nem meus pais queriam tomar conhecimento de sua presença. Pensei muito nas razões que levaram meu pai a ignorar a professora. Talvez desejasse evitar falatório, ou receasse assumir publicamente a responsabilidade de trazer sua filha, com apenas oito anos, para trabalhar na colheita. Minha mãe se justificou dizendo que ela era obrigada a levar sua filha com ela porque não tinha creche onde deixá-la. Além disso, ela explicou para a professora, que os empreiteiros ficavam com a maior parte do que eles ganhavam no dia a dia e que eu, por ser pequena, ficava só com dez por cento da diária. Naquele dia não houve as conversações usuais na minha casa. Ao regressar, achei meu pai muito triste, falando baixo, sem reparar no sentido das palavras. CAPÍTULO IX Embora eu tenha sido criada sem irmãos, não foi pior e, provavelmente, era muito melhor do que aquelas famílias que se enchiam de filhos e os mandavam para a casa dos avós para se verem livres deles. O fato de não ter irmãos não teve influência alguma sobre minha personalidade. Eu era igual às outras crianças. Tinha inúmeras amigas. Quando não estava na roça ou na escola, vivia solta pelos matos da fazenda, perseguindo marrecos, esmagando formigas entre os dedos, nadando nos riachos até que a noite me jogasse na cama, onde meu pequeno corpo dormia cheio de silêncio. A noite sempre me assustava. Era misteriosa, com os piados da coruja, cheia de estalos e galopes assombrados. Gostava muito da melancolia que irradiava na hora do crepúsculo. Parecia que tanto os bichos como os homens se tornavam mansos, com paz no coração. Era o supremo momento de paz dos filhos da terra. Era a hora em que os homens, unidos pelo cansaço, faziam uma pausa para descansar. Quando meu pai chegava em casa triste, nessa hora crepuscular, nós já sabíamos o que ele iria dizer: - O “fulano” deixou este lugar onde nasceu para se libertar. Foi embora para a cidade grande. Liberdade que a fazenda lhe negara. Vão à procura de um lugar onde não haja tantos sofrimentos. Uma vez, um compadre de meu pai se despediu de todos nós, dizendo: - Vou embora daqui. No roçado nem temos um lugar para sermos enterrados, na cidade a polícia se encarrega de dar um destino ao corpo. Se eu vou morrer aqui por causa de todas as misérias, sem amparo nenhum, então é melhor morrer na cidade, que pelo menos uma sepultura rasa darão para este cristão que trabalhou sol a sol, nestas
  • 10. fazendas de café para não ter nada de seu. Nesse dia, minha mãe contou a seguinte cantiga para eu dormir: “Trabalhei que nem besta De fazer calo na mão O meu patrão ficou rico E eu pobre, sem tostão Não aguento a fome Não há mais perdão Deus dorme nos ares E os ricos nas camas Acordo no chão Eu quero o meu pão” CAPÍTULO X Quando terminei a quarta série, fiquei sete anos sem estudar, querendo o mundo só para mim. Nessa época tinha dez anos. Terminei o primário como melhor aluna da escola. Fiz um discurso que foi muito aplaudido e publicado num jornal da região. Na chegada do Novo Ano balões de gás faziam companhia para as estrelas fixadas no céu. Um grupo de violeiros local percorria as ruas lembrando a todos que o ano velho já tinha partido. No primeiro dia do ano, uma tragédia evaporou as esperanças daquele local, levando a um abatimento profundo, minguando as parcas ilusões que davam um colorido para as nossas vidas. Naquela tarde caiu uma chuva de pedras que destruiu toda a plantação da região. Todos os cafezais ficaram despidos dos grãos que já estavam prontos para o amadurecimento. Ao meio dia uma brisa fria esfriou toda a região. A chuva veio mansa no início e foi engrossando. Depois de uns minutos a chuva deu lugar ao granizo. Caía numa violência tão grande que derrubava os galhos das árvores e trincava as vidraças das janelas. Em pouco tempo, o quintal ficou acumulado de gelo Quando a chuva parou, meu pai me levou para mostrar os estragos que a chuva provocara.
  • 11. O rosto do meu pai estava horrorizado. A safra estava no chão. Paramos numa vala onde havia camadas de gelo com mais de um metro. Minhas amigas atiravam punhados de gelo umas nas outras. Mas a população adulta foi para o cafezal e ficaram andando em torno dos cafeeiros que antes da chuva estavam carregados de grãos, esperando o amadurecimento para o tempo da colheita. Voltamos para casa. Meu pai segurou no meu ombro e falou: - Vou- me embora. Disse, correndo os olhos pela casa. Como se procurasse alguma solução mágica para seus problemas. - Vou sair daqui, nem que seja só por este ano. Continuou falando com sua voz cansada. “Muitos saem daqui e vão para a cidade grande sem saber o que esperam realmente do lugar”. Começou a mexer na barba, devagarinho: - Eu tenho um dinheiro guardado no colchão. Confio em Deus. Sei que não vai faltar o necessário e você, Ana Tereza, vai comigo para São Paulo. Eu quis protestar, mas meu pai implorou: - Fica quieta, minha filha. Nem um pio. Lá na Rua Barata Ribeiro mora meu irmão. Vamos tentar pelo menos salvar o ano. Vou abraçar qualquer emprego que aparecer. Que os céus nos ajudem a salvar o ano. CAPÍTULO XI No final do mês de janeiro, me lembro bem, fomos até Marília e partimos para São Paulo numa viagem de trem. O trem rasgava os campos e, quanto mais rasgava, mais doía o meu peito. A principal razão era por aquilo que deixava: minha mãe, meus livros, o rio onde pescava, minhas amigas… Estava trocando meu Patrimônio pela capital do Estado. E quem era esse meu tio, que prometera emprego ao meu pai? Eu tinha medo. Dormi a viagem toda e só acordei quando chegamos. Era o fim do que conhecia e o começo do que ignorava. A Estação da Luz estava coberta de um nevoeiro denso que mais parecia as horas da madrugada no Patrimônio, só que o relógio marcava dez horas da manhã. Papai segurou forte na minha mão, enfrentado os olhares dos transeuntes que conheciam muito bem gente caipira. Fomos caminhando devagar. Não sabíamos que ônibus tomar, por isso fomos caminhando pelas ruas daquela cidade tão cinzenta e estranha.
  • 12. Estava me sentindo muito pequena naquela cidade tão grande. Foi aí que chegamos a uma avenida muito grande e vimos uma quantidade enorme de carros. Achei interessante. Papai colocou a mala entre as pernas e ficamos ali longo tempo observando, pesquisando para ver para onde deveríamos ir. Estávamos na Avenida São João, conforme nos disse um guarda que passou perto de nós. No centro de São Paulo. Achei a cidade muito incerta, não consegui compreender por que as casas eram tão altas. Papai perguntou: O senhor pode nos dizer onde fica a Barata Ribeiro? O guarda piscou os olhos e respondeu: - Não é muito perto. Mas se o senhor quer ir a pé, então vá até o fim daquela avenida, vire à esquerda e vá sempre em frente. Eu ia lendo as placas conforme o guarda falara e não tardou para que encontrássemos a rua e o local onde morava meu tio. - Papai ficou decepcionado com o cortiço onde seu irmão morava. Não tinha ninguém no local. Depois de confirmar que o endereço estava correto, e era realmente ali que seu irmão residia, não o esperou chegar. Foi saindo daquele lugar, envergonhado, por ter tentado a sorte num lugar desconhecido. Voltamos devagarinho, como se seguíssemos nossos próprios rastros. Papai estava triste, porque pensara que seu irmão estivesse bem de vida. Estava cansada e com fome. Fui me encolhendo com vontade de parar e não sair mais do lugar. Papai pagou um carro de aluguel que nos levou até a porta da estação. Logo depois estávamos com a passagem do trem. Fomos sentar perto de um povo que, como nós, estampavam no rosto a decepção. Quando o trem chegou, entramos no vagão de segunda classe e meu pai cantou baixinho: – É do sonho O destino de um pobre Busquei meu sonho E não tive sorte. CAPÍTULO XII Ao olhar a Reserva de Caetetus me pergunto: “por que só agora o homem se preocupa com questões ecológicas? Será que isto está ocorrendo porque a continuidade da vida do planeta está ameaçada?”
  • 13. - Ana Tereza olha quem chegou! Gritou minha amiga. - Fique quieta, Olívia, não quero que o professor de história perceba nada, disse baixinho. Meu Deus, porque me sinto tão assustada quando vejo o professor? Será que ele veio até aqui por minha causa? Como eu gostaria de ser amada por ele de um modo nunca antes ocorrido. Conheço a maneira de ser desse professor. Ele não suporta fazer os outros sofrerem, nunca censurou ninguém na sala de aula e sempre fez o possível para que nenhum aluno deixasse de participar da aula. Eu o vejo como um homem sensual e que pode amar com facilidade. Toda a minha dor, meu cansaço desaparecem quando ele entra na sala de aula. Quando me olha me sinto confiante e segura. Seria um verdadeiro milagre se ele me amasse. Estranhamente, ele não é convencido quanto aos seus encantos físicos, seu magnetismo pessoal. Na verdade, acho que mesmo o seu rosto sendo um pouco diferente, pois, seus olhos são claros demais, mas ele compensa tudo através da sua constante vivacidade, que sempre magnetiza todos nós. Olívia já descobriu que estou apaixonada por ele. Agora mesmo adotou a posição de minha guarda-costas. Está falando comigo com muita autoridade, como convém a alguém que deseja descobrir alguma coisa. Falando baixo e com respeito, como a situação requeria, ela me perguntou: — Ana Tereza, você acha que o professor Ângelo veio até aqui com algum objetivo? Nesse momento, o professor passou na minha frente, com aqueles olhos surpreendentemente verdes claros e sorriu para mim. - Não sei, eu respondi. Mas acho que ele sabe que o transformei no objetivo central de minha vida. Este meu amor é um relacionamento injusto. Ele não se interessará por uma trabalhadeira braçal, uma rude mulher do campo. O1ívia voltou ao mesmo assunto: — Sabe, Ana, você é a moça mais bonita e inteligente da escola; o espírito mais brilhante e a mente mais aberta, duvido que ele não esteja também apaixonado por você. Pela primeira vez sinto o meu verão incompleto. Nas aulas de história a minha mão segura muito mal a caneta, num vai e vem na linha reta do papel. Tento dominá-la, mas não consigo. Olívia me compreende. Nunca riu ao ver o meu embaraço, mas sempre me dá um olhar de compreensão.
  • 14. Voltamos novamente para o centro da Reserva. O professor chegou ao meu lado, rindo e me disse com um gosto na voz: - Ana Tereza, que bonito o lugar, não? Em setembro esta mata fica diferente. As folhas novas dão um aspecto de irrealidade ao local. — Sim, eu respondi, gaguejando. Gosto de lugares sem manchas da civilização. — Então você não gosta da história, Ana Tereza? Não pude dizer nada, só fiquei olhando para ele sem saber como responder. Estava envergonhada por não conseguir disfarçar a minha emoção. Não sabia como proceder. Amar pela primeira vez, com tantos anos vividos, é tão estranho! Começo a reagir às coisas de forma tão impensada. Cada vez que olho para o professor, o meu coração dá um salto. Eu acompanhei o professor e sentei-me num tronco de árvore. Ele sentou a meu lado. — Aposto que você pensou que hoje eu viria na excursão – disse ele. — Falou muito sobre este passeio na sala de aula no dia de ontem, disse o professor. — Realmente. Pensei que os problemas sobre o meio ambiente devessem preocupar não só a geografia ou a ciência. A história pode também ajudar o homem a mudar sua atitude em relação ao meio ambiente. O professor Ângelo sacudiu a cabeça, em sinal de afirmação: — Uma ideia esperta a sua. Estou aqui exclusivamente para vê-la, apesar de concordar que a história é relevante para colaborar no processo de conscientização sobre os problemas ambientais, mas estou aqui principalmente para sentir como você é, além da sala de aula. Senti o meu rosto ferver e pensei: - A sua presença não é dessas que se possa recusar. Agora terei sua companhia por algumas horas. O professor me olhou com o olhar calmo e parece que todo o meu corpo parecia dizer: olhe-me, por favor! - Ana Tereza, como o destino é inexorável! Vim para dar aula no Patrimônio, escolhi um lugar tão retirado, evitando o mais possível qualquer agitação. Alguns dias depois de minha chegada, começou a chover… e você sabe o que trouxe esta chuva? Baixei os olhos. Ele me examinou sem cerimônia e continuou falando: - Uma aluna interessante, com 25 anos, sensível e curiosa. Não tenho receio de dizer que desde a primeira observação que fez na sala de aula, procurando esconder a sua
  • 15. angústia debaixo de palavras perdidas, você se tornou a parte mais profunda da minha vida. Meus pensamentos começaram a divagar. Será que não estava sonhando… Obriguei-me a responder alguma coisa, mesmo procurando palavras para expressar o espanto de saber que o professor sentia afeição por mim. Não queria ouvir agora o que ele estava dizendo, nem mesmo dizer que o amava. Queria que a essência da vida o dissesse. Em qualquer lugar. Sem espera. Sem tempo. Eu estava ligeiramente impaciente: - Debaixo de minha solidão, do meu viver tão penoso como filha da terra, neste lugar lindo, me aceito como sou. Na sala de aula, quando vejo seus olhos me fitando, não sei aguentar. Não consigo olhar no seu olhar, sinto apenas que sou uma aluna boia fria. O professor falou: -Faz dez anos que perdi uma namorada num acidente. Pensei que nunca mais me interessaria por alguém. Apesar de todas as contradições e decepções que a vida note oferece e nos destrói, consegui superar o meu pesar ao observar a sua naturalidade de viver, a sua preocupação pelos companheiros de trabalho. Você me cativou Ana Tereza. Pela primeira vez na vida escondo meus olhos nas mãos. Um raio de sol faz bri1har as lágrimas que caem e marcam seu caminho pelo meu rosto. - Perdoe-me, professor. Muita emoção machuca o coração. Até agora apenas cumpri o rito de existir. Agora tenho que descobrir um novo caminho. O professor ficou de pé na minha frente. Para surpresa minha, vi um sorriso estranho no seu rosto. — Por favor, Ana Tereza, se o caminho for longo, não tenha medo. Você não estará sozinha. CAP1TÜLO XIII Não posso dizer com confiança se o meu afastamento da escola foi motivado apenas por razões econômicas. Aos treze anos de idade, respondi para a diretora que não retornava porque não queria ser parafusada numa cadeira dura para estudar durante horas e horas. Não sei se era por força da natureza, mas não conseguia me manter imóvel, petrificada, reduzida à contemplação das paredes, enquanto o sol brilhava lá fora. Não conseguia ser submissa às ordens da professoras. A posição sentada era um sacrifício enorme, me doíam as costas e os meus pés ficavam formigando. A escola, durante as quatro primeiras sérias, não conseguiu domesticar minha máquina fantástica de desejos e prazeres.
  • 16. A diretora procurava de todas as maneiras nos reter o maior tempo possível dentro da escola para que aprendêssemos até onde podíamos. Prometi para ela que um dia voltaria, mas no momento queria ser livre, pelos menos da escola. Eu sabia também que o simples fato de ser curiosa e inteligente me dispunha ao processo de me educar. O meu pai sempre me dizia que escola é a vida. Então resolvi frequentar apenas essa escola. Nessa época, era fácil para eu ver que minha mãe estava se desintegrando de algum modo. Pensei que o excesso de trabalho na roça, associado com um tombo que ela levou de cima do caminhão que nos transportava para a roça, tivesse abalada sua saúde. As bochechas estavam murchas e os braços finos, enquanto a barriga crescia e os pés inchavam. Seus olhos castanhos tinham um brilho que não era muito normal. E havia algo errado com o seu andar, um falsear no passo ou às vezes um desvio para o lado. Eu estava preocupada com ela, porque apesar da luta nos cafezais, ela fazia outros tipos de trabalho nos fins de semana. Ela conversava comigo de forma vagarosa, me encorajando e me aconselhando nas coisas da vida. Eu ficava abismada com a quantidade de trabalho que ela tinha. Falei sobre isso com ela, que estava cavando um buraco na sua saúde do qual nunca havia de sair, mas ela não ligou para a minha advertência. — Tenho uma saúde de ferro — garantiu. Estou com seu enxoval quase terminado. Mais um ano, talvez, e aí você estará pronta para achar um belo marido. Aí tínhamos as piores brigas. Eu a enfurecia com a minha frase, já conhecida, de que só me casaria depois de entender o significado da vida e só se fosse por amor verdadeiro e não por falsa paixão. — Você, minha filha — dizia — tem um raio de uma inteligência que a pode transformar no que você quiser. Você tem ideias. Sabe escrever muito bem. Mas gosta de pensar que pode um dia controlar sua vida, que pode escapar das armadilhas que a vida nos prega. — Mamãe, a senhora está certa, não vou me casar só para satisfazer um instinto biológico. Vou primeiro ler o mundo nos livros e no meu viver. Não quero desperdiçar o quase nada que tenho. Mamãe concordou. — Sabe, eu também quis uma vida diferente. E a minha vida virou um grão oco de café. Eu invejo seu modo de viver. Com treze anos de idade você é muito segura, sempre sabe o que quer. Ela achava que eu controlava minha vida,, que eu não sofria, que não sentia crises de solidão, de ódio pelo trabalho que executava. Havia tantas coisas que eu não compreendia. Mas no momento eu podia dizer com sinceridade que duas coisas eu sabia: que minha mãe estava definhando; e a outra é que vivíamos num Patrimônio, onde todos sofriam com a vida que levavam e estavam totalmente conformados com isso.
  • 17. Mesmo que os livros que eu sempre lia dissessem que o ato de viver valia a pena, para mim a vida nunca fora grande coisa. Foi então, de repente, que minha mãe teve um problema. Um dia, na roça, recebi um recado de papai, que mamãe tinha sido internada. Bem no fundo do meu coração, há muito tempo estava preocupada. Ela estava muito frágil e parecia estar sempre cansada. Fiquei com tanto medo que saí do trabalho correndo e fui até o hospital. Quando cheguei, o médico de plantão me disse baixinho: — não há mais nada a fazer para salvar a sua mãe. Fui andando devagarinho para o lugar onde minha mãe estava. Uma irmã de caridade estava segurando as mãos de mamãe e rezava a prece dos agonizantes. A saudade de mamãe doeu por muito tempo. Durante o velório eu não chorei. Nem que a dor me matasse, que me enfiasse pela terra adentro, ninguém ia me ver chorando. Eu sentia amargura e ódio. A lavoura de café tinha contribuído para a morte prematura da mamãe. Nós não éramos nem trabalhadores rurais, menos ainda volantes ou diaristas, nem tínhamos direitos trabalhistas. Éramos apenas boias-frias. E como boias-frias éramos explorados pelo turmeiro, o gato, e também pelo fiscal da fazenda. A mamãe se matou; como o ganho era por produção ela se esforçava além dos limites para acompanhar o papai. Esse trabalho na roça sempre foi muito extenuante e penoso para uma mulher. Quando cheguei em casa, na volta do enterro e a encontrei vazia, peguei o livro de Ernest Hemingway que ficava sempre na cabeceira da cama de mamãe e chorei. Não aquele choro alto e escandaloso de minha mãe, quando ela e papai discutiam, mas um choro baixinho e cheio de soluços, uma tristeza esquisita e fina que parecia nascer lá no fundo do coração, e então essa amargura saía aos poucos através das lágrimas. Deitei um pouco e deixei meu corpo amolecer. Os dias foram passando e o meu mundo foi se tornando pequeno, fui deixando de sentir muitas coisas. A voz da minha mãe ficou longe, longe ficaram suas canções, aí eu fui me esquecendo de como era ser afagada e amada por uma mãe. Até a dor da saudade eu fui esquecendo. Só uma certeza ficou: não éramos os cordeiros de Deus. Na vida tínhamos nascido desassistidos da sorte e assim éramos — ninguém. Os filósofos diziam que nascíamos um organismo e nos tornávamos pessoas. Mas eles se esqueceram de dizer que o tempo, o vento e o sofrimento não colaboram para esse vir a ser. CAPÍTULO XIV Nem bem terminamos de lanchar, a diretora já nos chamava para fazermos exercícios, utilizando árvores.
  • 18. Eu não queria abandonar aquele sonho. O professor também foi convidado para a atividade. Então eu tentei marcar no meu coração aquele momento, pois pela primeira vez falávamos sozinhos. Coloquei minha mão bem de leve na sua boca, como se tentasse unificar um sentimento. O professor observou minha fisionomia, como se tivesse esperança de que ela revelasse algum segredo. Dessa vez, olhando bem, notei que ele estava contente por ter falado comigo. Deu-me um largo sorriso. O seu olhar era extraordinariamente meigo para um homem. — Vou ajudar você nos exercícios — disse ele me desafiando Através de um sorriso maroto respondi: — Não, as minhas amigas ficariam com ciúmes. O professor Ângelo colocou as mãos no meu braço. Eu estava de pé ao seu lado e comecei a sentir um pouco de vergonha por não saber como proceder perto da minha diretora. Olhou para mim. Vi uma estranha expressão na sua fisionomia. Ele tinha notado minha preocupação: — Não se afobe — prometeu ele – Dou um jeito nesta situação. Vou falar com a diretora que estamos namorando. Tentei sorrir. Meus pensamentos estavam correndo para saber como enfrentar uma situação para a qual não estava preparada. Uma coisa era certa: eu tinha vergonha de enfrentar meus amigos. Basicamente era vista como uma moça tímida. Agora eu havia conquistado um homem tão bonito, como eles iriam acreditar que eu merecia aquele sentimento do professor por mim? Meu rosto ficou muito quente. Tinha medo do que estava para acontecer. - Vamos, Ana Tereza, a diretora nos espera, ele me disse. - Alunos! – começou a diretora – as árvores se constituem em um dos mais importantes representantes do reino vegetal, tanto ecologicamente como economicamente. Elas também oferecem uma valiosa contribuição para a manutenção do equilíbrio ambiental. No sentido de auxiliar a compreensão de vocês sobre as árvores. fiz algumas questões que estão mimeografadas. Tentem respondê-las, utilizando uma árvore-padrão. Ao concluir, investiguem outras árvores encontradas próximas a ela. Depois que terminei as atividades, fiquei fascinada com o grau de conscientização sobre as árvores que me trouxeram os exercícios. Mesmo tendo crescido cercada de árvores não sabia quase nada sobre elas.
  • 19. Olívia também estava fascinada com as descobertas, estávamos começando a perceber realmente uma árvore. Foi aí que ela me perguntou: - Por que algumas árvores têm tantas folhas danificadas. Sorri para ela. - Acho que são os fungos ou a poluição que o vento traz. - Olívia perguntou, desconfiada: — Como você pode confirmar isso?Dei um sorriso maroto. - Uma folha me contou. Nesse momento, o professor Ângelo aproximou-se de nós, esmagou uma folha entre seus dedos e pediu para que cheirássemos. Tomei lentamente suas mãos e cheirei a folha esmagada. Enternecida pela mão que me arrebatava… - É cheiro de vida — eu respondi. CAPÍTULO XV Aos quinze anos já era uma mulher madura. Já tinha herdado da vida a capacidade de associar o amor ao sofrimento. Como morava num Patrimônio enfeitado de rezas, novenas e tristezas, quase não me distraia. Além dos livros que o vigário ou a diretora me emprestavam, eram poucos os momentos e lazer. Cismava nessa época que o tempo passava quase arrastando. Meu pai nunca mais gostou de alguém e eram poucas as coisas que o interessavam. Acho que na vida dele. Depois da morte de mamãe, prevaleceu o medo de sofrer. Minha casa se tornou um lugar de desalento, sem as cantigas de mamãe. Como continuar amando meu pai, se agora ele chegava em casa bêbado e cambaleante? No sindicato aprendi que os boias-frias deveriam lutar por condições mais dignas de trabalho. Os representantes dos trabalhadores rurais nos reuniam para discutirmos a nossa situação. As soluções eram difíceis. Fiquei contente um dia ao ler um cartaz que dizia: é uma afronta à legislação e um desrespeito ao ser humano transportar os trabalhadores em caminhões sem ter nem ao menos um toldo”. Era verdade. Andávamos quilômetros segurando nossa enxada e nossa peneira, apertadas, em caminhões sem nenhuma segurança, muitas vezes dirigidas por motoristas sem carteira de habilitação. Às vezes, nas entressafras éramos obrigados a executar qualquer tipo de trabalho para conseguirmos sobreviver.
  • 20. Durante a safra o dia nem mesmo amanhecia e o caminhão de boias-frias rasgava as estradas, lotado de mulheres, crianças, homens barbados e velhinhos. Sempre usei calça de homem debaixo do meu vestido. Usava um boné e um lenço na cabeça. Todos nós trajávamos da mesma maneira. Mamãe, quando viva, ensinou-me a fazer um óleo com as raízes de uma árvore que ajudava a minha pele a não ser queimada pelo so1. Procurava me alimentar com muita cenoura, beterraba e outros legumes. Eu mesma os cultivava no fundo de casa. Tinha raiva quando via minhas colegas comendo arroz puro. Horta era tão fácil de fazer. Todos nós tínhamos quintal. Parecia que meus colegas tinham nascido só para sofrer, como se tivessem fechado a porta da vontade de viver. Aquela gente que trabalhava o dia todo nos cafezais caminhavam num automatismo de sonâmbulos. Era um trabalho que anulava a consciência do que estávamos fazendo e dos perigos que nos assaltavam. Eu também era uma impotente. Não conseguia encontrar soluções para nossos problemas. Lia sempre, numa insaciável vontade de encontrar alguma solução mágica “que trouxesse mais dignidade para o trabalhador rural, mas a leitura nunca aplacava minha angústia. Muitas vezes eu chorava em segredo diante da infelicidade dos meus companheiros de jornada. Ficava comovida com o sofrimento das crianças que colhiam café com chupeta na boca. O desamparo dos velhos que não conseguiram se aposentar, pois nenhum fazendeiro quisera assinar sua carteira, e eram obrigados a continuar trabalhando até mesmo no período da carpa. Tinha ódio do orgulho e da prepotência dos políticos e fazendeiros da região, cuja injustiça esmagava a todos nós, pois não se preocupavam e nem mesmo pensavam numa reforma agrária que poderia resolver todos os nossos problemas. Só para exemplificar, trabalhei numa fazenda com quase 2000 alqueires. Sentia-me muitas vezes confusa. Traduzia tais estados de espírito ao meu ritmo de vida, Pois se não podia fazer nada, tinha a impressão de ajudar na caminhada que nos levaria a uma total destruição. Até essa época, nunca tinha sentido o olhar de um homem sobre mim. Eu não tinha tempo para me deter. Pensava que era necessário muito tempo para semear, alimentar e ver crescer um sentimento. No fundo mesmo, eu acho que não queria passar pelos sofrimentos em que viviam as mães boias-frias, que logo após o casamento já estavam com seus corações deformados, onde acabava rapidamente o frescor do amor. Também, o que esperava uma mulher do casamento? Quantas não perdiam os maridos, que partiam para a capital em busca de melhores condições de vida e nunca mais voltavam; quantas não abortavam devido ao trabalho penoso da roça!
  • 21. Para mim, naquela época, o amor seria como uma janela para as trevas, para o vácuo, para coisa nenhuma. CAPÍTULO XVI Aconteceu num sábado de aleluia. O turmeiro daquela colheita se chamava Severino. Apesar de eu ter completado dezesseis anos e estar bem alta, achava-o do tamanho de um monstro. O senhor Severino, de cabelo encaracolado, olhos castanhos num rosto vermelho, vivia explorando o povo do Patrimônio. Obrigava-nos a render o máximo na colheita e nos pagava uma ninharia. As fazendas pagavam para ele, e ele nos roubava. Era por isso que ele era chamado de gato. Era muito esperto. Nós já começávamos a colheita devendo, pois tínhamos que comprar as peneiras e os rastelos. Nesse tempo, o Patrimônio começou a abrigar muitas pessoas vindas do Paraná. Eram desempregados que vinham tentar arrumar emprego na colheita do café, uma vez que nas suas regiões de origem não tinham trabalho nessa época do ano. Nós os chamávamos de peões. Vê-los amontoados num galpão na periferia das fazendas, era como se olhar um cenário de tragédia. Viviam sem as mínimas condições de higiene. E ficavam num isolamento extremo. Então, o senhor Severino, querendo apressar a colheita para aproveitar aquela Mão de obra extra, nos obrigou a trabalhar no sábado de aleluia, o que para muitos era um ato de sacrilégio. Éramos obrigados a trabalhar porque, caso contrário, além de não recebermos, corríamos o risco de ser dispensados. Muita gente foi trabalhar naquele dia com amuletos, cruzes de madeira e palma benta. Nos primeiros rumores da madrugada, nossas casas já estavam fechadas com luzes mortas. Já caminhávamos para o ponto de embarque, os nossos passos naquele dia eram pesados, soavam como tambores acelerados. Ao menos se cantasse o galo, exclamavam algumas mulheres, tremendo. Porque nós acreditávamos que somente o canto dos galos, que anunciavam a madrugada afugentaria os nossos medos. Eles, porém, estavam silenciosos. Naquele dia, eu me perguntei por que os galos estavam demorando tanto para chamar, violentamente, o sol. Queríamos que o dia clareasse logo. Era como se os primeiros raios de sol espantassem os nossos pavores.
  • 22. O silêncio continuava. Os galos continuavam dormindo, tranquilos, e estávamos acostumados com aquele canto, pois era a única voz viva numa hora em que tudo parecia morto. O senhor Severino mandou que subíssemos logo nos caminhões. Tive um desejo irresistível de lhe falar um palavrão, mas a sua voz grossa, com acento espanhol, me fez calar. Todos reclamavam baixinho. Era como um resmungo, um clamor disparatado de frases aos pedaços. Ninguém se conformava de trabalhar em dia santo de guarda. Temíamos que a qualquer hora pudesse haver um choque inevitável entre o gato e algum boia-fria. Seria o despertar da consciência da dor. Mas temíamos que qualquer reação tivesse apenas a utilidade de agravar ainda mais os males de que padecíamos. Como para o gato as vitórias da vida tinham sido fáceis, ele odiava quando reclamávamos das dificuldades daqueles que lutavam realmente para obter o sustento do dia a dia. Nesse momento, apareceu uma senhora do Sindicato de Garça, cidade próxima do Patrimônio e começou a distribuir alguns folhetos para nós. Esses folhetos alertavam aos “chapéus de palha”, para conferir os salários. Trazia impresso o salário bruto em vigor no mês, a diária bruta, o preço da hora normal e da hora extra. Diziam também para não trabalharmos sem registro na Carteira Profissional. Senão perderíamos o tempo de aposentadoria, o FGTS, o Salário Família, o Auxílio Natalidade e o Seguro Desemprego. Além de nos orientar para exigirmos a cópia da nossa folha de pagamento, nos alertava para que não assinássemos recibo em branco, pois se fizéssemos isso estaríamos abrindo mão de nossos direitos. Como algumas mulheres estavam rezando, eu dei um grito bem forte e disse: — Vamos parar de rezar e tratar de nossas vidas, é o momento, o inferno é aqui mesmo. Somos explorados de todas as formas. De acordo com essa tabela que hoje estamos recebendo, ganhamos uma miséria! Ergui os meus braços acima da cabeça e, subindo na carroceria do caminhão, li em voz alta os dizeres daquele folheto, pois sabia que muitos dentre nós eram analfabetos. Minha atitude escandalizou o senhor Severino, que não se conformou que uma Maria – ninguém soubesse ir mais longe, além do que estava escrito naquela folha de papel. Muitos não acreditavam no que estava ocorrendo, mas mesmo assim se convenceram e começaram a aderir às discussões. Continuei falando: - Precisamos criar uma nova mentalidade. Precisamos lutar pelos nossos direitos. Somos nós que fazemos este Brasil. O nosso chapéu-de-palha é a nossa farda. Precisamos reagir, sair desta inércia, deste comodismo. Precisamos gritar para que moralizem a situação do boia-fria. Nesse momento eu já dominava totalmente o ambiente.
  • 23. - Nossos políticos se esquecem das massas rurais, lutamos no desamparo, morremos à míngua, esquecidos e humilhados, esmagam a vida do trabalhador. As minhas palavras despertaram em todos uma força muito grande e começaram a gritar: — “vamos conquistar nossos direitos – só a força coletiva dará sentido a nossa luta.” A indisciplina dos boias-frias levou o gato a reagir. Pegando uma corrente na mão, veio na minha direção. Senti um sinal de alarme, que produziu em mim vários calafrios. Quinze minutos depois eu estava toda ensanguentada. Ferveram nas minhas costas chibatadas de corrente. Desmaiei. Acordei na Santa Casa de Garça. Estava desfigurada. Uma madre aproximou-se de mansinho e comecei então a chorar sobre suas mãos largas e brancas. Era a hora do crepúsculo e, nesse momento, antes que acendessem as luzes, me senti pela primeira vez na vida contente com minha ação. Tinha lutado por mim, pelos meus companheiros de trabalho. Fiquei sabendo que ninguém foi trabalhar naquele sábado. Não adiantou os gatos ameaçarem os boias-frias. As ameaças foram em vão. Então, tanto o senhor Severino corno os outros gatos resolveram, mesmo a contra gosto, discutir o problema dos salários. Apesar da dor das feridas que demoravam a cicatrizar e da injustiça ao ver o senhor Severino livre das penas da Lei, pois ele conseguiu provar que agiu em legitima defesa, aprendi muito com aquela reivindicação. Cheguei à conclusão de que a primeira coisa que um povo oprimido tem que fazer é aprender a enxergar. Depois que a pessoa enxerga, já começa a perceber que pode lutar por sua libertação. Eu precisava ajudar meu povo a clarear o olhar “para fazermos uma união grande, para ganharmos força e assim termos condições de lutar pelos nossos direitos”. Uma coisa que eu precisava fazer com urgência era despertar o sentido da luta porque o povo do Patrimônio estava muito preso à tradição da humildade, de sofrer calado e há muito tempo tinham se acomodado. Não enxergavam que vivíamos num mundo irreal, eu tinha que despertar neles o compromisso de que um mundo melhor existiria se soubéssemos utilizar as leis ao nosso favor. Precisava abrir os olhos dos meus companheiros e fazer com que eles enxergassem a exploração e ambição dos latifundiários, que compravam todo ano mais terras com o lucro das colheitas. Eu não podia impor minhas ideias, não queria ser líder. Queria que todos caminhassem juntos, queria apenas coordenar o movimento, ou apenas organizar. Queria, mais do que nunca, defender a minha classe com força viva, pois como éramos bravos trabalhadores, jamais poderíamos nos privar de lutar. Enquanto me convalescia, passeava no silêncio do Patrimônio, sozinha pelas pequenas ruas quentes de sol. Pensava que, naquele momento os habitantes estavam sofrendo a
  • 24. hora amarga, porque o sol estava a pino. Mas agora eles sofriam conscientes de seus males, uma dor de adultos. Não era mais aquela dor antiga, que padecíamos na roça sem refletir nos motivos da nossa angústia. CAPÍTULO XVII A presença dos sindicatos tornou-se constante em nossas vidas. Quando retornei à escola, nos meus dezoitos anos, já éramos registrados, com carteira assinada, recebendo todos os benefícios traba1histas. Mas sabíamos que tínhamos que ficar com os olhos abertos. Os fazendeiros, um dia, iriam nos aprontar alguma. Iriam revidar isso, eu tinha certeza. Estudei muito as leis trabalhistas, não perdia as reuniões do sindicato rural. Cresci muitos nos últimos três anos, com o conhecimento das leis que orientam os trabalhadores, talvez imitando os rios que transbordam nas inundações, levando alimento para as plantações. Uma pessoa que marcou muito a época da minha convalescença foi Frei Beto, a ordem franciscana a que pertencia. Era pobre, humilde, simples e corajoso. Visitava as famílias de boias-frias sempre com um chapéu de palha e botinas rotas. Frei Beto resgatou a nossa cultura regional, que estava sendo destruída pela televisão. Ele conseguiu fazer com que o povo compreendesse que um homem se desenvolve pelo que realiza, tomando suas próprias decisões; aumentando sua compreensão do que faz e das razões para fazê-la. Enfim, ensinou que o povo do Patrimônio deveria participar de tudo em pé de igualdade na vida da comunidade à qual pertencia. Seu prestígio se tornou enorme no local, principalmente por sua forma de alfabetizar adultos. Era um animador do povo, fazendo com que lessem e escrevessem sua realidade criticamente. Foi Frei Beto que me incentivou a voltar para a escola. Ele me julgava uma esperança, que muito poderia colaborar com a reconstrução do Patrimônio. Ao terminar a oitava série, já com meus vinte e um anos, levantei várias dúvidas se a educação, como estava sendo dada nas escolas, não era perda de tempo. Arrumei muitos atritos com meus mestres. Eu tinha quase certeza que, se a escola mesmo legitimando o saber dominante, se voltasse também para o saber do boia-fria e o reforçasse, poderia ser bem melhor. Mas acho que os professores não se importavam muito com a nossa situação. Quando falavam sobre o trabalho rural, não desciam até as raízes da nossa situação; eles não trabalhavam dentro da escola para nos ajudar a tomar consciência de nossa real idade. Talvez a culpa dessa postura dos professores, mesmo que não quisessem, é que eles não consideravam os boias-frias como companheiros trabalhadores. Eles achavam que estavam mais perto das classes dominantes. Muitas vezes não aceitavam que
  • 25. argumentássemos criticamente algum conteúdo que nos era passado. O bom aluno era aquele que aceitava pacificamente a orientação do professor. Numa aula de Geografia, fui mandada para fora da ciasse porque disse para a professora que no lugar dela mandar que decorássemos os nomes dos rios brasileiros, ela estaria contribuindo muito mais se nos ensinasse a compreender nossa realidade, não como uma coisa parada. À qual a gente devesse simplesmente se adaptar, mas como algo em constante movimento. Nós temos, prossegui dizendo, necessidade de entender a razão verdadeira que explica a realidade do nosso Patrimônio. Precisamos compreender, por exemplo, que não é por causa do trabalhador rural que os rios estavam assoreados, mas que era o desejo do lucro desordenado dos fazendeiros que cortavam as árvores que costeavam os rios para fazer cercas que provocaram a morte dos rios. Outra vez, acho que na sétima série, a professora de História entrou na sala de aula. Estávamos discutindo sobre um acidente com um caminhão boia-fria. Gerou uma confusão ao querermos prestar depoimento correto sobre como ocorrera o acidente para a polícia, e o gato intercedeu, obrigando-nos a calar. Os alunos perguntaram à professora sua opinião, sua ajuda para compreenderem as razões que levaram os boias- frias a se calarem frente à ameaça do gato. A professora colocou o dedo na boca e pediu silêncio, que se calassem a boca, pois ia começar a aula de História: “O avanço do café no Vale do Ribeira”. Digo isso para explicar como o conteúdo era artificial; como era distante o ensino e a realidade que iam nos interiorizando. Tínhamos tanta experiência e conhecimentos adquiridos fora da escola, principalmente nós que fomos obrigados a trabalhar desde pequenos, mas tínhamos que conter nossa extraordinária riqueza, pois ela não era levada em conta pela escola. Só as matérias abstratas e livrescas tinham importância. CAPÍTULO XVIII Às quinze horas, já podíamos deslumbrar através da Reserva de Caetetus um sol muito aberto, sem nuvens. Soprava um vento leve e morno, fazendo dançar as folhas das árvores de caules vermelhos. Despertei a Olívia, que dormitava numa rede improvisada. — Preguiçosa! Venha, vamos ouvir o repentista de nossa classe. Ele vai desafiar o professor Ângelo! Acho que Olívia não percebeu ainda que a considere uma amiga muito mais íntima do que ela poderia acreditar. Ela dirigia o seu mundo muito melhor do que minhas outras amigas. Ajudava as suas companheiras que lhe vinham pedir ajuda de boa vontade, sempre com palavras de estímulo para tirar o gosto amargo da caridade que lhes fazia.
  • 26. A família de Olívia era a mais remediada do Patrimônio. Seu pai era um homem muito respeitado nas redondezas, principalmente por ser o mais valente e o mais arrojado e defendia seus amigos com a força de seus punhos. Sempre era recompensado com alguma coisa material, um agrado, como diziam. Olívia gostava de um rapaz chamado Pedro, também aluno da nossa escola. Seu amor é feito de solidariedade, de sonhos sonhados juntos e de saudade comum das coisas que passaram juntos. Eu não gosto dele. Acho-o muito arrogante. Talvez o meu ódio se associe ao fato dele ser um policial e não gosto da maneira como as mulheres geralmente apreciam uma farda. Sei que é preconceito, mas eu sou assim. Olívia é uma moça que sabe muito mais do que os professores pensam. Só que não consegue expor com clareza suas ideias; também acho que não adianta muito, pois em geral não é sempre que somos ouvidas em sala de aula. Nesse momento os versos já começaram a ser ritmados pelos dois repentistas. Reunimos em torno do aluno e do professor Ângelo para aplaudirmos. Era interessante notar como o professor reconhecia a capacidade de seus alunos. Ele tentava aprender com a gente, antes de nos ensinar. Naquele momento, ao ver a simplicidade dele e ouvir seus versos tão cheios de humanidade, me levou a quase chorar, e às vezes sorrir, melancolicamente. Ângelo tem um aspecto tão distinto, como também tem reputação nos círculos intelectuais, como um homem erudito. A diretora me disse também que ele é a pessoa mais respeitadora que ela conhecia. Não sei por que ela fez essa observação, quando me chamou na diretoria. Senti uma profunda leveza ao notar que ela já estava sabendo do meu amor pelo professor. Quando estava saindo da diretoria comecei a chorar, silenciosamente, para aliviar a tensão da demonstração de afeto da diretora. Ela, ao perceber meu choro, me abraçou e disse: - Ana Tereza, largue mão deste mistério. Estava ciente de seu sentimento pelo professor há muito tempo, mas só podia falar nisso quando surgisse uma situação propícia. — Mas como à senhora soube? Fiquei com vergonha de encará-la, agora que ela sabia o que estava acontecendo comigo. — Li alguns poemas seus no final dos seus cadernos. Fiquei aborrecida com a notícia e tentei mostrar o meu descontentamento com uma voz um tanto áspera: — Diretora, a senhora não podia ter lido os meus poemas!
  • 27. Ela sorriu para mim e acrescentou: — Debati comigo mesmo qual seria o meu maior pecado: ler os seus poemas ou continuar ignorando porque você mudara tanto. A escolha foi simples. Além do mais, dou visto nos cadernos dos alunos com certa regularidade. Afinal de contas, você, Ana, é extremamente romântica para sua idade. Fique alerta! Pela primeira vez fiquei contente, por não colocar nos poemas os impulsos sexuais que aquele professor provocava em meu corpo. Saí, rapidamente, do meu pensamento, ao sentir que Olívia tinha pegado a minha mão, para fazer com que eu prestasse atenção nos “repentistas”. Foi nesse momento que consegui perceber como eram profundos os versos que o homem que eu amava improvisava: “Eu tenho muita ciência Aprendi educação Mas das coisas do sertão Não tenho boa experiência Nunca fiz uma palhoça Nunca trabalhei na roça Não posso conhecer bem Pois nessa penosa vida Só quem provou da comida Sabe o gosto que ela tem.” CAPÍTULO XIX Já estava com vinte e dois anos quando iniciei o colegial. Tinha um rosto grave e um tanto sensual. Pela primeira vez, enfrentei as conseqências por não aceitar conselhos. Tomei parte num confronto estúpido e como conseqüência, tive um braço quebrado que me obrigou a esperar um ano para iniciar o colegial. Por volta da uma e meia da tarde, num domingo de fevereiro, estava sentada na varanda, a fim de tomar um pouco de ar fresco e olhava uns meninos jogarem bola. Passou um embriagado, pai de um dos garotos. Aliás, o hábito de beber sem limites fazia parte do ritual dos domingos e feriados. Era como se aquele povo tivesse perdido as forças para
  • 28. se libertar de qualquer vicio. Talvez faltasse coragem mental para enfrentar o tédio da marcha da vida. De repente, os meninos que jogavam bola se espalharam. Vinha um carro em alta velocidade. Parou violentamente. Um homem pulou do assento. Tinha um rosto grande e uma boca encurvada, era uma máscara de fúria. Numa fração de segundo estava na frente do homem embriagado e o arrastou para a calçada, na frente da minha casa. Papai segurou meu braço e se encolheu todo, procurando esconder seu rosto no meu cabelo. O que se seguiu foi revoltante. O homem do carro, que era “protetor” de um fazendeiro, começou a bater no acovardado boia-fria com os punhos, xingando-o por ter entregado seu patrão no sindicato rural. Quando vi o que estava acontecendo, tentei ajudar. Quase que num gesto de misericórdia, corri para socorrer o homem que apanhava. Entrementes, outro carro apareceu e bateu em mim com toda força. Ao cair, protegi meu corpo com o braço direito. O “protetor” baixou os olhos para mim: -Sua intrometida, se você abrir a boca eu a mato, arrematou. Permaneci no chão, até que ouvi o valentão dizer numa voz grossa e abafada para o ocupante do carro que me atropelara: - Muito bom serviço. Vamos sumir daqui. Somente, então, foi que meu pai se atreveu a sair de sua posição. Olhando para mim, me levando para dentro de casa. Os vizinhos foram até o orelhão e chamaram uma ambulância. Enquanto isso, o embriagado correu desatinado para sua casa, mesmo estando muito ferido. -Ó Cristo, essa Ana Tereza! – falou Frei Beto ao me ver entrar no Centro de Atendimento Médico, na sede do Município. Mais do que ninguém, ele compreendia o sofrimento dos boias-frias e da população em geral. Não era como a maioria do meu povo, que aprendera na luta pela sobrevivência que às vezes era muito importante não perceber alguma coisa dolorosa. Eu pedi ao Frei Beto que providenciasse um pouco de café. Em minha experiência de vida, o ato de comer diminuía o meu sofrer. Fiquei furiosa quando o médico tentou me dar um calmante. Mas uma xícara de café era outra coisa, fazia parte do meu viver. E assim, de braço quebrado, esperei um bom tempo para iniciar o colegial. Foi uma espera milagrosa, pois muitas mudanças ocorreram no interior da escola onde eu tinha
  • 29. feito o primeiro grau. O ensino tradicional que tornava a escola tão enfadonha e de tão pouca serventia, estava dando lugar a uma nova forma de ensinar. Ao ingressar no colegial notei, de imediato, que uma revolução estava em andamento. Dei-lhe o nome de Revolução do Livro Vermelho. Os professores que adotaram como guia um livro vermelho, semelhante a um caderno de brochura grande, estavam ajudando os alunos a entenderem a realidade com mais lucidez, eles não mais depositavam conhecimentos dentro de nós. Pelo contrário, faziam com que nós descobríssemos as causas da nossa pobreza, do analfabetismo que teimava em não abandonar a população do Patrimônio. Não era mais qualquer informação que eles nos passavam, mas, sim, aquelas que seriam necessárias para interpretarmos a realidade do nosso cotidiano. Ainda tinha muito a ser feito, pois não eram todos os professores que aderiram à Revolução do Livro Vermelho, mas os alunos que estavam frequentando as séries iniciais iriam colher os frutos dessa mudança. Quando um professor chegava na classe e eu via que ele carregava o livro vermelho, respirava tranquila, pois sabia que as provas não seriam mais veículos para derrotar o aluno, mas, sim, uma parada para o professor refletir sobre sua prática diária. Era muito mais um ato de humildade em que o professor reconhecia perante a classe que sua forma de ensinar precisava ser refeita. O reinado das provas que tinham como objetivo defender interesses ocultos dos professores e nos prejudicar tinha acabado. A escola estava agora dirigida para nós, alunos desfavorecidos socialmente. Eu sempre acreditei que se as escolas voltassem realmente para a classe explorada, estariam contribuindo para a criação de uma sociedade mais justa. O meu sonho sempre foi o de viver num mundo novo, sem explorados nem exploradores, e, nesse mundo novo, nenhum homem, mulher, criança ou grupo de pessoas exploraria o trabalho dos outros. Essa nova atitude da escola, onde estudar não era mais um repetir o que os outros diziam e, sim, pensar criticamente o que os livros diziam, trouxe esperança, pois pela primeira vez na minha história de vida. uma instituição se esforçava para criar uma sociedade nova. Aprendi com essa Revolução do Livro Vermelho que estudar também era um dever revolucionário, pois nos davam em nós condições de tentar reorganizar a vida do trabalhador rural. Eu sabia que essa revolução seria lenta, mas tinha certeza de que, agora que a escola se voltava para nossos interesses, ela estava contribuindo para fazer nascer dentro de nós, novos trabalhadores, que saberíamos criticar com argumentos as mazelas sociais que nos afligiam.
  • 30. CAPÍTULO XX No início do terceiro colegial, comecei a fazer uma apreciação mais objetiva da minha vida. Nos primeiros anos da minha adolescência, sentia-me uma mulher sem base concreta para receber e dar afeto. Sofria, uma grande solidão interior. Depois, mais madura, comecei a alimentar um desejo secreto de querer ser abraçada, de sentir o calor de um corpo de homem junto do meu. Eu me considerava como um fruta madura, por isso mesmo mais doce, mas estava precisando de um sol para me aquecer. Eu andava, prestando atenção nos homens do Patrimônio, mas só conseguia enxergar fisionomias podadas da vontade de amar. A solidão se tornava quase total e a certeza de saber que ela poderia se tornar total me assustava horrivelmente. Afugentava essa melancolia dando longos passeios pelos campos. Era simplesmente muito perigoso para qualquer pessoa andar passeando por ali. Era perigoso mesmo para uma natural do lugar. A região estava cheia de andarilhos, que agora eram contratados pelos gatos para executarem pequenos serviços na lavoura. Eles eram recolhidos dos albergues noturnos ou sapromis. Trabalhavam apenas para receber alimento, mais nada. Era uma forma dos gatos se vingarem dos boias-frias. Esses andarilhos andavam sempre armados e colocavam em perigo toda a população do Patrimônio. Costumavam encurralar quem encontrassem pelo caminho, às vezes, apenas para saquear uma peça do vestuário. Assim, numa manhã ensolarada, me coloquei a caminhar através dos campos, seguida pelo meu fiel cão chamado Tigre. Era um animal comum, branco, com o peito pintado de riscas pretas, mas muito valente. Caminhei ao longo das estradas empoeiradas, passando por várias carroças cheias de milho. O campo estava cheio de flores rosadas, laranjeiras e limoeiros em pleno florescimento. Verifiquei, naquele momento. Como era bonito o lugar em que morava e não conseguia conceber como o meu povo se conformava em abandoná-lo para buscar a “sorte” nas cidades grandes. Era uma manhã muito bonita e me sentia tal qual quando criança ao sair de casa de manhã cedinho para recolher gravetos para mamãe. Um pouco além do laranjal, observei que um homem estava sentado perto de uma árvore. Fui, então, me aproximando cada vez mais. Fiquei tão perto, que pude ver todos os traços de seu rosto. Ele era tão bonito! Sua pele era de um esquisito marrom-claro e os seus olhos enormes eram verdes.
  • 31. O meu coração começou a bater forte em meu peito e senti um leve calor subindo para o rosto. O sangue começou a circular rapidamente no meu corpo. Parecia que meu corpo flutuava. Então, vi o rapaz sorrindo. Mostrou-se amável e me disse carinhosamente: - Calma, menina, calma! Senti naquele momento um frio percorrer meu corpo. Era a primeira vez na minha vida que tal coisa acontecia. A minha vida agora estava simplificada e fixada naquele homem. O resto não merecia mais qualquer atenção. O rapaz, com um rosto honesto me perguntou: — Você está bem? Não respondi. Fugi do lugar. Quando chegou a noite, e fui para a escola, levei um susto quando a diretora entrou na sala e apresentou o novo professor efetivo de história, que tinha se removido para nossa escola, vindo de uma outra cidade. Arrastei-me com dificuldade até minha carteira, coloquei os braços em volta da cabeça e compreendi porque minha mãe sempre me dizia que a vida era sempre um encontro. O professor era o mesmo homem que de manhã fizera com que eu sentisse no corpo uma emoção que jamais conhecera. CAPÍTULO XXI Agora, às cinco horas da tarde, a paisagem estava demasiadamente bela. Não eram só as árvores, com seu verde intenso, também o céu estava deslumbrante. Um pequeno galho que o vento mexera prendeu o meu cabelo. Tentei puxar. Nisso uma porção de flores amarelas caíram sobre eles. Ângelo chegou de mansinho e começou a tirar as flores com muito carinho. Inclinou a cabeça e me olhou bem de perto, cada vez mais perto e assim ficamos por um bom tempo, contemplando um o rosto do outro. Uma árvore estalou. Ele inclinou-se ainda mais. Ia tocar nos meus lábios que esperavam um beijo, mas nos afastamos. Então ele disse: - A excursão está no fim. Quero conversar um pouco com você. Vamos andar… Disse o professor. Fiquei preocupada. Sabia que os homens eram mais sensíveis quando queriam revelar algo íntimo.
  • 32. — Ana Tereza, quando voltei para Lupércio, minha terra natal , não fiquei contente ao ver minha família. Foi agradável , mas só isso. Então vim para o Patrimônio, vi você, primeiro no campo, depois na escola e fiquei muito feliz. Nunca uma mulher me amou tanto como você. Durante esses cinco meses em que vi sua reação toda vez que entrava na sala de aula, despertou em mim enorme afeição. Agora vou lhe confidenciar uma coisa, e não quero que repita nem a sua melhor amiga: – Jamais conheci uma mulher mais digna de respeito e de amor, por isso vamos nos casar o mais depressa possível. Fiquei totalmente perplexa. - Como você pode insinuar que gosta de mim? Você nunca me deu a mínima importância na escola, como pode gostar de mim, se nunca nem ao menos tentou conversar comigo? - É verdade, respondeu Ângelo, mas isso não quer dizer que não a apreciava. Mesmo sem procurá-la, dediquei a maior lealdade ao seu afeto durante esses meses. Fiquei olhando para ele, incredulamente. - Você sabe quem eu sou realmente? Eu não aceito as regras da sociedade em que vivo. Não me julgo inferior a ninguém. Reconheço e me aceito como uma boia-fria, mesmo sabendo que a sociedade não protege e nem aceita aqueles que não possuem poder individual e econômico. Como pode se interessar por uma mulher que não tem a intenção de colocar o seu destino nas mãos de ninguém? - Sei muito mais sobre você do que possa imaginar. Tudo o que posso dizer é que quero compartilhar minha vida com a sua. Quero estar ao seu lado. E você precisa decidir se deseja o mesmo, Eu permaneci calada por muito tempo. Depois perguntei: - Quais motivos o levaram a querer se casar tão rapidamente comigo? - Você pode ter todos os motivos para achar que não posso me casar com você, menos o de não amá-la. Dei um longo suspiro. - Vamos continuar a nos encontrar, depois resolvemos. Dei um sorriso meio malicioso, como se estivesse contrariando íntimos desejos. Livrei minha mente de todos os pensamentos e depois comecei a pronunciar uma oração a Santa Terezinha por ter encontrado a razão para continuar vivendo. Ah! Eu não disse, mas o meu Patrimônio se chama: “Patrimônio de Santa Terezinha”.