Clínica Psicanalítica: manejo e subjetivações na contemporaneidade
1. Clínica Psicanalítica:
manejo e subjetivações na contemporaneidade
Tema de abertura:
A histeria na atualidade:
novas trajetórias nos labirintos da falta?
ALEXANDRE
SIMÕES
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2. Vejamos inicialmente 4 demarcadores da histeria a
partir do discurso analítico:
a) a histeria é uma posição subjetiva que
se apresenta na clínica psicanalítica
independentemente de suas
manifestações sintomáticas;
Esta afirmação pode ser proposta ainda que, inicialmente, Freud tenha
se amparado da ampla manifestação sintomática da histeria para nos
apresentar uma nova formulação que já não mais se enquadrava na
semiologia psiquiátrica vigente em seu tempo.
3. Em suma: um discurso distinto instaura uma clínica
igualmente distinta.
4. b) esta posição subjetiva (ou seja,
este modo do sujeito ser remetido à
sua própria divisão) comporta uma
forma específica de gozo;
por gozo, neste contexto, podemos compreender a
interação (de múltiplas vias) entre prazer e
sofrimento mas, sobretudo,
o modo de divisão do sujeito.
5. c) Temos, portanto, uma relação de preservação da falta e,
ao mesmo tempo, reivindicação por meio da falta, o que
torna a histeria uma experiência subjetivante de base
“O histérico é o
sujeito dividido”
(Jacques Lacan, Radiofonia - 1970, p.
89)
6. d) o gozo na histeria comporta, sempre, uma relação de
necessária sustentação da falta (que mantém a experiência
desejante) e, igualmente, o risco de constante evanescência
(fading) do sujeito diante da falta;
7. Fragmento Clínico:
Há alguns anos, uma mulher de meia idade me procurou,
envolvida em uma situação de grande sofrimento, tendo como
ponto central - segundo o que lhe era nítido naquele momento
- a sua desgastada relação com o marido.
Após um casamento de 18 anos, as constantes cobranças que o
marido (um profissional bem sucedido) vinha ultimamente lhe
fazendo para que ela tivesse uma atividade profissional rentável
e a crescente onda de desvalorização que isto acarretava
(somada ao intenso desvalor que a própria paciente se
impunha), promoviam um amplo conjunto de sintomas: dores
(localizadas e difusas) pelo corpo, sensações de iminente
desfalecimento, desleixo quanto a si, beirando até mesmo o
ocultamento - por meio de roupas largas - dos traços e curvas
de seu corpo.
8. Vale salientar que o início do relacionamento
deste casal comportou alguns detalhes que fazem
diferença.
Quando estas duas pessoas se conheceram, a
mulher era, bem diferentemente de hoje, uma
profissional bastante atuante em sua área de
formação universitária. Ela se mantinha muito
bem com seu salário, tinha suas atribuições e
responsabilidades de modo a ser uma
profissional, nesta época, de destaque.
9. O homem, que alguns anos mais tarde viria a
ser o marido, era na época um estudante
universitário, com poucos recursos financeiros e
que acabou sendo, durante os anos iniciais de
namoro, sustentado financeiramente pela
namorada, que se mostrava para ele como uma
mulher independente, emancipada e admirável.
Esta mulher, de certa forma, fez o seu homem.
10. Estas circunstâncias, bem como outras que a paciente
apresentará ao longo de sua análise, nos indicam um aspecto
típico da histeria:
a obstinação de querer reparar a própria falta embaraça a histérica no
ideal de perfeição do Outro.
11. Este quadro inicial passa por uma grande mudança quando,
um pouco mais adiante na relação, o casal - que agora já
tem um garoto de pouco mais de 2 anos de idade - decide
mudar de cidade. Mais precisamente, a mãe estava vivendo
com o filho, enquanto o marido já trabalhava no início de sua
carreira profissional (com uma grande carga de ocupações)
nesta outra cidade, de modo que a convivência dos três
(almejada pela paciente) mostrava-se comprometida.
12. Então, esta mulher decide
largar a sua própria
carreira (era uma
funcionária federal) e, com
o filho, partir em direção à
nova cidade na qual o
marido já estava instalado,
iniciando assim um outro
ritmo de vida dedicado à
manutenção da casa, aos
cuidados do filho, etc.
Inaugura-se aí, gradativamente,
Torna-se, dali em diante, uma trilha na qual a própria
uma dona de casa paciente irá, ao lado das pressões
exemplar. do marido, se questionar sobre o
seu valor, sobre aquilo que produz,
sobre a sua obra.
13. Duas situações muito específicas podem nos chamar a
atenção neste fragmento clínico, na medida em que
constituíram momentos fecundos da análise:
momentos onde a separação e a alienação
entram em cena
(duas operações fundamentais que se
entrecruzam no itinerário de uma análise e
que indicam o lugar do sujeito)
14. Primeiro momento: um sonho
A paciente, após alguns meses me dizendo acerca de seu cotidiano e das
mazelas de sua relação com o marido, relata um sonho que, segundo ela,
apresentou-se a maior parte do tempo bastante confuso.
Surgiram imagens desconexas, contextos e lugares pouco precisos, contornos
desfocados. A paciente tinha a clara sensação de um sonho longo, uma espécie
de situação da qual ela não conseguia se desvencilhar; um sonho à beira de um
pesadelo.
15. Até que em um dado momento, ela se vê ao lado de uma
mulher conhecida - uma amiga, que já faz parte de sua vida há
um bom tempo. É importante sublinhar que esta amiga vive
uma situação, no casamento, homóloga à da paciente (o valor
daquilo que ela produz é sempre posto em dúvida pelo
marido).
Elas estão andando por uma casa, com pouca iluminação. De
repente, elas se encontram em um pequeno cômodo e a
paciente se dá conta de que elas estão em um cativeiro.
16. A angústia começa a se mostrar mais claramente nesta experiência do
sonho, juntamente com a incerteza e a sensação de um grande perigo
que as rondava.
Uma porta se abre - esta parte faz contraste com o restante do sonho,
pois anteriormente estava tudo muito enevoado e, de agora em diante,
o que se apresentará é bastante claro - surge um homem
desconhecido portando uma arma, na condição de carcereiro ou
sequestrador e, para a surpresa da sonhadora, logo atrás deste homem
amedrontador, aparece seu marido.
17. Instantaneamente, ela é visitada por uma
interrogação: “ele veio para me salvar ou é um
comparsa do sequestrador?”
Com esta cena, a paciente acorda. O sonho se tornou,
neste ponto um sonho de angústia. Portanto, se
recorrermos a Lacan, um sonho do qual a paciente
desperta abruptamente para, em vigília, manter-se
adormecida quanto aquilo que lhe instiga.
18. A título de interpretação do sonho, lhe interrogo:
“o que, em você, te prende?”
Nas próximas sessões, a paciente trará um conjunto de cenas de sua vida que
comportam uma espécie de arquitetura do cárcere: os labirintos da falta.
19. Segundo momento: uma revelação
Em meio à situação conflituosa com o marido -
demarcada por uma ausência de carinho entre
eles, diálogos ríspidos e uma constante sensação,
por parte de paciente, de não ter muito o que
oferecer ao relacionamento - , a paciente se
depara com a constatação de uma traição.
Esta constatação deu-se por meio de uma conta
telefônica “esquecida” pelo marido em casa e a
paciente, ao abrir esta conta por “engano” (pois
imaginava ser a sua), deparou-se com uma
intensa comunicação (telefonemas e envio de
mensagens) vinculada a um só e mesmo número.
Isto chamou a sua atenção.
20. A paciente se dá conta de que, naquele momento, lhe foi
tirado o chão. A relação com o marido encontrava-se
inteiramente fria e distante, porém, a marca de uma
possível vinculação dele com um outro lugar (no caso, um
número de telefone que, com a investigação da paciente
veio a se confirmar como a existência de uma amante) lhe
foi insuportável.
A paciente iniciou um quadro de extrema angústia,
inanição, múltiplas sensações cinestésicas e agitação
psicomotora que repercutiu em toda a sua rotina,
beirando, em alguns momentos a despersonalização.
Tratava-se de uma “loucura histérica”.
Mais de uma vez, durante a madrugada, ela foi encontrada
(pelo marido e também filho) semi-desfalecida no
corredor, fora do quarto, às vezes com sinais de vômitos,
sem que ela mesma soubesse como chegou ali. Tornou-se,
por algumas semanas, um farrapo humano.
Foi um momento no qual achei prudente o
encaminhamento da paciente a um colega psiquiatra para
a intervenção medicamentosa. Estava ocorrendo o
recrudescimento da antiga situação de desvalor, de modo
a não mais haver, no ápice da crise, muita diferença entre a
paciente e um dejeto (insistentemente reiterada em seu
discurso).
21. Mas, em se tratando de histeria, não nos esqueçamos de uma baliza
clínica crucial:
aquilo que pode parecer uma privação de gozo manifesta-se
como um gozo na privação.
22. Tanto o sonho quanto o episódio crítico
podem nos indicar que o fator decisivo na
direção do tratamento não se dá por uma
pergunta sobre o objeto (aos moldes de “o
que você, de fato, quer?”) ...
Porém: “quem deseja em você?”
23. Prosseguiremos no próximo encontro com o tema
Histeria e TOC: possíveis confluências
Até lá!
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