Este documento contém poemas e excertos de poemas de vários autores portugueses. Os poemas tratam de temas como a poesia, o amor, a saudade, a natureza e visões de Portugal.
1. BIBLIOTECA PERO VAZ DE CAMINHA
A BIBLIOTECA SAIU DA ESCOLA
E LEVOU A POESIA À RUA
2. Há Palavras Que Nos Beijam
Há palavras que nos beijam
Como se tivessem boca,
Palavras de amor, de esperança,
De imenso amor, de esperança louca.
Palavras nuas que beijas
Quando a noite perde o rosto,
Palavras que se recusam
Aos muros do teu desgosto.
De repente coloridas
Entre palavras sem cor,
Esperadas, inesperadas
Como a poesia ou o amor.
(O nome de quem se ama
Letra a letra revelado
No mármore distraído,
No papel abandonado)
Palavras que nos transportam
Aonde a noite é mais forte,
Ao silêncio dos amantes
RESTAURANTE O ALCAIDE
Alexandre O’Neil
4. NA PRAIA DA BOA NOVA …
Na praia lá da Boa Nova, um dia,
Edifiquei (foi esse o grande mal)
Alto Castelo, o que é a fantasia,
Todo de lápis-lazúli e coral!
Naquelas redondezas não havia
Quem se gabasse dum domínio igual:
Oh Castelo tão alto! parecia
O território dum Senhor feudal!
Um dia (não sei quando, nem sei donde)
Um vento seco de deserto e spleen
Deitou por terra, ao pó que tudo esconde,
O meu condado, o meu condado, sim!
Porque eu já fui um poderoso Conde,
Naquela idade em que se é conde assim...
António Nobre
PIZZA HUT
8. CANTICO NEGRO
Como, pois sereis vós
Vem por aqui" - dizem-me alguns com os olhos doces Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Estendendo-me os braços, e seguros Para eu derrubar os meus obstáculos?...
De que seria bom que eu os ouvisse Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
Quando me dizem: "vem por aqui!" E vós amais o que é fácil!
Eu olho-os com olhos lassos, Eu amo o Longe e a Miragem,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços) Amo os abismos, as torrentes, os desertos...
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali... Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
A minha glória é esta: Tendes pátria, tendes tectos,
Criar desumanidade! E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Não acompanhar ninguém. Eu tenho a minha Loucura !
- Que eu vivo com o mesmo sem-vontade Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
Com que rasguei o ventre a minha mãe E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Não, não vou por aí! Só vou por onde Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém.
Me levam meus próprios passos... Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Se ao que busco saber nenhum de vós responde Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.
Por que me repetis: "vem por aqui!"?
Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Prefiro escorregar nos becos lamacentos, Ninguém me peça definições!
Redemoinhar aos ventos, Ninguém me diga: "vem por aqui"!
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos, A minha vida é um vendaval que se soltou.
A ir por aí... É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou...
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens, Não sei para onde vou
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada! Não sei por onde vou
O mais que faço não vale nada. -Sei que não vou por aí!
José Régio
11. As Palavras Interditas
Os navios existem e existe o teu rosto
encostado ao rosto dos navios.
Sem nenhum destino flutuam nas cidades,
partem no vento, regressam nos rios.
Na areia branca, onde o tempo começa,
uma criança passa de costas para o mar.
Anoitece. Não há dúvida, anoitece.
É preciso partir, é preciso ficar.
Os hospitais cobrem-se de cinza.
Ondas de sombra quebram nas esquinas.
Amo-te... E abrem-se janelas
mostrando a brancura das cortinas.
As palavras que te envio são interditas
até, meu amor, pelo halo das searas;
se alguma regressasse, nem já reconhecia
o teu nome nas minhas curvas claras.
Dói-me esta água, este ar que se respira,
dói-me esta solidão de pedra escura,
e estas mãos noturnas onde aperto
os meus dias quebrados na cintura.
E a noite cresce apaixonadamente.
Nas suas margens vivas, desenhadas,
cada homem tem apenas para dar
um horizonte de cidades bombardeadas.
Eugénio de Andrade
FARMÁCIA MARQUES MENDONÇA
16. Fanatismo
Minh'alma, de sonhar-te, anda perdida
Meus olhos andam cegos de te ver!
Não és sequer razão de meu viver,
Pois que tu és já toda a minha vida!
Não vejo nada assim enlouquecida...
Passo no mundo, meu Amor, a ler
No misterioso livro do teu ser
A mesma história tantas vezes lida!
Tudo no mundo é frágil, tudo passa..."
Quando me dizem isto, toda a graça
Duma boca divina fala em mim!
E, olhos postos em ti, vivo de rastros:
"Ah! Podem voar mundos, morrer
astros,
Que tu és como Deus: princípio e fim!...“
Florbela Espanca
PASTELARIA
19. E POR VEZES
E por vezes as noites duram meses
E por vezes os meses oceanos
E por vezes os braços que apertamos
nunca mais são os mesmos E por vezes
encontramos de nós em poucos meses
o que a noite nos fez em muitos anos
E por vezes fingimos que lembramos
E por vezes lembramos que por vezes
ao tomarmos o gosto aos oceanos
só o sarro das noites não dos meses
lá no fundo dos copos encontramos
E por vezes sorrimos ou choramos
E por vezes por vezes ah por vezes
num segundo se envolam tantos anos.
David Mourão Ferreira
22. AVÉ-MARIAS
Nas nossas ruas, ao anoitecer,
Há tal soturnidade, há tal melancolia, E o fim de tarde inspira-me; e incomoda!
Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia De um couraçado inglês vogam os escaleres;
E em terra num tinir de louças e talheres
Despertam-me um desejo absurdo de sofrer.
Flamejam, ao jantar, alguns hotéis da moda.
O céu parece baixo e de neblina,
O gás extravasado enjoa-me, perturba; Num trem de praça arengam dois dentistas;
E os edifícios, com as chaminés, e a turba Um trôpego arlequim braceja numas andas;
Toldam-se duma cor monótona e londrina Os querubins do lar flutuam nas varandas;
Às portas, em cabelo, enfadam-se os lojistas!
Batem os carros de aluguer, ao fundo,
Levando à via-férrea os que se vão. Felizes! Vazam-se os arsenais e as oficinas
Ocorrem-me em revista exposições, países; Reluz, viscoso, o rio, apressam-se as obreiras;
E num cardume negro, hercúleas galhofeiras,
Madrid, Paris, Berlim, S. Petersburgo, o mundo!
Correndo com firmeza, assomam as varinas.
Semelham-se a gaiolas, com viveiros,
As edificações somente emadeiradas: Vêm sacudindo as ancas opulentas!
Como morcegos, ao cair das badaladas, Seus troncos varonis recordam-me pilastras;
E algumas, à cabeça, embalam nas canastras
Saltam de viga os mestres carpinteiros.
Os filhos que depois naufragam nas tormentas.
Voltam os calafates, aos magotes,
Descalças! Nas descargas de carvão,
De jaquetão ao ombro, enfarruscados, secos;
Desde manhã à noite, a bordo das fragatas;
Embrenho-me, a cismar, por boqueirões, por becos,
Ou erro pelos cais a que se atracam botes. E apinham-se num bairro aonde miam gatas,
E o peixe podre gera os focos de infecção!
E evoco, então, as crónicas navais:
Mouros, baixéis, heróis, tudo ressuscitado!
Cesário Verde, 1880
Luta Camões no Sul, salvando um livro a nado!
Singram soberbas naus que eu não verei jamais!
25. O PORTUGAL FUTURO
O Portugal futuro é um país
aonde o puro pássaro é possível
e sobre o leito negro do asfalto da estrada
as profundas crianças desenharão a giz
esse peixe da infância que vem na enxurrada
e me parece que se chama sável
Mas desenhem elas o que desenharem
é essa a forma do meu país
e chamem elas o que lhe chamarem
Portugal será e lá serei feliz
Poderá ser pequeno como este
ter a oeste o mar e a Espanha a leste
tudo nele será novo desde os ramos à raiz
À sombra dos plátanos as crianças dançarão
e na avenida que houver à beira-mar
pode o tempo mudar será verão
Gostaria de ouvir as horas do relógio da matriz
mas isso era o passado e podia ser duro
edificar sobre ele o Portugal futuro.
Ruy Belo
RESTAURANTE O ALCAIDE