Conhecimento produzido é conhecimento localizado: o “Brasil” das pesquisas do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFF
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Conhecimento produzido é conhecimento localizado: o “Brasil” das pesquisas
do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFF1
Pedro Meirelles*
Resumo: O presente artigo faz uma análise das dissertações e teses do Programa
de Pós-Graduação da Universidade Federal Fluminense (2010-2018) que enunciam
o escopo de pesquisa com o recorte "no Brasil" ou "do Brasil". A partir de discussões
teóricas sobre a categoria discursiva que envolve a questão da nação/nacionalidade
e do lugar de poder que ocupa o conhecimento científico na sociedade
contemporânea, os resultados obtidos respondem à hipótese de que dificilmente os
pesquisadores dariam conta de mapear o país em sua totalidade. Mais do que essa
constatação, o trabalho pretende discutir, dentro dos limites burocráticos e
metodológicos de um artigo científico, quais são os precedentes que colaboram para
essa generalização e, principalmente, quais são as consequências tanto para o campo
acadêmico quanto para a sociedade em geral.
Palavras-chave: produção acadêmica, relações de poder, brasil, novas epistemes.
INTRODUÇÃO
É bastante costumeiro que, especificamente dentro do “senso comum”, as
pessoas sintam-se confortáveis para diagnosticar – ou generalizar – uma realidade ou
fenômeno (geralmente social) com o recorte enunciativo “no Brasil”. Em vez de
localizar a sua percepção de experiência vivida – e consequente estado conclusivo –
no espaço-tempo em que habita, as pessoas muitas vezes deslocam seu
conhecimento para todo o território nacional.
A produção de conhecimento dito científico, (re)produzido na academia, possui
protocolos e estatutos próprios para fugir dessa armadilha analítica. Um dos princípios
básicos para que a ciência seja considerada como tal decorre da consideração de
pressupostos epistemológicos e da descrição meticulosa das regras metodológicas
deferidas para a sua produção (SOUSA SANTOS, 2018). Isso significa que, sob as
condições em que a própria academia me condiciona, a afirmação não-embasada que
abre este texto não poderia ser cientificamente válida, ainda que fosse concebível
para a maioria dos leitores.
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Trabalho final apresentado para a disciplina “Mídia e Território – Perspectivas do Sul Global”, ofertada
pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal Fluminense em 2019.1.
* Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Cultura e Territorialidades da Universidade Federal
Fluminense. E-mail: pedrorcmeirelles@gmail.com.
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É sob essa contradição epistêmica que se desenvolve, nas últimas décadas,
uma intensa crise das ciências – principalmente das sociais. Diante dessa crise,
surgem novas propostas epistemológicas que problematizam, rompem e
principalmente apontam ideias e conceitos inventados como fixos. Perspectivas
decoloniais, pós-coloniais, anti-coloniais ou do chamado “Sul Global” pretendem não
apenas apontar novos caminhos, mas denunciar que há alguém apontando; que esse
caminho não precisaria ser apontado; que não precisaria ser sequer um caminho; ou,
ainda, que esses caminhos não precisam ser novos.
A proposta deste artigo surge nesse contexto de crise epistemológica da
racionalidade científica moderna, ainda que aponte para um lugar já instituído das
relações de poder do conhecimento: a própria academia. Sob a luz das discussões
que fomentam as discussões das problemáticas já referenciadas, pretende-se discutir
sobre como possivelmente há um desequilíbrio metodológico – ou, em outras
palavras, uma preferência (in)consciente – das pesquisas em Comunicação quanto
ao recorte enunciado “brasileiro” na produção de conhecimento científico.
Ou seja, nossa hipótese é que, mesmo dentro dos moldes estruturais que a
academia teoricamente exige que sejam seguidos à risca, há uma evidente falha
epistêmica que se desenvolve por e é consequência de/tem como consequência: 1) o
conhecimento parte de um centro socioeconômico que reflete, em diversas instâncias,
a sua própria realidade e o seu próprio modos de ver; 2) e corrobora com a
manutenção da noção de Brasil que ignora – ou suprime – as experiências territoriais
que compõem o espaço geográfico que o denomina, deixando às cegas a discussão
fundamental das noções de relações de poder que opera.
A discussão apresentada terá como recorte analítico exploratório o corpus da
produção científica de um programa de pós-graduação em Comunicação de uma
universidade federal do estado do Rio de Janeiro. É importante ratificar que este serve
apenas como base, ou instrumento metodológico subordinado, para o debate a ser
levantado a seguir. Mais importante do que chegar a um resultado ou conclusão
definitiva, a proposta deste artigo é engatinhar nas problemáticas até então
apresentadas e, principalmente, questionar coletivamente como será possível tratar
de pautas epistemologicamente decoloniais Brasil à dentro.
O caminho percorrido na elaboração do texto vai de encontro aos moldes
esperados a um artigo científico, da contextualização do problema à análise de um
recorte do objeto. Entretanto, segue também o caráter autobiográfico proposto para o
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sujeito-pesquisador do paradigma emergente (SOUSA SANTOS, 2018). Nesse
sentido, argumentamos que o trabalho de pesquisa é feito também por um sujeito que
possui questões próprias, vivências específicas e atravessamentos diversos – o que
direciona toda a sua trajetória, desde o seu interesse investigativo ao modo como será
feito o encaminhamento da análise.
Na primeira seção, discorremos sobre como a problematização do Nordeste
enquanto categoria discursiva-identitária e a própria experiência migratória de quem
vos escreve nos levou a pensar sobre a generalização de um só Brasil. Em seguida,
recorremos a alguns autores e textos da própria academia para ratificar o lugar de
poder da academia enquanto agente criador e legitimador de verdades únicas. A partir
dessa contextualização, apresentamos um experimento exploratório de investigação
da produção acadêmica em corpus de autoria fluminense, para enfim apontar a
responsabilização dessa episteme. periódico.
DA INVENÇÃO DO NORDESTE À INVENÇÃO DO BRASIL
A ideia deste artigo não surgiu de um acontecimento específico, mas de
algumas percepções concebidas nos primeiros meses de aula da pós-graduação em
Cultura e Territorialidades – e, principal e especificamente, também na aula de
Perspectivas do Sul Global do Programa de Pós-Graduação em Comunicação, da
qual é fruto este trabalho – na Universidade Federal Fluminense. Nas discussões
levantadas em sala de aula, onde a grande maioria do corpo discente (e docente) era
carioca, era bastante comum que a visão analítica sobre fenômenos sociais fosse
facilmente recortada enquanto “no Brasil”.
Em algumas pouquíssimas ocasiões, algum aluno ou aluna que migrou de
estados como Maranhão ou Pará intervia as discussões em contraponto à máxima já
facilmente estabelecida de percepções “do/no Brasil”, argumentando – na maioria das
vezes, de modo sutil – pela diferente experiência que leva à interpretação desses
fenômenos em uma vivência que não a carioca/fluminense. Foi justamente a partir
dessas observações, consideradas também devido à minha precedência como
migrante, que fez com que levantasse o questionamento – e a problemática – quanto
a esse Brasil acadêmico.
Como migrante e pesquisador sobre o Nordeste, o incômodo nessas falas
surgia em duas frentes: 1) a primeira, talvez mais óbvia, quanto às diferentes
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experiências e interpretações do mundo tendo em vista pontos referenciais tão
distantes (Aracaju x Rio de Janeiro) e; 2) a segunda, melhor fundamentada sob o
espectro de estudioso/entusiasta, quanto à constatação de que tanto o Nordeste
quanto o Brasil são categorias discursivas inventadas. Importante ratificar que essas
duas frentes não partem ou agem separadamente, mas, pelo contrário, são
atravessadas e se atravessam na figura do sujeito-pesquisador.
Embora possa por vezes parecer eterna ou natural aos brasileiros, a ideia de
Nordeste é de pouco mais de um século, sua origem remontando à reação
política ao desmantelamento das economias do açúcar e do algodão e à
busca de uma solução para a crise enfrentada conjuntamente pelas
províncias brasileiras que delas dependiam. É somente nesse momento que
começa a ruir a percepção provincial então vigente e que se elabora um
discurso regionalista e nordestino, o qual se define e se afirma não apenas
em oposição ao seu “outro” mais próximo – o ‘Sul’ cafeeiro –, mas também
em relação a um passado de suposto bem-estar e harmonia. É através desse
discurso e das ações oficiais dele derivadas que se demarca o espaço do que
é Nordeste e se conforma uma identidade cultural nordestina, a qual legitima
e representa, simbolicamente, aquele espaço (ANJOS, 2000, pp. 47- 48).
A reflexão teórica sobre a invenção do Nordeste (ALBUQUER JR., 1999)
garante a melhor compreensão de que a região que hoje é reconhecida como tal, não
apenas geográfica, mas – e principalmente – culturalmente, foi criada por uma série
de ações, movimentos e produções sociais e históricas (MEIRELLES, 2017). No
entanto, anterior às leituras que sustentam esse aprendizado, está a vivência do
pesquisador que o levou ao interesse dessas descobertas. Nesse sentido, o projeto
epistêmico que aqui se desenvolve parte de um emaranhado de bagagens para muito
além do referencial teórico.
É essa teia de aprendizados que nos leva também a questionar a noção de
Brasil, tanto no plano do real/físico enquanto vivência de saberes e sentidos (SODRÉ,
1988) quanto como episteme científica. Visto que o primeiro conduz a nossa linha
argumentativa à conclusão deste trabalho, é válido aqui – seguindo as regras do saber
acadêmico, que também somam – resgatar algumas discussões teóricas sobre essa
noção de Brasil, tentando alinhar as interpretações positivistas e construtivistas que
nos fornecem os instrumentos necessários para interpretá-lo em sua dinâmica
complexidade.
A começar pela concepção que talvez tenha maior aderência com o senso
comum, interpretado aqui como possível ponto de partida, que é a de território em seu
sentido mais literal: trata-se de uma faixa terrestre de proporções continentais
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localizada ao Sul do globo terrestre e delimitada espacialmente por fronteiras
marítimas e terrestres. Ainda que essa definição tente minimamente fugir de uma
interpretação simbólica e/ou representativa do que é o país, geógrafos como Milton
Santos (2002) e Rogério Haesbaert (2010; 2007) complexificam essa noção,
admitindo os significados intrínsecos ao território.
Partindo do supostamente mais “natural” e/ou “geográfico” para o
explicitamente mais político, a tradição estruturalista de Rousseau e Hegel do
pensamento moderno desenvolve o arcabouço teórico para fomentar, em diversas
disciplinas, as discussões em torno da concepção de Estado-nação. Nesse contexto,
destacamos o caráter político-administrativo que rege um território – neste caso
específico, o país Brasil. A noção de região proposta por Bourdieu, aqui, adequa-se
de maneira elementar ao amarrar as referências já levantadas e as que virão a seguir,
para continuarmos pensando o Brasil:
A etimologia da palavra região (regio), tal com descreve Emile Venvenistre,
conduz ao princípico da di-visão, acto mágico, quer dizer, propriamente
social, de diacrisis que introduzo por decreto uma descontinuidade decisória
na continuidade natural [...]. Regere fines, o acto que consiste em 'traça
fronteiras em linhas rectas', em separar 'o interior do exterior, o reino do
sagrado do reino do profano, o território nacional do território estrangeiro', é
um acto religioso realizado pela personagem investida da mais alta
autoridade, o rex, encarregado de reere sacra, de fixar as regras que trazem
à existência aquilo por elas prescrito, de falar com autoridade, de pré-dizer
no sentido de chamar ao ser, por um dizer executório, o que se diz, de fazer
sobrevir o porvir enunciado. A regio e as suas fronteiras (fines) não passam
do vestígio apagado do acto de autoridade que consiste em circunscrever a
região, o território (que também se diz fines), em impor a definição (outro
sentido de finis) legítima, conhecida e reconhecida, das fronteiras e do
território, em suma, o princípio de di-visão legítima do mundo social.
(BOURDIEU, 1989, p. 113-114).
O pensamento de Bourdieu nos é interessante porque, ao mesmo tempo em
que escancara o poder político do conceito de região de modo mais literal, também
aponta para o caráter simbólico-mítico que o atravessa: fazer crer. E é sob esta égide
que se desenvolve o nosso último ponto referencial teórico para compreender a ideia
de nação, conforme articulado por Ernest Renan em Nercolini (2006): “a nação é
constituída pela possessão de um rico legado de memórias do passado, pelo
consentimento sempre renovado, pelo desejo de viver junto e pela vontade contínua
de valorizar a herança recebida”.
Maior do que a ideia de nação, portanto, poderíamos argumentar, é a ideia de
nacionalidade – um dos pilares principais das representações ideológicas da
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modernidade (BHABHA, 2012). Muito mais do que o caráter físico-geográfico do
território-nação ou da força política-administrativa regente, há uma forte (re)produção
de sistemas discursivos que legitimam e estruturam a cultura nacional. Criam-se,
assim, comunidades imaginadas a partir de cinco elementos principais (HALL, 2006):
a narrativa da nação, a ênfase nas origens, a invenção da tradição, o mito fundacional,
e a ideia de um povo puro (original).
É evidente que todos esses modos de interpretar o Brasil enquanto nação não
se limitam uns aos outros, mas, pelo contrário: estão diretamente conectados entre si
e são complementares dentro da proposta que adotamos para este trabalho. O intuito
que se precedeu à diferenciação desses planos teóricos foi apenas para fins didáticos,
além de – e talvez ainda mais relevante, neste contexto – pontuar como há diversas
formas de produzir conhecimento acerca de um mesmo tema, assunto e/ou objeto. A
constatação de Brasil inventado, portanto, cabe em diferentes formatos da literatura
acadêmica.
O que nos leva a questionar, como discutiremos próxima seção, o papel da
academia como legitimadora de discursos hegemônicos. Onde se encaixa o
conhecimento científico na sociedade contemporânea? Como se estrutura enquanto
campo de relações de poder (para dentro e para fora dos muros acadêmicos)? Quais
são os seus embates e problemáticas que os acompanha nas últimas décadas? Como
fica a responsabilidade metodológica e social dos enunciados que profere? Estas são
algumas das perguntas-chave que guiarão – de modo breve, vale ratificar – a
discussão a seguir.
O LUGAR DA PRODUÇÃO ACADÊMICA ENQUANTO SISTEMA DE PODER
Retomamos, nesta seção, a provocativa que fizemos no início sobre a
enunciação de “recorte” nacional em sua diferença quando feita por um ator “comum”
e de um ator cientista. Essa diferença ocorre devido a uma série de fatores, os quais
podemos elencar, talvez como principais: o processo histórico e social que buscou
romper com modos de saber anteriores, em detrimento de um conhecimento científico
racional e progressista; os protocolos desenvolvidos para legitimar esse
conhecimento, na formulação epistemológica de uma série de métodos e modelos de
ação; e o campo científico canonizado em disputa como estatuto da verdade.
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O primeiro fator diz respeito ao esforço enfrentado pelos atores – à época,
simplesmente filósofos ou pensadores – que pretendiam ir de encontro com os modos
de saber hegemônicos, religiosos e/ou místicos. Tendo como base principalmente a
linguagem matemática, esses cientistas desenvolveram todas as suas linhas de
pensamento e de raciocínio sob a condição epistêmica de números. Como explica
Sousa Santos (2018, p. 27), a racionalidade científica se legitimou enquanto modelo
global e totalitário ao negar “todas as formas de conhecimento que se não pautarem
pelos seus princípios epistemológicos e pelas suas regras metodológicas”.
O modelo de racionalidade que preside a ciência moderna constituiu-se a
partir da revolução científica do século XVI e foi desenvolvido nos séculos
seguintes basicamente no domínio das ciências naturais. Ainda que com
alguns prenúncios no século XVIII, é só no século XIX que este modelo de
racionalidade se estende às ciências sociais emergentes. A partir de então
pode falar-se de um modelo global de racionalidade científica que admite
variedade interna mas que se distingue e defende, por via de fronteiras
ostensivas e ostensivamente policiadas, de duas formas de conhecimento
não científico (e, portanto, irracional) potencialmente perturbadoras e
intrusas: o senso comum e as chamadas humanidades ou estudos
humanísticos (em que se incluíram, entre outros, os estudos históricos,
filológicos, jurídicos, literários, filosóficos e teológicos). (id, ibid).
Para que o conhecimento científico fosse legitimado não somente como
principal, mas única fonte de saber, portanto, a ciência moderna desenvolveu um
complexo sistema em que “as qualidades intrínsecas do objeto são [...]
desqualificadas e em seu lugar passam a imperar as quantidades em que
eventualmente se podem traduzir” (SOUSA SANTOS, p. 28). O método científico tem
a pretensão de dividir e classificar para que a complexidade para “poder determinar
relações sistemáticas entre o que se separou”, a fim de formular leis “a luz de
regularidades observadas, com vista a prever o comportamento futuro [...]”.
Uma vez que o paradigma da ciência moderna foi fundado sob a égide das
ciências naturais, as ciências sociais tiveram que se adaptar e operar no jogo da
episteme científica para poder receber a mesma legitimidade – e autoridade – que a
primeira. Sousa Santos (1988, p. 29) explica que o desenvolvimento do conhecimento
nas ciências naturais “tomou possível a formulação de um conjunto de princípios e de
teorias sobre a estrutura da matéria que são aceites sem discussão por toda a
comunidade científica, conjunto esse que designa por paradigma”, enquanto nas
ciências sociais “não há consenso paradigmático”.
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Essa disputa por legitimidade e autoridade nos leva ao próximo fator que elevou
o conhecimento científico à diferenciação frente aos outros modos de saber. Como
explica Bourdieu (1983, p. 122), o próprio campo científico é lugar de disputa, onde “o
que está em jogo especificamente nessa luta é o monopólio da autoridade científica
definida, de maneira inseparável, como capacidade técnica e poder social”. Se dentro
do próprio campo há uma competição pelo “monopólio da competência científica”, há
de se pensar também como opera essas relações de poder para além dessa esfera
bastante específica da sociedade moderna.
Um campo, e também o campo científico, se define entre outras coisas
através da definição dos objetos de disputas e dos interesses específicos que
são irredutíveis aos objetos de disputas e aos interesses próprios de outros
campos (não se poderia motivar um filósofo com questões próprias dos
geógrafos) e que não são percebidos por quem não foi formado para entrar
neste campo (cada categoria de interesses implica a indiferença em relação
a outros interesses, a outros investimentos, destinados assim a serem
percebidos como absurdos, insensatos, ou nobres, desinteressados). Para
que um campo funcione, é preciso que haja objetos de disputas e pessoas
pontas a disputar o jogo dotadas de habitus que impliquem o conhecimento
e o reconhecimento das leis imanentes do jogo, dos objetos de disputas, etc.
(BOURDIEU, p. 1983, p. 89).
A teoria do campo de Bourdieu é interessante para pensarmos as relações de
poder entre os campos para além da figuração literal da palavra (como campo
científico). Para o autor, sob uma perspectiva estruturalista construtivista, a sociedade
deve ser compreendida como um corpo social. Nesse contexto, a estrutura social é
pensada como um espaço vazio, a espera de ser significado; as divisões
estabelecidas dentro desse espaço são campos que se ramificam também
internamente. Como há um espaço limitado, os campos disputam entre si por sua
expansão, numa situação permanente de luta pelas posições.
Nessa metáfora, a ciência é um campo que disputa pelo poder de significar o
espaço social, posicionando a si mesmo e aos demais campos mais ao centro ou à
periferia. Ou seja, a ciência disputou por – e ganhou – o espaço de outros modos de
saber precedentes (como a teologia e a metafísica) para se consolidar, ganhando e
produzindo seu próprio capital, como episteme total e universal. É sobre esse
paradigma que Foucault (1999) questiona o estatuto de verdade como o qual o
conhecimento científico se estabeleceu, historicizando a verdade e situando-a
intrinsicamente às relações de poder do mundo.
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Há um combate “pela verdade” ou, o menos, “em torno da verdade” –
entendendo-se mais uma vez, que por verdade não quero dizer “o conjunto
das regras segundo as quais se distingue o verdadeiro e o falso e se atribui
ao verdadeiro efeitos específicos de poder”; entendendo-se também que não
se trata de um combate “em favor” da verdade, mas em torno do estatuto da
verdade e do papel econômico-político que ela desempenha. (FOUCAULT,
2008, p. 13).
O nosso intuito nesta breve seção foi apontar, a partir da própria episteme
científica, ou seja, baseando-se em teorias e argumentos de atores legitimados, como
o conhecimento científico se consolidou como único agente possível capaz de explicar
o mundo em que vivemos desde a modernidade. Com isso, pretendemos
humildemente retomar a questão do sujeito tão importante em Foucault (LISNIOWSKI,
2006) a medida em que voltamos o olhar não apenas àquilo sobre o que se faz
pesquisa ou se estuda, mas também – e principalmente – àqueles que fazem pesquisa
e que estudam numa posição de poder bem estabelecida.
É sob essa luz que provocamos, portanto, o lugar – denotativo e conotativo –
dos pesquisadores que enunciam por análises direcionadas a um recorte
metodológico de difícil enquadramento: todo o território brasileiro. Na próxima seção,
partimos de uma análise exploratória – que, mais uma vez, trata-se de um objeto ao
mesmo tempo aleatório e arbitrário – para que possamos discutir quais são as
implicâncias desse movimento, tanto no que diz respeito à problemática metodológica
que parte de uma confortabilidade da posição em que os atores se encontram quanto
ao que esse movimento gera no jogo da representação.
LOCALIZANDO O BRASIL: UMA ANÁLISE EXPLORATÓRIA DAS PESQUISAS
EM COMUNICAÇÃO NO RIO DE JANEIRO
Antes de apresentar os resultados, vale ratificar mais uma vez o caráter
aleatório e arbitrário do objeto selecionado para avaliar as discussões e os
argumentos que sustentam este trabalho. Aleatório porque a escolha poderia ter
seguido diferentes caminhos quanto ao corpus de análise, como inicialmente havia se
pensado na possibilidade de trabalhar com artigos científicos de congressos; e, ao
mesmo tempo, arbitrário, por justamente ter sido escolhido a partir da vivência e
relação do pesquisador com o local dessa produção.
A nossa proposta geral era de fazer um levantamento de produções
acadêmicas enunciadas explicitamente com o recorte “no Brasil” ou “do Brasil” no
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campo das ciências sociais (aplicadas), tendo como hipótese inicial que dificilmente
os trabalhos dariam conta de conceber uma pesquisa de amplitude nacional,
colaborando para a construção discursiva enviesada do que é (ou do que seria) o
Brasil. Para facilitar a análise dentro dos parâmetros relevantes, optamos por trabalhar
não com artigos, mas com dissertações e teses.
Devido à proximidade do autor (e por ter sido o ambiente que primeiramente foi
o contexto da problemática deste trabalho), optou-se por formar um corpus de
pesquisa com os trabalhos produzidos pelos mestres e doutores formados pelo
Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal Fluminense,
de 2010 a 2018 (conforme disponibilizados no site institucional). Das 71 teses e 129
dissertações publicadas (200 ao total), foram identificados 49 trabalhos (24%) cujo
recorte foi explicitamente enunciado como “no Brasil” ou ”do Brasil”.
Figura 1 – Nuvem de termos das palavras-chaves dos trabalhos
Fonte: O autor.
A figura 1 fornece um retrato geral do que se tratam essas 30 dissertações e
19 teses que compõem o nosso corpus de análise, com um destaque sobretudo para
os trabalhos desenvolvidos sobre cinema, música e televisão. Uma análise
relativamente exploratória constatou que a grande maioria das produções
desenvolvem pesquisa documental (ou bibliográfica), com alguns estudos de caso
(em algumas dissertações) e pesquisas participante (com o apoio de algumas técnicas
etnográficas e/ou entrevistas em profundidade).
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Para que respondêssemos à hipótese principal, direcionamos o olhar para os
objetos das pesquisas, encontrando principalmente filmes (16), jornais (7), políticas
públicas (6), fãs (5), jornalistas (2), telenovelas (2) e telespectadoras (2). Vale pontuar,
dado esse cenário bastante diverso, a dificuldade metodológica de localizar esses
objetos em sua complexidade: no caso de produtos midiáticos (como filmes, jornais,
etc.), a classificação foi feita de acordo com o local de produção; para indivíduos,
levamos em consideração o local onde as entrevistas foram conduzidas (no caso de
eventos) e/ou sua filiação de naturalidade, quando mencionada.
Gráfico 1 – Estados contemplados pelos objetos das dissertações e teses
Fonte: O autor.
O gráfico 1 apresenta os estados contemplados pelos trabalhos analisados –
não é a contagem total de objetos (uma tese pode utilizar-se de dezenas de filmes
para análise, por exemplo) por produção, mas a contagem de trabalhos que
apresentam algum objeto do estado correspondente. Ou seja, em outras palavras,
mesmo que uma dissertação traga uma lista de filmografia com 100 filmes, dos quais
80 foram feitos no Rio de Janeiro e 10 em São Paulo, foi contabilizado apenas como
uma unidade para cada estado – referente ao trabalho, não ao total de objetos.
Das regiões brasileiras, o Sudeste é quem recebe mais atenção por parte dos
pesquisadores, com apenas o Espírito Santo não sendo fonte produtora de um objeto.
Ainda que com a ausência da Paraíba, Piauí, Rio Grande do Norte e Sergipe, o
Nordeste é a segunda região brasileira melhor representada; seguida da região Sul,
que possui representantes de todos os estados. A região Centro-Oeste tem como
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1
1
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Alagoas
Amazonas
Mato Grosso
Pará
Maranhão
Santa Catarina
Paraná
Distrito Federal
Minas Gerais
Ceará
Pernambuco
Rio Grande do Sul
Bahia
São Paulo
Rio de Janeiro
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protagonista a capital federal (sem Goiás ou Mato Grosso do Sul), e Pará e Amazonas
falam pela região Norte (sem Acre, Amapá, Rondônia, Roraima e Tocantins).
Interessante pontuar ainda algumas percepções gerais como, por exemplo, os
objetos nordestinos se concentrarem nas produções sobre cinema, enquanto os
outros estados também aparecerem em diferentes formatos de objetos (como jornais
ou fãs). Alguns destes também não foram possíveis de serem localizados conforme a
proposta deste trabalho, devido a sua complexidade metodológica - ou, ainda, no caso
de questionários divulgados via internet ou ainda quanto a políticas públicas, cujo
caráter opera em posição executiva em amplitude nacional.
A partir desses resultados, formulam-se alguns questionamentos que vão ao
encontro da problemática proposta para este trabalho: o que significa a predominância
absoluta do Rio de Janeiro e de São Paulo dentre os objetos de pesquisa analisados?
Uma vez que os trabalhos se propõem a fazer uma leitura sobre o Brasil, a distribuição
representativa dos estados não deveria ser um pouco mais equilibrada? Por que doze
dos vinte e seis (quase 50%) estados brasileiros nem sequer apareceram no corpus
da análise? O que esses objetos representam?
São perguntas complexas que renderiam mais uma dissertação para respondê-
las em suas variáveis mais problemáticas, mas aqui – já tomando como correta nossa
hipótese inicial – tentaremos brevemente abordá-las de maneira crítica. É importante
dizer que não se trata de uma problemática simplesmente metodológica, como uma
revisão à risca dos princípios científicos (que eles mesmos já são variantes e
problemáticos principalmente no campo das ciências sociais), mas uma reflexão
epistemológica sobre as precedências e as consequências dessa produção.
A começar, talvez, pelo mais óbvio ou simplista: as pesquisas são feitas por
pesquisadores cujo olhar direciona-se para o local em que eles próprio habitam (no
caso, o Rio de Janeiro). Para que essa afirmação pudesse ser colocada a teste, seria
interessante que a análise tivesse sido desenvolvida em corpus de outras
universidades do Brasil, sobretudo naquelas de menor representatividade. Seria
interessante observar, por exemplo, se mesmo em outros lugares, quando o recorte é
dito como nacional, o foco recai sobre Rio de Janeiro e São Paulo.
Ainda assim, esse aspecto se desencadeia em duas questões importantes:
primeiro, relembrando que o pesquisador não é um ser que veio do e que vive no
vácuo espaço-tempo, como acreditavam ser possível sob o paradigma da ciência
moderna completamente imparcial e racional – pelo contrário, ele age tanto durante
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quanto antes do fazer científico; e, segundo, para que possamos pensar quem (ou
onde) estão os autores que possuem maior capital para desenvolver seus trabalhos
e, ainda, sentem-se confortáveis para enunciar o Brasil como recorte.
A história do Brasil enquanto território político-administrativo nos releva como
alguns espaços específicos – que podem ser chamados de regiões, estados ou
municípios – foram beneficiados financeiramente para acelerar um suposto
desenvolvimento. O resultado desse desequilíbrio fica evidente até hoje, quando
percebemos que a concentração financeira-midiática está localizada no Sudeste,
legitimando assim atores com as condições necessárias para produzir as narrativas
que lhes convêm – a maioria dos filmes analisados, por exemplo.
Antes mesmo de voltarmos o olhar para “sobre o que” fala, portanto, é preciso
voltar o olhar para “quem” fala. No cenário midiático – ou artístico-cultural, se
quisermos expandir para séculos passados – em que se configurou o Brasil, passando
por momentos cruciais de tentativa de unificação nacionalista (como os movimentos
literários do modernismo ou até mesmo do regionalismo, de certo modo), é
fundamental pensar onde são produzidos esses produtos e, por mais cujo alcance
seja a nível nacional, por que é problemático tomá-los como tal.
E talvez esteja aí a principal crítica deste trabalho direcionada à comunidade
acadêmica: não há problema em estudar o Brasil (e até mesmo enunciar desta
maneira), mas é preciso problematizar qual é o Brasil que a pesquisa vai abordar –
e/ou explicar social e historicamente o que está por trás dessa noção de nação. Caso
contrário, a academia acaba reproduzindo – tanto em discurso quanto em operação
de poder – as ações que tanto critica para fora dela, geralmente direcionada
justamente aos produtos culturais midiáticos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este artigo surgiu do processo de conscientização do pesquisador enquanto
sujeito-outro num ambiente acadêmico não correspondente a algumas das suas
visões de mundo. Também incentivou – e foi incentivado por – uma reformulação do
projeto de mestrado que, num primeiro momento, pretendia pesquisar o “nordestino”
na esfera da representação (ou seja, na tentativa de observar o objeto de fora); e que,
nesse processo, viu a necessidade de se impor com sujeito para pesquisar – e pensar
– a vivência enquanto nordestino acadêmico no Rio de Janeiro.
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Nesse contexto, o presente trabalho buscou abordar um questionamento-
incômodo no que diz respeito à produção de conhecimento acadêmico: que Brasil é
esse? Para isso, primeiro desenvolvemos um breve levantamento teórico a fim de
discutir questões centrais que atravessam essa percepção de território unificado,
como nação, identidade e nacionalidade. Em seguida, apontamos para o sistema de
poder no qual o conhecimento científico se localiza, tendo passado por um período de
legitimação para então se garantir como autoridade total no que diz respeito às
epistemes que compõem o saber do mundo.
Como análise exploratória a fim de fomentar a nossa discussão, recorremos a
um corpus de análise de dissertações e teses do PPGCOM-UFF, direcionando o olhar
para aquelas cujo recorte analítico mantinha explicitamente o enunciado “no Brasil”
ou “do Brasil”. Os resultados apontaram de modo positivo para nossa hipótese,
mostrando que não há uma preocupação metodológica em contemplar todo o território
nacional e, mais do que isso, é evidente uma preferência – já esperada – pelo polo
financeiro Rio de Janeiro-São Paulo.
O nosso argumento, afinal, desdobra-se em dois pontos: é preciso pensar
criticamente sobre por qual motivo esse desequilíbrio impactante existe (quais são
suas causas e efeitos) na noção que temos de Brasil; e, qual é a responsabilidade da
produção acadêmica em problematizar tanto seu processo metodológico e enunciativo
quanto seu próprio projeto epistêmico, que por si está ancorado em tradições da
ciência moderna cujos paradigmas são fruto do – também – seu local de nascimento:
a Europa, com cientistas homens, brancos, etc.
Para futuras reflexões e trabalhos, propomos uma expansão – talvez mais
teórica do que analítica/prática, como constituiu este artigo – na discussão sobre as
epistemes que constituem a tradição brasileira de conhecimento científico. Uma vez
que, a nível global, legitima-se recentemente a necessidade de pensar perspectivas
do Sul, invertendo o mapa e o fluxo de conhecimento; talvez seja necessário, bebendo
também dessa fonte, olhar para o Brasil em suas especificidades e também inverter
internamente para permitir novos arranjos subjetivos e territórios existenciais.
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